Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 7

O sistema das democracias totalitárias do mercado mundial

 

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Secção 7

Destruição do mundo e crise de consciência

No ponto de viragem do boom fordista, tornou-se claro que a esperança capitalista de "prosperidade perpétua" era uma ilusão, e não só. Também se tornou claro que a mobilização da Segunda Revolução Industrial tinha produzido uma nova dimensão da crise, precisamente em consequência da prosperidade: a ampla destruição das bases naturais da vida. Desde o início, a lógica do "trabalho abstracto" e a conexa externalização de custos da economia empresarial (para a sociedade no seu conjunto, para o futuro e, de facto, para a natureza) tinha tornado o capitalismo indiferente ao conteúdo qualitativo e, portanto, também à lógica própria do ambiente natural. Já no século XIX, este sistema tinha literalmente um mau cheiro de bradar aos céus. Na sua análise da "Situação da classe trabalhadora", por exemplo, o jovem Friedrich Engels tinha descrito as águas das cidades fabris inglesas como "cloacas nojentas". Enquanto o capitalismo ainda não dominava amplamente o espaço social e natural, este aspecto do seu potencial destrutivo, sendo já visível, ainda assim não aparecia como uma ameaça abrangente e passava para trás dos problemas socioeconómicos. Foi apenas com a mobilização total fordista que não só o "sector tradicional" da reprodução desapareceu, mas também a natureza ficou agora totalmente à mercê da lógica abstracta da valorização da economia empresarial.

No início da década de 1970, grupos de cientistas abordaram a "finitude dos recursos naturais", que pareciam estar em perigo devido à sobreexploração industrial. Durante a "crise do petróleo" esta ameaça tornou-se tangível, quando, com as proibições de condução de domingo, as estradas e auto-estradas ficaram fantasmagóricamente desertas e o eterno ruído dos motores se calou por uma vez. Pela primeira vez, foram debatidos em todo o mundo os "limites ao crescimento", após um estudo com o mesmo nome realizado pelo "Clube de Roma" (Meadows 1972). Nele veio à discussão a relação entre a lógica de acumulação sem fim e os recursos naturais:

 

"O aumento anual segue um padrão a que os matemáticos chamam crescimento exponencial [...] No crescimento exponencial, [...] o tamanho aumenta em períodos de tempo iguais numa certa percentagem do tamanho anterior [...] Embora o crescimento exponencial [...] seja comum, dá sempre surpresas, desde há milénios. Há a antiga lenda persa do cortesão que ofereceu ao rei um engenhoso tabuleiro de xadrez, e humildemente pediu como recompensa por ele apenas um único grão de cereal para o primeiro quadrado e para cada quadrado subsequente o dobro do número de grãos do anterior, ou seja, para o segundo quadrado dois grãos, para o terceiro quatro, para o quarto oito grãos. Isto representa uma taxa de crescimento exponencial de cem por cento; o décimo quadrado tem apenas 512 grãos, mas o 21º tem mais de um milhão de grãos. Não há tantos grãos na Terra como os que teriam de ser pagos pelo 64º quadrado. O crescimento exponencial é enganador porque, mesmo com taxas de crescimento relativamente baixas, são atingidos números astronómicos num curto espaço de tempo [...] Tal como o aumento exponencial da procura de terrenos esbarra rapidamente no limite dos terrenos disponíveis, o consumo analogamente exponencial de matérias-primas pode conduzir rapidamente ao esgotamento dos depósitos existentes [... ...] Dada a rapidez com que um limite máximo pode ser atingido por um crescimento exponencial, não será surpreendente que, ao ritmo actual de aumento do consumo, a maioria das matérias-primas que são importantes hoje em dia e que não se regeneram seja extremamente cara dentro de 100 anos [...]" (Meadows 1972, 18s., 51ss.).

