ATÉ A ÚLTIMA
GOTA
Como o Esclarecimento tornou-se mito e a promessa de liberdade
converteu-se em 'total empulhação das massas' Todas as
monstruosidades da história retornam sob a máscara das
''coerções'' liberais
Em maio de 1944, durante o exílio
californiano, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno concluíram, sob
o título ''Dialética do Esclarecimento'' (''Dialektik der
Aufklãrung''), um manuscrito redigido em comum frase a frase,
que só seria publicado em 1947, em Amsterdã. Sobre esse texto
pode-se dizer, sem hesitar, que introduziu uma mudança de
paradigma rica de consequências para a teoria social. Pois, até
então, o pensamento do Esclarecimento, da forma como se
desenvolvera no século 18, era tomado como o legado positivo
comum da modernidade. Liberais e marxistas reportavam-se
igualmente às conquistas desse período, uma vez que o marxismo
resultara do liberalismo e, este, da filosofia do Esclarecimento
anglo-escocês, francês e alemão.
As ideologias do progresso concorrentes no século 19 e início
do século 20 batiam-se em torno da interpretação e evolução
do pensamento do Esclarecimento; o marxismo aparecia, por assim
dizer (e também compreendia a si próprio), como a sua ''segunda
transição'', que, após a crítica do despotismo absolutista,
da religião e da superstição, queria executar a ''missão
histórica'' do Esclarecimento por meio da crítica das
relações sociais e econômicas. Uma crítica contrária aos
fundamentos do Esclarecimento só parecia possível nos
horizontes do pensamento reacionário, misantropo e irracional,
que preparara e munira ideologicamente o regime fascista e a sua
barbárie moderna. Um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial,
quando ainda vigorava a coalizão anti-Hitler entre a União
Soviética e as potências ocidentais, seria natural reproduzir
intelectualmente, num maniqueísmo filosófico, as frentes de
guerra e identificar a coalizão antifascista ao lado bom na
tradição do Esclarecimento, e, o fascismo, ao lado mau na
tradição romântica e reacionária do contra-Esclarecimento.
Essa interpretação, no horizonte compreensivo de um liberalismo
banal e um não menos trivial marxismo democrático, que
vegetaria até os anos 80 e, de bom grado, teria insistido para
sempre na constelação que há muito se tornara histórica da
coalizão anti-Hitler, foi, todavia, fundamentalmente recusada
pela ''Dialética do Esclarecimento''. Mas Horkheimer e Adorno
também não forneciam nessa obra teórica uma filosofia para o
conflito entre Ocidente e Oriente, que dominaria metade do
século seguinte _filosofia esta que se interessava simplesmente
pelos pressupostos ideológicos do mercado e se antecipava ao
espírito do tempo como ''trendsetter''. A mera excomunhão do
marxismo dos limites da ''boa'' modernidade e a glorificação da
democracia ocidental supostamente ''pluralista'' como a única
herdeira legítima do Esclarecimento, em oposição às ditaduras
fascistas e stalinistas, qualificadas igualmente como
''totalitárias'', remonta a uma literatura acadêmica barata,
que, com exagerada condescendência, servia ideologicamente ao
próprio sistema de dominação durante o período da ''Guerra
Fria''.
A ''Dialética do Esclarecimento'', ao contrário, mergulhava
raízes muito mais profundas: pela primeira vez, de uma
perspectiva crítica e emancipatória, a tradição do
Esclarecimento como tal foi posta em tela de juízo. O fascismo,
diz a revelação chocante de Horkheimer e Adorno, não foi um
monstro alheio, que irrompeu de forma atávica do subterrâneo
pré-civilizatório da história, mas um legítimo descendente do
próprio Esclarecimento. ''O Esclarecimento é totalitário''
_essa frase cortante delineia o programa de uma crítica social
nova e diversa, que até hoje aguarda o seu cumprimento. O
conceito de ''totalitarismo'' caracterizava, desse prisma, não
somente o fascismo e tampouco o fascismo e o stalinismo tomados
em conjunto, mas, em última instância, a própria democracia
ocidental. De certo modo, era a perspectiva de um futuro
antecipado, a partir do qual as ideologias modernas mutuamente
antagônicas, os movimentos políticos e os sistemas sociais
eram, de forma inopinada, percebidos num sistema de coordenadas
comum, para o qual elas próprias eram cegas, mas cujo
reconhecimento crítico relativizava, de um ponto de vista
superior, seus antagonismos. Por isso, ambos os autores desse
livro admirável não se deixavam embair pela situação
histórica concreta do ano de 1944. Era indispensável, na
prática, derrubar o fascismo, que corporificava as
possibilidades e consequências mais fatídicas do Esclarecimento
e da modernização. Mas isto não significava subordinar a
Teoria Crítica a tal objetivo imediato. O conhecimento teórico,
para além da política antifascista do dia-a-dia e das
necessidades de guerra, não podia calar e reprimir que o
próprio fascismo era farinha do mesmo saco do Esclarecimento e
que a lógica da desumanização espreitava os próprios pilares
da democracia ocidental.
