Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 8

História da Terceira Revolução Industrial

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Secção 4

A Última Cruzada do Liberalismo

Com a Terceira Revolução Industrial, a autocontradição capitalista tornou-se completamente insolúvel. A sua dinâmica compensatória esgotou-se, mesmo o pacemaker keynesiano para o antiquado sistema de fetiche tinha de falhar. O dogma de uma forma totalitária de sociedade, que procura com ferocidade não diminuída forçar toda a humanidade à lei da valorização do valor e ao jugo dos mercados de trabalho, só pode agora assumir o carácter de uma cruzada contra os factos.

O regresso a um ponto de vista radicalmente microeconómico é política de avestruz: pretende-se que seja liquidado o nível macroeconómico de reflexão, alcançado laboriosamente e apenas dentro das categorias capitalistas, a fim de dissolver completamente a sociedade em cálculos individuais atomizados e assim tornar a crise supostamente invisível. Deixa então de haver qualquer autocontradição objectiva do capitalismo e qualquer problema social, uma vez que cada um supostamente apenas segue a sua própria vontade pessoalmente responsável: "O desemprego é explicado como tempo de lazer livremente escolhido no quadro de um cálculo de optimização individual" (Schütte 1995) – pelo menos na "teoria" do economista norte-americano Robert Lucas (62). Por algo assim recebe-se hoje o Prémio Nobel (a vez de Lucas foi em 1995). Com a sua "simples percepção" de que os cálculos individuais livres não poderiam ser impressionados nem desviados por medidas macroeconómicas (de política social), mas que tornariam estas ineficazes através das suas "expectativas racionais" em conformidade com o mercado, ele teria "revolucionado o pensamento da política económica" (Schütte 1995), segundo com o elogio geral.

Uma retórica tão grosseira como esta "teoria das expectativas racionais" revela o caminho que a cruzada neoliberal contra a realidade pretende seguir: a "economia da oferta" de Say (“supply side”) deve ser transportada definitivamente para os mercados de trabalho. Aqueles que têm de vender a sua força de trabalho devem comportar-se tão "racionalmente" como alguém que vende tomates, minas ou preservativos – ou seja, de acordo com a "lei da oferta e da procura" em mercados anónimos. Esta também é a linha seguida pela absurda proposta da Dahrendorf de que os assalariados devem competir como "fornecedores" contra o progresso técnico.

Isto mostra em que consiste a radicalização do liberalismo face à crise fundamental do modo de produção capitalista: nomeadamente, na tentativa violenta de banir esta crise, tratando o mercado de trabalho até às últimas consequências como qualquer outro mercado. Tal tentativa já tinha sido feita uma vez no início do capitalismo e tinha falhado catastroficamente. Desde então, a intervenção do Estado e as "concessões" do Estado social, bem como a existência do movimento operário, sindicatos e partidos socialistas ou social-democratas (ou momentos de "política social" em todos os partidos em geral) têm assinalado indirecta, oficiosa e, por assim dizer, timidamente que existe aqui uma impossibilidade lógica e prática, porque as pessoas basicamente não podem vender-se aos bocados (para intervalos de "tempo de trabalho" abstracto) como coisas mortas.

A anormalidade do mercado de trabalho no sentido da reprodução social, através da qual, no entanto, é constituído em primeiro lugar um extensivo sistema de produção de mercadorias (ou seja, a transformação de todas as coisas da vida em mercadorias), permite que transpareça o carácter originalmente violento e ao mesmo tempo irracional do capitalismo como fim-em-si. A simples existência de um mercado de trabalho denuncia um sistema geral de escravatura, que, no entanto, não pode ser sustentado consequentemente. Pois uma sociedade humana tornar-se-ia praticamente impossível se a "força de trabalho" (e com ela os corpos e existências sociais que a acompanham) estivesse de facto completamente à mercê da "lei" da oferta e da procura. As mercadorias invendáveis são armazenadas sem quaisquer outros custos que não sejam os do próprio armazenamento "morto"; mas a força de trabalho invendável não pode ser "armazenada" sem que as pessoas continuem socialmente a existir e a consumir. Estas não podem ser "postas de lado" (colocadas numa solução nutritiva, por exemplo, ou congeladas) e esperar em caixas nas prateleiras para serem vendidas, mas têm de continuar a viver. Esta sobrevivência, porém, depende do produto da venda da "força de trabalho" – e o mercado de trabalho quebra-se neste paradoxo quando socialmente difundido a uma escala suficientemente grande. Os tomates invendáveis podem ser atirados para o lixo, e as mercadorias complicadas fora de moda podem ser eliminadas depois de demasiado tempo armazenadas; mas o lixo humano invendável, cujos conhecimentos e capacidades se tornaram inutilizáveis, teria de ser morto pelo Estado ou matar-se a si próprio voluntariamente (Günter Anders já sugeriu esta lógica) se se pretendesse que fosse realmente um "objecto de mercado" sem "ses" nem "mas".

Sempre foi um problema delicado para o liberalismo apresentar o mercado de trabalho, mesmo ideologicamente, como um mercado de mercadorias completamente ordinário e "natural", porque a "liberdade" capitalista tem de mostrar o seu inconveniente com demasiada clareza nesta matéria. A formação do Estado social continha a admissão tácita de que um mercado geral para a força de trabalho humana não é apenas uma degradação das relações sociais, mas torna-se também uma impossibilidade prática, a menos que ocorram momentos "antimercado" que impeçam a "lei" da oferta e da procura no seu efeito "livre". Não foi apenas o Estado social do século XX que se seguiu a esta admissão tácita, mas já o reconhecimento gradual e relutante dos sindicatos como partes contratantes oficiais no século XIX. A representação de interesses colectivos nega fundamentalmente o carácter do mercado de trabalho como um mercado de mercadorias, porque reconhece na prática que os vendedores da força de trabalho não podem seguir qualquer cálculo individual. Como este tipo particular de vendedor tem de usar a sua própria pele para comercializar, encontra-se numa tal dependência estrutural da escravatura do sistema que o livre funcionamento das leis do mercado teria de provocar o colapso geral da sociedade.

Apenas a colectivização social dos mercados de trabalho pelos sindicatos e associações patronais juntamente com a necessidade de medidas do Estado social que a acompanhavam tinham feito do ponto de vista macroeconómico um factor capitalista interno. No entanto, a admissão pela sociedade como um todo de que o mercado de trabalho não pode ser um mercado de fornecimento individual, sob pena de completa ruptura social, também tinha evidenciado outra contradição imanente: por um lado, é premissa básica do capitalismo que a "força de trabalho" humana é transformada numa mercadoria; por outro lado, porém, esta é uma relação tão impossível que este carácter de mercadoria tem de ser parcialmente retirado. Isto também resulta num dilema estrutural do movimento operário e dos sindicatos: por um lado, a sua existência baseia-se no trabalho assalariado e, portanto, na aceitação fundamental das leis do mercado; por outro lado, contudo, a sua própria existência rompe com estas leis do mercado, eliminando pelo menos parcialmente a concorrência entre os fornecedores da mercadoria força de trabalho.

Esta contradição pôde ser objecto de uma forma de evolução reformadora enquanto o desenvolvimento das forças produtivas ainda não tinha levado ao limite absoluto do capitalismo. Na crise da Terceira Revolução Industrial, porém, a contradição torna-se insustentável. A amadurecida impossibilidade de continuar a pressionar a reprodução social sob a forma de "mercados de trabalho" deixa apenas como alternativa pôr fim ao carácter de mercadoria da força de trabalho (e em consequência ao sistema de produção de mercadorias em geral) ou, exactamente ao contrário, tratar realmente a força de trabalho sem qualquer restrição como uma mercadoria de fornecedores individuais, assim individualizando também a crise. Este é o último caminho que resta aos representantes do sistema, mesmo que deste modo aceitem como um "risco" a completa desintegração da sociedade .

Também a este respeito, a radicalização microeconómica da ciência económica e da política é um sinal de que a situação do capitalismo ficou realmente sem saída. A cruzada neoliberal para a transformação dos mercados de trabalho em mercados de oferta individual tem de pôr fundamentalmente em causa não só o Estado social mas também a existência de sindicatos, quer isso se exprima abertamente ou não. Como ideólogo resistente à realidade, Milton Friedman já foi capaz de identificar em 1962, ainda no meio do boom fordista, um efeito "prejudicial ao mercado" dos sindicatos, "na medida em que em muitos casos elevam o nível salarial acima do nível dado pelo mercado" (Friedman 1971/1962, 163) e assim, de acordo com a doutrina da política da oferta, alegadamente mergulham os próprios trabalhadores assalariados na miséria:

 

"Um aumento do rendimento como resultado da intervenção sindical num determinado sector de emprego ou ramo de indústria resulta necessariamente numa redução de postos de trabalho potenciais – tal como qualquer aumento de preços reduz as vendas. Isto significa que mais trabalhadores são libertados e procuram trabalho, o que, por sua vez, reduz o nível salarial noutras indústrias. Uma vez que, em geral, os sindicatos têm a sua posição mais forte em qualquer grupo de trabalhadores bem remunerados, o efeito da sua actividade tem sido o de pagar trabalhadores bem remunerados ainda mais alto, à custa de trabalhadores com rendimentos mais baixos. Os sindicatos, portanto, não só prejudicaram o público em geral e os trabalhadores como um todo, perturbando o equilíbrio no mercado de trabalho, como também ajudaram a tornar a distribuição dos rendimentos dos trabalhadores menos favorável, reduzindo as oportunidades para os trabalhadores mais desfavorecidos" (Friedman, ibid., 164).