 

Mas, nesta crítica de cientistas honrados, o carácter destrutivo da racionalidade da economia empresarial surgiu na melhor das hipóteses indirectamente; e não como uma característica do moderno sistema produtor de mercadorias, mas como um lamentável efeito secundário da "sociedade industrial" per se, pelo que mais uma vez a abstracção social negativa do dinheiro em feedback consigo mesmo desapareceu por detrás do fenómeno tecnológico. Além disso, Dennis Meadows e o "Clube de Roma" deixaram em aberto a questão de saber se o verdadeiro mal do crescimento não poderia residir no aumento da população mundial – assim, no início de um novo ciclo de crise capitalista e embalado em palavras aparentemente críticas, o argumento de terror do padre Malthus foi adequadamente trazido de novo à tona. Desde a segunda metade da década de 1970, a "crise ecológica" (como veio a ser chamada) tem vindo a agravar-se constantemente. Depressa se tornou claro que o problema não é de modo nenhum apenas o esgotamento a longo prazo das matérias-primas. A máquina mundial cegamente devoradora não só consumia demasiado combustível fóssil, metais etc. em detrimento das gerações futuras, como também poluía e destruía as elementares bases naturais da vida em escala alarmante: solo, atmosfera, água e sistemas ecológicos interiores (florestas tropicais, Alpes, Mar do Norte, Mediterrâneo, Lago Baical etc.). Nos anos 80, os sinais de alerta de grandes catástrofes industriais paradigmáticas, em Seveso (Itália), Bhopal (Índia) e Chernobyl (Ucrânia), mostraram a capacidade de destruição do mundo alcançada no fordismo pelo sistema produtor de mercadorias; não só no sentido militar de uma possível guerra nuclear, mas através do funcionamento diário completamente "normal" da "bela máquina" crescida até se tornar um sistema mundial total.

Quer se trate da morte das florestas ou do buraco do ozono, de inundações catastróficas ou de escassez de água, da extinção de espécies ou de novas doenças: o processo de destruição ecológica, que ainda hoje continua e até se acelera, quase imparável, pode claramente ser imputado à economia de combustão fordista à escala planetária. Assim, é quase reconfortante que os donos da obra capitalista comecem a ser atingidos num lugar bastante sensível pelos efeitos da sua orgia de fim-em-si económico. O sexólogo francês Xavier Boquet assume que metade de todos os habitantes masculinos de Paris sofre por vezes de impotência apenas devido ao stress dos automóveis. E isso não é tudo. De acordo com estudos recentes, resíduos de certos químicos na água, devido em parte à produção de plástico, conduzem a um composto semelhante ao estrogénio da hormona sexual feminina, que também se liga aos receptores apropriados no corpo humano. Como resultado, estas substâncias desencadeiam os mesmos processos bioquímicos que o estrogénio natural. Nos homens, o nível da hormona sexual testosterona decresce no sangue. Fala-se de "pénis minúsculos". E o médico dinamarquês Niels Skakkebaek descobriu que os espermatozóides no líquido seminal têm vindo a diminuir rapidamente desde 1938, enquanto os casos de cancro do testículo triplicaram desde então. Assim, o homem socializado no consumo de combustão da mobilização total pode esperar, por assim dizer, ser fordistamente castrado ao volante da sua potente máquina.

A sociedade oficial só retomou o debate sobre os limites e as consequências ecológicas destrutivas do "crescimento" para melhor conseguir recalcar o problema. A idêntica catástrofe ecológica no Ocidente e no Oriente não foi obviamente atribuída à "abstracção-trabalho" comum e idêntica do sistema produtor de mercadorias e às suas compulsões irracionais, mas foi em parte discutida sem cessar em termos de "crítica cultural" e duma moral superficial, e em parte transferida para a propaganda não vinculativa de uma suposta "reconciliação da economia com a ecologia". Todas as percepções parciais permaneceram inconsequentes, porque a "bela máquina", por definição, prossegue o seu curso cego. Não houve a pressão indispensável para agir sobre o sistema mundial como um todo, porque muitos dos processos ecológicos de destruição, que não têm um efeito imediato, estendem-se para além das vidas individuais e funcionam praticamente durante muito tempo como catástrofes parciais, que podem ser localizadas, e são sempre sofridas apenas por uma determinada população, que então simplesmente teve "azar". O empreendimento ético e intelectual alimentado pelas instituições fordistas transformou entretanto a crise ecológica num "face lifting" moral do capitalismo.

