Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 8

História da Terceira Revolução Industrial

 

 

Secção 7

Capitalismo de casino: o dinheiro fica sem trabalho

Tendo em conta a situação socioeconómica global e o constante derretimento do "emprego" rentável, surge naturalmente a questão de saber de que fontes se alimenta ainda a acumulação de capital. Pois, quanto maior é a massa dos desempregados e mais vastos sectores da humanidade se tornam indigentes, melhor parece ser a situação do capital. Trata-se de uma pseudonormalidade desconcertante, decididamente a meio de processos de decadência social, fingindo uma robustez do capitalismo que há muito deixou de existir. Em parte, é claro, esta face rosada exterior explica-se pelo desaparecimento de qualquer contramovimento social. No "intermúndio" entre os modelos descontinuados de movimentos sociais imanentes ao sistema ou sustentados pelo capitalismo de Estado/socialismo de Estado e uma crítica radical qualitativamente nova do sistema que ainda não apareceu em cena, mesmo as contradições e condições sociais de bradar aos céus permanecem por enquanto socialmente "mudas". E assim o que aparece é apenas um absurdo mundo ilusório de "economic correctness", no qual alunos modelo do mercado livre recitam em voz alta as lições aprendidas de cor, gestores em mangas de camisa flexionam os músculos em público, e "histórias de sucesso" capitalistas são apresentadas e devoradas ao estilo duma imprensa tablóide generalizada.

Enquanto a pobreza maciça e o terror contra os caídos fora estão a alastrar, estamos simultaneamente perante uma encenação tão omnipresente como tola de uma nova "era fundadora". Economicamente, isso é mesmo verdade em certa medida; é certo que não no sentido em que é oficialmente apresentado, como uma milagrosa actividade "criadora de emprego" de imaginativos "fundadores de novos negócios". Para além talvez de alguns nichos insignificantes de "políticas de mercados de trabalho", para uma certa cena ao estilo pós-moderno de habilidosos do computador socialmente alheados (software, design de Internet etc.), trata-se em geral de uma galeria de singularidades. O que é apresentado, por exemplo, na revista económica alemã "Wirtschaftswoche" sob o título "Schumpeter" como exemplos de fundadores, desde a gestão remota de concertos ao ar livre na China até à organização de casamentos ostensivos para os de mais altos rendimentos, é uma verdadeira sátira do esperado capitalismo dos serviços. Mas, num sentido completamente diferente, é de facto uma nova "época da fundação" que provisoriamente deu ao capitalismo de crise da Terceira Revolução Industrial uma maquilhagem exterior saudável – nomeadamente sob a forma de uma renovada edição do seu "grande embuste".

Tal como no período anterior ao grande "crash da época da fundação" e antes da "sexta-feira negra" da crise económica mundial, desde o início dos anos 80 que o limite interno da acumulação real de capital (a valorização rentável da energia do trabalho na economia empresarial) tem sido disfarçado com a passagem do capitalismo para a fase de uma "acumulação fantasma" de puro capital financeiro. Mas, se o desacoplamento dos mercados financeiros da acumulação económica real de capital nos anos anteriores a 1929 já tinha ultrapassado de longe o processo análogo nos anos de 1870 em volume e alcance, o novo "capitalismo de casino" pós-moderno está agora a rebentar todos os limites e a assumir dimensões completamente novas, tanto quantitativa como qualitativamente. E isto é apenas lógico; pois o dimensionamento da criação financeiro-capitalista de "capital fictício" (e do inevitável "crash" subsequente) é a imagem espelhada do estado de desenvolvimento capitalista das forças produtivas e da conexa plena capitalização das relações sociais.

