Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 8

História da Terceira Revolução Industrial

 

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Secção 3

O Estado demite-se

Perante os factos da "crise da sociedade do trabalho" que se desenvolveu nas últimas duas décadas do século XX, o "consenso mundial da economia de mercado" surgido com força no mesmo período só pode ser visto como expressão da crescente insanidade das instituições capitalistas e dos seus representantes ideológicos. Esta cegueira francamente perigosa perante a realidade só em parte pode ser explicada pela constelação específica da história do pós-guerra.

Na teoria económica e política, a doutrina keynesiana tinha prevalecido em grande medida como reacção à grande depressão do período entre guerras; e, no conflito sistémico com o Bloco de Leste, parecia aconselhável fazer concessões sociais. Além disso, pelo menos parte das elites funcionais capitalistas chegara à conclusão, mais ou menos fortemente associada ao keynesianismo, de que o "consumo de massas de investimento" de bens de consumo duráveis se tinha tornado um pilar de apoio do próprio sistema e, portanto, também tinha de ser apoiado pelo Estado. Deste modo, o boom fordista poderia mesmo ser estendido para além do seu limite interno. Mas o que se fez quando se tornou claro que o sistema monetário estava a começar a inflacionar dramaticamente de novo e que o keynesianismo tinha falhado? Deu-se um passo atrás e chamou-se a isso progresso.

Pois, para além do liberalismo económico clássico, remontando aos fisiocratas, Smith, Ricardo e Say, desde finais do século XIX o pensamento capitalista apenas tinha produzido, como resumo das tendências para a economia estatal, a doutrina de Keynes (como um ramo secundário, aliás, da versão completamente capitalista de Estado da "modernização atrasada"), com isto se esgotando completamente. Não há uma terceira possibilidade no terreno do modo de produção capitalista. Uma vez que este sistema só pode tentar gerir a sua autocontradição na interacção entre os dois poderes alienantes repressivos do mercado e do Estado, a margem de manobra das suas instituições ficou esgotada depois de esgotadas ambas as possibilidades.

Assim, o reconhecimento do fracasso do keynesianismo deveria ter sido equivalente à admissão do completo fracasso histórico do próprio modo de produção capitalista. Mas esta admissão nunca sairá dos lábios dos ideólogos e das elites funcionais do capitalismo. Assim, só poderia haver uma coisa: retomar o caminho do liberalismo puro, como também previsto por Dahrendorf na 21ª Conferência dos Sociólogos Alemães, contra toda a experiência e na realidade contra melhor conhecimento; obedecendo ao puro desespero e interpretando-o, no entanto, como um caminho para a liberdade.

O mesmo esquecimento francamente patológico em relação à história capitalista anterior, como o demonstrado por Dahrendorf, tornou-se um fenómeno mundial em poucos anos. Num cortejo triunfal, a sociedade burguesa foi buscar os restos mortais do velho e desbotado liberalismo económico do século XVIII e início do XIX para proclamar o grande futuro do mercado livre e um novo optimismo de assalto aos céus com este monte de miséria científica – reconhecidamente um optimismo com dentes cerrados. O início de uma crise fundamental do "trabalho abstracto" e, portanto, do capitalismo coincidiu assim com a viragem ideológica que veio a ser chamada "revolução neoliberal" ou "contra-revolução neoclássica" contra o keynesianismo. Não é sem razão que se fala também de uma "radicalização do liberalismo", pois foi apenas como um insulto fundamentalista à capacidade de pensamento humano que pôde regressar esta doutrina, há muito desaparecida tanto na teoria como na prática.

Não foi de modo nenhum por acaso que o neoliberalismo radical de mercado ganhou primeiro aceitação política nos países anglo-saxónicos, pois foi aí que esta forma de pensar não só teve as suas origens, como permaneceu sempre mais viva e mais claramente presente do que em outros países, mesmo no século da economia capitalista ascendente. Nos Estados Unidos sob a presidência do antigo actor de Hollywood Ronald Reagan (1982-1990) e na Grã-Bretanha sob o governo conservador de Margaret Thatcher (1979-1990), o novo fundamentalismo capitalista avançou para o estatuto de quase religião estatal, e depois espalhou-se rapidamente por todo o globo a partir destas principais potências do capital mundial. É claro que a "revolução" neoconservadora-neoliberal que iria substituir a era keynesiana-social-democrata política e institucionalmente tinha antecedentes teóricos e, em certa medida, estratégicos. Pois o liberalismo económico clássico, por mais acabado que já parecesse estar, tinha mantido a sua comunidade de fé incorrigível mesmo durante a época do New Deal, da economia de guerra, e finalmente do boom fordista, e tinha continuado a desenvolver-se, por assim dizer, à sombra do keynesianismo. O progenitor deste neoliberalismo foi Friedrich August von Hayek (1899-1992), provavelmente o mais consistente e doutrinário de todos os teóricos liberais até à data, que nos anos 40 já estava a preparar a contra-revolução radical do mercado, mesmo antes de o keynesianismo se ter estabelecido como modelo regulador. Como todos os doutrinários cegos à realidade (que fingem sempre combater qualquer dogmatismo de forma tanto mais enérgica em abstracto, quanto mais monomaniacamente apresentam o seu próprio dogma) Hayek também não deixa a mínima dúvida de que para ele o mundo está de pernas para o ar. Pois não lhe parece que o crescente aparelho regulador da economia estatal num processo secular tenha sido a reacção inevitável à autocontradição capitalista em processo na crise, mas, exactamente ao contrário, pelo menos as grandes crises, colapsos e convulsões sociais são supostamente devidos a um desvio pecaminoso da humanidade da "doutrina pura" do liberalismo original, causado por "demasiada prosperidade":

 

"[…] e a ilimitada ambição aparentemente justificada pela melhoria material já conquistada fez com que, ao aproximar-se o final do século, a crença nos princípios básicos do liberalismo fosse aos poucos abandonada. […] Os olhos do povo fixaram-se em novas reivindicações, cuja rápida satisfação parecia obstada pelo apego aos velhos princípios. Passou-se a acreditar cada vez mais que não se poderia esperar maior progresso dentro das velhas directrizes e da estrutura geral que permitira os avanços anteriores, mas apenas mediante uma completa reestruturação da sociedade. Já não se tratava de ampliar ou melhorar o mecanismo (!) existente, mas de descartá-lo e substituí-lo por outro […] A compreensão e o interesse pelo funcionamento da sociedade existente sofreram brusco declínio. Com esse declínio, declinou também a nossa consciência de tudo o que dependia da existência do sistema liberal […] Segundo as ideias hoje dominantes, o problema já não está mais em saber qual a melhor maneira de utilizarmos as forças espontâneas encontradas numa sociedade livre. De facto, decidimos prescindir das forças que produziram resultados imprevistos e substituir o mecanismo anónimo e impessoal do mercado pela condução colectiva e "consciente" de todas as forças sociais em direcção a objetivos deliberadamente escolhidos […] E o mais extraordinário é que o mesmo socialismo, que além de ser reconhecido a princípio como a mais grave ameaça à liberdade, surgiu como uma reacção ostensiva contra o liberalismo da Revolução Francesa, obteve a aceitação geral sob a bandeira da liberdade […] Na nova liberdade prometida, porém, o indivíduo se libertaria da necessidade, da força das circunstâncias que limitam inevitavelmente o âmbito da efetiva capacidade de escolha de todos nós, embora o de alguns muito mais do que o de outros […]" (Hayek 1945, 39s., 44ss.).

