Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 8

História da Terceira Revolução Industrial

 

 

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Secção 6

A miragem da sociedade de serviços

É claro que as elites funcionais capitalistas sabem ou suspeitam que a dada altura o fim da linha foi alcançado. Se uma nova onda de crescimento e emprego à escala mundial não surgir em breve, acontecerá o que já estava próximo no início do século XIX, numa fase muito inferior do desenvolvimento: a desagregação da sociedade capitalista, teimosamente fixada na sua forma, em permanentes guerras civis e estados de sítio, em terror e loucura. O discurso da tolerância zero é indicativo do receio crescente das elites de que a situação possa ficar completamente fora de controlo. Mas, como é evidente que a violência fardada, as novas colónias penais e de trabalho não podem, por si só, provocar uma acumulação adicional de capital, também o discurso da esperança económica tem de se arrastar, por muito esgotado que esteja entretanto.

O facto de os milagres económicos industriais terem acabado para sempre é agora bem conhecido. Quase ninguém quer falar sobre a teoria das "ondas longas", que foi um paradigma de crescimento industrial. Fiel à tese de Milton Friedman de "desemprego natural" é também o actual consenso geral dos economistas e consultores de gestão de que nunca mais haverá "pleno emprego". Mas, para que o sistema mundial capitalista se mantenha "controlável" no seu processo de crise, algum novo campo de crescimento do "emprego" tem de ser encontrado custe o que custar, a fim de deter o seu derretimento que continua sem parar nos sectores industriais, pelo menos numa medida mais ou menos significativa. Nascido desta necessidade, um novo teorema domina cada vez mais o discurso socioeconómico sobre o futuro do capitalismo (não podendo haver outro): o discurso da "sociedade pós-industrial de serviços".

"Pós-industrial", claro, é suposto tornar-se não a reprodução social como um todo, mas a linha ascendente esperada (ou comummente fantasiada) do novo "emprego" capitalista. Assim, enquanto a produção agrícola e especialmente a industrial é altamente racionalizada, automatizada e, portanto, "pobre em humanos" na produção de todos os bens materiais, o "emprego" para a força de trabalho "libertada" dos dois primeiros sectores é suposto passar gradualmente para o sector terciário dos serviços. Também este discurso é já antigo; remonta à fase da "descolagem" fordista após a Segunda Guerra Mundial. Fourastié já era um arauto não só da sociedade do tempo livre que se aproximava, mas também da sociedade dos serviços que despontava. E tão ingenuamente optimista estava num aspecto como no outro:

 

"As fábricas já começam a esvaziar-se: a migração das profissões primárias para as terciárias vai de par com uma profunda transformação nas profissões secundárias e terciárias, e um aumento espantoso das qualificações profissionais [...] Normalmente, a migração para profissões mais qualificadas ocorre em primeiro lugar porque, em média, as profissões do sector terciário exigem maiores conhecimentos profissionais do que as profissões dos sectores secundário e primário; mas também porque, em cada profissão, o trabalho se torna mais 'científico' de ano para ano [...]" (Fourastié, sem data/1965, 80ss.).

 

Se o tempo livre e as qualificações profissionais em geral estão a aumentar ao mesmo tempo, as pessoas estão naturalmente a tornar-se mais exigentes, diz Fourastié. Ele vê assim emergir um campo social tremendo para "actividades intelectuais e artísticas" (op. cit., 94s.), que, por sua vez, tornará possíveis novos sectores da indústria do tempo livre e, portanto, do "emprego". O sociólogo de Harvard Daniel Bell acabou por se tornar um clássico deste debate sobre a transformação com o seu estudo sobre "O advento da sociedade pós-industrial", publicado pela primeira vez em 1973. Depois de excluir categoricamente outras grandes crises do capitalismo, num debate tão redutor como chato com Marx, Bell prevê um futuro de serviços bastante promissor:

 

