Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 8

História da Terceira Revolução Industrial

 

… … …

Secção 5

A nova pobreza em massa

Agora já não há dúvida (nem é contestado como facto) que os episódios de crise dos anos 80 e 90, combinados com os efeitos da retirada do Estado da responsabilidade social e com os da cruzada neoliberal, desencadearam a maior onda de empobrecimento maciço desde o início do século XIX. Todas as esperanças de "desenvolvimento" independente das antigas regiões coloniais do mundo no quadro do mercado mundial capitalista, vindas da era fordista, se foram esvaindo em fumo. A maior parte do chamado Terceiro Mundo foi completamente arruinada, mais recentemente mesmo os poucos países do Sudeste Asiático onde a industrialização atrasada parecia ter sido bem sucedida. A terrível desilusão de ser arrancado da mesa posta a um nível de consumo totalmente industrial, que mal acabara de ser alcançado, deixou traços traumáticos em países como a Coreia do Sul, Tailândia, Indonésia ou Malásia.

A experiência deve ter sido ainda mais terrível nos Estados desintegrados da ex-União Soviética e em toda a Europa de Leste, onde existia há décadas um sistema totalmente industrial nas formas capitalistas estatais, embora com um nível de consumo mais baixo do que no Ocidente. Nestes países, em poucos anos, os padrões alcançados em todas as áreas da vida foram completamente retirados. No próprio Ocidente, entretanto, são regiões inteiras e, de ano para ano, grandes grupos da população que estão a experimentar uma descida igualmente traumática à pobreza em massa, embora partindo de um nível de vida mais elevado. Como muitos neoliberais, Orio Giarini e Patrick M. Liedtke, autores do mais recente relatório do Clube de Roma, admitem em palavras secas a crescente pobreza maciça global e a contrastante existência de imensos recursos:

 

"Nunca antes na história houve tanta abundância de recursos humanos e outros como hoje [...] E, no entanto, em quase todo o lado no nosso planeta ainda existem pobreza e ignorância, que em alguns casos (!) até estão a aumentar [...] Infelizmente, para 1,4 mil milhões de pessoas, quase um quarto da população mundial, mesmo as coisas mais necessárias na vida parecem estar longe, porque vivem abaixo do limiar da pobreza [...]" (Giarini/Liedtke 1997, 25, 192).

 

De acordo com toda a razão humana, a única conclusão que se pode tirar disto é que o sistema capitalista global, com a sua "mão invisível" do cego mecanismo de mercado, falhou completamente na "alocação de recursos" (controlo da utilização dos meios de produção e do fluxo de bens), precisamente após a sua suposta "vitória" sobre o capitalismo de Estado. Isto é justamente o que os ideólogos e fabricantes de conceitos neoliberais não podem nem querem admitir, claro, porque, afinal de contas, fizeram deste sistema uma lei da natureza e, por isso, repetidamente se referem às suas monstruosas restrições, com uma regularidade cansativa, como se fossem forças da natureza. E assim, em resposta ao "facto natural" da nova pobreza capitalista maciça, não encontraram nada melhor do que a bela combinação de empregos ainda mais baratos com trabalho forçado.

Mesmo o Banco Mundial, um dos maiores produtores de pobreza entre as instituições capitalistas internacionais, queixa-se do devastador empobrecimento maciço, pelo qual ele próprio é parcialmente responsável através dos seus "programas de ajustamento estrutural" neoliberais, como se resultasse de pragas e furacões. O relatório do Banco Mundial de 1999 observa que o número de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia está a aumentar continuamente. Entre 1987 e 1993, aumentou em 100 milhões para 1,3 mil milhões; actualmente, estima-se que seja de 1,5 mil milhões; pouco depois da viragem do milénio, será de 2 mil milhões. Só na Índia, o número de pessoas pobres aumentou de 300 para 340 milhões entre 1989 e 1999.

O director do Banco Mundial Michael Walton, responsável pela "redução da pobreza", teve de declarar: "Em resumo, o quadro global no final dos anos 90 parece deprimente" (citado de: Handelsblatt, 7.6.1999). Se este é o resultado inequívoco de 20 anos de "mais economia de mercado", e o Banco Mundial está tão deprimido com isso que propõe outra dose mais elevada de "economia de mercado", então esta é uma prova particularmente conclusiva da insanidade geral que se apoderou das elites funcionais. O aumento dramático da pobreza maciça global nos anos 90 pode ser visto sobretudo no facto de o processo de empobrecimento da economia de mercado ter assumido um ritmo relativamente maior nos países industrializados do que no Terceiro Mundo, que já está marcado pela miséria maciça. Onde ainda há algo a derreter, o declínio social de grandes partes da população é mais claramente visível.

Isto aplica-se sobretudo aos antigos países capitalistas de Estado do Leste, mas agora também aos próprios países ocidentais centrais. De acordo com a UE, pelo menos 150 milhões de pessoas na Europa já viviam na pobreza em 1996. E não são de modo nenhum apenas aqueles que caíram completamente fora. Com a deslocação das "relações de emprego" remanescentes para salários baixos, como exemplificado pelos EUA, foi adoptado o simpático termo "pobreza empregada". Isto significa que mesmo os salários para trabalho a tempo inteiro já não permitem uma vida acima do limiar da pobreza – um estado de coisas impensável há 15 ou 20 anos, pelo menos na Europa (Ocidental e Oriental).