 

Um tal conceito de liberdade, nomeadamente a ausência de carências sociais, não poderia de forma nenhuma ser tolerado pelo liberalismo hardcore. Hayek demoniza abertamente a afirmação elementarmente razoável de que a sociedade deve regular-se a si própria conscientemente (significativamente, ele coloca a palavra entre aspas com intenção pejorativa) em vez de ser regulada por um mecanismo de mercado inconsciente e anónimo. Na sua forma mais pura até agora, mesmo para além dos clássicos do liberalismo, emerge aqui a base primordial da anti-razão liberal: a reivindicação de uma socialidade consciente é considerada um pecado contra o Espírito Santo de uma máquina social cega e associal, que é declarada repetidamente como lei natural.

Hayek, contudo, é provavelmente o primeiro que não esconde esta ideia básica irracional, mas exprime-a de coração completamente aberto e com uma ênfase quase ingénua; obviamente, apenas para legitimar de imediato esta declaração de guerra contra um ser social consciente, o que é absurdo em si mesmo, pelo facto de ele entender um "controlo consciente" dos recursos apenas como planeamento estatal leviatânico por uma "entidade" autoritária. Com isto, porém, ele pode referir-se ao entendimento de todo o pensamento moderno, incluindo o socialismo/comunismo. Assim, Hayek percorre toda a monótona dialéctica liberal da estranha contradição entre "igualdade" (aliás, "segurança social"), por um lado, e "liberdade" (aliás, "individualismo económico" ou "livre concorrência"), por outro, para optar de um modo extremista pelo suposto pólo da "liberdade".

Hayek não se apercebe de que, deste modo, apenas tematiza a contradição interna do próprio liberalismo, que também entrou no pensamento socialista como herança duvidosa e se refere a essa estrutura dividida e irracional de um sistema produtor de mercadorias fechado, que leva a que a utilização de recursos sociais para a reprodução comum da vida não seja deliberadamente decidida e organizada pelos membros da sociedade, mas paradoxalmente confronta-os com a sua própria reprodução como um incontrolável contexto de leis pseudonaturais da chamada economia; com a conhecida consequência de que as relações sociais efectivas se dividiram numa acção atomizada e abstractamente individual no espaço de referência dos mercados anónimos, por um lado, e num aparelho de administração estatal de seres humanos, por outro, que regula as condições prévias, os danos e os efeitos secundários desta forma destrutiva de reprodução e cujas alternativas, pré-formadas pelo processo sistémico cego, são então também supostamente negociadas democraticamente.

Em ambos os lados desta relação não há vestígios de liberdade, ou seja, de autodeterminação sobre os próprios assuntos. O Estado permanece na sua essência, mesmo com eleições democráticas, o monstro Leviatã – um aparelho externo aos indivíduos, que regula as suas vidas de acordo com os critérios do sistema capitalista; eles "não são" o Estado, mas os objectos da sua administração. Por outro lado, no entanto, as pessoas do aparelho do Estado, desde as alturas do comando político até à repartição local, não são os sujeitos desta administração de seres humanos, que nela exerceriam a sua própria vontade, mas são igualmente apenas funcionários executivos e "trabalhadores" (do Estado e do direito). O aparelho enquanto tal, embora feito por pessoas e conduzido por pessoas, forma uma estrutura kafkiana que transcende qualquer vontade e qualquer possibilidade de livre decisão, uma vez que a sua actividade é de antemão talhada à medida da economia irracionalmente autonomizada.

Uma vez que os socialistas só podiam pensar em "consciência social" na forma do Leviatã adoptada do liberalismo, o programa de consciencialização social teve de se transformar num condicionamento estatal-autoritário e burocrático de material humano. Não poderia ter sido particularmente difícil para Hayek denunciar este paradoxo do capitalismo de Estado, como representado numa versão "forte" pelos regimes de modernização atrasada e numa versão "fraca" pela regulamentação keynesiana ocidental, como a "organização coerciva da sociedade" e "O caminho da servidão" (o título do seu livro de 1945).

Mas o outro lado da estrutura capitalista dividida, a economia de mercados anónimos, leva bem igualmente à servidão. Os indivíduos da vontade economicamente "livre" já são, afinal, a priori recrutados compulsivamente para as cegas "leis do mercado" e mais ainda definidos como meros "trabalhadores". Na medida em que a sua absurda "liberdade" consiste em vergar as suas vidas sob o jugo dos mercados de trabalho, não passam de trabalhadores forçados da "bela máquina" que não podem perguntar sobre o significado e o objectivo de toda a organização, muito menos no que diz respeito ao seu próprio bem-estar. Muito claramente, mais de trinta anos mais tarde, no limiar da nova grande crise, Günther Anders expressou este facto elementar da servidão da economia empresarial:

 

"Não é livre (o trabalhador assalariado) não só porque é excluído da propriedade dos seus meios de produção ou produtos, mas porque ignora o todo do contexto de produção em que está integrado; e também não conhece o produto final e o seu significado – estes permanecem, por assim dizer, 'transcendentes'; nem as qualidades morais ou imorais do seu produto; nem o seu beneficiário, utilizador ou vítima. Tudo isto – e portanto o seu próprio trabalho – tem lugar, por assim dizer, nas suas próprias costas. Foi assim que me aconteceu a mim e ao conjunto de trabalhadores de que fazia parte, numa fábrica da Califórnia já há mais de 35 anos. A única coisa que 'víamos à nossa frente' era a peça de produto em que éramos designados para trabalhar, movendo-se na nossa direcção e depois imediatamente para longe de nós – não tínhamos qualquer desejo de saber ou ver mais, tinha-nos sido manipulada a curiosidade; faltava-nos qualquer interesse no que estávamos a fazer – porque deveríamos ter sabido ou visto mais, o que teríamos ganho com isso? Acima de tudo, não deveríamos ter qualquer interesse no que estávamos a fazer, deveríamos estar a trabalhar sem sentido. Se algum de nós tivesse perguntado ao capataz ou a qualquer outra pessoa sobre o significado do que estávamos a fazer, teria sido, na melhor das hipóteses, descartado como um tipo esquisito, 'isso não é da sua conta', e alguns anos mais tarde, no período McCarthy, teria sido considerado um 'risco para a segurança' [...]" (Anders 1987/1977, 91s.).

 

Poderá haver uma servidão pior do que ter de sacrificar a maior parte do tempo do dia, da semana, do ano e da vida em estado de vigília num dispêndio da própria energia sobre cujo conteúdo e "significado" social não se pode exercer qualquer autodeterminação? Se o ser humano capitalista abstracto "livre" é, do lado estatal-democrático, o mero objecto de uma administração abrangente de seres humanos, do lado económico do mercado e da economia empresarial ele não é mais do que um soldado do trabalho, sujeito a ordens e a obediência, de uma unidade de combate quase militarmente organizada na "guerra total" da concorrência universal, que tem de trabalhar de acordo com regulamentos que o degradam para um órgão de execução dependente. Tem de pôr os seus ossos em risco para fins estranhos que lhe foram impostos. Assim, o indivíduo "livre" não é mais do que um servo a quem é permitido escolher o seu próprio "senhor", tanto política como economicamente. Mas estes "senhores" são eles próprios, tanto a nível económico como a nível político-democrático, apenas servos da "bela máquina", meros "trabalhadores dirigentes" desse monstruoso fim-em-si que também torna dependentes e não livres as suas acções.

