Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 7

O sistema das democracias totalitárias do mercado mundial

 

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Secção 4

O totalitário capitalismo do tempo livre

Talvez a ilusão mais peculiar da consciência social na mobilização totalitária tenha sido a ideia generalizada de que a humanidade capitalista teria cada vez mais "tempo livre" e "diversão", devido ao gigantesco aumento da produtividade. Tal como a prosperidade fordista em geral, porém, também a própria "redução do horário de trabalho" que superficialmente a acompanhou, considerada de modo imanente e puramente quantitativo, deve ser fortemente relativizada.

Em primeiro lugar, este aspecto do "milagre económico" esteve também limitado às poucas potências centrais capitalistas que ainda hoje dominam o mercado mundial; em grande medida, a redução das horas de trabalho podia ser financiada pelos lucros do mercado mundial e, por conseguinte, representava apenas uma opção de vencedor na época de prosperidade, e não uma possibilidade estrutural do capitalismo em geral. Para a grande maioria da humanidade, nos países capitalistas estatais da modernização atrasada e nos "países em desenvolvimento" do Terceiro Mundo, continuaram os tempos de trabalho diários, anuais e vitalícios excessivamente longos, na melhor das hipóteses um pouco abaixo dos níveis máximos dos primeiros infernos capitalistas do trabalho.

Em segundo lugar, havia uma forte disparidade a este respeito mesmo entre as potências capitalistas centrais; pois nos países anglo-saxónicos do liberalismo económico clássico, mesmo sob governos de "esquerda", as horas de trabalho não foram reduzidas tanto como na Europa Ocidental continental. Para não mencionar o Japão, o novo centro capitalista e vencedor do mercado mundial na região asiática, onde as condições capitalistas iniciais nunca desapareceram completamente (especialmente nas indústrias de subcontratação). Em terceiro lugar, a redução do tempo de trabalho estava naturalmente ligada à época de prosperidade; com o abrandamento do ritmo de crescimento, a racionalidade da economia empresarial foi obrigada a resistir a qualquer nova redução do tempo de trabalho por negociação colectiva ou por lei, e mesmo a inverter a tendência. As visões da "sociedade do tempo livre" capitalista foram assim desde o início, mesmo em termos puramente quantitativos, rudimentares projecções de uma situação especial e temporária.

Em quarto e último lugar, as considerações e esperanças de uma importância crescente do "tempo livre" ignoraram sistematicamente o verdadeiro cálculo já feito por Taylor e Ford, na fase inicial da Segunda Revolução Industrial: nomeadamente, a enorme sobrecompensação da módica redução do tempo de trabalho pela muito maior intensificação do tempo de trabalho. Os métodos da "ciência do trabalho" e da produção em fluxo, aplicados pela primeira vez em grande escala social e global na época da prosperidade fordista, também foram constantemente aperfeiçoados. Foi de facto o espremer assim intensificado do material humano que suportou o grande impulso de acumulação do período pós-guerra; comparativamente, a redução das horas de trabalho teve uma importância mínima. Esta relação poderia ser reduzida à fórmula perversa: Quanto mais curto for o horário de trabalho fordista, mais esgotado ficará o material humano. O aumento do consumo de tempo livre foi, num certo sentido, a banana com que a "força de trabalho" condicionada foi atraída para a extrema intensificação do "trabalho abstracto".

Para além desta relativização quantitativa do tempo de trabalho reduzido, é o próprio carácter qualitativo do tempo na aparência livremente disponível que revela a sua natureza destrutiva. O próprio termo "tempo livre" aponta para as suas origens nos manicómios do século XVIII, para um tempo meramente residual, para além da domesticação do material humano na fábrica e no escritório. Mas a mobilização fordista foi precisamente a instrumentalização capitalista até deste tempo residual da vida. Tal como a dona de casa e mãe, duplamente sobrecarregada, após a exaustiva actividade no espaço funcional imediato do capital, continua a trabalhar em casa por outros meios, utilizando meios de produção fordistas na economia doméstica, assim também o condicionamento capitalista continua no consumo de tempo livre, através dos meios de transporte, dos meios de comunicação e do equipamento desportivo do fordismo. Enquanto o "tempo livre" tinha sido um espaço mais ou menos indefinido fora do capital e do seu domínio até meados do século, a totalização e a mobilização tomaram agora posse também desta esfera. O que Hannah Arendt disse sobre os habitantes do país governado pelo totalitarismo, nomeadamente que estavam privados de "toda a acção ou mesmo actividade resultante da livre espontaneidade", agora também se aplicava ao espaço restante, para além da esfera funcional capitalista imediata. Sem querer, o movimento operário socialista e sindicalista, a partir do espírito da domesticação, já tinha transformado as formas de "trabalho abstracto" em "tempo livre" e, nas suas respectivas organizações culturais secundárias, tinha adoptado uma conduta que só precisava de ser comercializada. A automobilização e o subsequente turismo de fim-de-semana e de férias proporcionaram pontos de partida ideais para alargar a integração capitalista totalitária à esfera do "tempo livre".

