Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 8

História da Terceira Revolução Industrial

 

 

Até ao último terço do século XX, o capitalismo tinha demonstrado suficientemente com que precisão era capaz de adestrar os humanos, e até que ponto já tinha conseguido fazer da máscara das suas formas fetichistas a face do mundo material e mesmo de grande parte da natureza, bem como o grau a que conseguia forçar grandes massas à abnegação. Mas este enorme feito nunca silenciou completamente o mal-estar elementar inerente à autocontradição lógica deste modo de produção e de vida. Se a crença no progresso já se extinguira de facto no século XIX (mesmo que o seu espectro tenha sido desde então repetidamente invocado por optimistas profissionais e animadores da acalmia da crise do capitalismo), e se o sujeito iluminista burguês se demitira o mais tardar na Primeira Guerra Mundial para dar lugar aos rituais sadomasoquistas de auto-entrega a um processo social reconhecido como incontrolável, as pessoas que tinham sido degradadas a mero material foram pelo menos autorizadas a anestesiarem-se com a superficial embriaguez do consumo de mercadorias na história fordista do pós-guerra. Mas quando os limites do milagre económico se tornaram visíveis, mais rapidamente do que o esperado, a consciência social só pôde reagir com tentativas de recalcamento e disfarce, face à auto-estupidificação alcançada a alto nível em todos os campos teóricos e políticos.

Embora o mal-estar na cultura de massas fordista desde o final dos anos sessenta tenha prefigurado o fim do intervalo para descanso, mesmo nos centros ocidentais, ele tinha-se dissipado sem ser capaz de se condensar numa nova crítica radical. A forte pressão de quase trezentos anos da história da modernização pesava sobre os cérebros; e os novos movimentos sociais desde 1968, nunca capazes de penetrar no núcleo do fetichismo moderno, permaneceram pelo menos tão compatíveis com o capitalismo como o antigo movimento operário. Não admira que a sociedade global das democracias totalitárias do mercado mundial surgida na segunda metade do século tenha começado a correr cegamente e sem palavras para a sua desgraça.

Mesmo a literatura de advertência e aviso das utopias negativas já não pôde aqui ajudar. Se já tinha compreendido inadequadamente o sistema dos "Estados de trabalho" fordistas, tendo nomeadamente, apesar de todas as considerações de maior alcance, acabado por se concentrar nos elementos do totalitarismo político, o conteúdo da sua previsão ficou finalmente esgotado com o fim da prosperidade do pós-guerra. A crise no final do século XX, ainda escondida no nevoeiro do futuro, teve de passar completamente ao lado deste tipo de pessimismo histórico. Pois no fantasmagoricamente prolongado fordismo das utopias negativas, as pessoas são alimentadas e consumistamente burladas por forças produtivas arregimentadas; todos os horrores de um capitalismo burocraticamente refinado estão previstos, excepto um: a retirada do consumo, o regresso da pobreza em massa e a fome socialmente produzida.

"Sem segurança económica", escreve Huxley como bom liberal em 1949, no prefácio da nova edição do seu Admirável Mundo Novo, "o amor pela escravidão não pode surgir; por uma questão de brevidade suponho que o todo-poderoso executivo e os seus gestores conseguirão resolver o problema da segurança económica permanente" (Huxley 1989/1932,16). Mas precisamente por isso as imagens das utopias negativas deste tipo não eram suficientemente negras: só podiam assumir a lavagem cerebral estatal e a manipulação quase fisiológica por aparelhos estatais totalitários, sem reconhecerem a natureza real e o limite interno da máquina mundial. Nem estavam conscientes do núcleo da subjectividade concorrencial capitalista nos próprios indivíduos, que em crise conduziria a orgias de exclusão social e violência endémica, em vez de permitir que uma massa unitária uniforme continuasse por si a funcionar silenciosa e suavemente. A uniformidade é precisamente a da concorrência total de indivíduos abstractos; e o ódio por si próprio dos escravos dos mercados anónimos nela incluído é necessariamente dirigido para fora na crise, como uma projecção, contra "os outros".

Há uma razão simples para a histórica miopia das utopias negativas fordistas e das suas predecessoras: pressupõem cegamente o sistema do "trabalho abstracto" como um mecanismo quase "natural", capaz de funcionar e de se reproduzir. O comando dos aparelhos manipuladores já se refere sempre à forma de actividade da máquina mundial produtora de mercadorias, na qual pelo menos uma coisa parece ser eterna: a necessidade social de despender força de trabalho em massa. Todos os horrores imaginados de uma vida mecanicamente mutilada decorrem deste pressuposto: o homem como um agregado de "trabalho" degradado ao estatuto de robô. Até mesmo em Huxley, que enfatiza o reverso consumista de mercadorias de "pão e jogos", no entanto são sempre "trabalhadores" funcionalmente aparados que, funcionalmente normalizados como embriões, são finalmente "decantados".