A liberdade consistiria apenas no facto de as pessoas que se reunissem para reproduzir as suas vidas não só o fazerem voluntariamente, mas também deliberarem e decidirem em conjunto sobre o conteúdo, bem como sobre o modo de proceder. Este critério, que só conseguiu aparecer brevemente nas ideias dos conselhos, mas que falhou devido à falta de crítica ao "trabalho abstracto" e às formas capitalistas de relacionamento que dele surgiram, continua a ser o sonho não cumprido de uma socialização fundamentalmente diferente. Tal liberdade, que seria exactamente o oposto da servidão universal liberal sob os ditames dos mercados de trabalho, é em princípio praticamente possível a todos os níveis e agregados da reprodução social – desde o agregado familiar até à rede transcontinental de produção. Evidentemente, isto requer mediações institucionais que, no entanto, não afectam o critério.

Técnica e organizativamente, isto não seria nenhum problema, e hoje menos do que nunca, porque a tecnologia de comunicação tem certamente acompanhado o grau de estabelecimento de redes e de socialização, tanto na indústria como em todos os outros campos. Para consulta e tomada de decisões por todos os membros da sociedade envolvidos na utilização de recursos comuns, não há necessidade de nenhuma "autoridade" externa a eles, de nenhuma burocracia nem nenhum governo mundial, nem de nenhum "centro omnisciente" (que é a ficção de qualquer ideologia leviatânica de planeamento estatal), mas, precisamente quando são utilizados os mais modernos meios de comunicação e técnicas de rede, o "centro" pode estar em todo o lado ao mesmo tempo.

Recordemos a "vertical bem-comportada" e a "horizontal mal-comportada" de Gottl-Ottlilienfeld. Tanto a administração estatal de seres humanos como a organização empresarial estão sempre orientadas, em última análise, verticalmente; afinal, as instituições do sistema produtor de mercadorias derivam, por natureza, da reorganização social pelos despotismos militares protomodernos. E porque esta estrutura vertical de dominação está inscrita no fim-em-si da "bela máquina", nem a democracia política nem uma gestão "igualitária", aparentemente não-hierárquica, podem mudar alguma coisa a este respeito; aqui só pode tratar-se sempre do método de Bentham, com o qual a estrutura vertical de dominação e repressão é deslocada para o interior dos próprios indivíduos. A libertação social pressupõe o desencadeamento da "horizontal mal-comportada" ("mal-comportada", claro, apenas do ponto de vista da irracional "forma funcional" dominante do capital), ou seja, a comunicação directa de todos os participantes antes de ser determinado o propósito das suas acções, a fim de determinarem eles próprios esse propósito de acordo com as suas necessidades. A única coisa necessária para isso é um fundo social de tempo suficientemente grande que não tenha de ser dedicado directamente à própria produção. Em fases mais baixas do desenvolvimento das forças produtivas, a socialização directa, comunicativa e "horizontal" seria assim obtida à custa da restrição da produção. Isto não significa que a socialidade sem uma estrutura vertical de dominação tivesse sido logicamente impossível no passado. Pois ninguém teria de morrer à fome com um esforço de comunicação relativamente elevado, mesmo nas condições de forças produtivas baixas; e também o desenvolvimento do conhecimento da natureza, da tecnologia, etc. – ao contrário dos pressupostos burgueses desde Kant – não teria de modo nenhum parado, antes teria quando muito prosseguido mais lentamente, mas não de forma tão catastrófica. Podemos portanto afirmar, não como uma "necessidade objectiva", mas meramente como um facto empírico, que o desenvolvimento humano até agora, incluindo o capitalismo, tem tido lugar em formas fetichistas sociais autonomizadas e, portanto, em estruturas verticais de dominação, que irracional e muito destrutivamente monopolizaram o crescente fundo social de tempo.

A Terceira Revolução Industrial, contudo, leva não só aos limites do capitalismo, mas aos limites da história anterior em geral, na medida em que expande o fundo social de tempo de forma tão rápida que já não pode ser positivamente monopolizado por uma minoria na estrutura de formas de dominação fetichistas, mas aparece apenas negativamente como a catástrofe social do "desemprego estrutural em massa" global. De uma forma catastrófica, torna-se assim claro que objectivamente (técnica e materialmente) haveria tempo socialmente disponível mais do que suficiente para tornar possível uma socialização universal "horizontal" sem dominação social, na qual apenas seria necessário pouco tempo para a produção de bens, e todos os membros da sociedade poderiam participar constantemente nos processos de comunicação e de tomada de decisão relativos à mobilização significativa de recursos, e além disso poderiam ainda ter à sua disposição qualquer quantidade de tempo para fins individuais livremente escolhidos. Esta possibilidade, contudo, é ao mesmo tempo também uma condição, ou seja, o imenso fundo de tempo só pode ser utilizado positivamente através de uma socialização "horizontal", que se livra do Estado e do mercado em igual medida e já não é apanhada nesta estrutura esquizofrénica de uma polaridade irracional, mas supera em si mesma a política e a economia de forma "unipolar", ou seja, directamente comunicativa.

O terrível uivo por "postos de trabalho" que abafa a voz da razão já indica, contudo, que a consciência social dominante não quer saber nada da liberdade social de modo nenhum. Assim, dificilmente pode surpreender que o pêndulo da conjuntura da consciência tivesse de voltar ao liberalismo grosseiro e, portanto, ao conceito perverso de "liberdade" económica quando a economia estatal falhou. Hayek já tinha preparado este balanço do pêndulo durante a transição para o keynesianismo, antecipando que um regresso ao liberalismo só poderia ser conseguido através da sua "radicalização". Precisamente porque as ilusões liberais do século XVIII e início do século XIX tinham sido há muito desmentidas pelo próprio desenvolvimento capitalista, só puderam ser reavivadas por uma intensificação extremista.

Hayek fez basicamente a mesma coisa que o socialismo estatal tinha feito antes, apenas na direcção oposta: se este último tinha tentado resolver a autocontradição insanável do capitalismo e, portanto, a contradição interna da ideologia liberal, tornando o pólo leviatânico em grande parte absoluto e pretendendo que o mercado fosse engolido pelo Estado como empresário geral, Hayek queria agora, pelo contrário, dissolver o Estado em grande parte no mercado; e fazê-lo para além de todas as concepções liberais anteriores. Através da cuidadosa linguagem académica da ciência, podia-se ouvir mais uma vez o tom anti-social da linguagem liberal original, como Hayek revelou a 6 de Fevereiro de 1979, agora no início da nova crise mundial capitalista, numa palestra famosa no auditório da Universidade de Friburgo:

 

"O social não designa nenhum ideal definível, mas hoje apenas serve para roubar o conteúdo das regras da sociedade livre à qual devemos a nossa prosperidade [...] Tenho de confessar, embora possam ficar chocados com isso, que não consigo pensar socialmente, pois não sei o que isso significa" (Hayek 1979, 16).

 

Hayek queria mais do que um mero desmantelamento do Estado keynesiano social e regulador antes mesmo de este ter sido devidamente construído; ele proclamou uma abdicação abrangente do Estado mesmo de funções que até os clássicos liberais não tinham questionado, ou que o liberalismo já tinha aceite como necessárias. Isto incluiu, entre outros, a exigência de abolir o sistema monetário estatal e de substituir as moedas nacionais por uma "livre concorrência" de emissores monetários. No entanto, Hayek não permaneceu de modo nenhum isolado, mesmo durante a era keynesiana. Ele próprio aluno do antigo liberal "devorador de socialistas" Ludwig v. Mises (1881-1973), em Viena, a quem sucedeu como director do Instituto de Pesquisa da Conjuntura de 1927-31, deixou desde então a sua marcação de cheiro na London School of Economics (1931-1950), na Universidade de Chicago (1950-1962) e, desde 1962, na Universidade de Freiburg i. Br. – todos centros desse neoliberalismo que mais tarde viria a assumir o poder ideológico mundial. Bem dentro do espírito de Hayek, os seus alunos e, por sua vez, os alunos dos seus alunos tomaram a palavra com acuidade crescente; por exemplo, o director da escola de Chicago, Milton Friedman (n. 1912), no seu livro sobre "Capitalismo e Liberdade":

 

"Há poucas tendências de desenvolvimento que possam minar tão completamente o fundamento da nossa sociedade livre como a aceitação pelos empresários de qualquer outra responsabilidade social que não seja a de obter o máximo lucro possível para os accionistas das suas empresas" (Friedman 1971/l962, 176).