Assim, a bolha especulativa da época da fundação correspondia ao estado da Primeira Revolução Industrial, em que o movimento de valorização do dinheiro era ainda relativamente limitado em muitos aspectos, tanto a nível nacional como internacional. E o boom especulativo da década de 1920, que entrou em colapso na "sexta-feira negra" em 1929, pertencia à fase de incubação da Segunda Revolução Industrial, que já pressupunha um maior grau de socialização capitalista; é por isso que a "ficcionalização" financeiro-capitalista da economia, como substituto fictício do boom fordista inicialmente ausente, teve também uma dimensão correspondentemente maior do que 60 anos antes e atingiu maior força à escala global, embora a interconexão económica real através do mercado mundial tivesse mesmo diminuído. Finalmente, o "capitalismo de casino" no fim do século XX é o produto inevitável da Terceira Revolução Industrial; a "ficcionalização" financeiro-capitalista não só tem agora lugar num sistema mundial capitalista abrangente e amplamente sincronizado em termos económicos, mas também tem de simular a acumulação adicional de um stock de capital ampliado muitas vezes pelo surto de crescimento fordista.

Esta nova qualidade vê-se desde logo no carácter da crise do mercado de trabalho. Pois o novo desemprego estrutural maciço à escala mundial, que pela primeira vez também afecta toda a periferia, não é, como depois de 1929 (e de forma muito limitada depois de 1873), apenas a consequência do colapso do capital financeiro, mas já se está a desenvolver de antemão, paralelamente ao boom ilusório da acumulação "ficcionada" por títulos financeiros. Por outras palavras, o fosso entre as potências produtivas e as "leis do mercado" está a aumentar como nunca antes. Por um lado, a Terceira Revolução Industrial sob a forma capitalista está a gerar uma onda global de imensa pobreza maciça; por outro lado, a potência produtiva está a ser aumentada numa escala sem precedentes. O resultado, correspondentemente, são enormes "sobrecapacidades" globais na economia real. Há uma crescente concorrência feroz e ondas de falências; a rentabilidade do investimento real adicional cai acentuadamente em relação à massa do capital monetário já acumulado, porque de qualquer modo já foram construídas demasiadas capacidades de acordo com os critérios capitalistas. Para que todo o sistema mundial não entre em colapso, a "ficcionalização" financeiro-capitalista tem de mover uma massa incomparavelmente maior de "capital fictício" em relação às duas anteriores bolhas especulativas – analogamente ao correspondentemente maior aumento da produtividade através da microelectrónica. O desemprego maciço e a pobreza maciça estruturais, agora já abertamente visíveis, são um indicador da fantástica medida em que está a ser inflado "capital fictício" para poder simular um processo de acumulação a continuar desenfreado.

O problema que está a ser abertamente expresso com a Terceira Revolução Industrial é a identidade interna até agora escondida entre "capital" e "trabalho". Na abordagem imanente ao sistema e sociologicamente redutora, apenas se via sempre a oposição externa dos interesses destas categorias sociais, mas não a sua identidade económica, como a forma e a substância do processo de valorização. Enquanto a (domesticada) luta de interesses da "classe operária" ainda tivesse um elemento historicamente excedente no sentido de um maior desenvolvimento do sistema, e o "trabalho" abstracto pudesse ser ideologizado como uma condição "natural" e supra-histórica da humanidade, poderia parecer que o "trabalho" podia emancipar-se do "capital" e depois continuar a funcionar por si só; esta era, afinal, a ilusão básica do marxismo do movimento operário e dos sistemas de capitalismo de Estado da modernização atrasada. Agora, no limite histórico do desenvolvimento capitalista, onde a luta de interesses imanente ao sistema está paralisada, de repente, perante as dimensões sem precedentes dos processos de simulação do capital financeiro, parece inversamente que o "capital" poderia, por assim dizer, continuar a acumular-se por si só – uma ilusão nada menor.