 

Se a argumentação de Friedman atinge alguma coisa, é o dilema sindical de que mesmo um nível de vida meio decente, que no capitalismo só poderá ser alcançado através de amargas lutas salariais e apenas temporariamente, torna ainda mais interessante do lado dos custos para o cálculo da economia empresarial a substituição de trabalho vivo por maquinaria. Ao insistir neste dilema fundamental, que é também a base da pérfida proposta de Dahrendorf, Friedman nem sequer repara que isto só pode ser uma censura ao movimento operário e aos sindicatos por se terem envolvido no modo de produção capitalista em geral, se este leva a alternativas tão grotescas.

De um ponto de vista puramente sistémico, porém, é uma experiência elementar (e até à "contra-revolução" neoliberal era também um facto geralmente aceite) de 150 anos de história sindical que só o poder de organização colectiva e a acção dos sindicatos foi capaz de elevar o nível salarial geral (ou seja, também o dos sectores mais fracos e não organizados dos assalariados) acima do nível da pura subsistência. Na sequência dos seus êxitos negociais, a pressão do trabalho organizado também trouxe sempre benefícios e margem de manobra aos trabalhadores não organizados e com salários mais baixos, enquanto que, pelo contrário, a fraqueza e as derrotas dos sindicatos sempre desinibiram decididamente o comportamento da gestão especialmente contra os "trabalhadores mais desfavorecidos".

O "equilíbrio económico no mercado de trabalho" invocado por Friedman implica precisamente essa "desvalorização" desenfreada dos salários do trabalho nos mercados de oferta individual, devido à posição de dependência estrutural dos "fornecedores de força de trabalho": só poderia ser um "equilíbrio" ao nível social mais baixo. Foi apenas a intervenção sindical "contra o mercado" que trouxe um "elemento histórico e moral" à categoria trabalho assalariado, como Marx chamou a este estado de coisas. O que se pretende dizer com isto é que o "valor" económico da mercadoria força de trabalho não pode ser determinado de forma puramente objectiva. Pois, ao contrário das mercadorias mortas, para a força de trabalho a definição de que o seu valor é condicionado pelos custos da sua produção não é de modo nenhum inequívoca e não é dada de uma vez por todas.

A complicada mercadoria força de trabalho, uma vez que está inseparavelmente ligada a seres humanos vivos, tem de ser "produzida" de novo todos os dias através da vida quotidiana destes seres humanos. Mas o que é que entra necessariamente no seu "custo"? Apenas comida suficiente para que não passem fome e possam diariamente estar prontos de novo sem cair de fraqueza, ou boas refeições com exigência de conteúdo e sabor? Apenas um "tecto sobre as suas cabeças" sob a forma de uma casa pobre, uma ponte, uma tampa de esgoto, ou algo que pelo menos remotamente se assemelhe a uma habitação? O "mínimo" moral e cultural é obviamente algo que não pode ser regulado apenas pela "lei" da oferta e da procura nos mercados de trabalho.

Aqui voltamos ao problema de que no capitalismo, numa escala de desenvolvimento sempre crescente, é necessária uma intervenção "contra o mercado" (seja a regulação keynesiana do Estado social, seja a luta sindical por melhores salários e condições de trabalho) para manter pelo menos um pouco sob controlo a desproporção crescente entre o desenvolvimento das forças produtivas e as restrições irracionais pelas "leis do mercado". Como esta desproporção finalmente se descontrola na Terceira Revolução Industrial de acordo com a "lógica do sistema", a tendência representada pelo neoliberalismo para eliminar o factor "contra o mercado" dos sindicatos, a fim de supostamente restaurar o "emprego" através do sinistro "equilíbrio" nos mercados de trabalho, torna-se esmagadora. O que Friedman tinha teoricamente previsto, Reagan e Thatcher (e na sua esteira, mais ou menos militantemente, quase todos os governos do mundo) puseram em prática. Margaret Thatcher nunca esteve com meias palavras neste processo:

 

"Ao contrário de alguns dos meus colegas ministros, sempre acreditei que, em condições iguais, a taxa de desemprego está em proporção directa com o poder dos sindicatos. Os sindicatos tinham destruído os empregos de muitos dos seus membros ao fazerem exigências salariais totalmente excessivas de benefícios inadequados, de modo que os produtos britânicos já não eram competitivos" (Thatcher 1993, 395).

 

Esta ideia, que vira o contexto real de pernas para o ar, só pode ter um programa em mente: nomeadamente, impor essa espiral descendente de salários, como Dahrendorf gentilmente recomenda aos assalariados, se necessário mesmo administrativamente, se os "fornecedores de força de trabalho" não estiverem dispostos a "adaptar-se" a um "equilíbrio" dos mercados de trabalho a um nível cada vez mais baixo. Isto significa nada mais do que eliminar sem substituição aquele "elemento histórico e moral" no salário e, no estado de necessidade da Terceira Revolução Industrial, apressar o princípio da oferta individual sem ter em conta as consequências sociais. Thatcher chegou ao leme no Partido Conservador porque estava preparada para romper abertamente com o (tácito) consenso histórico anterior precisamente neste sentido:

 

"Tínhamos [...] abandonado decididamente o terreno socialista de acordo com o qual 'os baixos salários' – independentemente de como se possam definir – constituíam um 'problema' a ser resolvido não pelo mercado mas pelo governo" (Thatcher 1995, 267).

 

Esta campanha contra os sindicatos e contra o nível salarial "histórico e moral" foi um sucesso retumbante: nos países industrializados mais importantes e em todo o mundo, os salários do trabalho diminuíram, tanto em termos relativos como absolutos, desde o início da "contra-revolução" neoliberal. Na RFA, o peso dos salários (a proporção dos salários no chamado rendimento nacional) atingiu em 1998 o seu nível mais baixo desde 1949. Nos EUA, os salários reais (ou seja, o poder de compra real dos salários, "ajustado pela inflação") caíram nos anos 90 abaixo do nível dos anos 70. O desemprego real, impulsionado pela microelectrónica, continua no entanto a aumentar inexoravelmente; e a redução permanente do poder de compra da economia interna agrava de facto esta tendência.

O "emprego" continua a cair, enquanto a sua estrutura se desloca cada vez mais para condições precárias e inseguras de baixos salários e maior redução salarial a cada novo surto de crise. E a cada um destes surtos as elites funcionais capitalistas microeconomicamente radicalizadas têm sempre apenas a mesma resposta: ainda mais "contenção salarial", salários ainda mais baixos, até que o "equilíbrio" dos mercados de trabalho seja alcançado custe o que custar – o que, no entanto, não será alcançado nem mesmo ao nível da fome. A cruzada do neoliberalismo equivale a sacrificar o nível de vida e mesmo a existência de cada vez mais pessoas à "preservação do sistema" a qualquer preço. O extremista económico e "eminência parda" dos liberais alemães, Otto Graf Lambsdorff, não deixa dúvidas a este respeito:

 

" (Não existe) [...] o perigo de que um Estado social a sair dos limites, alimentado por reivindicações e exigências que poderiam ser facilmente satisfeitas em anos de forte crescimento, ponha em perigo os alicerces do sistema?" (Lambsdorff 1997).

 

Só que é preciso relembrar repetidamente a impertinência desta argumentação: Embora a real capacidade de produção técnico-material tenha aumentado rapidamente através das forças produtivas da microelectrónica, o nível de vida material das massas, no entanto, deve ser empurrado cada vez mais para baixo por uma combinação de salários baixos e "desemprego natural", sem outra razão que não seja a de não pôr em perigo "o sistema" que produz esta lógica absurda. Tal como na primeira metade do século XIX, as elites funcionais capitalistas estão novamente a aproximar-se daquele ponto de vista extremo de militância anti-social, que coloca a pura existência humana sob condição da racionalidade do sistema, pressuposto como o único concebível. No entanto, no auge da Terceira Revolução Industrial, esta afirmação já não pode ser traduzida num curso praticável. Agora, paradoxalmente, mesmo a resistência imanente ao sistema só será possível colocando o próprio sistema em questão. Assim, os sindicatos chegaram ao fim com o seu latim. A sua margem de manobra só pôde referir-se à expansão histórica da aplicação capitalista da "força de trabalho", que deu aos mercados de trabalho um momento de "procura" ascendente e dominante a longo prazo  através do movimento cíclico. Só nesta constelação foi possível a solidariedade e a capacidade de acção sindical com a aceitação simultânea dos fundamentos do sistema. Mas, na nova constelação de desemprego em massa estrutural permanente e em constante aumento, a relação inverte-se: como momento global ao longo do ciclo, a "oferta" torna-se dominante nos mercados de trabalho a longo prazo. O permanente excesso de oferta de força de trabalho, com posição intrinsecamente fraca dos fornecedores, inevitavelmente remove por princípio os sindicatos como factor.

Na crise capitalista final, a campanha militante das elites funcionais neoliberalmente armadas por mercados de oferta individual de "força de trabalho" tem atrás de si a força da lógica do sistema, com a qual os sindicatos também se comprometeram por princípio e desde o seu nascimento. A consequência seria, na realidade, o golpe de misericórdia a ser realizado com as próprias mãos, ou seja, a autodissolução voluntária das organizações sindicais, porque a sua situação se tornou insustentável. Esta consequência não é tirada, claro, mas o que resta nem sequer é resistência de empatar, mas apenas lenta enfermidade e definhamento – com a perseguição de todos os cães do capital. Para obterem mesmo a mínima gratificação ou até a mera existência da sua organização, os sindicatos teriam de saltar sobre a própria sombra e sacudir toda a hipoteca da sua história.