 

A extensão desta radicalização foi demonstrada pelo facto de agora nem mesmo Adam Smith, o arquiliberal fundador da economia capitalista moderna, conseguia escapar incólume e foi acusado de heresia pelo liberal radical norte-americano Murray Rothbard, como notou com surpresa uma recensão no Financial Times:

 

"Adam Smith atrasou o progresso da teoria económica um século; abriu caminho para as abominações do marxismo. Esta crítica maciça encontra-se na obra de dois volumes de Murray Rothbard [...] Rothbard, que morreu em 1995, foi um dos poucos economistas norte-americanos empenhados na tradição austríaca de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek [...] Na avaliação de Rothbard, Adam Smith gozou da sua reputação como expoente do mercado livre de forma bastante injusta. Rothbard argumenta que Smith defendia não só obras públicas e educação estatal, mas também regulamentação bancária, impostos progressivos sobre o rendimento, leis rígidas sobre a usura, e numerosas outras intervenções estatais. Os pontos de vista de Smith seriam, em todos os sentidos, um passo atrás em relação ao liberalismo estrito [...]" (Prowse 1997).

 

A "juventude selvagem" da escola neoliberal falou com a mesma rudeza; em Chicago, no entanto, as coisas ficaram em família. Na dedicação do seu livro "Capitalismo e Liberdade" em 1962, Milton Friedman tinha instruído o seu filho David a "levar a tocha da liberdade para a próxima ronda", e onze anos depois o seu filho seguiu esta ordem com a publicação de uma obra com o título significativo "A Maquinaria da Liberdade". Esta ideia genuinamente benthamiana da "maquinaria da liberdade" tira a conclusão final:

 

"Se o filho do Prémio Nobel Milton Friedman fosse acusado de querer regressar ao velho Estado de guarda nocturno liberal, seria uma calúnia, pois claro que ele também privatizaria o cargo do guarda nocturno. 'Tudo o que os governos fazem pode ser dividido em duas categorias – tarefas que podem ser-lhes tiradas hoje, e tarefas que esperamos tirar-lhes amanhã', diz o seu livro [...] A luta privada contra o crime, por exemplo, acha Friedman, seria mais eficiente do que a luta estatal contra o crime. A vítima de um crime só teria então de vender os seus pedidos de indemnização por danos ou compensação por sofrimento a um empresário privado, que depois os cobraria do criminoso – morto ou vivo. Isso não faz lembrar os caçadores de recompensas no Oeste selvagem? E porque não, diz Friedman. 'O sistema funcionou bastante bem, afinal de contas'. As opiniões de Friedman são extremas, mas ele não é um solitário. O capitalismo radical é chique na América [...]" (Piper 1997).

 

Aqui são desenhados os contornos de uma sociedade de horror, com os quais os escritores das utopias negativas da primeira metade do século não poderiam ter sonhado. Já não é o omnipotente e omnipresente aparelho de Estado que exerce o domínio total, mas, numa sociedade atomizada, um regime de terror não menos horrível é exercido pelos poderosos interesses privados daqueles que são capazes de pagar numa economia de mercado. A todo-poderosa polícia estatal e secreta é substituída por serviços de segurança privados, bandidos e guarda-costas, "xerifes negros" e esquadrões da morte. Mas esta versão de imagem no espelho das utopias negativas não vem como um aviso, mas com toda a seriedade, como uma visão positiva de uma sociedade como deveria ser.

Não foi, contudo, uma questão especificamente dos EUA que constituiu um neoliberalismo radicalizado, mesmo que este corpo de pensamento tenha encontrado terreno fértil mais rapidamente no mundo anglo-saxónico. Já a carreira de Hayek mostra que os fios foram fiados muito mais amplamente. As variantes alemã e suíça do neoliberalismo, moldadas por Walter Eucken (1891-1950) e Wilhelm Röpke (1899-1966), que formaram o contexto teórico para a política económica do suposto "ministro do milagre económico" alemão Ludwig Erhard, estiveram sempre estreitamente relacionadas com Hayek e os seus alunos, mesmo que existissem diferenças. Eucken e Röpke tinham tirado as suas próprias conclusões da grande depressão, que também eram dirigidas contra a doutrina keynesiana; viram a causa da crise principalmente no facto de a livre concorrência não ter sido suficientemente assegurada institucionalmente e ter sido impedida do seu trabalho benéfico pela formação de monopólios. Por esta razão, exigiram que o Estado criasse um quadro regulamentar para ajudar o mecanismo da concorrência no seu direito (por isso esta variante neoliberal foi também chamada "ordoliberalismo"); para além disto, porém, só deveria haver uma intervenção estatal limitada nas condições socioeconómicas, em caso algum no sentido keynesiano de "socialismo de investimento" e "deficit spending". A variante ordoliberal era mais "moderada" do que o radicalizado neoliberalismo austro-inglês e norte-americano; mas Hayek mostrou uma habilidade notável no alinhamento no seu sentido das várias posições neoliberais em termos de teoria política e estratégia. Em 1947, sob a direcção de Hayek, foi fundada em Mont Pèlerin (Suíça) a Mont Pèlerin Society, ainda hoje activa, em certa medida um grupo de peritos e, ao mesmo tempo, uma espécie de Ku Klux Klan intelectual do neoliberalismo com o objectivo de influenciar a longo prazo no sentido do extremismo económico capitalista, como é involuntariamente desmascarado num benevolente relatório sobre a conferência de aniversário cinquenta anos mais tarde:

 

" (De) 1 a 10 de Abril de 1947 [...] 39 cientistas, empresários e jornalistas reuniram-se no Mont Pèlerin acima de Vevey a convite de Friedrich August von Hayek para discutir os desafios e ameaças a uma sociedade liberal. No final dos dez dias [...] foi fundada a sociedade com o nome do local de reunião, como Hayek pretendia [...] O que era então uma associação íntima, em grande parte confinada à Europa e aos EUA, tornou-se desde então um lar intelectual para mais de 500 liberais em todos os continentes [...] De dois em dois anos a Mont Pèlerin Society (MPS) realiza uma chamada Reunião Geral algures no mundo, com reuniões regionais no meio. Os eventos servem para discussão, são voltados para o interior e não se destinam ao público. Esta 'seclusão' torna a sociedade ligeiramente suspeita aos olhos de muitos [...] Assim, [...] os media não são oficialmente permitidos, e os poucos jornalistas entre os membros podem relatar a essência das discussões, mas não devem entrar demasiado em detalhes [...]" (Neue Zürcher Zeitung, 3.5.1997).