Juntamente com as massas de pessoas "supérfluas", o dinheiro está também a ficar "sem trabalho" e assim "dessubstanciado". Isto não é novidade, na medida em que já as economias de guerra do século XX e o "milagre económico" do pós-guerra (pelo menos no seu prolongamento e excedente) só foram possíveis através de um financiamento a crédito constantemente alargado – ou seja, através da "antecipação monetária do futuro", da futura "criação de valor" e de rendimentos futuros cujo adiamento era cada vez maior. Isto reflectia a dupla e historicamente crescente autocontradição lógica do capitalismo: em primeiro lugar, ter de acumular permanentemente "quanta de trabalho" abstracto sob a forma de dinheiro como fim-em-si mesmo, enquanto o "trabalho" vai sendo sucessivamente tornado supérfluo; e, em segundo lugar, com a crescente socialização, gerar negócios capitalistamente cada vez mais "improdutivos", ou "custos gerais" da economia de mercado, que tendem a exceder a mais-valia produzida e que, em todo o caso, já não podem ser alimentados a partir dos rendimentos correntes.

Os dois momentos da contradição indicam que tanto as forças produtivas como o grau de socialização cada vez menos podem ser cativados na forma do dinheiro; e ambos tiveram, portanto, de manifestar-se como crises do dinheiro a partir de um certo grau de desenvolvimento. Enquanto o sistema industrial de bola de neve ainda não se tinha esgotado, a primeira autocontradição apareceu nos deflacionários "desfasamentos" e quebras estruturais do desenvolvimento industrial, sendo que a segunda autocontradição se caracterizou sobretudo pelas crises inflacionárias das economias de guerra e estatais. Em ambos os casos, a Terceira Revolução Industrial paralisa o movimento que dinamiza a contradição. Agora a substituição da força de trabalho humana chegou finalmente tão longe que os produtos industriais representam realmente "trabalho" apenas numa dose homeopática e, por conseguinte, tornaram-se realmente "sem valor" no sentido da economia capitalista.

Em termos capitalistas, os produtos não "contam" como quantidade de bens de uso, mas como representação de quanta de "trabalho" abstracto (sob a forma de dinheiro), que têm de aumentar constantemente; é precisamente este o fim-em-si do processo de valorização. Não basta, portanto, que grandes massas de força de trabalho humana continuem a ser utilizadas na produção, muito mais do que em 1873 e em 1929. Para o processo de acumulação, a acumulação de quanta de trabalho e, com ele, de dinheiro, tem de continuar sempre a partir do nível já alcançado, e já não o pode fazer, porque a revolução microelectrónica racionaliza e elimina permanentemente mais "trabalho" abstracto do que o reabsorvido através da produção expandida. O mesmo se passa com os produtos: Não é suficiente que continuem a ser produzidos em grandes quantidades e (a nível material) mesmo em números crescentes, pois, como o valor de cada produto individual foi reduzido pela racionalização e automatização mais do que a produção comercializável pode ser expandida, mesmo o aumento da produção de produtos já não produz uma acumulação real de capital. Para poder representar uma expansão da massa real de valor, a produção teria agora de ser aumentada numa dimensão imensa que já é fisicamente impossível; independentemente do facto de (como reverso do mesmo processo) já nem a procura nem o poder de compra poderem ser mobilizados nessa dimensão.

Ao mesmo tempo, o complexo infra-estrutural cresceu em todos seus aspectos de tal modo que ele próprio, mesmo no caso de uma criação de valor real efectivamente expandida, que por sua vez se tornou ilusória, já não poderia ser representado por uma quantidade de valor desviado, ou seja, já não poderia ser "financiado" em termos reais. Em suma, isto significa que a continuação da reprodução da sociedade sob a forma capitalista já não é apenas temporariamente que aparece como uma ficcionalização do capital financeiro, pelo contrário, já só é possível em geral como um processo de simulação monetária. Na extensão do boom fordista para além dos seus próprios limites, tinha sido inicialmente o “deficit spending” público que tinha sustentado esta simulação. Quando a regulação keynesiana entrou em colapso na nova crise inflacionista, no início dos anos 80, para se "continuar no ar" os cavalos tiveram de ser mudados, por assim dizer – a simulação monetária já não podia continuar na forma mediada pelo Estado, mas em vez deste entrou a forma privada de antecipar o futuro "trabalho" e o futuro rendimento monetário através da contracção de empréstimos. Na interface desta transição, Ralf Dahrendorf deu vazão ao seu mal-estar, num ensaio com uma argumentação perplexa sobre o ar da "economia do como-se":