A consciência dos membros e a dos funcionários condicionam-se reciprocamente. Os próprios funcionários sindicais são há muito uma secção das elites funcionais capitalistas; na RFA, os seus líderes têm assento nos conselhos de supervisão das maiores empresas, e a todos os níveis estão interligados com as administrações e com toda a classe de notáveis políticos, em alguns países (sobretudo nos EUA) mesmo com o crime organizado. Serviram todos os desenvolvimentos capitalistas, capitularam incondicionalmente em cada culminar da crise. Sob o ominoso nome de "modernizadores", uma secção da casta de funcionários, que tentou dar a si própria um perfil de "pensamento transversal", agitou a ilusão, até aos anos 90, de que os sindicatos poderiam mais uma vez participar na Terceira Revolução Industrial como força reguladora, o que no passado só conseguiram fazer de forma muito subalterna e com resultados muito medíocres. No final do século XX torna-se cada vez mais claro que os aparelhos sindicais não precisam sequer de ser proibidos na crise qualitativamente nova, mesmo no caso de uma escalada dramática. Tudo o que resta aos "modernizadores" é a opção de, na liquidação de acordos colectivos de trabalho e de todos os padrões sociais, ganhar méritos pelo bem comum para carreiras posteriores noutros locais como uma espécie de tropa auxiliar, acompanhando a transformação dos mercados de trabalho em mercados de oferta individual com uma retórica social que é tão pouco vinculativa quanto mansa e moralizadora.

Por seu lado, os chamados membros de base estão longe de qualquer ideia em contrário. O condicionamento do "trabalho abstracto" ao longo de muitas gerações e a internalização de critérios capitalistas formam um enorme bloco de consciência que, de qualquer modo, não pode ser quebrado no quadro das estruturas e modos de pensar sindicais convencionais, ainda que nas condições da Terceira Revolução Industrial já não exista um único mecanismo de representação colectiva de interesses imanente ao sistema (greves, acordos colectivos, pressões sobre o sistema político).

Os sindicatos não são feitos para a crise. Na crise estrutural da Terceira Revolução Industrial, o seu potencial extingue-se, não lhes resta mais nada para "moldar" senão a sua própria ruína. Os acordos de negociação colectiva estão a desmoronar-se em todo o mundo, as associações patronais estão a mostrar sinais de desintegração e os sindicatos estão a perder os membros em massa. A falta geral de solidariedade e o asselvajamento das relações sociais formam o terreno fértil em que a individualização dos mercados de trabalho e com ela a crise por si se consumam. Além disso, desde os anos 80, a cruzada do neoliberalismo tem recebido apoio da sociologia académica, que tem descrito o processo de erosão social como uma neutra "diferenciação" estrutural. O sociólogo alemão Ulrich Beck baptizou a tendência para o asselvajamento do capitalismo como uma "sociedade do risco" de inevitabilidade fatídica, com a qual os indivíduos atomizados teriam agora de se entender também individualmente:

 

"Este estranho tipo social de isolamento total [...] que aqui emerge não é certamente a ressurreição do indivíduo burguês após o seu falecimento. Mas também não é a falsa consciência do proletariado, iludindo-se individualistamente sobre a sua situação de classe, que finalmente sucumbiu aos cantos da sereia ideológica do capital. Ele é [...] o encenador do seu percurso de vida, condenado à liberdade de escolha (!). Na sociedade individualizada, o indivíduo tem de aprender, sob pena de desvantagem permanente, a ver-se como o centro de acção, como o gabinete de planeamento (!) em relação às possibilidades e constrangimentos (!) do seu percurso de vida [...] O que é necessário é um modelo activo de acção no quotidiano, que tenha o eu como centro, que lhe atribua (!) e lhe abra (!) oportunidades de acção, e assim lhe permita controlar de forma significativa (!) os constrangimentos de organização e possibilidades de decisão emergentes em relação ao seu próprio percurso de vida. Isto significa que, sob a superfície das dissimulações intelectuais com o objectivo de sobreviver, desenvolve-se aqui uma visão do mundo centrada no eu, que vira a relação entre o eu e a sociedade de pernas para o ar, por assim dizer, e a pensa e torna controlável com o objectivo de moldar o percurso individual de vida" (Beck 1990, 58s.).

 

Esta algaraviada de "constrangimentos de organização e possibilidades de decisão", um jargão pós-moderno que se estendeu do suplemento cultural ao seminário sociológico, da "filosofia" de gestão ao "pensamento transversal" sindical dos "modernizadores", constitui o acompanhamento de tambores da cruzada neoliberal. Mesmo a ideia de uma possível crítica das paranóicas objectivações capitalistas é condenada como "dissimulação intelectual"; o que resta é a individualidade nua do átomo social capitalista, que de facto já não pode manter a ilusão do velho indivíduo burguês de ser o sujeito das suas acções. Este abstracto indivíduo da oferta limita-se a pastar as "oportunidades e riscos" das suas condições insanas que se tornaram uma segunda natureza, permitindo-se finalmente ser conduzido como gado para o abate social. Beck nem sequer percebe o quanto o seu patético indivíduo, transformado em "gabinete de planeamento" capitalista de si próprio, é o pendant sociológico da microeconomia radicalizada de Milton Friedman e da "teoria" das "expectativas racionais" de Robert Lucas. Tão pouco ele nota que toma a sério as formas de regulação fordistas já desmanteladas, como uma pré-condição ainda válida de "individualização rica em oportunidades".

 

"Na estrutura do Estado social, o individualismo recebe uma base económica historicamente nova [...] no mercado de trabalho, mais precisamente: no mercado de trabalho organizado, protegido por acordos colectivos e pelo direito social, com as suas exigências de formação e de mobilidade" (Beck, ibid., 58).

 

Uma pessoa não pode deixar de se admirar com tanta ignorância. O verdadeiro pressuposto da "individualização" de Beck é precisamente o desaparecimento forçado do "Estado social", bem como dos mercados de trabalho "organizados por acordos colectivos", ou seja, a imposição, por parte do Estado, das relações de emprego de miséria da economia da oferta. O óbvio desconhecimento dos conteúdos económicos neoliberais e do seu desenvolvimento nas últimas décadas, bem como a falta de qualquer fundamentação na teoria da crise, levam Beck a uma visão fenomenologicamente limitada, que no seu instantâneo superficial falha completamente o núcleo duro da tendência capitalista para a crise (e, de resto, também permanece de mente estreita devido à limitação às condições na RFA, cujo "excedente" fordista ainda não derreteu, por enquanto, tanto quanto em outras partes do mundo capitalista).

Como tantos ideólogos de uma "modernização" eternamente continuada nas categorias capitalistas não superadas, Beck também usa o velho conceito marxista das classes como base de comparação negativa, para de certo modo se resgatar barato da autocontradição aguda deste sistema e se imaginar "para além" dele. A "luta de classes" aparece assim como um "radicalismo" anacrónico que se tornou agora irrelevante no pós-moderno mundo individualizado das oportunidades. Enquanto críticos sociais refinados como Beck acreditam assim que chegaram à primavera de uma "segunda modernidade", de facto eles apenas recaíram nos antigos padrões ideológicos do liberalismo económico, ou seja, tornaram-se compatíveis com o extremismo do lado da oferta de Hayek e Friedmann.

Juntamente com todo o mundo académico e com a consciência geral, Beck tem em mente a distorcida imagem da história da ideologia burguesa, que concebe o movimento histórico dos trabalhadores não como o resultado de uma derrota devastadora das antigas revoltas sociais, mas como a ascensão original de uma visão de mundo "radical" que tivesse sido gradualmente refinada. Recordemos o facto implícito de que o enterrado impulso original da revolta social tinha consistido em as pessoas, no "tempo do desespero", não terem querido deixar-se transformar na "classe operária" de um sistema económico autonomizado, e que a "luta de classes" do movimento operário posterior não foi mais do que a forma imanente de movimento de uma consciência já domesticada como gado. Deste ponto de vista, então, a "luta de classes" só poderia ser o automovimento social da "bela máquina", e a este respeito a sua lógica esteve desde o início confinada à férrea estrutura das categorias capitalistas.

No entanto, a definição mais ou menos consciente da contradição social imanente ainda representava um reflexo da contradição sistémica objectivada. Embora o movimento operário estivesse condicionado às categorias capitalistas, ainda tinha de tematizar a autocontradição do sistema, pelo menos indirectamente. Mas como esta tematização estava ela própria reacoplada à própria lógica do capital, só podia seguir o processo de desenvolvimento do sistema à maneira dos lemingues. A adaptação à máquina da valorização, através da crescente "autodisciplina voluntária" no espaço funcional da economia empresarial, através do condicionamento dos desejos à forma de consumo capitalista de mercadorias, e, não menos importante, também através do desarmamento ideológico (de um "marxismo" diluído, apenas superficialmente recebido, até ideias keynesianas pouco profundas) foi muito avançada em mais de cem anos; e o programa de Bentham, tornado independente e diversamente objectivado, tinha feito avançar o processo de internalização dos critérios capitalistas na psique dos indivíduos. Mas, mesmo durante o boom fordista do pós-guerra, a sombra da contradição capitalista ainda estava presente; havia ainda uma consciência residual de que existia uma força estranha em acção (mesmo que há muito tempo tivesse fixado residência dentro do indivíduo), e que também existia uma oposição representada institucionalmente (sob a forma de associações patronais e sindicatos) que tinha de ser resolvida – mesmo que isto só pudesse acontecer como movimento imanente.