Apesar de todas as ideologias de apaziguamento e de falsa reconciliação, o esgotamento da Segunda Revolução Industrial não pôde ser completamente negado. No final dos anos 60, um enorme "mal-estar no fordismo" estava a fazer-se sentir. O medo das próximas crises fez brotar do interior social das democracias do mercado mundial os primeiros surtos de um novo radicalismo de direita, que se afirmou inicialmente no parlamento sob as velhas formas políticas. Assim, desde a primeira recessão pós-guerra de 1967 na RFA, cada novo impulso da crise lançou os partidos neonazis nos parlamentos dos Estados federados e dos municípios com uma regularidade quase assustadora.

Por outro lado, desenvolveu-se um movimento mundial de jovens e estudantes, que em muitos aspectos se rebelaram contra o sistema dominante. Após a longa calma social na época da prosperidade fordista, este "movimento de 1968", como foi chamado após o ano do seu clímax, pareceu teórica e praticamente embaraçoso. Laboriosamente, todos os conceitos de emancipação social da história da modernização capitalista foram de novo desenterrados e verificados na sua utilidade. Pela primeira vez em muitas décadas, houve (especialmente em França e na Alemanha) algo como uma tentativa de ousar uma autêntica reformulação da crítica fundamental de Marx ao capitalismo. O "Maio de Paris" parecia abalar o sistema até aos seus fundamentos. Em 1968, apareceu um volume de textos da revolta, em que o líder estudantil alemão Rudi Dutschke atacava o carácter fetichista do mundo capitalista totalitário em palavras há muito inauditas. Dutschke apontou para a discrepância absurda entre o tremendo desenvolvimento das forças produtivas e a densidade do trabalho e do desempenho fordistas:

 

"(O carácter burguês) criou uma riqueza inimaginável, que estabeleceu a oportunidade historicamente única de levar uma vida para além da necessidade material, de estabelecer uma vida em que o slogan pode ser: 'Todos as pessoas devem comer e trabalhar pouco' (Horkheimer). A contradição do carácter burguês consiste precisamente no facto de estas forças produtivas por ele criadas, estas riquezas acumuladas [...] se terem tornado independentes dele, se lhe terem tornado  alheias [...] Hoje, não é uma teoria abstracta da história que nos une, mas sim o nojo existencial de uma sociedade que fala em liberdade e suprime subtil e brutalmente os interesses e necessidades imediatas dos indivíduos e dos povos que lutam pela sua emancipação socioeconómica [. ...] Novas e radicais necessidades estão a desenvolver-se na luta, tais como o desejo de libertar finalmente a totalidade das forças produtivas [...] dos grilhões do capital e da democracia, para as submeter finalmente por todos os meios ao controlo consciente dos produtores" (Dutschke 1968, 75, 91).

 

Os estudantes revoltosos sonhavam com um mundo que – redimido do fim-em-si capitalista da "bela máquina" – reduziria a actividade produtiva a talvez duas ou três horas por dia. Conceberam a universidade como um local de subversão, crítica social e lazer, para fins autodeterminados que desenvolveriam a antítese da enfadonha carreira burguesa na empresa capitalista. Wolfgang Lefèvre, outro porta-voz do movimento, exigiu a crítica e a ultrapassagem do empreendimento académico capitalista nesse sentido:

 

"A ciência e a tecnologia [...] reduzidas ao instrumental tornam-se uma ameaça para a esmagadora maioria da sociedade [...] A dinâmica tecnológica dos sectores destrutivos da produção torna-se ao mesmo tempo a base de uma destruição sempre nova. O sistema de destruição pôde atingir o aspecto de 'necessidade objectiva', porque o desenvolvimento da tecnologia e a valorização do capital se harmonizam na destruição. O desenvolvimento da tecnologia, a essência do instrumental, disfarça-se de fim último, na medida em que todos os fins se tornam o meio da valorização do capital. A destruição de todos os fins tornou-se o único fim de uma ciência reduzida ao instrumental [...]" (Lefèvre 1968, 121).