Mas no que consistia esse momento totalitário comum da
modernidade esclarecida, que o fascismo representava numa forma
extremamente irracional e equívoca, o stalinismo numa forma
historicamente extemporânea (tardia) e a democracia ocidental
numa forma madura, em inúmeros aspectos (pelo menos nos Estados
Unidos) já quase pós-moderna? Horkheimer e Adorno tiveram
sérias dificuldades para formular, em 1944, o problema que
farejavam. O salto por sobre a própria época os tinha conduzido
aos limites do pensamento moderno em geral, ou seja, ao terreno
para o qual ainda não havia nome nem conceito. A fim de poder
designar o totalitarismo da modernidade, eles lançaram mão do
conceito de ''dominação da natureza'', que se transforma, em
sociedade, na ''dominação sobre os homens''. Na medida em que
se rebaixa a natureza a ''uma mera objetividade'', e o objeto
isolado a um mero ''exemplar'' de uma espécie (e, portanto, a
uma abstração), o sujeito onipotente, por sua vez, torna-se
''mero possuir, mera identidade abstrata'', que só enfrenta o
mundo, a fazer cálculos, com a pretensão de submetê-lo e
dominá-lo. A fim de possibilitar o distanciamento necessário em
face da natureza, tem de surgir na sociedade humana uma classe
dominante, que intercala entre si e a natureza ''os
trabalhadores'' enquanto dominados sociais: ''A distância entre
sujeito e objeto, pressuposto da abstração, radica na
distância com relação à matéria, que o senhor ganha por meio
dos dominados''.
A dominação da natureza por intermédio dos homens-senhores
pressupõe que o homem degrade o próprio homem a mero objeto da
natureza: ''O despertar do sujeito é comprado com o
reconhecimento do poder como princípio de todas as relações''.
Ora, isso, sem dúvida, descreve uma correlação negativa que
possuía validade muito antes da sociedade burguesa moderna.
Disso têm plena consciência Horkheimer e Adorno: ''De fato, as
linhas de razão, liberalidade e burguesismo estendem-se
incomparavelmente mais do que supõe a noção histórica, que
data o conceito de burguês só a partir do fim do feudalismo da
Idade Média''. Os mais antigos esboços de vontade (ainda
impotentes) de dominação sobre a natureza remontam à
pré-história _no próprio ''pré-animismo'' já se acha ''a
separação entre sujeito e objeto''. Mas se o homem
pré-histórico ainda se enchia de um implacável medo diante da
natureza predominante e buscava conjurar sua impotência com
assimilações mágicas de objetos naturais (mimese), o mito, por
sua vez, dá início à objetivação: ''O mito já é
Esclarecimento'', e ''Esclarecimento é a angústia mítica
tornada radical''. Essa angústia deve ser extinta no mito pelo
fato de se objetivar a natureza e, na medida do possível, ''não
existir mais nada desconhecido''. Nesse aspecto, as figuras
mitológicas aparecem como os arquétipos do sujeito burguês,
abstrato e objetivante. Horkheimer e Adorno tentam mostrá-lo no
exemplo do mito de Ulisses _e, isso, lastreados
inconfundivelmente na teoria da cultura de Sigmund Freud. O
herói homérico das aventuras tem de reprimir os seus próprios
impulsos, a fim de se tornar sujeito da dominação. A sedução
dos impulsos naturais, representados mitologicamente pelo canto
envolvente das sereias, é emudecido para os servos pelo fato de
lhes tamparem os ouvidos com cera; Ulisses, como dominante,
permite-se, no entanto, ouvir o canto, previamente atado com
cordas ao mastro da nau, para que não sucumba ao chamariz.
Tal arquétipo mostra como a própria subjetividade, em última
instância, tem de se tornar objeto, a fim de poder objetivar a
natureza e os outros homens por meio da dominação. Já o mito,
portanto, ''pôs em cena o processo infinito do Esclarecimento''.
Nesse processo, são progressivamente destruídas, junto com os
deuses, as qualidades do mundo, pois o ''programa de
desencantamento do mundo'', que repousa na dominação,
decompõe, com o seu ''pensamento ordenador'', tudo o que é
próprio e o que, nos homens e nas coisas, não se resolve na
investida objetivante: ''O que não se quer adaptar à medida da
calculabilidade e da utilidade é tomado como suspeito pelo
Esclarecimento''. Ele é por princípio totalitário, na medida
que submete a natureza e a sociedade despidas de qualidade ao
cálculo da mera quantificação, à matemática da dominação:
''A lógica formal foi a grande escola da uniformização.