 

Nos bastidores, a MPS empenhou-se num zeloso lobby de política científica, e os seus membros conseguiram ocupar posições-chave na academia. Neste sentido, no final do curto boom keynesiano-fordista, já fazia parte da história de sucesso do novo extremismo económico que em 1974 Hayek e em 1976 Friedman (sénior) tivessem sido galardoados com o Prémio Nobel. Com certeza que tudo isto cheira a uma "conspiração mundial" liberal radical; mas, como sempre em tais assuntos, a vontade subjectiva é sobrestimada. Numa sociedade dividida, baseada em formas fetichistas irracionais e não na autoconsciência comunicativa, há inevitavelmente não só dominação vertical, mas também cliques, súcias e bandos, corrupção e máfia, círculos informais e Ku Klux Klans de todos os tipos; mas tais formações de gangues só podem tornar-se eficazes, mesmo na esfera científica e sócio-política, se conjunturas económico-políticas e intelectuais "objectivas" as acomodarem.

Na ciência económica e entre as elites funcionais capitalistas, no entanto, não foi de modo nenhum uma mera conjunção de teorias que voltou a dar ao neoliberalismo a vantagem depois de um longo período de seca. Mais precisamente, o anterior "triunfo" teórico do keynesianismo foi altamente peculiar e, em certa medida, infeliz. Afinal, a "Teoria Geral" tinha chegado demasiado tarde para a grande depressão; a prática económica do New Deal de Roosevelt, bem como a economia nazi, estavam de facto em linha com a doutrina keynesiana, mas estas políticas tinham surgido espontânea e pragmaticamente, ou seja, não como uma "aplicação" da intervenção teórica de Keynes. No período pós-guerra, só a geração mais jovem de economistas, ainda não estabelecida academicamente, podia ser considerada na sua maioria de keynesianos convencidos; por outro lado a geração mais velha, que na maioria ainda ocupava as cátedras universitárias, continuava a abraçar a teoria clássica ou já a teoria neoliberal.

Embora a prática da política social e económica dos governos sob a pressão do boom e das suas exigências, bem como a concorrência sistémica com o bloco de Leste, parecesse cada vez mais nolens volens keynesianismo, este não era de modo nenhum a doutrina oficial em todo o lado, mas sim um liberalismo difusamente modificado; na RFA foi muito explicitamente o "ordoliberalismo" de Eucken e Röpke que serviu a Ludwig Erhard como base teórica para a construção da "economia social de mercado". Teórica e sócio-politicamente, portanto, foi um paradoxo: os governos com um contexto classicamente liberal ou mesmo neoliberal de legitimação da sua política económica agiram cada vez mais keynesianamente no sentido do "deficit spending"; mas não no contexto de administração da crise previsto por Keynes para este fim, mas como um aumento e prolongamento do boom: em parte através da fundação infra-estrutural de um capitalismo total em grande escala através dum elevado investimento estatal, em parte através do apoio sócio-político do consumo de massas.

Quando finalmente os jovens economistas dos anos 40 envelheceram e passaram para posições de liderança, ou seja, quando parecia ter chegado a grande era do keynesianismo, ela já estava de novo ultrapassada; pois quase ao mesmo tempo, com os Prémios Nobel de Hayek e Friedman, a entronização do neoliberalismo radicalizado já tinha começado. Esta estranha história mostra que o keynesianismo permaneceu sempre e independentemente das situações de crise um enteado pouco amado da corporação dos economistas, da classe política e das elites funcionais capitalistas – embora contivesse o único programa possível para prolongar a vida do capitalismo apesar da sua autocontradição em processo e para totalizar socialmente (na medida do possível) este modo de produção em geral.

Esta "ingratidão" testemunha um profundo impulso ideológico e uma fanática atitude básica da sociedade capitalista que remonta até Hobbes, Mandeville, etc.: nomeadamente, a crença completamente ilógica de homens superiores de que o capital pode acumular-se indefinidamente através da utilização optimizada de um material humano que deve basicamente ser mantido e maltratado no estatuto de "trabalhador pobre". Esta é precisamente aquela forma microeconómica, puramente de economia empresarial e pseudo-individual de ver as coisas, que não por acaso também voltou a surgir na obra de Dahrendorf, e que é, por assim dizer, a forma "natural" do capital. Pois na prática este é o único ponto de vista possível, enquanto que o ponto de vista macroeconómico, ou em geral o ponto de vista da sociedade como um todo, permanece um ponto de vista meramente virtual e teórico, que exige dos "actores económicos" um momento de reflexão que lhes é na realidade estranho e está em contradição com o seu agir.

No entanto, este ponto de vista é pseudo-individual porque, em rigor, só pode ser o ponto de vista individual do proprietário do capital ou do gestor, enquanto a mesma "individualidade" económica no que diz respeito aos mercados de trabalho conduz a resultados grotescos e autodestrutivos para aqueles que deles dependem. Mas também para a gestão, o ponto de vista "natural" da economia empresarial individual leva a aporias na macroeconomia e no conjunto da sociedade que se repercutem de novo a nível da economia empresarial. Contra toda a percepção racional, o "id" económico insiste na sua negra pulsão de transformar o mundo numa acumulação gigantesca de mercadorias e, ao mesmo tempo, reduzir as massas ao nível da subsistência; tentar dissuadi-lo desta impossibilidade lógica é tão promissor como tentar reciclar um predador carnívoro para fazer dele um vegetariano.

Assim, o contexto teórico para o avanço do neoliberalismo extremista esteve sempre presente; tudo o que era necessário era a situação económico-social em que a doutrina keynesiana também teria de falhar na prática para deixar o predador à solta. Ironicamente esta situação coincidiu com o facto de o keynesianismo ter finalmente chegado ao cume após a sua árdua caminhada através das instituições – apenas para ter de se demitir de novo imediatamente. Pois, justamente no mesmo período que finalmente viu governos mais ou menos explicitamente keynesianos e social-democratas nos EUA, Inglaterra e RFA, enquanto conceitos correspondentes para o "desenvolvimento" do Terceiro Mundo também estavam a ganhar terreno, já estava a começar a nova crise que não só devia acabar com o boom fordista, mas anunciar o colapso do sistema industrial de bola de neve por completo.

Nos EUA, os presidentes do Partido Democrático tradicionalmente social-liberal, John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson, já tinham introduzido ou reforçado elementos keynesianos de política social e regulação estatal em 1960-68 com o programa da "Great Society", que não foram retirados mesmo sob a presidência dos republicanos mais conservadores Richard Nixon e Gerald R. Ford (1968-76). Mais notavelmente, porém, foi durante a administração do democrata Jimmy Carter (1976-1980) que foi feita uma tentativa de estabelecer novos programas sociais. Também na Grã-Bretanha, o governo trabalhista de Clement Attlee tinha implementado programas keynesianos e mesmo nacionalizações já em 1945-1951, embora os conservadores sob Winston Churchill e Harold Macmillan os tenham revertido parcialmente até 1964. Desde então, os governos trabalhistas e conservadores alternaram, acompanhados de ferozes conflitos sociais; mais recentemente, governos trabalhistas keynesianos estiveram ao leme em 1974-1979 sob o comando de Harold Wilson e James Callaghan. Na RFA, o governo conservador de longa duração sob Konrad Adenauer e Ludwig Erhard foi inicialmente substituído por uma "grande coligação" em 1966, até que governos social-liberais com uma forte orientação keynesiana emergiram sob Willy Brandt e Helmut Schmidt (1969-1982).