 

"Diligência, parcimónia, renúncia ao consumo, disciplina – estas são as palavras familiares do mundo burguês [...] Não se pode gastar o que não se tem. Nada se consegue sem trabalho. Quem enuncia os ditos piedosos que movem este mundo? De resto ainda o mundo do milagre económico do pós-guerra. Isso era verdade mesmo num sentido técnico-económico. A produtividade aumentou sempre mais rapidamente do que os salários reais. A economia cresceu porque o que as pessoas nela colocavam em trabalho e capital estava sempre alguns passos à frente do que dela obtinham em salários e lucros. Foram passos bastante grandes. Nunca antes na história houve um crescimento tão elevado e sustentado na economia nacional [...] Talvez tenha sido isso o início da desgraça. Porque, nos anos sessenta, os desejos dos consumidores apanharam as possibilidades de produção. O primeiro sinal generalizado foi provavelmente a compra a prestações [...] As instituições cresceram em torno deste novo procedimento. Não só há bancos para pagamentos a prestações, mas todos os bancos e caixas económicas se adaptaram ao novo procedimento [...] Em todo o caso, as letras de câmbio sobre o futuro estão a tornar-se cada vez mais um negócio encaixado: se não puder dar uma garantia para o contrato com a sociedade de construção, subscreve uma apólice de seguro de vida. O seguro é por sua vez ressegurado, e assim por diante. O que é seguro para o indivíduo é barato para as empresas e para as autoridades públicas [...] Nas últimas duas décadas, ocorreu uma mudança tremenda perante os nossos olhos: Do capitalismo de austeridade passámos, inconscientemente, ao capitalismo a crédito. Enquanto durante muito tempo o motor do desenvolvimento económico foi o trabalho e a produtividade crescente – ou seja, um excedente de produção – hoje é o consumo e o endividamento crescente, ou seja, um excedente de fruição. Não é a poupança mas o empréstimo que mantém a economia [...] Não será toda a insistência no trabalho duro e na poupança tão absurda como, digamos, a cobertura em ouro da moeda? [...] De facto, os lembretes ocasionais dos valores originais das modernas sociedades do crescimento têm algo de antiquado, mesmo perverso [...] Será que esses lembretes não vêem que, no momento em que a dívida cessa, não só os benefícios sociais chegam ao fim, como todo o processo económico entra em colapso? No capitalismo a crédito, a ‘retoma’ só pode significar que mais é emprestado, mais é comprado antecipadamente. Esta é a ‘contradição cultural do capitalismo' (como Daniel Bell lhe chama), que como forma económica se baseia hoje em valores cuja aplicação deve levar ao seu colapso ... No entanto, a suspeita de que o capitalismo a crédito não pode continuar para sempre não pode ser simplesmente descartada [...] Num aspecto importante, a economia orientada para o consumo é uma economia do "como-se": cria constantemente valores cuja realidade está rodeada de pontos de interrogação [...] Existe apenas uma ténue linha entre a prosperidade e a falência [...] A fraqueza mais profunda da economia do como-se é o jogo de azar com o futuro [...] Simplesmente não fique à espera, senão todas as rodas e correias ficarão paradas. E o futuro é apenas o tempo em que se paga pelo desfrutado ontem e anteontem [...] Não há motivo para moldar o futuro, porque tudo o que de agradável ele poderia trazer já aconteceu. O futuro é apenas um fardo [...]" (Dahrendorf 1984).