Agora é precisamente o carácter insolúvel da nova crise mundial capitalista que removeu a actuação de uma oposição puramente imanente ao sistema e a condenou à inactividade. Esta é de facto a razão pela qual não pode haver retorno a quaisquer formas mais apuradas deste movimento de interesses imanente sob o título de "luta de classes"; afinal de contas, esta "luta de classes" em si não foi desde o início nada mais do que a forma de movimento de interesses capitalistamente domesticados. Mas quando se espalha o conhecimento ou pelo menos a suspeita sombria de que, sob as condições de crise da Terceira Revolução Industrial, nenhum acordo colectivo pode manter-se, nenhuma gratificação social à escala de sectores inteiros ou mesmo de toda a sociedade pode ser ganha, todas as conquistas sociais anteriores, por muito limitadas que fossem, estão apenas a ser desmanteladas e, no entanto, nenhuma outra forma de relações sociais além das do sistema de produção de mercadorias parece aceitável ou mesmo concebível – então também se desmorona necessariamente o "ponto de vista do interesse" colectivo institucionalizado.

Nestas condições, o "interesse" sócio-económico capitalistamente normalizado zumbe num movimento de fuga rápida de acordo com o lema "salve-se quem puder" – da sociedade como um todo para o sector, do sector para a empresa individual, desta para o departamento e de lá para o indivíduo. A este respeito, a "individualização" socioeconómica não representa uma ultrapassagem da velha luta de classes, nem uma oposição à luta ritual dos "parceiros sociais" da sociedade do pós-guerra; pelo contrário, é a fase final lógica destas primeiras manifestações de uma declinante luta de interesses imanente ao sistema, coincidindo com a crise final do capitalismo. Agora é a "guerra de todos contra todos", do pesadelo ideológico de Thomas Hobbes nos primeiros tempos da modernização tornado literalmente realidade no seu "Último mundo".

A cruzada neoliberal por mercados de oferta individual de "força de trabalho" já não constitui, portanto, um adversário a ser levado a sério, mas formas institucionais de interesse em horrenda desintegração; um processo que, para Ulrich Beck, paradoxalmente se apresenta como um "quadro de acção alargado dos indivíduos". A individualização da concorrência, no entanto, leva a uma transformação quase assustadora do interesse individual dos assalariados, como a "Comissão para as Questões do Futuro dos Estados Livres da Baviera e Saxónia" (membro responsável: Ulrich Beck) a propaga em 1997 no seu estudo "Actividade profissional e desemprego na Alemanha", meio ingenuamente e meio insensivelmente, como um modelo positivo para uma "sociedade empreendedora":

 

"É verdade que também nesta sociedade, num futuro previsível, a maioria da população trabalhadora procurará emprego dependente e ganhará uma parte substancial do seu sustento através dele. Mas os modelos da sociedade industrial centrada no trabalhador dependente terão de desaparecer também para ela, se não quiser tornar-se perdedora da mudança económica e social. Também para ela é verdade que o modelo do futuro é o indivíduo como empresário da sua força de trabalho (!) e da sua segurança social. Esta percepção deve ser despertada, e a iniciativa individual e a responsabilidade pessoal, ou seja, o aspecto empresarial da sociedade, têm de ser mais fortemente desenvolvidas" (Comissão para as Questões do Futuro 1997, 35).

 

Pode sentir-se um arrepio quando se pensa nas consequências deste "princípio orientador". Pois este é obviamente o último desenvolvimento concebível do projecto de Bentham, que nem o fordismo ainda ousara pensar: a transferência completa do capitalismo para o interior do indivíduo, de modo que a destrutiva forma coerciva da sociedade já nem sequer pode ser vista como uma sombra, mas funde-se directamente com a existência natural dos seres humanos. O que já tinha sido sugerido na concepção de Beck do eu isolado como "gabinete de planeamento" de si próprio é aqui agudizado numa visão diabólica do "capital humano total".

O protesto e a rebelião contra as imposições de comportamento cada vez mais duras e disparatadas devem ser tornados praticamente impossíveis de pensar, na medida em que o conflito, que até agora tem sido pelo menos rudimentarmente externalizado, já só tem lugar no peito dos indivíduos isolados. Com toda a seriedade, esta fabulosa "Comissão do Futuro" exige, num tom de conversa académica, que a dessolidarização geral chegue ao ponto em que os indivíduos já nem sequer consigo próprios sejam solidários, mas, como "empregados dependentes", também contra si próprios imponham constrangimentos comportamentais "empresariais" e, por assim dizer, tomem medidas de "economia empresarial".

O que se exige é uma espécie de autocanibalismo do indivíduo capitalista, um auto-sacrifício em que a "guerra de todos contra todos", como era de esperar, se transforma numa auto-agressão cega. O "Id" económico do capitalismo, que se tornou furioso, não quer admitir a avaria irreparável da "bela máquina" – o monstro deve continuar a funcionar a qualquer preço, mas mesmo realmente a qualquer preço; e a impossibilidade lógica traduz-se num aumento desenfreado de irracionalismo, em que as elites funcionais à solta voltam a cair descaradamente numa linguagem religiosa e mistificadora, como se finalmente quisessem admitir que o capitalismo é uma maléfica religião secularizada e uma magia negra de auto-enfeitiçamento. Em 1994, numa conferência anual da Sociedade Alfred Herrhausen, um seu sumo sacerdote Dr. Wolfgang Reitzle, então membro do conselho de administração da BMW, proferiu um sermão a condizer:

 

"O trabalhador no sentido convencional, a quem é dito 'o que tem de fazer', idealmente torna-se um fornecedor de desempenho em sentido empresarial, que age criativamente, sob a sua própria responsabilidade e consciente da responsabilidade [...] o objectivo aqui é claro: as pessoas na empresa têm de fundir-se numa comunidade de criação de valor (!) e interiorizar isto na sua auto-imagem [...]" (Reitzle 1994, 216ss.).

 

A reinterpretação do horrivelmente banal e simultaneamente paranóico regime da economia empresarial de destruição de energia humana abstracta em miríades de miniaturas fanáticas de uma "comunidade de criação de valor" reflecte a fantástica inversão mencionada por Günther Anders: nomeadamente, a transformação da imposição comportamental outrora insuportável do "trabalho abstracto" num privilégio social. O "trabalhador no sentido convencional", a quem era "dito o que fazer", apesar de toda a internalização benthamiana, poderia pelo menos ainda manter-se afastado, num canto da sua mente, da imoderação da exigência capitalista. Em contraste, o "possuidor do posto de trabalho", extinto como si-mesmo, que experimenta em si o perigo permanente perante o oceano dos que caíram, torna-se receptivo a uma teologização da concorrência. O amoque com a subsequente auto-execução, que já preocupa o instinto dos media, é o paradigma do capitalismo apocalíptico. Enquanto esta condição não se generalizar, a crise capitalista tem de ser vendida a indivíduos confusos como uma catástrofe natural que exige um altruísmo secundário de autocontenção social. Nas palavras da "Comissão do Futuro":

 

"Cada modo de proceder tem efeitos secundários indesejáveis, mas estes são inevitáveis (!). Isto deve ser tornado inequivocamente claro para a população (!) [...] Como a comparação internacional mostra, a situação do emprego pode ser significativamente melhorada dentro de alguns anos se as condições de mercado forem satisfeitas e o preço do trabalho for reduzido. Esta redução pode, por exemplo, consistir em os futuros aumentos salariais serem inferiores ao desenvolvimento da produtividade. No entanto, os efeitos positivos no emprego serão então lentos a materializar-se. Quando se pretende que a situação do emprego seja melhorada num curto espaço de tempo, os rendimentos reais e muitas vezes mesmo nominais do trabalho têm de ser reduzidos, em alguns casos consideravelmente [...] Uma redução dos pagamentos directos só pode ser considerada como uma medida extrema [...] No entanto, cada vez mais frequentemente esta é a única forma de manter temporariamente (!) a competitividade do factor trabalho contra o capital e o conhecimento [...]" (Comissão para as Questões do Futuro W7.1, 17ss.).

 

É realmente difícil de entender: face a gigantescas "sobrecapacidades" tecnológicas-materiais, que já não podem ser mobilizadas devido ao cálculo tacanho da economia empresarial, está a ser imposto às pessoas um nível "necessário" de pobreza. Quanto maior for a capacidade de riqueza na forma capitalista destrutiva, tanto mais rígida se torna a exigência de submeter as necessidades às "condições naturais" capitalistas e assim as reduzir cada vez mais. E em palavras secas os "modernizadores" exigem o uso da coerção directa do Estado para forçar cada vez mais pessoas a condições de baixos salários:

 

"Por várias razões, os beneficiários de transferências públicas na Alemanha que são capazes de trabalhar não são coagidos a fazer o trabalho existente, mesmo que isto seja legalmente possível e faça sentido do ponto de vista económico. No futuro, as exigências de razoabilidade têm de ser consequentemente impostas" (Comissão para as Questões do Futuro 1997, 29).

 

"Razoável" é praticamente tudo: antigos trabalhadores especializados devem ser transformados em desqualificados trabalhadores de baixos salários, músicos filarmónicos postos na rua na senda da desculturalização devem esfregar as casas de banho dos restaurantes de luxo, assistentes sociais desempregados devem encher as máquinas de venda automática ou vender salsichas. De um ponto de vista "económico", claro, tudo isto é completamente inútil, porque com o torniquete das "exigências de razoabilidade" (já a palavra em si tem de ser saboreada, é um modelo da liberdade democrática) pode-se torturar pessoas, mas não se pode parar a avalanche de "racionalização por eliminação de pessoas" da microelectrónica, nem parar o colapso da "criação de valor" capitalista. Não há tantos empregos baratos como seria necessário para voltar atrás na roda da história do desenvolvimento. Tanto mais violenta é a fúria das elites funcionais contra a massa crescente dos caídos fora, dos "comedores supérfluos", que são assediados por todos os meios, sem que o aumento permanente da coerção consiga algo mais do que a aceleração do processo de crise.