"A sociedade pós-industrial [...] baseia-se em serviços, ou seja, é um jogo entre pessoas. Nele, a força muscular ou a energia contam menos do que a informação. A figura mais importante é o académico que, em virtude da sua educação e formação, traz consigo as competências cada vez mais necessárias. Se o nível de vida da sociedade industrial era medido pela quantidade de bens, a qualidade de vida da sociedade pós-industrial é medida pelos serviços e comodidades – saúde e educação, recreação e artes – que agora parecem desejáveis e acessíveis a todos [...] As viagens, o entretenimento e o desporto descolam, pois à medida que os horizontes se alargam, o mesmo acontece com as novas necessidades e preferências das pessoas. Mas depois uma nova consciência se cristaliza gradualmente. A expectativa que os indivíduos têm da bela vida prometida pela sociedade põe em foco as duas áreas cruciais para tal vida, a saúde e a educação. Com a eliminação da doença, o aumento da longevidade e a tendência para continuar a aumentar a esperança de vida, os cuidados de saúde estão a emergir como o sector decisivo da sociedade moderna. Ao mesmo tempo, à medida que a exigência de competências técnicas e profissionais aumenta com a entrada na fase pós-industrial, a escolaridade e o ensino superior generalizados tornam-se pré-requisitos para o progresso na sociedade. Assim, estamos a assistir ao aparecimento de uma nova intelligentsia constituída principalmente por professores. E finalmente, a procura de mais serviços, a necessidade de um ambiente decente e de melhores serviços de saúde e de educação – exigências que o mercado só inadequadamente pode satisfazer – leva à expansão das instituições públicas, especialmente nos Estados federados e nos municípios, onde estas necessidades têm de ser satisfeitas. A sociedade pós-industrial é assim uma sociedade 'comunal', na qual menos o indivíduo do que a comunidade constitui a unidade social de base [...]" (Bell 1985/1973, 134ss.).

 

Em 1999, tudo isto se lê só como mera zombaria. Fourastié e Bell tinham em mente, evidentemente, as estruturas do boom fordista, que simplesmente extrapolaram para o futuro – um erro típico do pensamento académico condicionado pelo capitalismo. Deste ponto de vista, se a produtividade tivesse continuado a aumentar, as infra-estruturas industriais fordistas que então levaram ao processo de "terciarização" poderiam ter-se expandido cada vez mais no sentido dos serviços culturais, serviços de saúde etc. A fase da Terceira Revolução Industrial de automação e racionalização por eliminação da força de trabalho industrial teria depois produzido um mundo de centros de educação de adultos e eventos culturais, assistentes sociais e professores, médicos e instituições de assistência de todos os tipos para as "comodidades" de uma humanidade amplamente libertada para a felicidade do tempo livre.

Bell sucumbe a uma ilusão de óptica porque, tal como Fourastié, percebe a mudança estrutural apenas superficialmente, em termos sociológicos, pressupondo cegamente a relação económica subjacente, em vez de a analisar criticamente na sua potencialidade de crise. O que ele considera ser uma substituição gradual da sociedade industrial por uma sociedade de serviços foi na realidade apenas um efeito secundário temporário do boom industrial fordista, que teve de se extinguir juntamente com ele. Esta ascensão aparentemente imparável do mundo do tempo livre, da educação e da saúde não pôs em marcha uma nova acumulação própria de capital para além do boom industrial, mas foi apenas apoiada por este, enquanto este ainda não tinha terminado o seu percurso. Isto pode ser demonstrado de várias maneiras.

O grande impulso mundial da "terciarização" nos anos 70 concentrou-se de facto nos sectores da saúde, da educação e social. Mas estes mesmos sectores eram, afinal de contas, em grande parte instituições estatais ou semi-estatais. Para Bell, a "insuficiência do mercado" e o mundo keynesiano de "deficit spending" permanente são ainda tão óbvios que um futuro terciário de "instituições públicas" extensas e diversificadas, mesmo de uma "sociedade comunal" para além do individualismo do consumo fordista, lhe parece praticamente já assegurado. Sobre a questão da "financiabilidade", expressa muito poucos e superficiais pensamentos, em algumas páginas de uma argumentação sobre os "limites da mudança" (Bell, op. cit., 158). Ele atribui mesmo a onda inflacionária já em curso, que viria a matar o keynesianismo dentro de poucos anos, em grande parte aos "estratagemas (!) do Presidente Johnson" (op. cit., 160); e, como Ulrich Beck mais tarde, ele acredita que pode pôr de lado a questão sistémica com a observação de que é "altamente improvável" que estas questões "se tornem um problema de 'classes'" (op. cit., 169). A auto-contradição económica do capitalismo, o quadro comum de referência da "bela máquina" para todas as categorias sociais incluídas na mesma, permanece completamente escondida. O paradigma "pós-industrial" de Bell revela a estranhamente ignorante divisão do trabalho nas ciências sociais académicas: Enquanto os sociólogos extrapolam economicamente, sem fazerem ideia, estruturas sociais sobre cuja condicionalidade económica não percebem patavina, os economistas fazem desaparecer a crise nos cálculos do modelo matemático – até que a realidade da crise estraga os planos de ambos os tipos de falso optimismo.