Os nazis também estavam conscientes disto e, significativamente, fundaram a organização de tempos livres "Força pela alegria" ("Kraft durch Freude": KdF) como uma subdivisão da "Frente do Trabalho Alemã". Também a este respeito, o nacional-socialismo já tinha posto em marcha a democracia comercial do pós-guerra sob formas estatais-totalitárias, e fundado as estruturas de um novo tipo de capitalismo de tempo livre, que só se desenvolveu plenamente a partir dos anos 50, mas já estava em plena floração nos EUA. Os nazis não conseguiram completar a planeada motorização popular alemã, mas a KdF organizou uma variedade de empresas turísticas que conseguiram ligar-se perfeitamente às correspondentes actividades do movimento cultural dos trabalhadores. As viagens de barco da KdF à Madeira e à Noruega anteciparam elementos do posterior turismo de massas europeu. Muitos antigos membros dos sindicatos e da social-democracia também se deixaram corromper pelos nazis através da KdF. Assim, um dos "Relatórios da Alemanha" do SPD no exílio, que recolheu material sobre condições e estados de espírito na Alemanha nazi, diz de uma viagem KdF envolvendo o líder Ley da "Frente do Trabalho":

 

"Não preciso de mencionar em particular que foi feita uma publicidade gigantesca com a viagem à Madeira. De notar que esta viagem até causou uma grande impressão a um camarada mais velho. Disse ele, por exemplo: ‘Sabe, devo admitir que a camaradagem prevaleceu durante toda a viagem, tal como infelizmente não existia entre nós em tempos anteriores. Os mais necessitados foram mesmo ajudados pelos mais ricos com presentes em dinheiro, para que não tivessem de se sentir deixados para trás em lado nenhum. Não houve diferenças no navio, tudo era um só coração e uma só alma. Tem de se dizer que houve aqui realmente algo de igualdade, como nós, socialistas, sempre esperámos. E Ley, em particular, era muito camarada. Todos os dias, ele dava horas de audiência no seu camarote [...]’ [...] É preciso admitir [...] que os nacional-socialistas infelizmente impressionaram uma parte dos trabalhadores com tais métodos" (citado de: Abelshauser/Faust/Petzina 1985, 375s.).

 

Noutro destes relatórios, surge um aspecto do incipiente turismo de massas que revela, já nesta fase inicial, tanto a caricatura da emancipação social no consumo capitalista de tempo livre como o carácter da crítica cultural conservadora e elitista a estes fenómenos:

 

"Muitas pessoas abastadas estão bastante amuadas com a KdF. As viagens eram um domínio reservado para elas. Já não podem continuar a ser uma grande experiência para elas se forem  desclassificadas como uma experiência de massas. Evitam locais com visitas da KdF. Contam histórias de horror sobre o comportamento malcriado das pessoas da KdF, que caíam sobre um lugar como gafanhotos, davam-lhe uma marca de vulgaridade, embebedavam-se sem sentido e faziam um barulho horrível à noite [...]" (citado de: Abelshauser et al., 379).