 

Isto só pode significar que o capitalismo já não tem futuro. É claro que Dahrendorf não tira esta conclusão. Nota-se como ele gostaria realmente de invocar os velhos valores protestantes da acumulação real, contra o duvidoso "capitalismo a crédito" emergente e a sua aérea "economia do como-se". Um ano antes, ele próprio já tinha lançado a estranha argumentação da concorrência de desvalorização entre o progresso técnico e os salários do trabalho, que mais uma vez ecoa aqui na memória melancólica do tempo do milagre económico, em que "a produtividade aumentava mais rapidamente do que os salários reais". Mas isto não é propriamente um critério de "seriedade" capitalista. Pois, nos quinze anos desde a argumentação de Dahrendorf em 1984, a produtividade da microelectrónica disparou, enquanto no mesmo período os salários reais a nível mundial caíram como nunca. De acordo com o argumento de Dahrendorf, um boom correspondente no investimento real deveria ter-se desenvolvido a partir daqui, com o subsequente "pleno emprego" e um novo milagre económico. Aconteceu exactamente o contrário, precisamente porque a produtividade microelectrónica abandonou definitivamente os mercados e o antigo mecanismo da "oferta" de Say já não se mantém.

A rápida queda da parte dos salários do trabalho no "rendimento nacional" sob a pressão do desemprego estrutural maciço conduziu assim a lucros cada vez maiores, mas não a correspondentes reinvestimentos reais mais elevados em capital físico e "postos de trabalho" adicionais, embora esta ilusão (o credo oficial na economia "do lado da oferta") ainda seja papagueada pelos políticos de todos os partidos apoiantes do Estado, apesar dos constantes fracassos, e seja tomada como justificação para mimar as empresas capitalistas com medidas de redistribuição económica do lado da oferta "de baixo para cima". Contudo, as empresas e os bancos, que sobrevivem na concorrência cada vez mais intensa pelo poder de compra real em retracção, estão a encontrar cada vez menos oportunidades de investimento lucrativo na economia real face às "sobrecapacidades" globais.

O que fazer com as massas de dinheiro quando os lucros estão (ainda) a borbulhar graças à queda dos salários reais e, além disso, o Estado está discretamente a encher os bolsos das grandes empresas? É "dinheiro quente", que de modo nenhum deve ficar parado, mas tem de ser ainda mais valorizado, de acordo com o fim-em-si capitalista. Embora seja precisamente nestes tempos de desintegração social que o consumo de luxo aumenta em paralelo com a pobreza maciça, os de grandes rendimentos e os upper ten não podem permitir-se tantos Porsches descapotáveis, relógios Rolex, iates e outros dispendiosos disparates exibicionistas como seria necessário para absorver o capital monetário que já não pode ser investido rentavelmente em termos reais. Então, onde colocá-lo? Bem, antes de mais nada é emprestado: aos Estados, às empresas e aos consumidores privados. Isto não foi possível nesta escala nem no período que antecedeu 1873 nem antes de 1929. Em primeiro lugar, o sistema monetário era muito mais pesado na altura, não havia um sistema de contabilidade electrónica nem uma rede nacional e internacional de instituições financeiras como existe actualmente. Em segundo lugar, porém, todos os "sujeitos económicos" eram ainda muito mais hesitantes e cautelosos em contrair empréstimos. A desinibição a este respeito só veio com as economias de guerra do século XX, a doutrina keynesiana e o boom fordista depois de 1950. Com uma velocidade crescente, a acumulação de capital, por assim dizer, acelerou à sua própria frente, sob a forma de crédito em constante crescimento ao Estado, às empresas e aos consumidores.

Desde que o serviço da dívida destes empréstimos ainda pudesse ser vagamente "atendido", porque o boom fordista mobilizava efectivamente força de trabalho em grande escala, tudo continuava a ser capitalistamente correcto, embora deste modo tenha sido acrescentada uma dimensão financeiro-capitalista adicional ao esquema industrial de bola de neve: nomeadamente, a alimentação do ciclo económico actual através de uma antecipação cada vez maior dos ciclos económicos futuros. O "capitalismo a crédito" de Dahrendorf tornou-se um lugar comum. Mas, com o fim do boom fordista, o fosso começou a aumentar também aqui: Por um lado, o sistema de crédito cada vez menos poderia "atender" o serviço da dívida pela mobilização real de força de trabalho no presente; a acumulação real começou a entrar em colapso. Por outro lado, o sistema de crédito inflou simultaneamente cada vez mais, com a acumulação de massas de dinheiro em busca de investimento que já não podiam ser reinvestidas rentavelmente. Nesta primeira fase da crise induzida pela Terceira Revolução Industrial (desde a segunda metade dos anos 70 até cerca de meados dos anos 80), o "capitalismo a crédito" adquiriu uma nova qualidade: agora a antecipação geral da criação de valor futuro começou a dividir-se entre vencedores e vencidos. Por outras palavras: Já não era o boom geral que se prolongava com a contracção de empréstimos, mas sim os perdedores da crise que se endividavam em dimensões precárias para poderem continuar a participar de algum modo na animada "vida económica".