Aos "trabalhadores pobres" juntam-se não só os desempregados e os beneficiários da assistência social, mas também as miseráveis existências da "pobreza oculta"; ou seja, aqueles que já nem sequer reivindicam o seu direito à assistência social, porque já não conseguem suportar as humilhações sádicas da administração democrática da pobreza – cerca de 2,8 milhões de pessoas só na RFA. Mesmo nos países ocidentais mais ricos, acumulou-se assim um oceano de massas mendicantes aos milhões. Não é por acaso que a categoria mais baixa e mais empobrecida é constituída por todos aqueles cuja "força de trabalho" já nem sequer é potencialmente utilizável, ou apenas o é de forma limitada: crianças, idosos, deficientes, doentes mentais, prisioneiros. Para a RFA, o aumento da taxa de pobreza está estatisticamente provado na primeira metade dos anos 90, tanto em geral como em especial (e de forma muito desproporcionada) para crianças e famílias monoparentais:

 

Rendimentos abaixo do limiar da pobreza em 1990 e 1995 em percentagem

 

Grupo

Alemanha Ocidental

Alemanha Oriental

1990

1995

1990

1995

Total de pessoas

10,5

13,0

3,4

11,5

Crianças menores de 15 anos

16,7

21,8

5,1

19,7

Famílias monoparentais

36,2

42,4

16,0

35,5

Fonte: Palentien et al. 1999/Serviços Federais de Estatística

 

Pode ver-se que, em primeiro lugar, a taxa de pobreza está a aumentar dramaticamente, em segundo lugar, era muito mais baixa na antiga RDA, em terceiro lugar, muito mais crianças (nomeadamente cerca de 20%) do que adultos caem na categoria de pobreza, e em quarto lugar, a taxa de pobreza entre os agregados familiares monoparentais, que é quase duas vezes mais elevada, só pode significar que a massa de mães monoparentais, que são cada vez mais assediadas pela administração democrática da pobreza, têm obviamente de negar a si próprias quase tudo para manterem os seus filhos no nível médio de pobreza, enquanto elas próprias se tornam indigentes. Estas tendências vergonhosas num dos países mais ricos, com transferências sociais (ainda) relativamente elevadas, permitem tirar conclusões sobre quanto a pobreza maciça na maior parte do mundo já deve ter-se transformado num inferno dantesco.

Por detrás dos números abstractos existem condições indescritíveis que já quase não podem ser compreendidas e que, por isso, são suprimidas pelo público democrático. Embora tudo seja dito e abertamente admitido em algum momento e em algum lugar, nunca é referido ao sistema social que o causou ("democracia e economia de mercado"), sendo retratado nos media em geral indistintamente ao lado de eventos desportivos, catástrofes naturais ou das actuações do circo político. O facto de, por exemplo, o trabalho infantil no Terceiro Mundo ter mais uma vez aumentado rapidamente em vez de diminuir, dificilmente é registado, com um encolher de ombros. O que é novo nos anos 90 é que este crime social do trabalho infantil está também a alastrar no Ocidente, embora seja oficialmente proibido em todo o lado.

De acordo com a Associação Alemã de Protecção da Criança, 700 000 crianças menores de 15 anos têm de trabalhar na Alemanha. Só em parte se trata de empregos por vontade própria, de modo a poder continuar a aceder a bens de consumo de outro modo inacessíveis. Em bares, lojas, quintas, hortos, mercados etc., o trabalho infantil é cada vez mais utilizado na família, sob a pressão crescente da concorrência. Na maioria das vezes, porém, os filhos dos beneficiários da assistência social, especialmente de famílias monoparentais, têm de entrar em empregos ilegais. Como explicou um funcionário do Gabinete de Assistência Social Juvenil de Duisburg: "Existe o perigo de, no decurso do empobrecimento de camadas sociais muito específicas, as crianças terem de contribuir concretamente para a subsistência das suas famílias" (Clausen 1998). Na Itália, tão amante das crianças, até meio milhão de bambini são obrigados a trabalhar em centros industriais como Milão ou Génova. O record de crueldade no Ocidente, também a este respeito, é mantido pelos EUA, como provam numerosos relatórios:

 

"Com passos inseguros, Angel Oliveras caminha pela plantação. Os arbustos de pimenta atingem apenas o queixo da criança de quatro anos. Angel não se perdeu no caminho para o jardim de infância – ele está a trabalhar. Juntamente com a mãe, o cinco réis de gente colhe pimentas por um salário de fome. E não num país do Terceiro Mundo, mas nos EUA [...] As pistas de produtos obtidos desta forma levaram, entre outros, ao fabricante de sopas Campbell, ao grupo de lojas Sears e às empresas alimentares H.J. Heinz e Newman's Own do actor de Hollywood Paul Newman [...] A cada cinco dias morre uma criança trabalhadora nos EUA, de acordo com estatísticas oficiais. Cerca de 200 000 menores sofrem acidentes de trabalho todos os anos [...] Por exemplo, Alexis Jaimes, de 14 anos, foi mortalmente esmagado por uma máquina num estaleiro de construção no Texas. Joshua Henderson, de 15 anos, que trabalhava numa lavagem de automóveis no Colorado, foi fatalmente electrocutado. Diana Sifuentes cortou o polegar e dedos com o seu facão quando cortava árvores de Natal em forma num viveiro de árvores. ‘Tens de te apressar com o teu trabalho se quiseres ganhar bom dinheiro’, disse a jovem de 16 anos. As suas lesões graves foram enfaixadas sem ir ao médico – o caso, como muitos outros, nem sequer aparece nas estatísticas" (Foster 1997).

 

Pior ainda é o destino das crianças que já nem sequer têm de definhar num emprego ilegal, mas que, deixadas à sua sorte, vegetam nas ruas, subsistindo de esmolas, roubos e prostituição. O fenómeno das crianças de rua também se espalhou do Terceiro para o Primeiro Mundo. Na Rússia de hoje, pelo menos dois milhões de crianças vivem nas ruas. A situação não é melhor nos EUA e na Grã-Bretanha, onde, para além da formação bem visível de novas favelas, as crianças de rua estão cada vez mais a marcar a imagem das cidades. Na RFA, as já proverbiais crianças de rua de Berlim tornaram-se um fenómeno de massas; coincidindo com a chegada dos ministérios, a nova capital de toda a Alemanha apresenta-se dignamente como um centro democrático de negligência e de miséria infantil. Porque está farto da documentação dos factos, o Congresso dos EUA tem vindo há anos a exercer pressão sobre a ONU para dissolver efectivamente a agência de ajuda às crianças UNICEF, através da redução de custos e de poderes.

A maravilhosa economia de mercado global conseguiu mesmo aumentar novamente a fome no mundo nos anos 90, simultaneamente com o aumento exorbitante das forças produtivas. O fenómeno da fome, já não causada pela natureza mas pela sociedade, nunca deixou o capitalismo, apenas foi empurrado para a periferia durante o boom fordista. Os ocidentais supostamente ricos que se entregavam ao consumo em massa fordista consideravam a fome em massa nas regiões do sul do mercado mundial de maneira meio racista e meio caridosa. Ainda me lembro do "mouro que acenava com a cabeça", que era posto nas igrejas e se curvava quando uma moeda era atirada para "os pobres negros esfomeados".