 

Tal como noutros aspectos, a crítica elitista da "massificação" não visa o facto de o material humano do capital ser impulsionado pela mobilização total fordista, mesmo nos seus "tempos livres", a formas de auto-engano e subordinação ao fim-em-si capitalista; exactamente ao contrário, o conservadorismo cultural burguês apenas se queixa de que os "que ganham melhor" têm de sentir-se perturbados no seu gozo burguês do mundo pelo vulgarizado consumo de massas do mundo fordista das mercadorias. A essência destrutiva do turismo de massas automóvel (e entretanto aeromóvel) aparece de modo meramente empírico e imediato, como comportamento de sujeitos que são desqualificados como "plebeus" grosseiros e de pensamento mesquinho, enquanto o contexto condicional capitalista que forma o fundo mudo desses críticos elitistas da própria cultura de massas permanece também ele mudo no seu arrazoado superficial. No entanto, o que os nojentos fenómenos da incultura de massas capitalista mostram é apenas aquilo que o capitalismo tem feito das pessoas.

Nas democracias fordistas do pós-guerra, estes fenómenos assumiram pela primeira vez um carácter verdadeiramente de massas, começando pelo automóvel como meio do tempo livre e alargando-se ao turismo de massas. O sonho de viajar e de uma experiência agradável do mundo tornou-se um pesadelo, a realização do desejo, uma distorção cruel. Pois, ao estender-se ao "tempo livre" desta maneira, a mobilização transformou-se numa extensão fantasmagórica do espaço funcional da economia empresarial. A organização do "tempo livre" à medida da fábrica, como a KdF a tinha antecipado de forma rudimentar, traduziu na perfeição o ritmo do trabalho sem sentido num ritmo de tempo livre. O "fim do trabalho" diário, o fim de semana e as férias anuais ridiculamente curtas agora apenas cospem as pessoas de um espaço funcional do capital para outro. Ao transformar-se também a vida privada, os interesses e os hábitos das pessoas fora do espaço do trabalho abstracto numa operação (cada vez mais individualizada) de máquinas de todos os tipos, deixou finalmente de haver qualquer espaço social fora do condicionamento capitalista. Assim, a capacidade humana de perceber o carácter capitalista desta forma de vida condicionada, que já não permitia modos alternativos de comportamento e prazer, também se extinguiu em grande parte (embora de modo nenhum completamente), porque todo o espaço social e individual da vida foi transformado de acordo com a "forma funcional" capitalista. Ernst Jünger, agora contemplativo, registou com bastante precisão esta "continuação do trabalho por outros meios", no seu "Livro da Ampulheta" no início do boom do pós-guerra:

 

"Quando se observa as pobres pessoas que hoje em dia procuram recreação, e também precisam dela ao mais alto grau, deseja-se que pensem de antemão em duas coisas que estão intimamente ligadas, a saber, o trabalho e o relógio. Evitariam então férias que só continuam o trabalho. Se ao meio-dia de sábado partem em automóveis e motocicletas para os destinos mais distantes possíveis, se lá se dedicam a diversões apressadas, e depois voltam no fim do domingo, enchendo as cidades de barulho, continuam o seu trabalho semanal por outras formas, talvez ainda mais cansativas. Não saíram do feitiço dos autómatos. Não se desprenderam do ritmo dos relógios. Deste modo, permanecem sempre num espaço definido pelas duas figuras da roda e da passadeira rolante: a roda que gira incansavelmente e a estimada passadeira que não tem fim. A roda pode aparecer como uma roda do relógio ou como a roda das máquinas de trânsito e de prazer, a passadeira como uma estrada, como um filme, como interminável mostrador de relógio. Especialmente à noite, enquanto se acelera ao longo de estradas pálidas, este feitiço pode tornar-se muito forte. Todas estas visões não são independentes, nem são fruíveis ad hoc, mas representam excertos e recortes de um tremendo movimento circular. Este movimento é a consciência externamente projectada do tempo e do espaço da raça humana que o concebeu e o goza poderosamente, é o trabalho por excelência. O desporto tem igualmente o carácter de trabalho, e isto na medida em que sujeita a livre circulação do jogo ao feitiço dos relógios e dos recordes. Não traz, portanto, nenhuma recreação, mas continua o trabalho. Isto também é evidente no facto de incluir em si, por um lado, procedimentos de medição e, por outro, transacções monetárias [...] As formas de mobilização que não são reconhecidas como tal, ou que são mesmo bem-vindas, são particularmente eficazes. O carácter de conforto das nossas instituições assemelha-se a um polimento fino [...]" (Jünger 1954, 194s.).