A cruzada neoliberal contra os humilhados e ofendidos do capitalismo de crise não só está a assumir formas cada vez mais maléficas, como também já não se limita a governos explicitamente liberais e conservadores. A social-democracia, que regressou ao porto de origem ideológico do liberalismo sob a pressão da crise mundial, está agora também a juntar-se sob o seu estandarte. Após a primeira muda de pele, que substituiu o domesticado marxismo do trabalho pela doutrina keynesiana, a pele keynesiana está agora a cair numa segunda muda entre os socialistas de quase todas as cores. De certo modo, todos os partidos políticos duma ponta à outra do espectro estão agora radicalizados no neoliberalismo e na microeconomia; já nem sequer a retórica mediática difere muito. Na necessidade vem à luz o núcleo comum idêntico do moderno sistema coercivo irracional. Não importa a boca donde sai: a palavra "modernização" tornou-se uma ameaça estúpida e o termo "reforma" um sinónimo de medidas de coerção associais.

É por isso que as mudanças de governo que tiveram lugar nos EUA e na Europa ao longo dos anos 90 não significam nada. Tal como o Presidente Clinton prosseguiu sem problemas as políticas de austeridade social dos seus antecessores conservadores, assim Tony Blair com o "New Labour" continuou o curso extremista económico de Margaret Thatcher, e os "Verdes-Rubros" continuaram os cortes sociais sistemáticos do regime liberal-conservador de Kohl. São muitas vezes os antigos críticos do capitalismo do movimento de 1968 que agora, confiantes nos seus fatos Armani,  têm a honra de colocar a vida das pessoas sob a "condição de financiabilidade". A lei natural é apenas lei natural. Os soldados do partido obedecem, ou são declarados incapazes. Na Grã-Bretanha, nem sequer importou que o Partido Trabalhista tivesse perdido quase 30 por cento dos seus membros no decurso da imposição de Blair. Sobre o último esfolamento da social-democracia alemã, dizia-se num comentário típico no semanário social-liberal Die Zeit:

 

"Só aqueles que conhecem o seu anseio de justiça social sabem como o SPD está a sofrer hoje (!) [...] Com o catálogo de sacrifícios delineados, desde as negociações salariais com aumento zero até ao congelamento das pensões, passando pelas decididas indicações de Schröder/Blair na arena da auto-afirmação, os sociais-democratas só conseguem sentir frio no coração [...] A discussão deveria ter sido travada muito antes. Mas, tal como os outros grandes partidos, o SPD esquivou-se a definir o futuro do bem-estar social em condições financeiras difíceis (!) [...] O que está em jogo é a futura relação entre pobres e ricos, doentes e saudáveis, jovens e idosos, política de oferta e de procura. Uma tarefa gigantesca, cuja realização não permite nenhum tabu (!). Os muito citados modernizadores do SPD assumem esta necessidade [...] Para que serve mesmo uma visão de mundo social saudável se o curso do mundo a ultrapassa rapidamente?" (Buhl 1999).

 

O verdadeiro sofrimento das próprias vítimas não está em debate, uma vez que, de acordo com o jargão da administração da economia e da crise, estas são "dificuldades inevitáveis". A assistência social, em particular, tornou-se o alvo dos estrategas do terror social. Pois, em todos os países capitalistas em que existe, esta categoria mais baixa de rendimentos por transferência do Estado social não se baseia em direitos adquiridos que resultam total ou parcialmente dos próprios pagamentos (tais como pensão de velhice ou subsídio de desemprego), mas representa um puro "acto de misericórdia" da parte do Leviatã para com os caídos fora e os supérfluos. Contudo, quanto maior for o seu número, maior será a pressão administrativa para lhes cortar a manteiga do pão, para implicar com eles e definir o mínimo de subsistência determinado como assistência social cada vez mais baixo.

Já para Hayek era uma necessidade irritante e aceite de má vontade ter de fazer "uma espécie de provisão" para os "pobres desempregados", dos quais apenas se tinha de considerar "de que forma menos impedem o funcionamento do mercado" (Hayek 1976/1952, 147). Hoje não passa uma semana sem que respeitáveis senhoras e senhores exijam "cortes mais profundos na ajuda social", "que terão um efeito imediato na caixa registadora", como por exemplo Michael Fuchs, o presidente do comércio grossista e exterior alemão (Wirtschaftswoche 16/1997). O ex-ministro alemão da saúde, Seehofer, chegou mesmo a divagar sobre como poupar dinheiro em roupa interior para os beneficiários da assistência social:

 

"A ideia do ministro da saúde, reproduzida no Bild-Zeitung, de conceder apenas vestuário como 'suplemento ao subsídio de base' e de basear o montante do subsídio na 'frequência com que os grupos de menores rendimentos mudam de roupa interior' causou uma agitação particular. Segundo o projecto, a aquisição de vestuário usado também é razoável" (Eltzschig l997).

 

Mesmo as esmolas estatais mais miseráveis continuam a parecer um luxo e um desperdício, tal como outrora aconteceu na primavera capitalista dos senhores Mandeville ou de Sade. A Sra. Thatcher denunciou os beneficiários da assistência social com frases particularmente duras, e com isso fez escola em toda a parte:

 

"O terrível paradoxo da cultura da dependência é [...] que ela induz as pessoas, com incentivos financeiros substanciais, a levar vidas de indolência, negligência e desesperança (!). Deveríamos recompensar o esforço que as pessoas corajosas (!) fazem. Mas o governo tem de ajudá-las a afastar ou pelo menos a reduzir as tentações (!)" (Thatcher 1995, 648).

 

Numa grotesca distorção dos factos e na linha do extremismo microeconómico, supõe-se aqui, exactamente como no caso dos primeiros ideólogos do terror do capitalismo inicial, que o desemprego em massa e o afundamento de grandes grupos da população na assistência social não é um problema social e económico, mas realmente apenas um "problema pedagógico". O nível "demasiado elevado" do mínimo de subsistência definido pelo Estado deve ser sujeito a um "requisito de distanciamento" dos grupos com salários mais baixos, que são cada vez mais baixos, a fim de poupar as "tentações" hedonísticas dos beneficiários de prestações sociais que, em princípio, se presume serem "avessos ao trabalho". O objectivo desta corrida miserável é claramente o de empurrar administrativamente as pessoas para empregos de fome. Nos EUA, na Grã-Bretanha e cada vez mais na RFA, as mães monoparentais em particular estão a ser construídas como a imagem do inimigo:

 

"Pelo menos desde a presidência de Ronald Reagan, uma imagem fantasmática tem vindo a assombrar a consciência colectiva dos cidadãos dos EUA, evocada vezes sem conta por políticos conservadores, colunistas e animadores de televisão: a visão da mãe com muitos filhos e rainha da assistência social, que vai ao banco de Cadillac depositar risonha os cheques da assistência social. A ideia fixa de Reagan sobre a parasita 'rainha da assistência social' tornou o ressentimento mudo contra os beneficiários da assistência social (e contra a classe inferior em geral) socialmente aceitável na América dos anos oitenta" (Widmann 1995).

 

Para além da reintrodução geral das propinas a fim de submeter as universidades a uma espécie de "limpeza social" (uma exigência também feita na RFA pelo mentor social-democrata Peter Glotz), uma das primeiras medidas tomadas pelo espertalhão Tony Blair foi reduzir drasticamente os benefícios sociais das famílias monoparentais. A mesma proeza se permitiu o "mulherengo" Bill Clinton, com a sua lei para acabar com a assistência social em geral:

 

"A lei de Clinton coloca o ónus estritamente sobre os Estados federados. Até 2002, têm de pôr a trabalhar (!), em fases definidas com precisão, a maior parte dos beneficiários de assistência social – na sua maioria mães monoparentais – sob pena de multas. 'Apenas com cortes radicais funciona', diz o governador do Wisconsin, Tommy Thompson [...] Os toxicodependentes têm de fazer o mesmo [...] que as mães assim que o seu filho tem doze semanas (!)" (Der Spiegel 48/1997).

 

Basicamente, desde a "reforma" de Clinton, a assistência social é cancelada sem substituição após dois anos, e só está disponível por um máximo de cinco anos em toda a vida, abstraindo completamente da situação económica e da situação pessoal – de resto as pessoas têm de "procurar trabalho" dê por onde der, mesmo nas condições mais humilhantes, ou morrer à fome. Na medida em que a assistência social continua a existir, é cada vez mais entregue a empresas privadas, que depois administram a pobreza de acordo com os princípios do lucro do sector privado, ou seja, mais ou menos à maneira da privatização das penitenciárias e casas de pobres inglesas outrora propagada por Bentham; no Texas este negócio é gerido por "uma subsidiária da maior empresa de armamento do mundo, a Lockheed Martin" (Die Zeit 20/1997). Na retórica social-liberal alemã, tais concepções são entretanto chamadas a "oficina de reforma" dos EUA sob o título "O futuro da solidariedade (!)" (Die Zeit 15/1999). E os sucessos são, evidentemente, enormes. Espécimes seleccionados, treinados para entrar em cena, são postos a desfilar alegremente em público para cantar os louvores da felicidade do trabalho barato obrigatório; por exemplo Michelle Crawford, uma mãe de 39 anos de idade com quatro filhos, como a "Wirtschaftswoche" relata com prazer:

 

"Depois de dez anos na assistência social, trabalha agora por 8,20 dólares por hora numa fábrica de plásticos nos arredores de Milwaukee, disse Crawford perante as câmaras de televisão. 'Estou ansiosa por me levantar de manhã e ir trabalhar', afirmou perante o seu público entusiasta" (Wirtschaftswoche 20/1999).