Em 1962, foi fundada a Welthungerhilfe alemã. Até hoje, uma multidão de organizações de ajuda faz tudo o que é possível a este respeito, excepto uma coisa: a crítica a esse sistema global de produção de mercadorias que, através das suas restrições absurdas, produz, em primeiro lugar, fome. É por isso que todas as muitas medidas de ajuda permaneceram sem qualquer benefício sustentável e foram ultrapassadas pela lógica do mercado mundial. Em 1996, a Conferência Mundial da Alimentação teve de concluir que 840 milhões de pessoas estavam a passar fome em todo o mundo. Mesmo nessa altura, o número era provavelmente muito mais elevado. Entretanto, após os novos surtos de pobreza na Europa Oriental, Ásia, América Latina e no próprio Ocidente, há provavelmente mais de mil milhões de pessoas que já não têm o suficiente para comer. Depois de vários Invernos de fome em que os reformados congelaram até à morte nos seus quartos não aquecidos, a Bulgária, por exemplo, chegou ao grau mais baixo de uma sociedade humana:

 

"Desde Fevereiro, uma cozinheira e duas ajudantes têm vindo a preparar a parca refeição para 800 pessoas, escolhidas a dedo todos os dias numa cozinha escolar vaga. Quem recebe 300 gramas de sopa quente e um pão é decidido pelos serviços sociais na megacidade de Sófia. Emil Borisow (72) guarda um dos raros certificados de direitos como um tesouro; no exterior, pessoas famintas sem carimbos oficiais esperam pelas sobras. O antigo trabalhador de uma fábrica de sacos de cabedal penhorou o seu casaco no Inverno passado pelo equivalente a um marco para comprar soja satisfatória como substituição da carne: ‘A minha mulher estava doente, tinha tanta fome’ [...]" (Loose 1997).

 

Na Roménia, a miséria da população cresceu a tal ponto que as pessoas atormentadas pela fome até invadiram jardins zoológicos para aí abaterem os animais. As condições russas são ainda mais terríveis. No início de 1999, o governo planeou uma amnistia porque já não podia alimentar as pessoas amontoadas em prisões superlotadas: Apenas o equivalente a 5 cêntimos por dia está disponível para cada prisioneiro. Só em 1997, de acordo com números oficiais, dez mil homens e mulheres morreram dolorosamente de fome no novo Gulag democrático. Também outras notícias horríveis estão a passar para o mundo exterior a partir de outros sectores da administração humana russa:

 

"As clínicas psiquiátricas da cidade russa de Vladivostok mandaram embora cerca de 200 pacientes por falta de fundos. Como noticiou a televisão russa, o medo reina agora na cidade depois de um dos pacientes despedidos ter morto o vizinho com um machado, porque ele não lhe deu nada para comer. O director adjunto das clínicas disse que até agora apenas os pacientes mais calmos foram mandados embora. Mas se o abastecimento não melhorasse, todos eles teriam de ser libertados. ‘Não podemos deixá-los morrer à fome’. Por falta de dinheiro os pacientes nas clínicas são alimentados apenas com papas de aveia e sopa" (Nürnberger Nachrichten, 23.10.1997).

 

A situação alimentar na Rússia não parece muito melhor fora dos centros de detenção. Especialmente nas províncias, torna-se claro que a antiga segunda potência mundial afundou para o estatuto de país africano faminto, após a sua purificação democrática na economia de mercado. Cidades geminadas e instituições de intercâmbio cultural estão cada vez mais a receber pedidos desesperados de ajuda dos seus amigos russos. Um relatório sobre uma região siberiana, por exemplo, diz:

 

"Peixe congelado empilha-se como lenha em frente ao mercado de Ulan-Ude, na Sibéria [...] Um passo à frente, atrás da porta, grandes quantidades de carne e legumes estão à espera de compradores [...] A fome não devia ser um problema na República da Buriácia, dada a abundante oferta alimentar. No entanto, a Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho contam o território entre os severamente afectados pela fome neste Inverno [...] Mas o Ministro dos Assuntos Sociais da Buriácia, Stepan Efimov, [...] nega que qualquer pessoa no seu país esteja em risco de morrer à fome. ‘As nossas crianças estão esfomeadas’, contradiz Vera Baldanova da Cruz Vermelha local, perturbada. ‘Colapsam porque têm fome. E estão a passar fome porque os pais estão desempregados’. Outros não têm salários há meses – e os preços subiram rapidamente no último ano [...] ‘Há tudo nas lojas e no mercado’, explica Baldanova. ‘A escolha é enorme – mas as pessoas não podem pagar a comida’ [...]" (Landsberg 1999).

 

Que a "alocação de recursos" da economia de mercado pode inevitavelmente incluir a fome em massa já era, afinal, conhecido de Bentham – e hoje a primeira potência líder do mundo democrático livre também dá amplo testemunho disso. De acordo com números oficiais do Departamento de Agricultura, milhões de pessoas nos Estados Unidos estão subnutridas, especialmente crianças:

 

"Quatro milhões e 200 mil americanos passam fome [...] pelo menos uma parte do tempo. Em 800 mil lares não há muitas vezes nada para comer durante um dia inteiro. De acordo com organizações de caridade, os números são muito mais elevados. Segundo a organização 'Second Harvest' 30 milhões (!) estão numa situação de 'insegurança alimentar', 26 milhões dependem da alimentação pública ou de donativos alimentares todos os meses" (Frankfurter Allgemeine Zeitung, 17.9.1997).

 

Mas a alimentação pública já não é o que era. Imediatamente após a tomada de posse de Reagan, por exemplo, o financiamento dos almoços escolares foi drasticamente reduzido a favor do orçamento militar, embora esta "refeição pública" fosse o único acesso a alimentos substanciais para muitas crianças:

 

"Até Setembro de 1981, o objectivo normal era que o almoço escolar fornecesse um terço das necessidades nutricionais de uma criança. Para muitos jovens, o almoço escolar é a melhor, por vezes a única refeição do dia. Investigações do Departamento de Agricultura apuraram que as crianças necessitadas comem de um terço a metade da sua dieta básica com esta refeição. Terão de procurar noutro sítio algo para comer" (Lekachman 1982, 88s.).