 

Dificilmente se pode esperar outra coisa numa ordem social orientada para não tolerar, na medida do possível, "nenhum átomo" que "não esteja a trabalhar". Jünger confunde-se aqui um pouco nas determinações e diagnósticos do mundo fordista, nas suas várias fases de desenvolvimento: por um lado, a heroicizada "figura do trabalhador" da literatura do modernismo pós-Tempestade de aço ainda assombra o período entre guerras; e, neste sentido, o movimento interminável da faixa de rodagem, que inclui o totalitário capitalismo do tempo livre, torna-se a "consciência do tempo e do espaço" do tipo que supostamente o "goza poderosamente". Mas, nas condições de meados dos anos 50, este "prazer poderoso" já seria apenas o sórdido prazer do acelera inconsciente e do turista idiota. Por outro lado, aqueles "poderosos fruidores" do movimento sem fim são, até para Jünger algumas linhas atrás, nada mais do que "pobres pessoas" que, mesmo no seu "tempo livre", se deixam mobilizar e "esgotar" pelo movimento de fim-em-si sem descanso do capital. A própria análise de Jünger sobre este processo nega aquele herói figurado do "trabalhador" universal, do qual ele não consegue, no entanto, prescindir. Horkheimer e Adorno já eram mais claros sobre isto uma década antes, depois de o seu olhar ter sido apurado pelas condições avançadas do capitalismo de tempo livre dos Estados Unidos da América:

 

"A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais perceber outra coisa senão as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho [...] Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio [...] o produto prescreve toda reacção: não por sua estrutura temáticaque desmorona na medida em que exige o pensamento –, mas através de sinais [...] Fun é um banho medicinal, que a indústria do prazer prescreve incessantemente. [...] A fuga do quotidiano, que a indústria cultural promete em todos os seus ramos, se passa do mesmo modo que o rapto da moça numa folha humorística norte-americana: é o próprio pai que está segurando a escada no escuro. A indústria cultural volta a oferecer como paraíso o mesmo quotidiano [...] A diversão favorece a resignação, que nela quer se esquecer [...] Não são os guizos da carapuça do bufão que se põem a tilintar, mas o molho de chaves da razão capitalista, que mesmo na tela liga o prazer aos projectos de expansão [...] Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é a sua própria base. É na verdade uma fuga, mas não, como afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última ideia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir. [...] A indústria só se interessa pelos humanos como clientes e empregados e, de facto, reduziu a humanidade inteira, bem como cada um de seus elementos, a essa fórmula exaustiva [...]" (Adorno/Horkheimer 1997/1944, 158-169 passim).

 

A deslocação da ênfase na consciência de massas capitalista do trabalho para o tempo livre, da produção de mercadorias para o consumo de mercadorias, apenas se seguiu à transformação do tempo livre e do consumo em esferas de investimento do capital e numa "actividade de produção de segunda ordem" capitalista. O ser humano fordista do pós-guerra, centrado no tempo livre e não no trabalho, vivia agora num mundo em que não podia, de facto, expressar a sua vontade de viver sem servir directa ou indirectamente o processo de valorização do capital. Assim, inevitavelmente, a consciência humana foi também tomada pelo andamento da moagem da "bela máquina", num sentido mais profundo do que meramente disciplinar ou ideológico. O ser humano indivisível, que sob o domínio capitalista há muito estava dividido em animal de trabalho treinado, por um lado, e restante de humanidade do "tempo livre", por outro, podia agora ser restaurado, ridicularizando toda a crítica cultural anterior; mas apenas como o ser humano funcional universal de um modo de produção totalitário alargado a capitalismo de tempo livre.

A consciência de massas assim amplamente atingida aproximou-se gradualmente do estado ideal de Bentham – um "controlo da realidade" capitalista que inclui também o "controlo dos sonhos": não apenas através do condicionamento dos desejos e esperanças no consumo mercantil de motores e bens de tempo livre, nem simplesmente através de uma aspersão de publicidade que, como o automóvel, se tinha tornado o universal ambiente anti-estético, mas através de um abrangente "controlo das emoções" mediático. Evidentemente, a forma dos meios técnicos de consumo, moldados por critérios capitalistas, já deixa a sua marca na consciência do capitalismo de tempo livre. Do mesmo modo, a omnipresença acústica e visual da publicidade faz-se sentir não tanto através do seu objectivo directo de incitar à compra de certos artigos, mas sim como formação geral de uma consciência que absorveu em si a forma, o "sentido" e a estética específica da "publicidade em geral", e vê o mundo com esses olhos.