Ela forneceu aos esclarecidos o esquema da calculabilidade do
mundo (...), o número tornou-se o cânon do Esclarecimento''. A
modernidade esclarecida, como herdeira da história ocidental, é
caracterizada segundo Horkheimer e Adorno, por uma contradição
insanável. De um lado, ela prometeu liberdade por intermédio da
desmitologização, ou seja, a superação da própria
dominação, que seria substituída, em nome dos direitos humanos
universais, pela razão discursiva do mercado. De outro, todavia,
ela não só conservou o programa da dominação objetivante da
natureza como também o agravou. Por meio do mercado, justamente,
a dominação pessoal foi substituída por uma ''dominação da
reificação'', ou seja, não se superou a ''injustiça social'',
que foi apenas objetivada pela mediação universal da
concorrência a um grau de abstração mais elevado do que antes.
Com a equivalência abstrata da troca mercantil, que o
capitalismo totalizou e dinamizou, consumou-se a redução do
mundo a grandezas abstratas.
Desse modo, o Esclarecimento moderno foi condenado à
autodestruição. Com efeito, ao ampliar a desmitologização com
base na dominação reificada e despersonalizada, ele obrigou-se
a destruir o seu próprio conceito teórico _o conceito universal
em geral_ como pretenso conceito mitológico: ''Com suas
próprias idéias de direito humano não se passa algo diverso do
que com os antigos universais''. Porém, quando a metafísica é
consumida até a última gota, ''o pensamento se coisifica num
processo automático, de curso independente, que imita a
máquina'' e perde, assim, a capacidade de reflexão crítica. O
que resta é uma ciência rebaixada a ''mero expediente do
aparato econômico'': o positivismo, como ''mito daquilo que é o
caso''. O Esclarecimento, assim, transforma-se novamente em mito
_um mito tanto banal quanto nocivo a todos. A promessa de
liberdade converte-se em ''total empulhação das massas''. Se o
liberalismo, ligado à dominação da reificação econômica,
degradou o Esclarecimento a um sistema de concorrência e, assim,
a uma cega ''empresa de autoconservação'', o fascismo, por sua
vez, deduziu a última e a mais terrível consequência: a
mitologização racista e anti-semita da concorrência
converteu-se na ''apreensão total do homem''. E, com ''o fim da
livre-troca'', o capitalismo foi falsamente superado nos moldes
autoritários e bárbaros. Lido meio século depois de sua
primeira edição, a ''Dialética do Esclarecimento'' provoca uma
sensação contraditória. A sua idéia básica de que o próprio
Esclarecimento transforma-se em barbárie é mais atual do que
nunca. O totalitarismo, que se manifestara em primeiro plano nas
ditaduras fascistas e stalinistas, mergulhou no fundamento da
democracia liberal do Ocidente e mostra-se hoje em sua forma mais
pura e desenvolvida: como totalitarismo do mercado global e
onipresente, que faz dos homens marionetes de seu princípio
econômico, executado pelas coações da concorrência total.
Só agora se torna claro quão justo e, por assim dizer,
profético foi o fato de a ''Dialética do Esclarecimento'' ter
incluído as sociedades ocidentais em sua teoria da fatalidade
histórica. Se, há mais de 50 anos, a democracia liberal
subjugou militarmente seu irmão inimigo, o fascismo, e, na
década passada, bateu pela concorrência econômica seu outro
irmão antagônico, o stalinismo, no fim do século 20, por sua
vez, ela mostra, como única sobrevivente da família do
Esclarecimento e da modernização, a carranca da barbárie.
Todas as monstruosidades da história, que deviam ser banidas
pelo princípio esclarecido dos direitos humanos, retornam sob a
máscara das ''coerções'' liberais. Por maiores que sejam os
acertos da ''Dialética do Esclarecimento'', hoje ela tem
eficácia limitada. Horkheimer e Adorno não cruzaram a porta por
eles franqueada. Sua recorrência quase supra-histórica ao
problema da dominação da natureza põe em curto-circuito dois
planos diversos, o condicionamento de toda história da
humanidade pela dominação socialmente inconsciente e o
fetichismo especificamente econômico da modernidade. A
''Dialética do Esclarecimento'' ganha, com isso, algo de
inevitável e supratemporal, ao passo que, simultaneamente,
concede à falsa promessa da liberdade burguesa um resto de
dignidade. Horkheimer e Adorno incorrem na contradição de
reconhecer na troca mercantil a redução a quantidades abstratas
e irracionais e, ao mesmo tempo, desejar preservar, na liberdade
dessa troca, a razão discursiva da circulação de mercadorias.
Eles permanecem, nesse sentido, a despeito de sua mudança de
paradigma, filhos do Esclarecimento. Hoje, caberia levar a termo
a crítica da razão esclarecida por meio da crítica da economia
moderna. Mas ninguém ousa cruzar a porta aberta. Parece ser
privilégio da filosofia dos anos 90 rastejar no pó diante das
divindades do mercado.
Publicado em 24/08/97 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.
Robert Kurz é sociólogo e
ensaísta alemão, publicou no Brasil, entre outros, ''O Colapso
da Modernização'' e ''A Volta do Potenkim'' (Paz e Terra) e é
co-editor da revista ''Krisis''.
Tradução de José Marcos Macedo