 

Mesmo no pomar e horta dos EUA, a Califórnia, onde são produzidos alimentos para todo o mundo, o "Children's Defense Fund" encontrou desnutrição entre as crianças das escolas; em muitos Estados as crianças da classe baixa regressam magras das férias. Os professores relatam casos dramáticos de fome:

 

"James Steyer é professor em Oakland, numa das zonas mais pobres dos Estados Unidos. Entretanto já está atento aos estudantes que dão nas vistas porque não têm o suficiente para comer. Ele fala de uma criança de doze anos do tamanho de uma criança de seis anos. 'Eu tenho um estudante cuja mãe morreu e o pai trabalha desde as 16h até à meia-noite a tratar da bagagem no aeroporto. Perguntei-lhe: Rafael, o que fazes quando chegas a casa à noite? E ele disse-me que gosta de comer batatas ao jantar. Depois quis saber como eram preparadas as batatas. Ele disse: O meu pai deixa-me uma batata para jantar todas as noites. Perguntei-lhe: Como é que a cozinhas? E ele disse: Eu não a cozinho, como-a crua' [...]" (Kölle l992)

 

Lá está de novo o inevitável padrão da batata dos quase três séculos de crise, guerra e pobreza da "economia de mercado que melhora o bem-estar". A primeira potência mundial democrática não só conseguiu sujeitar milhões dos seus próprios filhos à fome, mas também conseguiu, para divertimento dos infantis homens das ciências militares, disparar um carrinho de brincar até Marte, a mais de 100 milhões de quilómetros, e meter nele alguns pedaços de rocha, aos quais foram atribuídos nomes próprios. Se isto não é eficiência na gestão de recursos! A fome também voltou há muito tempo a atacar de novo nas democracias da Europa Ocidental e Central. Na Grã-Bretanha, enquanto as antigas doenças de carência do século XIX estão a regressar entre as crianças da nova subclasse, o Estado está a endurecer o seu controlo sobre a ajuda alimentar, tal como nos EUA. Nisto, Margaret Thatcher emulou o seu velho amigo, o ditador economicamente liberal de espírito sanguinário, Pinochet, num ponto em particular, pelo qual ela também se vangloria nas suas memórias: “As poupanças nas refeições escolares e no leite escolar foram a primeira coisa que veio à mente [...]” (Thatcher 1995, 215). Esta também tinha sido uma das primeiras obras piedosas de Pinochet, depois de ter mandado assassinar o presidente eleito Allende no palácio do governo. Sob o regime de Blair, a situação alimentar dos que caíram fora na Grã-Bretanha piorou em vez de melhorar. Em França, como em toda a parte, para além dos idosos, são os pais monoparentais que primeiro deixam de ter o suficiente para comer:

 

"Para Monique, não é uma questão de ela poder pagar aquela dispendiosa ida ao cinema ou adiar a compra daquele tão esperado CD durante algum tempo. Monique calcula mês a mês se terá dinheiro suficiente, depois de pagar a conta da electricidade, para comprar carne e queijo para si e para os seus três filhos. 'Conheço famílias em que as crianças só têm bananas para comer’, diz a jovem de 33 anos" (Gabriel 1998).

 

Claro que o "capitalismo renano" da RFA não pode ficar para trás quando se trata da palma na nobre competição pelo recorde das crianças famintas na economia de mercado. Em 1997, a Liga Alemã de Protecção da Criança exigiu que os almoços escolares, que há muito tinham sido abolidos, fossem reintroduzidos. Enquanto a esquerda Armani celebra a sua integração democrática na nova capital, Berlim, multidões de crianças ali atingidas pela pobreza pedem aos seus colegas para lanchar. Hamburgo, a cidade com o maior rendimento per capita da RFA, também tem uma crescente população faminta:

 

"Em alguns infantários há mais comida às segundas-feiras porque as crianças não tiveram comida suficiente em casa no fim-de-semana. Carola Thomas, professora de uma escola primária de Hamburgo, tem um frigorífico na sala de aulas há anos. Nele se guarda a comida para o pequeno-almoço na sala de aulas [...] Há sempre crianças que dizem, a mamã não me deu nada, a mamã não tem dinheiro ou o frigorífico em casa está vazio [...] Hoje em dia o pequeno-almoço comum na sala de aulas é uma parte fixa do horário, 'senão as crianças não se conseguem concentrar porque têm fome'. Em muitas casas de família não há aparentemente comida quente à hora do almoço ou à noite [...] No contentor da loja comunitária em Hamburgo-Lurup, que é gerida pela Liga de Protecção da Criança e pela Diakonie, um grupo inteiro de crianças da escola vem almoçar às segundas-feiras, quando há comida cozinhada [...] A comida acabada de cozinhar é uma iguaria invulgar para muitas destas crianças [...] 'Quando pomos algo aqui', diz Verena Behrman, que é responsável pela cozinha, 'desaparece num instante’. Ela fica sempre surpreendida com 'o que as crianças não conhecem: Algumas delas nunca antes comeram nozes, passas, fruta e legumes..." (Jurkovics 1998).

 

A fome livre e democrática da economia de mercado ainda não significa no Ocidente morrer à fome imediatamente, como acontece em muitas regiões do Terceiro Mundo. Mas pode vir a significar. Já agora os serviços de caridade cobrem apenas uma parte da fome endémica. As instituições democráticas estão deliberadamente a impedir estudos precisos sobre este complexo. A mesma tendência se apresenta nos cuidados médicos. Nos EUA, onde não existe qualquer seguro de saúde obrigatório, uma grande parte da população não tem nenhuma cobertura médica. Mesmo as pessoas da classe média ficam completamente arruinadas no caso de doenças graves; as pessoas da classe baixa recebem apenas "o mínimo" de ajuda e ficam depois para sempre endividadas. Mas também em países com seguro de saúde obrigatório, o "factor custo" cada vez menos pode ser reproduzido em categorias de economia de mercado.