Enquanto por todo o mundo massas de empresas vencedoras, com uma liquidez exuberante, empurravam capital monetário para o sistema de crédito, do mesmo modo se endividavam massas de empresas perdedoras, com balanços cada vez mais imprudentes. O crédito ao consumo, que surgiu nos EUA nos anos 20 na antecipação mal sucedida do boom fordista, e se tornou um fenómeno geral em todos os países capitalistas centrais (e em alguns casos também na periferia) após a Segunda Guerra Mundial, praticamente explodiu – justamente numa época de crescente desemprego estrutural maciço. Apenas a criação estatal de dinheiro na economia interna foi reduzida, sob a impressão dos surtos inflacionistas e da "revolução" microeconómica neoliberal, e começou o tempo dos cortes sociais e dos "programas de austeridade" sem fim. Para isso, porém, os Estados perdedores tiveram de manter a cabeça acima da água no mercado mundial, à semelhança das empresas perdedoras e dos trabalhadores assalariados com salários reais em queda, através de um dinâmico crescimento da dívida externa. E o sistema bancário e de crédito internacional, sentado em massas de liquidez "quente" não-investível, praticamente forçou os empréstimos aos Estados periféricos.

O resultado foi a "crise geral da dívida" dos anos 80, que não cessou até hoje. Numa densa sequência sem precedentes, as empresas entram em colapso sob o peso da dívida ou (especialmente no caso de grandes empresas) têm de ser (temporariamente) salvas por programas de emergência e resgate dos bancos credores ou do Estado – desde todo o sistema de caixas económicas dos EUA até ao grande banco francês Credit Lyonnais, desde a empresa metalúrgica de Frankfurt Metallgesellschaft até ao grupo sul-coreano Daewoo. Nos últimos 15 anos, acumulou-se em todo o mundo uma massa quase inimaginável de créditos malparados das empresas; uma bomba relógio que tem de ser desactivada a um ritmo cada vez mais rápido, através de injecções de liquidez cada vez maiores de instituições nacionais e internacionais, sem que se a consiga realmente desligar.

A situação não é diferente com o crédito ao consumo, cujo volume, no caso do campeão mundial respectivo, os EUA, igualou nos anos 90 toda a massa da dívida pública acumulada. Uma parte considerável deste crédito é tão má como a do lado empresarial e está a ser penosamente arrastada com expedientes contabilísticos. O mesmo vale para o resto do mundo, nomeadamente para a Alemanha. É apenas lógico que isto em princípio não pode correr bem, se por um lado os rendimentos reais se afundam e cada vez mais pessoas apenas procuram precários empregos mal-pagos e a tempo parcial, mas por outro lado o nível de consumo até agora habitual é mantido pelas cadeias de crédito. Mesmo para os assalariados que ainda estão "empregados", a armadilha da dívida pode fechar-se abruptamente após um período de incubação de aparente normalidade; no caso de uma impiedosa penhora salarial, o continuado consumo especulativo de televisão paga, telemóveis, turismo, carros novos etc. transforma-se então em tempos de verdadeira fome, porque já não há quase nada para viver. Hoje em dia, há por aí massas de jovens nos países ocidentais que já estão endividados por anos e décadas pouco depois de "começarem a sua vida profissional". Com a cada vez mais provável queda no desemprego, o frágil castelo de cartas do crédito ao consumo cai finalmente. Em 1998 só na RFA já havia l,26 milhões de particulares contra os quais tinham sido aplicadas medidas coercivas devido ao sobreendividamento.