Com o fim da regulação keynesiana acabaram os sonhos de uma sociedade de serviços "comunitária". O individualismo consumista fordista não está a recuar para trás dos "sectores públicos" de uma economia de educação e saúde; pelo contrário, está a radicalizar-se numa autodestrutiva concorrência de oferta de sujeitos económicos atomizados, enquanto os sectores de serviços públicos keynesianos estão a ser sistematicamente desmantelados, à medida que a "crise das finanças públicas" alastra. Cada vez mais reduzidos ao volume da solvência privada, os sectores da saúde e da educação nunca serão capazes de absorver o "emprego" industrial em colapso. Absurdamente, porém, o paradigma "clássico" da sociedade de serviços de Bell, desligado do seu contexto profundamente keynesiano, foi desesperadamente retido no discurso sócio-económico pós-keynesiano da esperança. Agora, de repente, é suposto serem os outros sectores de serviços comerciais que transportam uma verdadeira acumulação de capital "pós-industrial". Mas é precisamente em áreas centrais dos serviços comerciais como o comércio e a banca que a racionalização micro-electrónica começa a tomar forma, tal como na indústria, e mesmo os restantes sectores estatais e municipais não são poupados a esta opção de política de redução de custos, como demonstram estudos recentes utilizando o exemplo da RFA:

 

"Na próxima década, de acordo com os peritos, perder-se-ão 6,7 milhões de empregos em todo o país no sector dos serviços. Os cientistas da Universidade de Würzburg chegaram a este 'cenário de terror' após meses de investigação. 'Ficámos chocados quando vimos os números', disse o Professor Rainer Thome da cadeira de Informática Empresarial numa entrevista à dpa. Os resultados da investigação, compilados pelo assistente de investigação de Thome, Boris Kraus, tinham sido originalmente apresentados num seminário especializado. 'A esperança comum de que o sector dos serviços resolva os problemas actuais no mercado de trabalho é falsa', disse Kraus. A causa da 'sombria' situação do emprego dos próximos dez anos reside nos efeitos esperados do moderno processamento de informação, disse ele. Até agora, disse, apenas alguns empregos foram eliminados pela deslocação de muitas actividades de serviços para o computador. Devido à pressão dos custos, no entanto, haverá 'mudanças maciças' no mundo do trabalho num futuro próximo. No seu estudo, Thome e Kraus incluíam três quartos dos quase 22 milhões de empregos no sector dos serviços. No sector retalhista, um em cada dois dos 3,4 milhões de postos de trabalho estudados será substituído por caixas automáticas, métodos de pagamento electrónico e compras pela Internet. Na administração pública, 2,6 milhões de empregos serão eliminados pela burótica. De acordo com Kraus, o maior impacto será na indústria bancária. Oitenta por cento do negócio bancário são processos repetitivos sem aconselhamento, que podem ser completamente automatizados. Isto significa que 61% dos 772 000 empregos serão perdidos no futuro. 'Ameaçados são empregos com funções normais de escriturário, onde apenas pura informação é reunida', disse Kraus. Os cientistas declaram que não têm uma solução [...]" (Deutsche Presse-Agentur, 11.6.1997).

 

De facto, o Deutsche Bank, a maior instituição financeira deste país, já cortou 20% do pessoal só entre 1993 e 1996, e não há fim à vista. Entretanto, este processo está também a afectar outros sectores financeiros e de seguros; a Associação Federal dos Bancos Populares e Cooperativos Alemães anunciou que 7000 dos 17 000 balcões ainda existentes deverão ser encerrados até 2008 (Handelsblatt, 27 de Maio de 1999). E "comprar em lojas sem vendedores" já teve os primeiros testes:

 

"No Japão, o comércio retalhista está actualmente a testar em alguns sectores lojas totalmente automatizadas, onde não se encontram empregados [...] A loja está dividida em quatro áreas. As mercadorias são expostas numa área, encomendadas numa segunda, pagas numa terceira e finalmente entregues numa quarta [...] Outro projecto deste tipo teve início há algum tempo no sector do aluguer de vídeo. O sistema funciona de forma semelhante aos ATM actualmente operados pelos bancos [...] A parte essencial [...] é uma máquina totalmente automatizada que funciona como uma empilhadora [...]" (Frankfurter Allgemeine Zeitung, 19.3.1997).