Estes níveis de condicionamento da consciência já significam mais do que simplesmente a banalidade de que numa sociedade capitalista reina uma consciência capitalista. O facto geral de a consciência ser um produto social ainda não diz nada sobre quão profunda e extensamente os indivíduos são controlados pelos imperativos sociais. Não são tanto os objectos específicos do pensamento e do sentimento que constituem este carácter socialmente condicionado da consciência, mas sim a forma geral de todos os conteúdos de consciência concebíveis que tornam o indivíduo submisso. E, neste sentido, a forma capitalista na mobilização fordista e no capitalismo de tempo livre visou e atingiu níveis de consciência mais profundos do que qualquer anterior captura feita pela dominação social. A formatação não só dos desejos e apetites externos, mas também dos sentimentos, a apreensão do inconsciente, revela com a maior clareza o carácter totalitário do capitalismo – e ao mesmo tempo torna este totalitarismo invisível, na medida em que a captura é bem sucedida.

O pré-requisito para tal eram os media industriais da consciência, que o fordismo já tinha produzido no período entre guerras em termos puramente técnicos juntamente com o automóvel; acima de tudo, claro, cinema sonoro, rádio e televisão. Aplica-se a estes então novos media o mesmo que ao automóvel: a sua mobilização efectiva em grande escala social como consumo em massa só ocorreu no período pós-guerra. Os Estados do trabalho fordistas tornaram-se não só ditaduras do automóvel, mas também democracias dos media. A democratização da consciência de massas, que andou de mãos dadas com a desmobilização política e em vez disso deslocou a mobilização para o nível comercial, foi, em crassa contradição com a ideologia oficial da "participação política", idêntica a uma coordenação forçada do inconsciente e das expressões de sentimento. Nada mais poderia ser produzido com ela do que uma formatação capitalista até mesmo do orçamento emocional dos indivíduos, uma padronização fordista da emoção.

Isto era essencialmente o que Adorno e Horkheimer já tinham chamado "indústria cultural" ou "cultura de massas" capitalista em 1944. O capitalismo de tempo livre não se confunde, evidentemente, com a tosca objectualidade dos aparelhos mediáticos. O "televisor", a caixa de transmissão de imagem e som, é apenas um suporte técnico – mas menos de conteúdos do que de modelações da forma da consciência e do sentimento. O que se aplica em princípio à publicidade também se aplica aos produtos da consciência e do sentimento do consumo de massas, que não têm carácter de publicidade directa. O elemento da venalidade universal, que engole e valida por igual qualquer conteúdo, assimila todos os objectos da consciência e do sentimento da publicidade. Ao mesmo tempo, são as condições de produção fordistas que, a priori, também formatam capitalistamente estes produtos da consciência:

 

"O carácter de montagem da indústria cultural, a fabricação sintética e dirigida de seus produtos, que é industrial não apenas no estúdio cinematográfico, mas também (pelo menos virtualmente) na compilação das biografias baratas, romances-reportagem e canções de sucesso, já estão adaptados de antemão à publicidade: na medida em que cada elemento se torna separável, fungível e também tecnicamente alienado à totalidade significativa, ele se presta a finalidades exteriores à obra [...]" (Adorno/Horkheimer 1997/1944, 187).

 

A finalidade exterior ao conteúdo é, evidentemente, o fim-em-si capitalista, a valorização sempre igual do dinheiro, que se tornou o seu próprio conteúdo. Daí resulta, para a produção da consciência, a mesma racionalização que para os produtos industriais em série. Humores, estados emocionais, ideologias, relações pessoais e "estados de espírito internos" são reduzidos a um arsenal básico de componentes e módulos que podem ser combinados à vontade. Os modelos de consciência são produzidos como os automóveis, os sentimentos são padronizados como o "Modelo T". Assim, os mundos emocionais e os humores sociais, uniformizados e com carga capitalista, estão também sujeitos às conjunturas do processo de valorização:

 

"A difusão das popular songs ocorre de um só golpe. A expressão norte-americana “fad”, usada para se referir a modas que surgem como epidemias (isto é, que são lançadas por potências económicas altamente concentradas), já designava o fenómeno muito tempo antes que os chefes totalitários da publicidade impusessem as linhas gerais da cultura" (Horkheimer/Adorno, op. cit., 189).