 

Por um momento histórico, emergiu realmente o centro da crítica radical de Marx à forma de mercadoria e ao "trabalho abstracto", suprimida pelo marxismo do movimento operário (e mais ainda pelos regimes capitalistas de Estado da "modernização atrasada"). Mas, mais uma vez, Karl Marx não foi agarrado. Claro que a revolta estudantil ainda formulou as suas novas ideias em grande parte nos termos do velho marxismo do trabalho, tentando de algum modo ligar-se à metafísica não ultrapassada do "movimento operário". Ao mesmo tempo, porém, retomou também a teoria crítica de Adorno e Horkheimer, que já tinha ido um passo mais longe, e cujos textos dos anos 40 se tornaram subitamente um tema de debate aceso. As dificuldades de conteúdo e conceptuais talvez pudessem ter sido ultrapassadas num processo de autoconfiança. Se o movimento de 1968 falhou completamente no sentido da emancipação social, foi sobretudo porque não prosseguiu até ao fim a linha da crítica de "trabalho abstracto, fetiche da mercadoria e racionalidade da economia empresarial", para chegar a um conceito negativo e superador do contexto capitalista de fim-em-si. Em vez disso, entrou na via escorregadia da "política" e rapidamente caiu vítima da mesma ilusão democrática que o antigo movimento operário.

Quando Rudi Dutschke propagou a "longa marcha através das instituições", isto ainda foi entendido como subversivo. Mas, no sentido de "política democrática", só poderia tornar-se a marcha para o sistema. Habermas foi fortemente criticado pelo movimento estudantil pelo seu óbvio reformismo social-democrata, mas, neste ponto crucial, ele e os seus semelhantes foram capazes de vacinar a revolta, através da criação da fórmula antes e depois repetida vezes sem conta:

 

"Entre capitalismo e democracia existe uma tensão indissolúvel; com eles competem pela primazia, nomeadamente, dois princípios opostos de integração social [...] Os dois imperativos colidem sobretudo na esfera pública política [...]" (Habermas 1981, 507s.).

 

Claro que esta era precisamente a velha e obsoleta ideia do século XIX, com a qual a social-democracia primitiva já se tinha fechado no mundo capitalista. Habermas também conhecia mal o seu Bentham – e o movimento estudantil também, caso contrário teria visto claramente a identidade interior da democracia e do capitalismo, e não teria ficado preso à fórmula vazia da "democratização", que aumentou repetidamente até à tautologia inútil da "democratização da democracia". No contexto de "1968" houve mesmo um encontro com Bentham que foi tão fugaz como assombroso. Mas o carácter do constructo de Bentham não pôde ser visto, porque a "Nova Esquerda" da revolta estudantil não ficou menos apanhada nas ilusões ideológicas do mundo burguês sobre si mesmo do que a velha esquerda do movimento operário.

Quando o filósofo francês e manifestante de 68, André Glucksmann, por meio da sua leitura de "O Arquipélago Gulag" de Alexander Soljenítsin, descobriu a racionalidade repressiva do campo de concentração no "marxismo" e (com razão) responsabilizou toda a esquerda estatal-socialista como co-patrocinadora e cúmplice desta lógica no seu livro "A cozinheira e o devorador de homens" (Glucksmann 1976/1974), passou, no entanto, completamente ao lado do problema. Em vez de ver o sentido implícito, objectivado e compatível com o liberalismo de Bentham do aforismo de Lenine de que "a cozinheira tem de poder governar o Estado", limitou-se a acusá-lo de não querer realmente deixar a cozinheira co-governar o Estado, por via da ditadura da educação, que acabou por se mostrar no estalinismo (e no pensamento dos intelectuais socialistas em geral) como a exclusão definitiva da "cozinheira" da regulação social:

 

"Lenine tinha frequentemente descrito a sua cozinheira como 'asiática' e atrasada, e prometeu-lhe uma longa educação antes de poder liderar o Estado e educar os seus educadores [...] O sucessor de Lenine teve plenamente em conta a sua paixão pela pedagogia [...] De Platão a Estaline, os plebeus estiveram à mercê do conhecimento absoluto do líder. Uma vez que não é permitido à cozinheira meter o nariz nos assuntos do Estado, o Estado tem de meter o seu próprio nariz nos assuntos da cozinheira a bem ou a mal [...] Este Estaline, o grande fundador de toda a não-resistência ao Estado, todos nós o temos, de algum modo, nos nossos ossos. Como ele, duvidamos da cozinheira (...)" (Glucksmann, op. cit., 164s.).