 

O mesmo se aplica a outras áreas do sector terciário, tais como o turismo, a indústria da restauração, cinemas etc. e, por outro lado, aos chamados "serviços prestados às empresas", tais como consultores fiscais e contabilistas, consultores de gestão, arquitectos, planeadores técnicos, empresas de aluguer de automóveis e de máquinas, empresas de transporte e logística, fornecedores de serviços de processamento de dados, agências de publicidade, "gestão de eliminação de resíduos" etc. Por um lado, existe também um enorme potencial de substituição microelectrónica do trabalho humano nestes sectores: "Em princípio, a maioria dos serviços orientados para as pessoas podem ser tecnicamente reproduzidos e racionalizados" (Bender/Graßl 1997). Por outro lado, os sectores dos serviços também estão em declínio em resultado da redução do emprego noutros locais e da redução do poder de compra e da procura dos consumidores na sociedade como um todo. A crise económica mundial já tinha mostrado como os grandes aumentos da pobreza arruínam os restaurantes e as cervejeiras, porque a procura encolhe drasticamente. Os donos de restaurantes não podem servir cerveja uns aos outros. O turismo é também uma "produção secundária de mercadorias" que permanece dependente do poder de compra industrial de massas. Este sector em particular ainda não entrou em colapso, apesar do crescente desemprego em massa, apenas porque muitas pessoas tendem a passar sem outras coisas, ou a financiar as suas próximas férias não a partir do rendimento actual mas sim das suas poupanças. No entanto, este consumo não pode ser suportado pelas poupanças durante muito tempo. Tanto em termos de procura como de racionalização, as fissuras no turismo (um dos últimos sectores do boom) já são visíveis:

 

"A procura de ofertas baratas está a tornar-se cada vez mais frenética. Nos últimos anos, a indústria do turismo tem sido em grande parte poupada à crise económica, mas isso mudou. 'Agora as pessoas também começam a poupar nas férias', diz a gerente de agência de viagens Ingrid Ziegler. Isto significa que as perspectivas de futuro nas profissões turísticas estão a piorar. A Hapag-Lloyd, por exemplo, já quase não aceita estagiários – embora apenas os melhores possam obter um lugar [...] Os desenvolvimentos técnicos mudaram fundamentalmente o trabalho dos cerca de 55 mil empregados de operadores turísticos e agências de viagens nos últimos anos [...] Já hoje os utilizadores da Internet podem reservar eles próprios os seus bilhetes de comboio e de avião. Dentro de cinco anos (não só) todos os bilhetes mas também muitos pacotes de férias serão comprados em casa no computador [...] As consequências deste desenvolvimento para as empresas ainda não são previsíveis" (Hoffmeyer 1997).

 

Mesmo directamente dependentes do sector industrial estão, evidentemente, os "serviços prestados às empresas", cuja expansão nos últimos anos em grande parte tem constituído não novos sectores de emprego adicionais, mas na realidade a externalização (outsourcing) de departamentos originalmente internos, tais como frotas de veículos, processamento de dados etc. Esta reafectação gera por si só efeitos de racionalização, como até é orgulhosamente salientado, de modo que a expansão de tais operações de serviços relacionados com as empresas está intrinsecamente mais ligada à redução global de empregos na sociedade do que a uma transformação "pós-industrial" bem sucedida da sociedade capitalista do trabalho.

Em suma, pode dizer-se inequivocamente que o sector terciário não pode formar uma nova era de acumulação de capital "pós-industrial" e, por conseguinte, não pode fornecer um refúgio para o maciço desemprego estrutural à escala global. A médio prazo, a Terceira Revolução Industrial irá racionalizar por eliminação o "emprego" em quase todos os sectores dos serviços tanto como na própria indústria. As consequências indirectas da revolução microelectrónica são quase mais fortes nos serviços do que na indústria, porque aqui não são apenas as empresas individuais que competem entre si, mas sectores inteiros, enquanto produção de mercadorias a jusante (ou como sectores dependentes do Estado), que são cortados da sua procura pelo desemprego industrial maciço. A reacção em cadeia da crise, que nos países ocidentais ainda não teve um impacto total no sector dos serviços, também a este respeito não se fará esperar.