A discrepância também está a aumentar a este respeito: enquanto os custos médicos estão a subir, os rendimentos dos segurados estão a diminuir. No decurso da privatização neoliberal global, os seguros de saúde privados concentram-se nos indivíduos com rendimentos elevados de acordo com o lema: "O principal é ser rico, jovem e saudável" (Die Welt, 23.3.1996). O seguro de saúde obrigatório, por outro lado, está a tornar-se a "caixa dos pobres" em todo o lado. Esta tendência nos países ocidentais só é ultrapassada pelo resto do mundo da economia de mercado na medida em que na maioria dos países orientais e meridionais (excepção: Cuba) a ajuda médica de qualquer modo só está disponível contra dinheiro. Os sem dinheiro são simplesmente deixados à sua sorte e podem morrer nas ruas. Os milhares de milhões de pessoas da nova e crescente pobreza em massa adoecem mais facilmente devido a má nutrição e condições de vida geralmente negativas, mas depois também recebem piores cuidados médicos (ou nenhuns):

 

"Os dentistas podem agora determinar a origem social de uma criança apenas olhando para os seus dentes: As crianças de nove anos de famílias pobres têm uma média de cinco dentes podres ou em falta. A distribuição de dentes esburacados e gengivas encolhidas depende do estatuto social [...] A uma de cada dez pessoas da classe inferior alemã faltam todos os dentes aos 54 anos de idade; na classe superior, por outro lado, apenas uma em cada cem é desdentada [...] A saúde é desigualmente distribuída – em toda a Alemanha, em todas as faixas etárias e para quase todas as doenças [...] A hipótese de ser saudável diminui com a diminuição do rendimento [...]" (Blech 1997).

 

O facto de não só a saúde estar cada vez mais desigualmente distribuída na sociedade, mas também o tratamento médico, pode ser facilmente demonstrado para a RFA com base no estado da dentição. Uma "mina" a este respeito e não só são as campanhas anuais de Natal dos principais jornais diários, que regularmente permitem vislumbrar o abismo social da democracia, com os seus exemplos concretos na recolha de dinheiro para os necessitados:

 

"Os menos abastados de hoje em dia [...] preocupam-se em saber se ainda terão os dentes para mastigar. A contribuição pessoal para a conta do dentista sobrecarrega muitos cidadãos de baixos rendimentos [...] Margit B. recorda com um arrepio a situação oito anos atrás, quando andou por aí durante dias com apenas meia dentição devido a uma restauração dentária total [...] Agora outra restauração dentária é necessária, causada por anos de cancro. A estimativa de custos apenas para a contribuição pessoal é de 3430 Marcos. Isto é quase cinco meses de rendimento. Margit B. não sabe como é que vai conseguir. Ela foi excluída do subsídio de doença e tem 712 marcos de subsídio de desemprego (...)" (Nürnberger Nachrichten, 16.12.1998).

 

A medicina de duas classes, pelo menos na RFA negada em alta voz por políticos democráticos de todas as cores, há muito que se tornou prática diária; e do mesmo modo noutros países ocidentais. Embora todos os recursos médicos estejam abundantemente disponíveis, atingem cada vez menos as massas de pessoas caídas fora, porque, como todas as outras coisas na vida, têm de passar pelo buraco da agulha da economia capitalista de uma forma ou de outra. É precisamente a este respeito que o corpo humano e a sua vida são literalmente colocados sob "condição de financiamento". Os aparelhos democráticos, que dançam ao som do fetiche do dinheiro, apenas conseguem uma imparável espiral descendente também nos cuidados de saúde. A cada nova "contenção de custos", mais serviços e pessoas ficam "sem cobertura". Os novos pobres democráticos recebem cada vez menos ajuda, ou recebem-na em termos cada vez mais ruinosos, mas, inversamente, é-lhes permitido disponibilizarem-se como cobaias para o bem-estar sanitário dos mais abastados. A pessoa pobre como objecto de experimentação, como Georg Büchner a descreveu no seu "Woyzeck" para o "tempo de desespero" do início do século XIX, torna-se um fenómeno de massas:

 

"Não eram necessários conhecimentos especiais para o novo trabalho. A única condição: Antes de entrar de serviço, Hugh Mejia, 34 anos, não foi autorizado a tomar o pequeno-almoço. Desta vez, o seu local de trabalho era uma sala de operações no Hospital Geral de São Francisco. Às oito horas da manhã, o homem deitado sobre a mesa de operações, completamente relaxado. Os médicos perfuraram entradas intravenosas nos seus braços e ligaram-lhe eléctrodos à cabeça. Os preparativos para a operação decorreram sem qualquer problema. Só uma vez é que as coisas se tornaram críticas. Quando os médicos lhe empurraram um cateter até ao coração, este perdeu o ritmo por um momento. 'Este tipo de coisa pode ser fatal', ainda pensou Mejia. Pouco tempo depois, a anestesia começou a fazer efeito [...] Nenhum cirurgião lhe cortou o corpo enquanto estava inconsciente. O procedimento sem cicatrizes foi apenas uma experiência médica [...] O solteiro de São Francisco é um 'research subject' a tempo inteiro: uma cobaia humana. Nos últimos 12 anos tem ganho a vida – sem estar doente – engolindo comprimidos, urinando em tubos de ensaio graduados, fazendo periodicamente um raio-X ou uma anestesia. Ele também suportou [...] experiências bastante absurdas: Uma vez os médicos [...] embrulharam-no nu em toalhas geladas. Queriam descobrir quão rapidamente uma pessoa fica tão hipotérmica que até os dentes deixam de bater de frio. Outra vez os investigadores deram-lhe a beber litros de café para determinar se e quando o seu sistema imunitário entraria em colapso [...] O procedimento de teste – como em todos os países ocidentais onde os exércitos de voluntários se alinham para o fazer – é sempre o mesmo [...] Tal como Mejia, há 50 mil pessoas nos EUA que [...] vendem os seus corpos à investigação médica [...] A maior parte delas estão 'sem emprego': desempregados, reformados, soldados dispensados das forças armadas ou antigos prisioneiros [...]" (Der Spiegel 4/1998).