 

Clay Shaw, congressista republicano da Florida, declarou orgulhosamente que com tais "reformas" os EUA voltariam a "dar o tom ao mundo" (Wirtschaftswoche 337 1996). Também na RFA, os desempregados e os beneficiários da assistência social estão de facto a ser cada vez mais assediados burocraticamente para irem eles próprios à procura de um proprietário de escravos de baixos salários e para "provarem" isso. Na Grã-Bretanha, o regime de Blair está a apertar ainda mais as já enormes imposições dos tempos de Thatcher; agora os desempregados têm de se apresentar regularmente nos serviços da segurança social e explicar porque é que ainda não encontraram trabalho! O ónus da prova inverteu-se – já não é o "serviço de emprego" que tem de oferecer trabalho remunerado, mas sim os desempregados que têm de provar a sua própria procura fervorosa de trabalho sujo mal remunerado. Para além dos monoparentais, os jovens em particular são postos sob a lâmpada do interrogatório da administração da pobreza: não é suposto aceitarem o nível de pobreza da assistência social tendo em conta a falta de "emprego" capitalista aceitável para eles e em troca perseguirem interesses incontrolados (como fazer música), mas sim deixarem que as suas vidas sejam capitalistamente esmagadas em todas as circunstâncias e "aprenderem" a aceitar até o inaceitável como aceitável.

Programas deste tipo são chamados "Welfare to work" ou abreviadamente "Workfare", também lançados recentemente na RFA como "Hilfe zur Arbeit". Com toda a seriedade, o "New Labour" quer pregar a "ética laboral vitoriana" aos caídos fora; neste espírito, o Chanceler do Tesouro Gordon Brown quando tomou posse apelou literalmente a uma "cruzada nacional" para reavivar o espírito de Thomas Carlyle. Já se fala na imprensa britânica da "coluna dos condenados dos trabalhistas". Mas como não há em lado nenhum empregos forçados baratos suficientes no mercado de oferta para a massa de desempregados e dos caídos fora, há muito que não se recua perante o trabalho claramente forçado organizado pelo Estado.

A violenta tentativa de uma quadratura neoliberal do círculo, nomeadamente de manter a sociedade impiedosamente sob o domínio do capitalismo apesar das inexoráveis consequências da Terceira Revolução Industrial, produz entretanto uma aberração de "concepções combinadas" atrás da outra. Neste processo, a ideia, que remonta a Milton Friedman, de liquidar todo o sistema de segurança social (desvalorizando assim possivelmente também os direitos adquiridos) a fim de o substituir por um novo mínimo de subsistência definido sob a forma de um "rendimento básico garantido" está a ganhar terreno. Este "rendimento básico", porém, deve ser fixado a um nível tão baixo que não "socave a ética do trabalho" – ou seja, muito abaixo da actual assistência social. Isto também é flertado pelo "Clube de Roma", uma colecção de dignitários pingando ética, em cujo último relatório os autores Orio Giarini e Patrick Liedtke recomendam uma variante especial desta concepção de miséria organizada:

 

"No seu mundo há pleno emprego, mas não no sentido convencional. Aqueles que não conseguem encontrar nada na economia livre devem ganhar o seu apoio estatal em actividades sem fins lucrativos – mesmo com trabalhos não desejados. É um regime severo: aqueles que são saudáveis mas permanecem ociosos vão para casa de mãos vazias. Os autores sabem que isto não é possível sem coerção. 'Mas não vemos aqui alternativa'. A fim de assegurar a sua existência com um rendimento mínimo estatal, a pessoa necessitada tem de realizar actividades públicas durante uma boa metade da semana [...] Mas mesmo os que ganham pouco no primeiro mercado de trabalho podem melhorar o seu rendimento (!) até ao nível de subsistência com trabalho público orientado para o bem comum na educação, nos cuidados de saúde e nos serviços sociais. O papel-chave [...] continua a ser o do primeiro mercado de trabalho [...] Isto, porém, aproxima-se muito dos sonhos neoliberais em Giarini e Liedtke. Os acordos colectivos sobre o horário de trabalho não têm lugar no seu modelo, as condições de trabalho devem ser tão flexíveis quanto possível, o Estado deve simplesmente assegurar que a concorrência funcione" (Heuser/Martens 1998).

 

Voilà, é isso, o ovo de Colombo: empregos baratos sem contratos colectivos e sem protecção, mais salários estatais de miséria, mais trabalho forçado comunitário não remunerado; tudo isto numa combinação individualmente auto-responsável e no quadro das "liberdades do risco" (Ulrich Beck). É certo que esta concepção é tão insustentável como todas as outras em termos da sociedade como um todo, porque nunca pode funcionar macroeconomicamente. Mas a combinação de um bem-estar social drasticamente reduzido e generalizado com o trabalho forçado "sem fins lucrativos" faz o coração de muitos modernizadores bater mais depressa. Nos municípios, há muito que foram feitas as respectivas experiências. Assim, a cidade de Nova Iorque faz cerca de 40 mil beneficiários da assistência social pagarem o seu dinheiro com trabalho como varredores de rua ou guardas de cemitério. Em Estugarda, a administração da pobreza teve a ideia de colocar alguns comilões inúteis em macacões e enviá-los para as ruas como "anjos amarelos" para mostrar às pessoas o caminho ou para limpar os excrementos dos cães. Leipzig, por outro lado, faz os seus párias felizes com os "trabalhos sujos", por exemplo numa estação de compostagem. Em 250 "projectos sociais" na RFA, os jovens trabalhadores forçados são postos a desmantelar peças de sucata para não desaprenderem as "virtudes do trabalho como pontualidade e fiabilidade", de acordo com o chefe de um desses projectos em Solingen.

Mas o trabalho forçado estatal-municipal funciona tão pouco como a obrigação de empregos baratos na economia de mercado: já as câmaras de indústria e comércio locais estão em polvorosa, porque as cidades substituem o trabalho regular contratado a empresas de artesanato e de serviços pelo trabalho forçado gratuito, o que, desta forma, produz novos desempregados e beneficiários da assistência social. Além disso, as autoridades locais não podem fornecer suficientes empregos de "trabalho forçado", para não falar do custo burocrático. Até Margaret Thatcher estava céptica a este respeito:

 

"Mas a experiência na América mostra que o 'workfare' pode ser dispendioso e falhar devido a obstáculos burocráticos. Nestas circunstâncias, provavelmente a tarefa mais importante é simplesmente reduzir as despesas estatais em geral, e as despesas sociais em particular" (Thatcher 1995, 648 s.).

 

Por outras palavras, reduzir ou mesmo acabar com a assistência social e simplesmente deixar as pessoas à sua sorte, para não mexer com as "leis da natureza". Na medida em que a esmola leviatânica ainda não foi completamente abolida, resta apenas na caça aos beneficiários da assistência social o campo do "abuso social", outro infame termo de combate da cruzada neoliberal. O que se pretende dizer com isto é "a batota dos benefícios" feita por pessoas que não têm formalmente direito a benefícios, ou que foram excluídas da elegibilidade e que, acima de tudo, "escondem" outros rendimentos. Pois como os cêntimos de esmola do Estado são atribuídos apenas com um olhar reprovador, a administração da pobreza conta imediatamente quaisquer rendimentos ou bens adicionais como dedução da assistência social. Isto aplica-se à mãe solteira que recebe alguns marcos dos pais, bem como ao jovem desempregado que trabalha algumas horas "sem recibo" ou ao desempregado de longa duração que pode ter herdado uns milhares de marcos.

E assim por diante! O que aqui é denunciado como "abuso" mais não é do que a tomada de uma pequena fracção da riqueza social, que o capitalismo retira aos deserdados com as suas leis loucas. Mesmo o requerente de asilo que corre ilegalmente os serviços sociais de metade da RFA e, depois do seu gamanço, idiotamente compra um Rolex, está apenas a apropriar-se de uma parte da riqueza a que, de acordo com o estado das forças produtivas, ele teria direito centenas e milhares de vezes de uma forma mais razoável. O rancor protestante dos democráticos burocratas, ideólogos do trabalho e carrascos de seres humanos bane as potências da riqueza sob as restrições capitalistas, a fim de depois bater no peito a sua moralização contra aqueles que retiveram um remanescente de razão e de verdadeiro interesse próprio face a este sistema. Neste sentido, a "Comissão do Futuro" bávaro-saxónica exprime-se de modo particularmente nojento:

 

"Finalmente, abusos tais como a obtenção ilegal de benefícios sociais [...] devem ser combatidos mais consistentemente do que até aqui. Esta luta, contudo, só será bem sucedida se, por um lado, o trabalho legal for facilitado, sobretudo se os seus custos forem reduzidos (!) e, por outro lado – intimamente relacionado com isto – se os abusos de qualquer tipo forem socialmente banidos. Num clima geral de olhar para o outro lado em caso de abuso de benefícios sociais ou de trabalho ilegal, a intervenção estatal só pode ser bem sucedida pontualmente, pelo menos numa comunidade livre" ( Comissão para as Questões do Futuro 1997, 30).