Mas qual é o grande erro do pensamento de teóricos como Fourastié e Bell? Tentaram explicar o desenvolvimento histórico da estrutura social, comparando a alegada mudança de "sociedade industrial" para "sociedade de serviços" com a grande convulsão da própria industrialização: Tal como em tempos houve a transição epocal de uma sociedade agrária para uma sociedade industrial, assim foi a discussão, agora haveria uma transição igualmente profunda para uma sociedade de serviços. Claro que é verdade que a Terceira Revolução Industrial tornou as actividades humanas supérfluas numa medida sem precedentes em todo o campo da reprodução material. E faria realmente sentido se as muitas pessoas que já não são necessárias no processo de produção industrial fossem empregadas nos sectores da saúde e da educação, ou no planeamento de viagens, exposições de arte, eventos desportivos etc. Mas a lógica da economia empresarial também a este respeito estraga os planos do bom senso.

A falsa esperança de que o "emprego" capitalista possa ser deslocado do sector industrial para o sector terciário baseia-se na mesma falácia que a esperança de um aumento ilimitado do tempo livre sob o capitalismo graças ao aumento da produtividade: em ambos os casos, os potenciais "naturais" e técnico-materiais são considerados sem ter em conta as relações económicas do capitalismo (que são tidas como naturais). Os termos "sociedade agrária", "sociedade industrial" e "sociedade de serviços" carecem obviamente da dimensão económica; limitam-se a designar em cada caso a principal forma concreta de actividade humana no processo de reprodução. Mas não adianta nada sobre a verdadeira evolução socioeconómica se nos limitarmos a saber que as pessoas estavam ocupadas principalmente com a agricultura, depois com a produção industrial, e agora seria a vez dos serviços.

Este falso "naturalismo" esquece o facto de que a transição histórica da sociedade agrária para a sociedade industrial foi uma ruptura radical na forma geral de reprodução e, portanto, em todas as relações socioeconómicas: não foi uma transformação dentro do capitalismo, mas o próprio processo de formação da "bela máquina" moderna. O modo de produção agrícola, em grande parte de economia natural, foi substituído pelo desencadeamento da economia monetária até então marginal, a economia em grande parte local foi substituída por mercados anónimos em grande escala, e o Estado moderno tomou o lugar da auto-administração camponesa e de elementos da dominação feudal. É ingénuo presumir que a transformação para uma sociedade de serviços poderia ter lugar dentro do capitalismo, sem qualquer ruptura radical semelhante à da transição da sociedade agrária para a sociedade industrial. Não haverá capitalismo de serviços no sentido de uma grande transformação social.

Contudo, os ideólogos do capitalismo, como não querem aceitar este facto, estão entretanto a recorrer a uma opção final que é tão desesperada quanto impertinente: se não pode haver uma saída para um "emprego" generalizável através de empresas de tempo livre e educação, serviços de saúde e agências de arte etc., então os "empresários individuais da sua força de trabalho" devem simplesmente contentar-se com o que o mundo fracassado dos serviços ainda oferece: Na qualidade de empregados domésticos escravos dos de altos rendimentos, terão infelizmente de cumprir o seu dever por alguns tostões ou por uma refeição quente. É uma ironia perversa deste debate absurdo o facto de ele virtualmente virar de pernas para o ar o argumento histórico original de Daniel Bell. Para melhor clarificar o significado do seu conceito de "sociedade pós-industrial", Bell comparou as suas características hipotéticas com as de formações anteriores, chegando ao seguinte no que diz respeito à sociedade pré-industrial e à sociedade industrial inicial:

 

"Devido à baixa produtividade e às altas cifras populacionais, há muitas pessoas subempregadas que normalmente procuram encontrar colocação na agricultura e como empregados domésticos. Assim, a proporção de profissões de serviços, principalmente sob a forma de serviços pessoais ao domicílio, é bastante elevada. Uma vez que os indivíduos se preocupam frequentemente apenas com a pura subsistência, os criados são baratos e a oferta é grande [...] Em Inglaterra, por exemplo, os criados domésticos constituem de longe a maior categoria profissional da sociedade até meados da era vitoriana. Mesmo pobres diabos como Becky Sharp e o Capitão Rawdon Crawley no romance de Thackeray “Vanity Fair” mantêm-se como criados [...]" (Bell, op. cit., 133).