 

Aqui, o "voluntariado" já não é uma decisão livre, um sacrifício pelos outros, mas uma entrega física de pessoas pobres capitalistas para pessoas ricas capitalistas, indirectamente forçadas pelo mercado de trabalho. Esta forma extrema de escravatura do sistema democrático aumenta ainda mais, porque num número crescente de casos a pobreza monetária até é usada para explorar os pobres como verdadeiros bancos de órgãos para os mais ricos. O Terceiro Mundo, arruinado pelo mercado mundial, oferece-se como matadouro médico. Nos anos 90, por exemplo, surgiu o chamado "turismo dos rins":

 

"Os transplantes comerciais de rins têm sido realizados até agora especialmente na Índia [...] Os médicos paquistaneses participam agora também na maquinação dos órgãos. Os japoneses têm recebido rins nas Filipinas desde há muito tempo. Nos dias de boom do turismo de órgãos, 200 clínicas renais competiam numa só rua em Chenai, no sul da Índia. As aldeias remotas na área eram conhecidas como 'colónias de rins'. Quem quer que aí possua uma bicicleta, diz uma regra de ouro, também tem uma cicatriz de 25 centímetros no flanco [...]" (Der Spiegel 46/1996).

 

Esta é provavelmente a última fase concebível da economia da oferta. Onde tudo é objecto do mercado, mesmo os órgãos humanos, o dinheiro a rir-se também procura vítimas involuntárias nas regiões socialmente devastadas pelo colapso. No início de 1999, o Ministério Público do Cairo iniciou investigações contra uma "organização privada de assistência social" que se diz ter vendido pelo menos 25 órfãos a comerciantes de órgãos para canibalização. No Brasil, as crianças são mesmo arrancadas das ruas para este fim. É também um segredo mal guardado que os traficantes de órgãos nos anos 90 estão a operar com elevados lucros atrás das frentes das guerras civis globais que assolam as sociedades em colapso. Onde para tudo há um mercado, há uma forma de o fazer.

A desintegração social da humanidade parece estar a assumir, ela própria, dimensões biológicas. No extremo mais baixo da escala estão os "catadores de lixo" em Calcutá, Cairo, Manila, ou no nordeste do Brasil. Aí crescem populações de anões ou "ratos", pigmeus artificiais com uma altura máxima de 1,50 metros, desdentados e idiotas logo no início da juventude – uma pseudobiologia social transmitida ao longo de gerações. No outro extremo da escala, a elite capitalista dos mais abastados espera, com toda a seriedade, uma separação biológica do resto da humanidade por meio de "reprogenética" que é incomportável para os mortais comuns. O biólogo molecular americano Lee Silver considera possível uma "selecção genética" capitalistamente mediada, que poderia mesmo acabar por levar ao desenvolvimento de duas espécies humanas.

A desumanização geral do sistema médico e de saúde capitalista continua naturalmente na forma como são tratados os deficientes mentais ou físicos e, sobretudo, os idosos que necessitam de cuidados, ou seja, as pessoas que não agem de forma independente como sujeitos do mercado e que já não podem ser exploradas para nada. A própria existência de lares de idosos e lares de "cuidados" mostra que a máquina de valorização, no decurso do seu desenvolvimento, quanto mais tem desenvolvido as forças produtivas, menos tempo tem deixado às pessoas, de modo que mesmo os parentes mais próximos não podem ser cuidados pelos familiares, quando, como material humano esgotado, perdem o controlo das suas funções corporais. Mas o sistema de concorrência total há muito que também tem afrouxado todos os laços humanos íntimos. Para muitos lutadores solitários que pedalam no moinho de degraus da economia de mercado, mesmo a própria mãe, uma vez desaparecida atrás das paredes de alguma instituição, tem apenas o estatuto de uma espécie de parente afastado que gradualmente se perde de vista.

Já não ocorre a ninguém que tudo isto pudesse ser arranjado de modo completamente diferente. Humano seria única e exclusivamente que aqueles que precisam de cuidados pudessem viver as suas vidas no círculo das pessoas familiares – e que a sociedade fornecesse os meios e o fundo de tempo para que isso pudesse acontecer, sem que ninguém fosse completamente arrancado de todos os outros interesses e actividades por esta actividade de cuidados, isolando-se e empobrecendo-se nesse processo. A palavra "lar", no seu significado moderno como instituição de custódia humana, adquiriu um sinistro significado secundário, o que, no entanto, aponta para o facto de que no capitalismo há muito que deixou de existir tal coisa como um "lar", no sentido de qualquer tipo de segurança. Mas, mesmo no caminho da desumanização, a desintegração da sociedade ainda é drasticamente perceptível. Enquanto os mais abastados podem enviar os parentes a remover para casas de idosos de luxo, as casas de idosos para as massas empobrecidas assumem um carácter de campo de concentração sob a crescente "pressão dos custos". Não importa a forma como esta pressão se exerce. Nas instituições estatais ou da segurança social, o dinheiro está simplesmente a ser cortado. No entanto, no decurso do processo geral de "privatização", já existe um grande número de "empresários da caridade" no "mercado dos cuidados". Nestas empresas, os "cuidados" são então geridos de acordo com critérios de economia empresarial, para fins de maximização do lucro, como se se tratasse de fabricar peças para automóveis. O "corte de custos" que é forçado de acordo com a racionalidade da economia empresarial conduz então ao mesmo resultado que os "modelos de poupança" utilizados pelas organizações de financiamento público.

Em 1997, o Conselho de Administração da Associação Alemã de Apoio a Idosos advertiu que, de acordo com os cálculos do modelo, uma maior "redução de custos" significaria que muitos lares teriam de reduzir o seu pessoal já demasiado escasso (e, claro, miseravelmente pago) em até 30 por cento. Já agora a cadeia de escândalos, em lares de idosos tanto públicos como privados, não pára mais. Os idosos indefesos têm de ficar deitados nos seus próprios excrementos e urina durante horas, são colocados na cama ao início da tarde, amarrados, alimentados com comida de qualidade inferior etc. Mas mesmo onde está "tudo bem" na aparência, a qualidade dos cuidados diminui necessariamente e as actividades de lazer são canceladas. "Saciado e limpo" é a máxima, como se se tratasse de gado num estábulo. Até a separação de casais parece ser possível na administração de cuidados, como demonstrou uma tragédia em Nuremberga, na Primavera de 1999:

 

"O final trágico de um casamento no bairro de São Pedro, no qual um homem de 87 anos matou a seu pedido a esposa, que era três anos mais nova do que ele, e falhou na sua subsequente tentativa de suicídio, abalou muitas pessoas. Uma questão em particular foi debatida: Os casais idosos podem ficar juntos se precisarem de cuidados, ou têm de se separar? Após 50 anos de casamento, o casal aparentemente não quis aceitar a separação. Uma carta de despedida à filha que vive na Suíça explicou o acto de desespero [...] Teoricamente (!) marido e mulher podem certamente encontrar hoje um lugar num dos lares de Nuremberga, mas dificilmente um quarto partilhado na instituição [...]" (Nürnberger Nachrichten, 8.3.1999).