 

Glucksmann (como os de 68 em geral) ainda compreende os conceitos de pedagogia, democracia e ditadura de modo ingenuamente iluminista, como relações sujeito-objecto definíveis numa oposição falsa e superficial: ou a cozinheira é um sujeito co-governante democrático, ou é "antidemocraticamente" um mero objecto da dominação burocrática estatal de "líderes" autonomeados. Escapa completamente a Glucksmann que o liberalismo ocidental não resolveu esta aparente contradição, mas superou-a perfidamente. Embora Glucksmann até se refira ironicamente de passagem a Bentham e ao seu Panóptico no final do livro, citando um panfleto anti-autoritário do crítico da pedagogia René Scherer sobre "A criança disciplinada" (Scherer 1975/1973), é óbvio que ele não se ocupou realmente disso. O texto de Foucault "Vigiar e punir", com a sua crítica detalhada do Panóptico, apareceu um ano depois da "Cozinheira" de Glucksmann, demasiado tarde para mediação; tanto mais que o próprio Foucault não estabeleceu uma relação sistemática da sua "Microfísica do poder" com as categorias capitalistas do ganho e com a lógica do "trabalho abstracto". Também Scherer, que critica a pedagogia burguesa do adestramento, desde Rousseau passando por Bentham até à escola e à família contemporâneas, não elabora a verdadeira essência do Panóptico (mencionado apenas de passagem), porque também ele continua a ser guiado pela ficção burguesa de um "sujeito democrático livre" (especialmente no que diz respeito à então frequentemente anti-autoritária tematização da sexualidade infantil), ao qual o aparelho repressivo supostamente se opõe do exterior.

Caído nas teias da "democratização", o movimento de 68 ficou irremediavelmente preso às aporias da consciência capitalista. Em vez de criticar e romper por dentro a lógica da máquina mundial sem sujeito e a sua racionalidade destrutiva, que foi pelo menos brevemente sugerida, a crítica voltou à ideia chã dos "grupos sociais dominantes", dos quais a emancipação dos sujeitos ingenuamente pressupostos devia ser arrancada por meio da "democratização". Nesta névoa de vulgar democratismo, a crítica categorial do "trabalho abstracto" e da racionalidade da economia empresarial perderam-se rapidamente. A política de "democratização" caiu em duas concepções igualmente infundadas. Primeiro, a velha ideia social-democrata da "democracia económica" foi reformulada. Popular neste sentido era uma caricatura que mostrava uma inscrição à porta da fábrica: "Aqui termina o sector democrático da república". Absurdamente, pretendia-se que os princípios da democracia política fossem alargados ao sistema económico, em vez de se reconhecer a identidade capitalista mútua das duas esferas polares da política e da economia. Os novos democratas económicos imaginaram que, através de procedimentos democráticos, processos formais de formação da vontade, votação etc., poderiam estabelecer o "poder de disposição" emancipatório dos sujeitos sobre a produção, sem terem de romper com as formas sociais e com as categorias fetichistas da produção de mercadorias, do "trabalho abstracto", do mercado etc. Em vez da ruptura categorial com as formas capitalistas básicas, que rapidamente desapareceram de novo da sua consciência como mudos "factos da natureza", tomou lugar a velha ilusão iluminista do sujeito burguês formal – sem se perceber que os sujeitos burgueses não superados, que supostamente deveriam pôr em acção o absurdo de uma economia de mercadorias democraticamente formalizada, já são sempre, pela sua própria forma, sujeitos abstractos da concorrência e do desempenho, que só poderão então executar sobre si mesmos as leis sistémicas da economia empresarial, juntamente com todas as suas imposições e sofrimentos, num processo democrático de escolha múltipla.

Por outro lado, foi a ideia ainda mais antiga de "democracia directa", remontando a Rousseau, que foi reanimada pelos de 68 na sua acção na esfera política. Tal como a "democracia económica" reapareceu nas ideias do movimento alternativo dos anos 80 a um nível quase empresarial ("trabalhar sem chefe") e desde então tem sido utilizada para concepções de gestão capitalista, também elementos de "democracia directa" ou "democracia de base" reapareceram em vários países nos partidos Verdes ("princípio da rotação" etc.). A ideia de "democracia directa" também ignora completamente a constituição capitalista dos sujeitos nas formas de "trabalho abstracto", mercadoria e dinheiro. Afinal já as concepções da Comuna de Paris de 1871 e dos conselhos na Rússia e na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, que também se baseavam nesta ideia, acabaram por fracassar, porque procuravam a emancipação "política" radical sem esclarecer minimamente o estatuto das formas económicas antes activadas. No entanto, antes de os sujeitos supostamente comunicarem uns com os outros "directamente" através da política, já estão sempre, por via da forma económica cegamente presuposta, "indirectamente" relacionados entre si como portadores de força de trabalho e como sujeitos da concorrência, e determinados por imperativos sistémicos sobre os quais não têm qualquer poder.