Quase simultaneamente, o keynesianismo sofreu um naufrágio no final dos anos 70 e início dos anos 80 sob o impacto das crises inflacionistas, juntamente com os governos Carter, Callaghan e Schmidt nos principais centros industriais. A "viragem" de Reagan, Thatcher e Kohl foi mais do que uma simples mudança de governo e também mais do que uma mudança de política; foi essa viragem abrupta para o liberalismo radical que os delírios ideológicos da Mont Pèlerin Society, com as suas múltiplas ligações nos partidos conservadores e liberais, tinham promovido durante muito tempo com sucesso variável:

 

"Desde a União Económica e Monetária alemã (Ludwig Erhard) e a Escola de Freiburg, passando pelos anos Reagan e pelo thatcherismo, com o seu recurso a inúmeros conselheiros das fileiras da MPS, até à Revolução de Veludo na Checoslováquia (Vaclav Klaus), os membros da MPS desempenharam repetidamente um papel fundamental [...]" (Neue Zürcher Zeitung, 3.5.1997).

 

Acima de tudo, Reagan e Thatcher foram o grande avanço, para o qual o estado de espírito subliminarmente anti-social das elites capitalistas e a crise inflacionista forneceram uma mistura explosiva como propulsor: "Como um monstro surgido duma representação do apocalipse, o reaganismo irrompeu da coutada do Sunbelt ('cinturão do sol') americano [...]" (Davis 1986, 13). O que tornou a face radical tão sedutora para os economistas e decisores políticos foi não só a inflação a aumentar em grandes surtos em todo o mundo, mas também o desemprego em massa a aumentar simultaneamente, contra toda a sabedoria dos manuais. Este fenómeno já não podia ser explicado, quanto mais gerido, em termos keynesianos. Afinal, a micro-inflação do “deficit spending” considerada "doseada" por Keynes deveria garantir automaticamente o pleno emprego.

Popular a este respeito tinha-se tornado a "curva Philips" com o nome do economista britânico A. W. Philips, segundo a qual a inflação e o desemprego deveriam, em princípio, comportar-se de forma recíproca: Quanto maior for a inflação, menor será o desemprego, e vice-versa. O chanceler social-democrata Helmut Schmidt tinha feito daqui o programa de que cinco por cento de inflação era melhor do que cinco por cento de desemprego. Agora a "curva Philips" revelou-se uma construção insustentável, uma vez que não só a inflação ameaçava ficar fora de controlo, mas também o automatismo do emprego com ela supostamente entrelaçado já não funcionava. Milton Friedman, que há muito defendia que a inflação associada aos mecanismos keynesianos (política sistemática de taxas de juro baixas, “deficit spending”) não podia ser mantida sob controlo nem evitar o desemprego a longo prazo, parecia ser o brilhante vencedor. A única tarefa do Estado em termos de política económica, argumentou, deve ser a de garantir a estabilidade monetária, como condição-quadro para o livre jogo das forças de mercado, através de uma política de taxas de juro relativamente elevadas e de uma disciplina orçamental rigorosa (daí o nome "monetarismo" para esta doutrina). A ligação, reiterou Friedman repetidamente, seria uma ligação simples:

 

"Se a quantidade de bens e serviços que podem ser comprados, isto é, a produção, aumentasse tão rapidamente como a oferta de dinheiro, os preços permaneceriam em princípio estáveis [...] A inflação ocorre quando a oferta de dinheiro cresce consideravelmente mais depressa do que a produção total. Quanto mais depressa cresce a oferta de dinheiro por unidade de produção, maior é a taxa de inflação. Nenhum outro princípio de economia é provavelmente tão impecavelmente demonstrado como este. A produção é limitada pelos recursos físicos e humanos disponíveis e pelo estado de conhecimento e habilidade na utilização desses recursos. Mesmo no melhor caso possível, a produção só pode aumentar lentamente [...]" (Friedman 1992, 199).

 

Muito simples de facto: o mal da inflação surge porque a quantidade de dinheiro cresce mais rapidamente do que a quantidade de bens; e por isso a receita é que a quantidade de dinheiro deve ser ajustada de forma restritiva à quantidade real de bens. Naturalmente, isto levanta a pequena questão: o que é esta "quantidade real de bens"? É, afirma Friedman, a quantidade que pode ser produzida com os recursos físicos e conhecimentos e capacidades humanas disponíveis. Em termos sociopolíticos, de acordo com o eterno sermão neoliberal, isto significa: "Só o que foi produzido num determinado período de tempo em termos de bens e serviços pode ser distribuído". O liberalismo está aqui a fazer-se mais ingénuo do que é. Fourastié argumentou de modo igualmente ingénuo em relação à possível redução do tempo de trabalho através do aumento da produtividade. Mas, tal como o tempo de trabalho sob o ditame da racionalidade da economia empresarial não é nenhuma quantidade das potencialidades "naturais" das forças produtivas, também não é o a produção de bens.

Pois de forma nenhuma são produzidos e distribuídos tantos bens de acordo com as necessidades como seria possível com os potenciais "naturais", com os recursos físicos e conhecimentos existentes. Em vez disso, a produção é determinada unicamente pelo critério do dinheiro, ou seja, o processo capitalista de valorização. Como o próprio Friedman tinha dito com tanta beleza: a única responsabilidade social dos empresários seria gerar o máximo de lucro possível para os accionistas das suas empresas. "Real" neste sentido não é de modo nenhum a quantidade de bens correspondente aos recursos materiais e técnico-científicos, mas sempre apenas a quantidade de bens cuja produção satisfaz o critério da chamada rentabilidade. O padrão de rentabilidade, por sua vez, é determinado pela média capitalista total (hoje global) do lucro. Isto significa que mesmo os bens produzidos com lucro se tornam "não rentáveis" se este lucro for inferior ao padrão de rentabilidade. A este respeito, pode ocorrer o caso absurdo de uma produção altamente "não lucrativa" no sentido capitalista destruir "valor" económico em vez de o criar – embora tenham sido produzidos bens físicos funcionais com meios fisicamente disponíveis. Em qualquer caso, uma economia de mercado produz sempre muito abaixo da sua capacidade técnica "natural"; nem os meios de produção são produzidos na medida das possibilidades técnicas, nem as capacidades produzidas são utilizadas nessa medida, mesmo que haja uma necessidade social urgente dos produtos.

Esta é precisamente a razão pela qual, na crise, meios de produção são encerrados em massa, ao mesmo tempo que as pessoas têm de morrer à fome em massa. Sob a impressão da crise económica mundial, Keynes temia que o "escândalo" deste absurdo pudesse levar a uma revolta contra o capitalismo; e não para pôr fim a este absurdo, mas para salvar o sistema, quis ultrapassar a perigosa restrição capitalista das forças produtivas "naturais", por assim dizer, por meio do "deficit spending": Através da dívida pública e de uma política de taxas de juro baixas, a oferta monetária deveria ser ajustada, contra a lógica (da economia empresarial) capitalista, precisamente à capacidade real (física–"natural") da possível produção de bens, assegurando assim consumo e emprego suficientes.

Se este "truque" tivesse realmente excedido o limite dos recursos físicos e dos conhecimentos humanos disponíveis, então é claro que a criação adicional de dinheiro não teria tido qualquer utilidade. A este respeito, o argumento de Friedman envergonha-se a si próprio; na verdade, ele apenas diz que pelo truque keynesiano as possibilidades de produção bastante reais existentes foram usadas "de forma proibida", para além dos limites capitalistas. O resultado em termos de crise, portanto, não aparece do lado dos meios de produção, que tivessem sido tecnicamente sobreutilizados, mas (como o próprio Friedman diz) do lado do dinheiro, que é "desvalorizado" porque mobiliza meios físicos de produção que, de acordo com a anti-razão capitalista, deveriam "realmente" ser encerrados. Deste ponto de vista, a "curva de Philips" era um indicador apenas temporariamente válido da medida em que, nas condições da Segunda Revolução Industrial, a quantidade de dinheiro podia ser razoavelmente alinhada com a potência "natural" real das forças produtivas, sem arriscar a completa desintegração do sistema monetário.