 

Também no caso dos cuidados aos idosos, pode-se imaginar como poderão ser as condições no resto do mundo, se já assumem tais características de pesadelo num país ocidental central como a RFA. Os políticos democráticos, que de qualquer modo mentem quando abrem a boca, suprimem regularmente a realidade catastrófica que "moldam" referindo-se a excessos, casos individuais, abusos etc., logo que são confrontados com situações que não podem ser negadas. Sob a lei pseudonatural da "financeirização", eles continuam a fazer girar a espiral descendente em todas as áreas da sociedade que não podem ser rentabilizadas, ou entregam-nas directamente à lógica da poupança de tempo e à política da redução de custos da economia empresarial através da "privatização".

Na progressiva desumanização do capitalismo, as imensas dimensões do Gulag democrático tornam-se gradualmente visíveis no final do século XX. Este Gulag está dividido em três secções. A primeira secção consiste em instituições de detenção e confinamento de seres humanos, nas quais desaparecem cada vez mais pessoas supérfluas, delinquentes ou de qualquer outro modo não valorizáveis, e que se tornaram um enorme factor de custo: Prisões, penitenciárias, casas de correcção, "asilos" de todos os tipos, hospitais para os pobres, instituições psiquiátricas etc. A segunda, média e maior secção consiste em massas de desempregados e caídos fora, que são burocraticamente mantidos "em movimento", assediados, humilhados e cada vez mais postos a rações de fome pela administração democrática da pobreza e da crise. A terceira secção do tríptico do Gulag democrático é formada pelos sem-abrigo, crianças de rua, imigrantes, requerentes de asilo e outros ilegais, alguns dos quais até desapareceram das estatísticas, que vegetam inteiramente à margem da sociedade e já nem sequer são permanentemente administrados, mas são apenas objecto de esporádicas operações policiais e ocasionalmente até militares (ou, em alguns países, de esquadrões da morte privados).

A vida pública, as discussões, a suposta "normalidade" social, a burguesia da sociedade civil e, em geral, a auto-imagem oficial da "economia de mercado e democracia" não se referem ao Gulag que prolifera nem às suas três secções, que são recalcadas, encobertas e, ao mesmo tempo, mantidas restritivamente debaixo de olho, mas realmente apenas ao resto cada vez menor com relações "regulares" de emprego e de rendimentos. Na medida em que a realidade do Gulag democrático salta à vista, não aparece naturalmente à consciência oficial como aquilo que é. Pelo contrário, uma vez que o capitalismo e a sua economia de mercado são declarados como uma condição da natureza mais fanaticamente do que nunca, o Sr. Malthus chega a novas honras. A primeira e última palavra sobre o aparente desespero é mais uma vez: "Há simplesmente demasiadas pessoas" – com todas as consequências que se escondem neste "argumento". Evidentemente, a consciência económica oficial expressa a questão de forma um pouco mais discreta: "Em muitos países em desenvolvimento a população está a crescer mais rapidamente do que a economia" (Handelsblatt, 8.4.1999). No que diz respeito aos "países em desenvolvimento", o malthusianismo nunca desapareceu do discurso capitalista. Já em 1968, quando o boom fordista ainda não tinha ardido completamente, o "demógrafo" norte-americano Paul Ehrlich, originalmente um entomologista, escreveu:

 

"O cancro é uma multiplicação desenfreada de células, a explosão populacional é uma multiplicação desenfreada de seres humanos [...] Temos de nos adaptar e tentar remover o crescimento cancerígeno (!) em vez de tratar os sintomas. Esta operação exigirá muitas decisões obviamente brutais e sem coração, e causará muito sofrimento. Mas a doença já está tão avançada que o doente não tem qualquer hipótese de sobrevivência, a não ser com tratamento radical" (Ehrlich 1971/1968, 131s.).

 

Desde Menenius Agrippa que é preciso cautela quando os funcionários das oligarquias comparam a sociedade a um corpo. O "ser" cuja salvação está aqui em jogo é, obviamente, o capitalismo – e as massas inúteis de pessoas são as "células cancerosas" deste paciente. A conclusão inconvencional só pode ser realmente ajustar o número de pessoas neste planeta à sua capacidade de reprodução através da monstruosa economia capitalista – e isso seria então, sob as condições avançadas da Terceira Revolução Industrial, talvez ainda mais ou menos a população do Neolítico Médio. A conversa de que "o barco está cheio" há muito tempo que se tornou respeitável em muitas referências. Na sua série "Biblioteca de Economia" (sob o lema: "Desemprego, crises financeiras, fosso entre ricos e pobres, destruição ambiental – quem procura soluções deve conhecer as teorias básicas da economia"), o semanário alemão liberal social "Die Zeit" também apresentou Malthus simpaticamente:

 

"Para a maioria dos países em desenvolvimento [...] as teses de Malthus continuam a ser relevantes. Ainda estão a lutar desesperadamente para encontrar uma saída para a armadilha populacional [...] O apocalipse malthusiano, um mundo onde já só há lugar de pé devido à superpopulação, ainda não desapareceu do horizonte [...] Mesmo os países industrializados não escaparam definitivamente à armadilha populacional. A sua prosperidade e estabilidade social estão hoje indirectamente ameaçadas – através dos fluxos migratórios dos países em desenvolvimento" (Nesshöver 1999).