“Homens e mulheres padrão, em lotes uniformes. Todo o pessoal de uma pequena fábrica feito com o produto de um único ovo bokanovskificado. Noventa e seis gémeos idênticos trabalhando em noventa e seis máquinas idênticas! […] Milhões de gémeos idênticos. O princípio da produção em massa finalmente aplicado à biologia […] Os futuros trabalhadores tropicais começam a ser inoculados no metro 150 […] Os embriões ainda têm guelras. Imunizamos os peixes contra as doenças do futuro homem [...] Na prateleira dez, filas inteiras de futuras gerações de trabalhadores químicos estavam a ser treinadas para tolerar chumbo, soda cáustica, alcatrão, cloro. O primeiro embrião de um grupo de 250 mecânicos de aviões-foguetes passava pelo 1100º metro da prateleira 3 [...] E agora […] gostaria de mostrar-vos alguns condicionamentos muito interessantes para intelectuais Alpha-Plus. Temos um bom número deles na prateleira cinco. Primeira galeria […] Não se pode realmente realizar nenhum condicionamento intelectual útil antes que os fetos percam as suas caudas» (Huxley 1989/1932, 22, 30s.).

 

Numa outra famosa utopia negativa de H. G. Wells, autor de “A guerra dos mundos”, publicada já em 1895, esta cega extrapolação do "trabalho" abstracto é mesmo levada ao extremo. O seu romance "A Máquina do Tempo", tão popular como a história do ataque de marcianos, utiliza a noção de viagem no tempo (concebida na altura, claro, como uma viagem ao futuro) para estender socialmente de forma crítica o capitalismo vitoriano às fases finais da sua completa degeneração. O que o seu viajante no tempo encontra no futuro distante do ano 802 701 é uma sociedade ainda dividida em "não trabalhadores" e "trabalhadores". Na superfície da Terra vivem os "Eloi", crianças tão bonitas e brincalhonas como estúpidas e "inúteis", os descendentes dos antigos capitalistas. Em cidades fabris subterrâneas, por outro lado, habitam os "Morlocks", os descendentes dos antigos trabalhadores assalariados, pois já no final do século XIX havia "uma tendência para mover as instituições menos respeitáveis da nossa civilização para o subsolo" (Wells 1980/1895, 78). Após tanto tempo, porém, ambas as classes passaram à fase de decadência, com a relação peculiarmente invertida:

 

"As pessoas do mundo superior podem ter sido outrora a aristocracia favorecida e os Morlocks seus servos mecânicos: mas isso já tinha passado há muito tempo. As duas espécies que resultaram da evolução do ser humano estavam deslizando para uma relação totalmente nova, ou já a tinham alcançado. Os Eloi, como os reis Carolíngios, tinham decaído numa mera bela futilidade. Eles ainda possuíam a terra com base na tolerância: já que os Morlocks, subterrâneos há inúmeras gerações, acabaram por descobrir que a superfície iluminada pelo dia lhes era intolerável. E os Morlocks faziam as roupas dos Elói, deduzi, e supriam suas necessidades habituais, talvez pela sobrevivência de um antigo hábito de serviço. Faziam isso como um cavalo de pé bate com as patas no chão, ou como um homem gosta de matar animais por desporto [...] Mas, claramente, a velha ordem já estava em parte invertida. A némesis dos delicados avançava lentamente. Séculos atrás, milhares de gerações atrás, o homem expulsou seu irmão homem do conforto e do sol. E agora aquele irmão estava de volta – mudado! Os Elói já tinham começado a aprender uma velha lição novamente. Eles estavam a reaproximar-se do medo. E de repente veio-me à cabeça a memória da carne que eu tinha visto no mundo inferior [...] Estes Elói eram mero gado cevado, que os Morlocks, como formigas, guardavam e atacavame provavelmente até cuidavam da sua reprodução." (Wells, op. cit., 92ss.).

 

A bela ideia de um canibalismo de represália pós-histórico não consegue esconder o facto de que o futuro negativo é concebido como extensão do "trabalho" e ainda é avaliado do ponto de vista da "utilidade" abstracta. O mecânico sistema de fim-em-si de "dispêndio de nervos, músculos, cérebro" não foi abolido, mas simplesmente degenerou. Aparentemente, os literatos críticos tinham esquecido qual era o verdadeiro problema lógico do capitalismo e o que em última análise constitui a sua incontornável autocontradição – ou, como Huxley, pensavam positivamente que este problema tinha sido ultrapassado, embora a crise económica mundial tivesse mostrado o contrário. Estranhamente, a crise económica não aparece nada nas utopias negativas, mas apenas o supostamente omnipotente "Estado do trabalho" totalitário.

 

 

Original Die Geschichte der Dritten industriellen Revolution, pags. 338-340 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (5.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

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