 

Quando Bell escreveu estas linhas há 26 anos atrás, provavelmente nunca imaginou que o debate sobre a "sociedade pós-industrial" iria um dia ficar tão descontrolado que defenderia com toda a seriedade o regresso às relações sociais dos séculos XVIII e XIX. Uma amostra da qualidade do emprego doméstico em lares de classe média na RFA é fornecida por relatórios sobre o tratamento de raparigas Au Pair:

 

"A lituana Danuta é trazida para o país com um contrato Au Pair elaborado a título privado. As duas crianças de quem ela devia cuidar acabam por ser dois cães. Danuta é responsável por passear os cães durante um ano [...] À noite e aos fins-de-semana ela não pode sair porque [...] os seus pais anfitriões [...] pôem Danuta como empregada de mesa e como cozinheira [...] A russa Ira, numa família com duas crianças em Offenbach, tem de dormir no quarto das crianças entre a mesa de muda e o armário; não há privacidade [...] A lituana Gedra trabalha com uma família em Kronberg, perto de Frankfurt. Porque a dona-de-casa pensa que a jovem come demais, a comida é racionada. Um vizinho, que repara que a rapariga está cada vez mais magra, alimenta-a [...] As três raparigas da Europa de Leste, Mascha, Vika e Ala, que vêm uma após a outra para viver com uma família na zona do Reno-Meno, relatam que ouvem regularmente um clique no seu quarto quando se mudam. Acontece que vem de uma câmara telecomandada utilizada pelo dono da casa [...]" (Süddeutsche Zeitung, 5.11.1999).

 

Pode-se imaginar que condições prevalecerão quando a "administração do trabalho" capitalista tiver conseguido privar os "supérfluos" de todos os direitos sociais e empurrá-los para uma existência de domésticos miseravelmente remunerada. Ainda hesitante e como que à espera para ver se uma reacção furiosa não chegará, mas cada vez mais impetuosa, a velha consciência burguesa de membro da raça de senhores vê uma oportunidade à maneira pós-moderna:

 

"Recentemente em Nova Iorque, por exemplo: o tempo estava mau, os sapatos sujos, um engraxador de sapatos pronto a servir. Ele transforma rápida e amavelmente os sapatos em cartões de visita apresentáveis para a sua utente. E não mostra o mínimo indício de embaraço porque dobra as costas na rua (!). Em vez disso, a cliente está atormentada por dúvidas. Será isto apropriado? Ter os seus sapatos engraxados logo por um homem de cor (!)? Servir inclui sempre a sua contrapartida: ser servido. Também tem de se aprender isto [...] As donas de casa também parecem passar um mau bocado. Inexperientes na arte de lidar com o pessoal (!), acreditam que têm de provar que estão livres de qualquer pensamento de classe, tomando café durante horas com as empregadas de limpeza. Porquê realmente? Porque não admitir que existem pessoas mais pobres e mais ricas, mais burras e mais inteligentes, desfavorecidas e privilegiadas? [...]" (Sommerhoff 1997).

 

Porque não admitir que tamanha insolência merece uma tareia? Que mundo imaginário: uma casta com rendimentos elevados protegida em guetos de luxo fortemente vigiados; patrulhas policiais fortemente armadas de tolerância zero em todo o lado; as massas "supérfluas" de pessoas, em parte na prisão ou em campos de trabalho, em parte servindo como empregados domésticos cumpridores. É exactamente assim que tem de parecer a fase final da democracia. E tudo isto apenas porque o capitalismo já não consegue comprimir na sua forma as tremendas forças produtivas da Terceira Revolução Industrial.

Mas é precisamente por isso que todo o discurso dos serviços, mesmo na sua maldosa forma decadente, se revela totalmente ilusório. Não há tantos novos ricos a ganhar melhor que pudessem fazer das massas de milhões de desempregados e caídos fora o seu "pessoal" de serviço. Pelo contrário, os futuros proprietários de escravos são eles próprios economicamente apenas "homens mortos de férias", que em princípio já podem, justificadamente, preparar-se para ter de pegar na caixa de engraxar sapatos e na esfregona num futuro próximo. O que os EUA já demonstraram está agora a espalhar-se rapidamente pela Europa – o declínio social da classe média:

 

"Que algo mudou é sentido por todos aqueles que até agora tiveram de lidar com os representantes dos estratos marginais da sociedade – e que de repente se vêem confrontados com pessoas que até recentemente pertenciam à classe média [...] Os políticos e economistas estão alarmados. A classe média agora afectada – empregados dedicados, empreendedores trabalhadores por conta própria, mas também trabalhadores qualificados bem pagos – constituiu a espinha dorsal da sociedade alemã do pós-guerra durante décadas [...] Os sociólogos estão a registar um medo crescente de colapso entre a classe média. O receio é justificado, dizem os peritos do Instituto Alemão de Investigação Económica: 'O risco de pobreza atinge hoje amplamente os escalões de rendimento médio' [...]" (Der Spiegel 40/1997).

 

 

Original Die Fata Morgana der Dienstleistungsgesellschaft, pags. 402-408 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (6.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

 

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