 

É de cortar a respiração não só perante a indiferença com que o assassino argumento malthusiano ("armadilha populacional") se repete aqui, mas também como toda a lógica é ridicularizada. Que as forças produtivas de hoje seriam facilmente suficientes para reproduzir mesmo um número de pessoas múltiplo das que vivem agora não é tido em consideração de qualquer modo. Mas que deveriam ser os "fluxos migratórios" do Sul global a tornar o argumento de Malthus aplicável também aos países industrializados ocidentais, onde a população tem vindo a diminuir há muito tempo e os ideólogos conservadores já evocam a "extinção" da respectiva nação – isso ultrapassa os limites. Mesmo uma criança pequena poderia reconhecer a inconsistência gritante de uma argumentação que, com toda a seriedade, atribui o enorme processo de "libertação" económica da força de trabalho nos centros capitalistas, os grandes surtos de pobreza e a insolência da administração democrática da crise às migrações miseráveis da periferia, que de qualquer modo estão a ser empurradas para trás com os meios mais brutais do Estado policial. Se tais distorções inconcebíveis não forem respondidas por um clamor geral de pelo menos indignação intelectual, então isto é uma indicação da medida em que o discurso da "boa sociedade" – na crise sempre o centro da barbárie – já se está nas tintas para as mais primitivas regras do pensamento lógico.

Nas regiões escuras do Gulag democrático global, a morte em massa já começou há muito tempo, de forma assustadoramente silenciosa. Os casos isolados ocasionalmente documentados são ignorados por uma consciência que, excepto no caso de homicídio puro e simples e das crueldades dos ditadores que o Ocidente tem no bolso na periferia inflacionadas pelos media, considera todos os perecimentos humanos como acidentes ou morte natural. A notícia, por exemplo, de que no final de Janeiro de 1997 a professora de matemática Valentina Pavlova, de Sosnovborsk, na Sibéria, de 34 anos de idade, cronicamente doente, morreu porque já não podia comprar os medicamentos após sete meses sem salário não é associada por quase ninguém com a brutalidade sistémica da "democracia e da economia de mercado". Os medicamentos estavam lá, talvez venham a ser mandados para o lixo em algum momento por falta de poder de compra. Como tal ocorrência é nova na Sibéria, foi capaz de subir à superfície do fluxo de notícias capitalistas como uma bolha – no Brasil, tais coisas já nem sequer se registam. Quando na RFA Karsten Vilmar, o presidente da Associação Médica Federal, cunhou a palavra "morte antecipada socialmente aceitável" em 1998, por causa de interesses de lobby reconhecidamente cínicos, então acertou na mouche. No caso dos chamados doentes terminais, o mais inútil de todos os comedores, há também cada vez mais ajuda sem rodeios:

 

"Nos Países Baixos, 2700 pessoas gravemente doentes são mortas por ano a seu pedido. Na Grã-Bretanha, um computador calcula se vale a pena manter vivos artificialmente os pacientes moribundos. Na Alemanha, médicos, advogados e especialistas em ética estão a debater se é possível privar os doentes em coma de alimentos" (Die Zeit 39/1996).

 

Só superficialmente este discurso assassino pode legitimar-se com argumentos filantrópicos de "redução do sofrimento". Trai-se regularmente com o tremeluzir do ponto de vista dos custos. Uma parte considerável da dor insuportável, por exemplo, poderia certamente ser eliminada, por exemplo com opiáceos fortes. Absurdamente, estes são proibidos no tratamento médico não só por razões de dinheiro, mas também porque são "viciantes"; no caso dos doentes terminais, que deste modo ainda poderiam ter um último prazer e ao mesmo tempo alívio da dor, trata-se de uma grotesca projecção da loucura protestante, como se estas pessoas ainda pudessem vir a alcançar alguma "performance" capitalista que ficaria em perigo por causa do ópio. Ou apenas de dar baixa com rapidez, com uma morte voluntária e barata por misericórdia. O programa de homicídio torna-se ainda mais directo e claro na política de redução de custos no cuidado dos idosos. Está bem documentado que mesmo na RFA começou "um corte selvagem dos serviços necessários" (Der Spiegel 9/1999) com consequências fatais. Em voga está, por exemplo, a "morte por desidratação", porque os idosos indefesos não bebem o suficiente sozinhos. Um estudo de Hamburgo mostra que na RFA os idosos morrem às centenas porque são negligenciados e a ajuda é-lhes deliberadamente negada pelos seguros de saúde:

 

"De todas as pessoas mortas na cidade hanseática, segundo Klaus Püschel, chefe do Instituto de Medicina Legal da Clínica Universitária de Eppendorf, 11,2% tinham úlceras de decúbito causadas por terem ficado demasiado tempo deitadas. Quatrocentos hamburgueses morrem todos os anos das chamadas úlceras de decúbito – aqueles abcessos dolorosos causados por cuidados incorrectos [...]" (Der Spiegel 9/1999).

 

Extrapolado para a RFA, isto resulta em 750 mil "vítimas de maus cuidados". Os seguros de saúde e de assistência bloqueiam a assunção de custos para cadeiras de rodas e colchões especiais, a fim de poupar os orçamentos, mesmo que as pessoas fiquem literalmente sem pernas por causa disso. O resto são estatísticas. De acordo com o relatório de Desigualdades na Saúde publicado na Grã-Bretanha em 1997, a esperança de vida para as classes mais baixas está a diminuir de forma constante: Os homens pobres e ricos estão agora separados por até cinco anos de vida. Um estudo da UNICEF (1994) mostra que desde o início do processo de reforma da economia de mercado democrática, a taxa de mortalidade na Europa de Leste é "tão elevada como de resto apenas em tempos de guerra". Na Rússia, a esperança de vida dos homens caiu para 58,3 anos; em 1989 tinha sido de 64,2 anos.

A UNICEF também teve de anunciar em 1997 que todos os anos sete milhões de crianças morrem antes do seu quinto aniversário em consequência de desnutrição. Não admira que os EUA não gostem desta organização e queiram ver-se livres dela. Claro que nem uma única destas crianças teria de morrer se as "leis naturais da economia de mercado" não as privassem da ajuda de que necessitam. Mesmo os medicamentos mais simples, que podem ser produzidos com facilidade, nunca chegam a estes milhões de vítimas, graças à "afectação de recursos" da economia monetária altamente eficiente. Todos derramam lágrimas de crocodilo aos baldes sobre este estado de coisas profundamente triste. Para as senhoras dos que ganham melhor, surge uma ocasião bem-vinda para actividades tão caridosas como inconsequentes. Mas ninguém diz que se trata do holocausto anual de crianças na democracia da economia de mercado.

 

 

Original Die neue Massenarmut, pags. 391-402 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (6.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

 

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