Os ideólogos conservadores do parlamentarismo reprovaram não sem razão os defensores da "democracia directa" pelo facto de o momento plebiscitário inerente a esta concepção ter sido retomado com particular prontidão pelas várias ditaduras modernas. Uma vez que as questões que são plebiscitariamente colocadas à votação na "democracia directa" são sempre pré-formuladas pelos cegos desenvolvimentos, leis e contradições irracionais do sistema de fim-em-si da produção de mercadorias, também ao nível dos partidos políticos ou da totalidade política dos cidadãos do Estado só alternativas condicionadas pelo sistema podem ser postas à votação; tal como no caso de uma filtragem parlamentar do processo de tomada de decisão. O plebiscito, contudo, é particularmente adequado para fins demagógicos e alternativas sugestivas.

O historiador inglês J. L. Talmon tinha mesmo cunhado no início dos anos 60 (do ponto de vista parlamentar burguês) o termo "democracia totalitária" para a ideia de formas "directas" e plebiscitárias de tomada de decisão, termo que seria de aplicar, no entanto, a qualquer forma de democracia moderna. Talmon reduz este elemento totalitário à abordagem plebiscitária, utilizando como exemplo as ideias de François Babeuf (1762-1797) na Revolução Francesa:

 

"Babeuf [...] demonstra pouco amor ou confiança na representação parlamentar [...] Em qualquer caso, quer submeter a legislatura eleita ao mais rigoroso controlo do eleitorado e ao direito de veto do povo, ou seja, à democracia directa francesa [...] Tudo deve ser submetido ao consentimento do povo [... ] Qualquer deputado pode ser revogado a qualquer momento pelos seus eleitores [...] No final, o legislador só teria o direito de propor leis, mas não de decidir sobre elas [...] Todas estas incómodas medidas seriam necessárias, de acordo com a afirmação de Babeuf, para ter a certeza de que [...] não prevaleceria outra coisa que não fosse a vontade popular. Mas tal democracia plebiscitária e directa é [...] o estágio preliminar da ditadura ou a ditadura escondida [...]" (Talmon 1961, 185ss.).

 

Isto é verdade na medida em que os processos de decisão plebiscitários não são, afinal, feitos por sujeitos enciclopédicos no sentido jurídico, mas por pessoas já condicionadas aos imperativos do sistema, que não são directa nem indirectamente "livres" de decidir sobre os seus assuntos, a utilização dos recursos, a razoabilidade das medidas etc. A geral "juridificação" abstracta e formal, que só se torna necessária através do totalitário sistema produtor de mercadorias, é em si o problema – e não a questão de saber se é uma legislatura ou "o povo directamente" a executar esta juridificação. As pessoas, conduzidas e perseguidas pelo mercado, já estão a priori irremediavelmente sobrecarregadas com uma inundação de questões a decidir em muitos casos realmente absurdas e de pseudo-alternativas sistemicamente pré-formadas e, portanto, tornam-se facilmente a ferramenta de profissionais manipuladores, intriguistas, demagogos etc. Mas a "democracia directa" apenas traz à tona as contradições da construção democrática mais aberta e brutalmente do que a forma parlamentar de "democracia por procuração".

O movimento de 1968, que de certo modo tocou no segredo do sistema capitalista num momento de choque histórico na interface entre a Segunda e a Terceira Revolução Industrial, deixou-se enganar mais uma vez pela perfídia benthamiana, como os seus antepassados do movimento operário. Com a fraca ideia da "democratização", o resultado já prefigurava que a "marcha através das instituições" conduziria, tal como no caso da social-democracia, a governos capitalistas e a cadeiras ministeriais, acabando por impor os próprios constrangimentos contra os quais um dia se tinha lutado.

 

 

 

Original Weltzerstörung und Bewußtseinskrise, pags. 332-337 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (4.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

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