 

Este gritante apelo à espionagem e denúncia mútuas, a fim de assegurar o nível geral de pobreza e aumentar a pressão para o trabalho miserável, poderia ter sido formulado pelos nazis. A "comunidade livre" não poderia ser denunciada mais claramente do que como uma continuação linear do sistema Blockwart [bufo nazi a nível de bairro – N.T.]. Em parte, esta espionagem social foi mesmo formalizada como um "trabalho". Pelo menos na Baviera, foi descoberta a profissão de "investigador de abusos", como documentado num anúncio de emprego:

 

"O distrito de Bad Tölz-Wolfratshausen está a recrutar com urgência trabalhadores como investigadores no terreno de abusos na assistência social. A tarefa é verificar a legitimidade do recebimento de benefícios e descobrir o abuso de benefícios. O emprego tem lugar no contexto de um contrato de trabalho com a remuneração de 610-DM livre de encargos da segurança social, inicialmente limitado à duração de um ano. São requisitos capacidade de negociação, aparência segura, uma reputação impecável, horários de trabalho flexíveis [...]" (citado de: Abendzeitung 8.4.1997).

 

A perversão não pode ser aumentada para além disto: A própria perseguição dos beneficiários da assistência social está por sua vez a ocorrer sob a forma de baratos empregos de miséria. Na Grã-Bretanha, há muito que isto tem sido uma questão natural. Aí, três mil "detectives sociais" estão à procura de "batoteiros da assistência social": "Os investigadores estão sob pressão do resultado: uma equipa de cinco detectives, por exemplo, tem de trazer cerca de 14 mil marcos por mês" (Abendzeitung, ibid.). Tendo em conta tais condições e a ausência de qualquer contramovimento social (estamos aparentemente numa fase de insanidade social), a criminalidade continua a ser o último recurso daqueles que caíram fora para afirmar a auto-estima. Quando já não é possível formular uma oposição geral contra o sistema de terror dominante, soa a hora da revolta individual irreflectida.

Como em todos os momentos em que um sistema de exploração dominante não tem nada a oferecer ao povo, os ladrões e fora-da-lei multiplicam-se repentinamente. Não é melhor morrer de cabeça erguida e de arma na mão, a lutar contra a polícia do Estado democrático orwelliano, do que passar uma vida inteira a ter as cuecas racionadas, a apanhar excrementos de cão, ou a ter de fazer de idiota dos "que ganham melhor"?

São com certeza as personalidades mais fortes e orgulhosas que geralmente optam por romper abertamente com a legalidade, libertando uma energia que teria sido digna de uma causa melhor. Pois, claro, não estamos a lidar com pequenos Robin Hoods barulhentos. O crime, afinal, não é o resultado de uma consciência crítica, mas a continuação da concorrência por outros meios. E no catastrófico capitalismo tardio as crianças socializadas pela concorrência universal dificilmente estão dispostas ou mesmo são capazes de poupar os pobres nos roubos e assaltos, como talvez fizessem alguns bandos de ladrões de antigamente. O asselvajamento das estruturas é acompanhado por uma difusa prontidão geral para usar a violência, que se manifesta, por exemplo, em jovens que roubam os ténis de marca dos pés de um colega (um delito paradigmático agora generalizado em todo o mundo). Por outro lado, trata-se frequentemente apenas de pequenos furtos em centros comerciais e supermercados, de certa maneira um roubar para comer, com o que cada vez mais jovens em particular querem participar no consumo sonegado de bens, que ao mesmo tempo é constantemente incutido na consciência como um propósito na vida através do omnipresente céu mediático.

Durante algum tempo, o público burguês reagiu ao fenómeno da crescente criminalidade em massa, que inevitavelmente acompanha o desemprego estrutural em massa, com uma hipócrita pedagogia compreensiva: De onde é que ela vem, esta terrível negligência moral? Será talvez a educação nas famílias que está a correr mal, ou será que a escola falhou? Em qualquer caso, não pode ser devida à maravilhosa economia de mercado. Entretanto, a cruzada neoliberal já há muito que ergueu a bandeira da repressão pura  simples também a este respeito. Pelo menos na RFA, apenas os jovens bandidos neonazis, que derrubam as pessoas deficientes das suas cadeiras de rodas e as insultam como "factores de custo", podem contar com um resquício de compreensão, cuidados da assistência social e a atribuição espaços de tempos livres; "os nossos rapazes" estão realmente a exagerar um pouco e precisam de ser apaziguados. Face às violações em massa da sagrada propriedade privada, pelo contrário, o grito de batalha da cruzada neoliberal ecoa por todo o mundo: "Tolerância Zero"!

O inventor deste slogan foi o presidente republicano da câmara de Nova Iorque, Rudolph Giuliani, cujo chefe de polícia, William Bratton, assumiu a causa da acção draconiana mesmo para os mais pequenos delitos. Isto significa não só "prender demasiadas pessoas em vez de poucas, revistar blocos inteiros de apartamentos onde tudo parece suspeito com um grande contingente policial" (Baier 1998), mas também que o Colt está à solta. Séries de pessoas desarmadas, meramente suspeitas (claro que principalmente nos guetos pobres), já foram carregadas de balas; uma abordagem que parece estar gradualmente a fazer escola também noutros locais. No início de 1999, houve uma manifestação de protesto em Nova Iorque contra a intolerável arbitrariedade e brutalidade policial. Os "peritos em segurança" até alertaram os turistas para não fazerem "movimentos suspeitos" acidentalmente quando lidam com a polícia dos EUA. Nova Iorque tem sido desde então considerada, segundo a Time, como a "Lourdes do policiamento": um fluxo interminável de polícias, políticos locais, defensores da juventude e investigadores do crime de todo o mundo fazem peregrinações à Meca da "tolerância zero" para aprenderem a "fazer o mesmo".

Nos últimos anos, 80% das cidades dos EUA impuseram o recolher obrigatório nocturno a jovens; esta "lei marcial para crianças" defendida em muitos Estados também já está em prática na Polónia: lá, na cidade de Radom, qualquer pessoa com menos de 18 anos é proibida de andar nas ruas entre as 23h e as 6h da manhã. Até a Holanda mudou para posições de linha dura:

 

" (Na) capital da província de Friesland, a polícia não perdoa. Desde o início do ano, diz o procurador Klaas Bunk, 'o princípio da tolerância zero' tem sido aplicado aqui. Qualquer infracção, por menor que seja, é punida imediatamente [...] Não só pela contenção [...] dos custos dos serviços sociais, segundo o presidente da câmara de Leeuwarden, Hayo Apotheker, o 'Modelo Polder' deve tornar-se um modelo para a Europa [...] O clima social mudou radicalmente nos Países Baixos [...], escreve o jornal diário 'De Volkskrant', agora prevalece a constatação de que a vida comunitária se degrada quando pequenas transgressões são toleradas" (Der Spiegel 19/1998).

 

Também o costume medieval do pelourinho ou poste da vergonha foi reintroduzido nos EUA para humilhar os delinquentes. Muitas vezes, os jovens ladrões de lojas são obrigados a ficar em frente à loja onde roubaram com placas a dizer: "Sou um ladrão. Eu roubei nesta loja". Em Minneapolis, a polícia realiza regularmente humilhações públicas chamadas "Hora da Vergonha", e em Kansas City, uma estação de televisão local faz mesmo negócio com a transmissão das fotografias e delitos dos cadastrados (Diederichs 1999). Cada vez mais delinquentes juvenis estão a ser punidos como adultos, e mesmo crianças de 16 anos de idade estão a ser executadas. Nos EUA, a ideia de um direito penal juvenil separado é agora considerada desactualizada. E também na Europa se levantam vozes que querem baixar a idade da responsabilidade penal (como fez o partido CSU no Bundestag alemão em 1997) a fim de "refrear a criminalidade infantil" e facilitar o envio de crianças para "instituições fechadas". O que tais instituições poderão em breve parecer noutros locais é ilustrado por um relatório sobre um centro correccional para crianças e jovens no Texas:

 

"No dormitório despido com trinta beliches de ferro, as luzes de néon brilhantes cintilam. De altifalantes ruidosos, uma trombeta toca uma estridente chamada de despertar às cinco e meia da manhã. Apenas um segundo depois, trinta jovens de cabelo rapado e vestidos apenas com as cuecas, saltam dos seus beliches, procurando freneticamente as roupas [...] Entre eles, dois guardas, também chamados 'drill instructors', pavoneiam-se, ladrando ordens roucas [.... Há cada vez mais destes 'bootcamps’, como os reformatórios são popularmente chamados nos Estados Unidos , devido à sua semelhança com os campos de treino básico dos militares [...] Num campo de treino, o tenente do treino [...] apressa os prisioneiros num percurso de obstáculos. Ele fá-los marchar, correr, e rastejar no chão [...] punições severas esperam qualquer um que fale com um membro de outro grupo. Não é permitido qualquer tipo de contacto entre os prisioneiros. Quem violar isto tem de mover uma pilha de grandes pedras de um canto do pátio para outro no calor escaldante da parada [...] Quem perder a chave do cacifo mais de uma vez tem de carregar o conteúdo desse cacifo numa mochila durante uma semana para onde quer que vá [...]" (Neue Zürcher Zeitung, 22.6.1996).

 

Além disso, chegam autocarros cheios de "crianças problemáticas" que são forçadas a assistir a estas actividades com o objectivo de dissuasão. É bastante óbvio que são os velhos métodos de Bentham do final do século XVIII aos quais o capitalismo regressa, apesar de todos os processos de internalização – uma indicação do fracasso completo iminente de todo o programa de condicionamento; as contradições capitalistas de bradar aos céus só podem ser dominadas em qualquer caso com violência, chicana e uma moralização que se torna cada vez mais estúpida. Assim, o ex-Chanceler alemão social-democrata de direita Helmut Schmidt propagou um "catálogo de deveres humanos", que deverá ser metido na cabeça das próximas gerações. Ainda na época de Thatcher, a comissão curricular estatal britânica emitiu uma "Declaração de Valores Partilhados" que as crianças em idade escolar tinham de aprender de cor. A "Dama de Ferro" tinha deixado bem claro como se devia dar uma ajuda a isso de uma forma prática:

 

"Nas minhas contribuições para o debate (defendi) uma nova cláusula que alguns de nós queriam ver incluída no então Projecto de Lei de Justiça Penal, introduzindo castigos corporais para jovens delinquentes violentos" (Thatcher 1995, 144).