A obsolescência deste mecanismo indicava que a Terceira Revolução Industrial estava a começar, muito para além da situação da anterior crise económica mundial, a fazer divergir catastroficamente a desproporção entre a rentabilidade da economia empresarial e a potência "natural" das forças produtivas. Enquanto a capacidade técnica de produção aumentava por saltos como resultado da racionalização microelectrónica, o desemprego em massa reduzia o poder de compra na mesma medida. A tentativa keynesiana de iludir a restrição capitalista das potências e recursos físicos através de uma expansão "artificial" da massa monetária injectada já não podia ser eficaz, mesmo com uma inflação elevada – uma indicação da tremenda velocidade com que as potências de produção reais começavam agora a fugir ao critério da rentabilidade capitalista.

Em última análise, a médio prazo, isto significa que o capitalismo, numa escala maior do que nunca, tem apenas a "escolha" entre a destruição total da inflação e o colapso deflacionista. Keynesianos e monetaristas representam os dois pólos de uma contradição lógica que entrou na sua fase de maturidade; portanto, apesar do superficial triunfo monetarista, não pode haver, afinal, nenhum vencedor na disputa, mas apenas uma comum falência intelectual e prática.

A receita demasiado simplista de Friedman equivale a substituir a crise inflacionista por uma crise deflacionista. Afirma basicamente que não são, por exemplo, os meios de produção existentes, os recursos físicos e as potencialidades técnico-científicas que são "naturais", mas apenas as leis capitalistas do movimento do dinheiro – a única forma concebível em que a sociedade é "autorizada" a mobilizar os seus recursos materiais:

 

"A autoridade monetária só pode baixar o juro de mercado abaixo do juro natural pela inflação. Pode aumentar o juro do mercado acima do juro natural apenas pela deflação [...] Esta análise encontra a sua contrapartida imediata no mercado de trabalho [...] Um nível de emprego mais elevado é uma indicação de que existe uma procura excedentária de trabalho que faz subir as taxas salariais reais. Um nível inferior de emprego é uma indicação de que existe um excesso de oferta de trabalho que irá fazer baixar as taxas salariais reais. O 'nível natural de subemprego' é, por outras palavras, o que resultaria do sistema de equilíbrio [...] Como no caso das taxas de juro, o nível de ‘mercado' só pode ser mantido abaixo do nível ‘natural’ pela inflação e, como no caso das taxas de juro, também só por uma aceleração do processo inflacionário" (Friedman 1976/1969, 144 ss.).

 

Uma taxa de juro "natural" e, portanto, uma oferta "natural" de dinheiro conduz inevitavelmente a um desemprego "natural" e, portanto, aceitável. Com esta argumentação, Friedman aliviou o Estado da pesada e praticamente impossível tarefa de ter de garantir "pleno emprego" e consumo em massa.

Ele e os seus seguidores puderam assim imaginar que tinham resolvido o problema ao contrário do keynesianismo: tal como o keynesianismo queria erradamente aceitar um certo grau de inflação dita "natural" e mantê-la controlável, o monetarismo queria inversamente e também erradamente um grau correspondente de desemprego "natural". Esta ilusão baseia-se no facto de o monetarismo, tal como o keynesianismo, reduzir o problema ao nível monetário, apenas com conclusões opostas, e assim considera possível uma solução "natural" e intemporal: "A higiene da política monetária em vez da hidráulica keynesiana" (Starbatty 1999) é a ordem do dia. Em ambos os casos é completamente ignorado que é o desenvolvimento imparável e irreversivelmente crescente das forças produtivas no processo histórico das três revoluções industriais que torna o sistema monetário e as potências técnico-científicas de produção cada vez mais divergentes, até que finalmente estas potências se tornam completamente incompatíveis com a forma fetichista do dinheiro e com a reprodução dos indivíduos através dos "mercados de trabalho". É apenas uma questão de tempo até que a doutrina monetarista se tenha envergonhado tanto como a keynesiana.

Mas para a corporação dos economistas, tal como para as elites funcionais capitalistas como um todo, é impossível tocar nos axiomas mudos do moderno sistema produtor de mercadorias, em cujas categorias todo o seu pensamento está preso, de modo que uma meta-reflexão "sobre" as formas e pressupostos desta sociedade parece impossível; isso, juntamente com a prática social correspondente, faria com que todo o edifício da chamada ciência económica, erguido ao longo de três séculos, implodisse e pusesse basicamente em causa a necessidade social das elites funcionais, incluindo a classe política. Portanto, para evitar a nova grande crise à escala planetária, preferiu-se acreditar no neoliberalismo radicalizado, especialmente porque isto poderia ser combinado com a agradável ideia de poder controlar as pessoas que tinham sido degradadas ao estatuto de material.

Assim, em cumprimento da doutrina monetarista, o recuo sistemático e a abdicação da regulamentação keynesiana e do Estado de bem-estar tornaram-se a principal tendência social para o resto do século XX. A grande "viragem" nos países anglo-saxónicos e na RFA fez desta política social o padrão para o resto dos centros capitalistas que a seguiram mais ou menos entusiasticamente, ao mesmo tempo que foi também imposta por instituições económicas internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional sobre o Terceiro Mundo, já em grande parte arruinado no turbilhão da crise. O colapso do bloco Leste de capitalismo de Estado no final da década de 1980 deu a este "consenso mundial" neoliberal um novo e enorme impulso, para que a crise pudesse agora ser apresentada de forma ainda mais ostensiva como resultado de uma aberração da economia estatal.

Desde então, sob os slogans de "desregulamentação" e "privatização", um desarmamento das estruturas de economia estatal construídas ao longo de mais de cem anos tem tido lugar com uma vontade de destruição sem precedentes, e está longe de ter terminado. Este processo, no qual um capitalismo que enlouqueceu literalmente está a remover todas as suas seguranças e a destruir as suas próprias condições de enquadramento, está também a ter lugar – tal como a crise da Terceira Revolução Industrial – em surtos descontínuos. Estão a ser privatizadas não só as empresas estatais, com as quais o próprio Leviatã tinha actuado como empresário tanto nos países de capitalismo de Estado como no Terceiro Mundo, e em certa medida também nos centros (sobretudo na RFA, França e Itália), a fim de controlar e proteger a sua própria indústria (ou partes da mesma consideradas estratégicas). Mesmo sectores inteiros da infra-estrutura social devem ser submetidos custe o que custar ao cálculo de rentabilidade da economia empresarial, embora isto desrespeite a natureza do quadro social global, que não pode ser operado de acordo com os ciclos da economia de mercado, como Adolph Wagner já tinha reconhecido.