 

No início da década de 1960, Hans Magnus Enzensberger criticou o conceito de "indústria cultural" como minimizante, por ter sido talhado para um segmento demasiado restrito da "chamada vida cultural" e ter alargado o significado do fenómeno a um conceito mais abrangente de "indústria da consciência" (Enzensberger 1964). Ele exigiu reagir a esta evolução, que considerou "inevitável" (quase um pouco à maneira de Ernst Jünger), com astúcia e artimanha, por assim dizer:

 

"É um processo irreversível. Daqui decorre que qualquer crítica à indústria da consciência exigindo a sua abolição é desajeitada e sem sentido. Vai dar na proposta suicida de inverter completamente a industrialização, de a liquidar [...] Ocupada com a multiplicação da consciência, (a indústria da consciência) multiplica as suas próprias contradições [...] Qualquer crítica [...] que não reconheça esta ambiguidade é inútil ou perigosa [...] Não se trata de rejeitar impotentemente a indústria da consciência, mas de se envolver no seu perigoso jogo [...]" (Enzensberger 1964, 12ss.).

 

Certamente que o conceito de "indústria cultural" seria de curto alcance se aplicado restritamente à esfera cultural em sentido estrito, mas não é assim que é entendido, pelo menos por Adorno e Horkheimer. Pelo contrário, trata-se aqui de um conceito mais amplo de cultura, que inclui também a vida quotidiana e o largo espectro do capitalismo de tempo livre com ela relacionado; neste sentido, o conceito de "indústria cultural" seria sinónimo tanto de "cultura de massas" como de "indústria da consciência". A consciência capitalista quotidiana e de massas, o "controlo da realidade", o "controlo dos sonhos" e o "controlo dos sentimentos" funcionam de múltiplas formas através da interacção do capitalismo de produção com o capitalismo de tempo livre, através de mecanismos directos e indirectos de formatação da consciência; não apenas através de específicos modelos de consciência e produtos de sentimento das respectivas indústrias.

Como o desenvolvimento da indústria da consciência desde então demonstrou, esta captura universal dificilmente pode ser evitada pela atitude individual de guerrilheiro por parte dos intelectuais. Mas a alternativa entre pessimismo cultural reaccionário e participação crítica é, de qualquer modo, falsa. Como o problema é a forma capitalista da sociedade em geral, que no avanço histórico do fordismo estendeu a pretensão totalitária da "bela máquina" como capitalismo de tempo livre aos tempos residuais do que resta da vida para além da produção capitalista, mesmo às emoções, a crítica e a resistência também não podem começar isoladamente nestes fenómenos mais exteriores. Na medida em que o capitalismo se inflou numa relação mundial universal, o lema também se aplica à sua crítica: ou tudo ou nada.

A hipótese de resistência não reside tanto no contrabando de conteúdos críticos isolados para a indústria cultural ou da consciência. Pelo contrário, é o facto de o capitalismo, apesar da sua intensificação fordista, não ter sido capaz de se fechar completamente em totalidade, que também deixa uma lacuna na consciência de massas até aos dias de hoje. Tal como os domínios da reprodução dissociados definidos como "femininos" não puderam ser completamente absorvidos pelas indústrias e serviços fordistas, tão-pouco a consciência de massas pôde ser feita completamente coincidente com a formatação da indústria cultural. Mas faltou a consciência teórica e a força social do movimento para aplicar a alavanca da crítica a estas lacunas, uma vez que socialistas e comunistas, sindicatos e intelectuais de esquerda não só descendem por igual da razão iluminista tornada liberal, como também sempre apoiaram a forma actual do modo de produção capitalista totalitário em todos os aspectos. O que a automobilização foi para a social-democracia foi a indústria fordista da consciência para a intelligentsia. Tal como já nas fases de desenvolvimento anteriores, a social-democracia, os sindicatos e a crítica social de esquerda estiveram eles próprios, intencionalmente ou não, entre os pioneiros do processo de totalização capitalista, no avanço da Segunda Revolução Industrial.

 

 

Original Totalitärer Freizeitkapitalismus, pags. 317-323 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (4.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

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