 

Tony Blair chegou mesmo a divulgar publicamente que bate nos próprios filhos. É claro que são necessárias medidas muito mais duras contra os filhos dos inúteis. Em França, as tropas pára-quedistas e de montanha há muito que são treinadas para os combates de rua, a fim de poderem realizar operações das forças armadas contra os motins nos seus próprios subúrbios, se necessário (Der Spiegel 45/1995). E se as crianças e adolescentes delinquentes em todo o lado já estão sujeitos à mais brutal repressão pelo menor delito, então é claro que os adultos ainda mais. Também aqui, o espectro vai desde a chicana ao terror aberto. Por toda a Europa, "políticos da lei e da ordem" estão a correr com os pobres, mendigos, jovens desempregados etc. para fora do centro das cidades, a fim de poupar aos passeantes que ganham bem o terem de os ver e aturar. Os relatórios sobre isso assemelham-se aos do início do século XIX sem tirar nem pôr.

De ano para ano, os regulamentos são agravados. Em Frankfurt/Main, como em várias outras cidades alemãs, está em vigor desde o início de 1999 uma norma que criminaliza o "armazenamento em público" e o consumo de bebidas alcoólicas na rua. É prática comum que os pedintes sejam molestados ou mesmo metidos em carros da polícia e abandonados num descampado algures fora da cidade. Relatos de gravíssimos ataques da polícia contra imigrantes, pequenos criminosos ou pessoas pobres meramente "suspeitas" estão a acumular-se em todos os centros capitalistas. A Amnistia Internacional teve de denunciar os Estados Unidos por desumanidades em massa nas prisões. As prisioneiras, por exemplo, têm de tomar banho e ser revistadas na presença de guardas masculinos; a violação pelo pessoal prisional é comum. Mesmo as prisioneiras grávidas são severamente maltratadas: "Algumas mulheres permaneceram amarradas durante o parto, outras com hemorragias graves foram acorrentadas às camas durante horas" (Frankfurter Allgemeine Zeitung 24.3.1999). No Alabama, os prisioneiros "não dispostos a trabalhar" são algemados a postes ao calor sufocante e não são sequer autorizados a fazer as necessidades até concordarem em trabalhar. Um relatório sobre o "xerife mais duro da América" também mostra como as coisas estão no sistema penal:

 

"No deserto do Arizona, entre o aterro sanitário e o crematório de carcaças de animais da cidade capital Phoenix, surgiu nos últimos quatro anos uma infame cidade de tendas. Os criminosos condenados que não tinham espaço nas prisões superlotadas do condado de Maricopa estão alojados aqui em antigas tendas do exército. No Verão, as temperaturas sobem a 50 graus; quando chove, os prisioneiros tentam tapar os buracos nas tendas com pasta de dentes [...] A 'cidade das tendas' no deserto do Arizona é uma invenção de Joe Arpaio [...] Ele intitula-se orgulhosamente o xerife mais duro da América [...] Torna a vida o mais difícil possível aos reclusos. Tanto homens como mulheres, por exemplo, usam pesadas correntes no tornozelo quando recolhem lixo e ervas daninhas no centro de Phoenix ou ao longo das estradas rurais. Em vez de um almoço quente, são-lhes dadas sanduíches de mortadela barata oxidada e esverdeada, que já não pode ser vendida. Arpaio orgulha-se de ter assim reduzido o custo de uma refeição de 2 dólares para 30 cêntimos. Também estão a ser feitas poupanças em funerais. Os reclusos falecidos já não são enterrados por uma funerária profissional, mas pelos prisioneiros [...] Todos os reclusos da prisão têm de usar roupa interior cor-de-rosa [...] A acção foi tão bem recebida em Phoenix que o xerife vende roupa interior cor-de-rosa (mais autógrafo) nos centros comerciais aos fins-de-semana a dez dólares por peça. Os lucros beneficiam o grande grupo de três mil vigilantes por ele formado. Entre os seus membros encontram-se médicos, advogados e também o governador do Arizona [...]" (Neue Zürcher Zeitung, 26.9.1997).

 

Isto é a liberdade ocidental, isto é o liberalismo no seu melhor. Por tais condições e princípios vale a pena ensinar a ditaduras como o regime jugoslavo de Milosevic as boas maneiras em matéria de direitos humanos com tapetes de bombas. Em todo o mundo ocidental, está à vista a rápida "criminalização da miséria" e o "avanço do Estado punitivo" (Wacquant 1997):

 

"O Estado disciplinar está agora a tricotar sistematicamente uma malha para substituir a antiga rede social do Estado de bem-estar em dissolução [...] O primeiro método, visível de facto apenas para os afectados, consiste em transformar os serviços sociais existentes em instrumentos de vigilância e controlo das novas "classes perigosas" [...] O segundo método da política de contenção repressiva dos pobres é o recurso maciço e sistemático à instituição da prisão. Após um declínio [...] nos anos 60, o número de prisioneiros nos Estados Unidos explodiu literalmente [...]" (Wacquant 1997).

 

Já em 1996, mais de 1,6 milhões de pessoas estavam encarceradas nos Estados Unidos sob condições em grande parte desumanas, tendo duplicado em apenas dez anos. Actualmente, o número aproxima-se provavelmente da marca dos dois milhões; aliás, isto é também uma contribuição para a melhoria das estatísticas do desemprego. Assim, a "quota de prisioneiros" social global na potência hegemónica do mundo democrático já ultrapassou a da União Soviética estalinista na época do Gulag, como observou estupefacta a "Wirtschaftswoche" (n.º 52/1997). Foi ironicamente notado na imprensa que se o ritmo de criminalização fosse mantido, toda a população dos EUA teria de estar encarcerada por volta de meados do século XXI. Está planeada a construção de mais grandes complexos penitenciários; só no Texas, mais de dois mil milhões de dólares foram orçamentados para este fim até ao ano 2000. Também na Grã-Bretanha, foram orçamentados vários milhares de milhões de libras para a construção de prisões em meados da década de 1990, a fim de "criar" dezenas de milhares de novas celas; o custo das prisões e dos meios de repressão está a aumentar de forma igualmente dramática no continente europeu e na RFA – proporcionalmente à inversa diminuição das gratificações sociais.

Ao mesmo tempo, é claro, a microelectrónica melhorou os sistemas de vigilância orwelliana de todos os tipos, expandindo-os e aperfeiçoando-os sucessivamente em grande escala em comparação com a era fordista. Os aparelhos do Estado bem como as empresas operam com "sistemas de informação pessoal" electrónicos, a fim de criar o ser humano completamente "transparente" e, assim, realizar finalmente o sonho de todos os domesticadores de humanos desde Bentham. De ano para ano, torna-se mais intensa a "comparação de dados" entre instituições capitalistas privadas e públicas de administração, repressão e controlo de pessoas. Não há aqui necessidade de uma estratégia especial, porque este processo de fusão digital dos aparelhos de controlo também se realiza bastante por osmose, a partir da dinâmica inerente ao sistema e aos seus processos de crise. A vigilância é também alargada em termos espaciais, e isto nem sequer requer sistemas de observação por satélite de alta resolução (que até agora têm sido utilizados mais militarmente), mas nas cidades a população é registada por gerações sempre novas de câmaras de vigilância aperfeiçoadas electronicamente, que podem mesmo identificar automaticamente pessoas suspeitas de acordo com imagens previamente armazenadas. Ao que parece, o Reino Unido está actualmente à frente nesta matéria:

 

"Num estudo para a Universidade Hüll, o criminologista e cientista social Clive Norris concluiu que as técnicas de detecção automática existentes poderiam permitir ao governo monitorizar cada cidadão [...] Ninguém sabe exactamente quantas câmaras de televisão em circuito fechado estão instaladas em edifícios e locais públicos [. ...] O medo do Big Brother não é generalizado, aparentemente ele já faz parte da família [...] Em Newcastle, onde as autoridades se orgulham da "liderança global" da sua terra em tecnologia de vigilância, a polícia divulgou imagens de televisão em circuito fechado à imprensa após motins de rua. A 'Newcastle Evening Chronicle' imprimiu as fotografias de 100 agitadores e transformou os seus leitores em amigos e ajudantes da polícia: era suposto identificarem e denunciarem os retratados" (Der Spiegel 9/1998).

 

A pressão no caldeirão capitalista aumenta inexoravelmente, enquanto as desinibidas elites funcionais removem todas as válvulas de segurança com uma alegria maléfica. É apenas uma questão de tempo até que a fachada de normalidade da democracia da economia de mercado e "da sociedade civil" expluda também nos centros ocidentais. O quão insustentável a situação já se tornou pode ser visto nos completos contrastes da cruzada neoliberal e dos seus bárbaros regimes de administração da crise: A fase final da internalização do capitalismo pelo ser humano como "empresário da sua força de trabalho" combina tão pouco com o óbvio regime de terror e penitenciário do Estado democrático esclavagista como o aparelho microelectrónico de controlo bentamiano combina com o regresso do pelourinho medieval, ou a "superfluidade" maciça de pessoas eliminadas pela racionalização com o reavivamento absurdo da moral do trabalho vitoriana. Ao responder à crise do século XXI com os métodos do século XVIII, a democracia dá origem a partir do seu interior ao novo Gulag e a um novo "tempo do desespero".

 

 

Original Der letzte Kreuzzug des Liberalismus, pags. 374-391 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (6.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

 

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