Acima de tudo, porém, o Estado social e os sectores culturais tornaram-se o alvo das bolas de demolição neoliberais. Tudo o que não serve directamente a valorização deve desaparecer da face da Terra. Institutos científicos e hospitais, jardins de infância e teatros, piscinas e museus, escolas e instituições sociais estão a ser encerrados em série, ou os respectivos fundos estão a ser cortados de tal modo que só é possível um funcionamento drasticamente limitado. Por todo o lado o Estado central está a sangrar financeiramente as autarquias e a fazê-las pagar pela crise da dívida nacional. É claro que sempre se tratou de pôr a raposa a guardar o galinheiro quando logo o Estado foi tornado responsável pelas áreas sociais e culturais mais importantes. Mas, nas condições do modo de produção capitalista, não poderia haver outra autoridade que não fosse o Estado para garantir pelo menos um mínimo de normas civilizacionais e mitigar as consequências destrutivas da racionalidade da economia empresarial. A retirada geral do Estado agora exigida e realizada já contém os primeiros sinais da possibilidade de uma completa descivilização à espreita no capitalismo desde o início. Mesmo num centro capitalista como a RFA, esta decadência civilizacional faz-se sentir em detalhes grotescos da vida pública quotidiana:

 

"Pecunia non olet, o dinheiro não tem cheiro, aprenderam os alunos sempre na aula de latim. O que Titus ainda não suspeitava, aprende hoje em dia nova geração durante o intervalo: o dinheiro inexistente cheira mal. Agora a Comissão de Higiene do Ar em Espaços Interiores (logo ela!) da Agência Federal do Ambiente queixa-se do estado catastrófico da higiene nas escolas da Alemanha. Em muitos lugares 'a área sanitária' é particularmente afectada pelo facto de as medidas de limpeza nas escolas 'estarem a ser reduzidas a um nível que já não é aceitável'. Porque o dinheiro era escasso, muitas autarquias pouparam na limpeza das instituições de ensino [...]" (Die Zeit 27/1999).

 

O "Estado magro", imposto  todo o custo, fede até ao céu em todos os aspectos. Este é o resultado material inevitável da "higiene da política monetária". As neoliberalmente ideologizadas elites funcionais capitalistas aceitam uma descivilização de longo alcance sem mais delongas, uma vez que estão apenas preocupadas com a sobrevivência deste sistema, por mais loucas que sejam as consequências. Mas, especialmente no sentido de salvar o sistema, os dogmas de "higiene da política monetária", "Estado magro", desregulamentação geral e privatização são ilusões grandiosamente ingénuas. É verdade que as receitas das rondas de privatização (a venda da "prata" pública) lançam temporariamente dinheiro nos cofres públicos vazios, mas é claro que isto não resolve um único problema, e o efeito tem de voltar a fazer-se sentir em breve. Muito menos o dinheiro "poupado" e os "empregados" do Estado reaparecem no lado "privado", empresarial, de uma forma supostamente mais eficiente. Os sectores privatizados das infra-estruturas são reduzidos a núcleos "rentáveis" e deixam de cumprir a sua função social global; muitos sectores sociais e culturais simplesmente desaparecem.

Mas, afinal de contas, tanto os custos de investimento do Estado como os salários dos funcionários públicos que trabalham nestes sectores e o financiamento do Estado de bem-estar constituíam simultaneamente a procura no mercado de bens que gerava uma produção real, como os keynesianos correctamente assinalaram. Se, como os monetaristas insistem, esta exigência foi meramente simulada por uma política monetária estatal duvidosa e pela criação de dinheiro, então a sua redução drástica afecta naturalmente não só as finanças estatais, os salários dos funcionários públicos e os rendimentos da segurança social, mas também o volume do mercado, as vendas e os lucros das empresas. Por outras palavras: Na mesma medida em que a "hidráulica keynesiana" falha e é mesmo deliberadamente desligada, a verdadeira dimensão da crise ameaça tornar-se evidente e asfixiar a reprodução do sistema capitalista. O keynesianismo foi o primeiro e ao mesmo tempo o último projecto capitalista de salvação do sistema, enquanto a bola de destruição neoliberal poderá, contrariamente às expectativas, arrasar completamente não só a "ditadura do bem-estar" mas o próprio capitalismo. Os custos indirectos dos cortes na segurança social, das desactivações, das privatizações e dos "cortes de custos" há muito que ultrapassaram excessivamente as poupanças e exacerbaram em vez de aliviarem os custos da crise. É por isso que uma década e meia de redução neoliberal do Estado não foi de modo nenhum capaz de inverter a tendência secular da "lei do aumento da quota do Estado" de Adolph Wagner, como mostra uma comparação a longo prazo de três países capitalistas centrais com tradições diferentes:

 

Quota estatal em percentagem do PIB

 

1870

1960

1994

Alemanha

10

32

50

Suécia

6

31

69

EUA

4

27

32

Fonte: FMI/Wirtschaftswoche

 

É bastante óbvio que, devido a diferentes tradições e histórias de desenvolvimento, a quota estatal não aumentou na mesma medida, mas em todos os casos aumentou tão acentuadamente que não é de modo nenhum o resultado de políticas subjectivas, mas tem de ser uma mudança estrutural objectiva. A específica potencialidade de crise que lhe é inerente, que é despertada na Terceira Revolução Industrial, só pode ser agravada pela violenta cura neoliberal. Se o Estado se demitir, o mercado também tem de se demitir. O Estado só pode "morrer" no sentido emancipatório se o capitalismo morrer juntamente com ele. Mas um capitalismo à solta, que no entanto se torna socialmente incapaz de se reproduzir, regressa ao estado de necessidade permanente do seu "take off" protoindustrial. O "Estado Pai" deixa cair a máscara e reduz-se novamente ao seu núcleo violento repressivo em sucessivas crises cada vez mais frenéticas. Não é por acaso que a emergência neoliberal foi ensaiada desde 1973 na ditadura militar chilena; ainda hoje Margaret Thatcher, de quem se disse que "caminha de saltos altos sobre cadáveres", se declara amigavelmente associada a um monstro como Pinochet, que mandou lançar de helicópteros os opositores de esquerda. E não foi por acaso que a primeira "reforma" de Ronald Reagan consistiu em transferir 135 mil milhões de dólares do Estado social para o Estado do armamento. A propensão latente do liberalismo para a violência ameaça manifestar-se internamente à medida que o estado de necessidade cresce; e até a confiança na democracia de Bentham começa a diminuir, como se ouviu na reunião de aniversário da Mont Pèlerin Society:

 

"Embora desde o início os membros da Mont Pèlerin Society tenham sempre defendido com convicção uma democracia liberal, [...] a natureza de cabeça de Janus da democracia nunca lhes escapou. Hoje [...] cresceu a consciência e a preocupação de que a democracia é de facto uma expressão de uma concepção liberal do ser humano, mas que ao mesmo tempo contém todos os mecanismos para restringir a liberdade do indivíduo a favor de um Estado que sai dos seus limites [...] Em geral é óbvio que os desenvolvimentos dos últimos 50 anos que ameaçam a liberdade surgiram em todo o caso apesar da democracia – e talvez também em parte devido à democracia [...]" (Neue Zürcher Zeitung, 3.5.1997).

 

Não se poderia dizer mais claramente que na crise da Terceira Revolução Industrial a democracia poderá voltar a transformar-se a partir de dentro em terror de Estado aberto contra os "supérfluos". Não porque o procedimento democrático estivesse em contradição fundamental com o capitalismo, mas porque, numa crise de colapso iminente, já nem os mecanismos de Bentham merecem confiança. Se acontecer o pior e o material humano puder chegar a ideias estúpidas, o procedimento tem de ser encurtado um pouco e o núcleo ditatorial oculto da democracia tem de ser trazido à tona.

Mas onde até o núcleo violento do Estado se dissolve e, no entanto, a economia monetária continua a existir em formas mafiosas e de miséria, como no sonho de um liberalismo extremista de David Friedman, a barbárie aberta já reina. Em amplas partes do mundo, desde a América Latina e África até ao Afeganistão, Ásia Central e Balcãs, o colapso da "modernização atrasada", juntamente com as subsequentes "terapias de choque" neoliberais ou restrições forçadas pelo FMI, já mergulhou a sociedade em horrores desconhecidos até do terror do capitalismo primitivo.

 

 

Original Der Staat dankt ab, pags. 360-374 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (5.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

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