É basicamente o mesmo o mecanismo que conduziu os países da periferia à armadilha da dívida externa. Tendo gasto, como adolescentes viciados em consumo, os créditos em projectos de prestígio e piramidais, em consumo militar e alimentação das elites corruptas etc., também eles estão na armadilha da dívida. O México entrou em incumprimento pela primeira vez no início da década de 1980 e pela segunda vez no final de 1994. Em ambos os casos, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os consórcios internacionais de credores tiveram de intervir com enormes "pacotes de resgate" no valor de dezenas de milhares de milhões de dólares. O Brasil e outros Estados latino-americanos, e entretanto mesmo os antes elogiados "países tigres" do Sudeste Asiático, também se tornaram casos de cuidados continuados da crise da dívida. A Rússia está agora dependente apenas alimentação endovenosa de dinheiro vindo do resgate periódico. A bomba relógio da dívida externa dos Estados perdedores periféricos subiu para o nível recorde de vários biliões de dólares. Tal como no caso das dívidas das empresas e dos consumidores, não existe uma lista verdadeiramente exacta e pública; apenas a ponta do iceberg está à vista. As três formas de dívida em conjunto provavelmente ultrapassam agora em muito a totalidade do produto social global.

Apesar de todos os refinanciamentos, transferências de contas e truques nos balanços contabilísticos, a crise geral da dívida deveria ter terminado há muito tempo com o colapso do sobrecarregado sistema financeiro internacional. A antecipação da criação de valor futuro através de enormes montanhas de dívida é apenas seguida por um comparativamente fino fio de criação de valor real. Mas, na base já construída de uma crise de dívida global, o verdadeiro boom especulativo nos mercados de acções só começou em meados da década de 1980. Também isto é uma novidade em comparação com os anos de 1870 e de 1920. Tal como o crescente desemprego estrutural maciço, a crise da dívida, que tem sido cuidadosamente mantida em segredo, não é apenas a consequência de uma explosão especulativa, mas já é muito anterior ao "crash" – uma indicação adicional da dimensão qualitativamente nova da "ficcionalização" monetária no decurso da Terceira Revolução Industrial. A crise global da dívida a todos os níveis pode por enquanto ser "adiada" e cada vez mais prorrogada, porque se lhe sobrepõe a maior bolha especulativa de todos os tempos nos mercados bolsistas. Esta é a segunda fase da crise desde meados dos anos 80, que continua até aos dias de hoje.

Todas as bolhas especulativas anteriores, fingindo um aumento fictício de valor que já não podia ser apanhado pela economia real, rebentaram num período de cerca de três a cinco anos. Assim foi em 1873 com a bolha da Primeira Revolução Industrial, assim foi em 1929 com a bolha da Segunda Revolução Industrial. No entanto, desde 1982 ou 1984 (dependendo do país e do índice de acções) até hoje, ou seja, durante um período de 15 a 17 anos, a bolha da Terceira Revolução Industrial está agora a expandir-se, aparentemente imperturbável perante inconsequentes quedas temporárias da bolsa como a de 1987, após o que prosseguiu como se nada tivesse acontecido. Os economistas desorientados já falam de uma suposta "new economy", da qual se diz que as leis económicas anteriores do capitalismo já não se lhe aplicam. Jessica Mathews, chefe do think tank norte-americano Carnegie Endowment, afirma simplesmente: "Perante este desafio, a revolução industrial foi uma bagatela" (Der Spiegel 12/1999).

Na realidade, trata-se de um desacoplamento dos mercados financeiros, com o qual o modo de produção capitalista tenta encobrir o colapso económico real do sistema industrial de bola de neve através de um processo endógeno de virtualização. Este desacoplamento sem precedentes do capital monetário fictício da acumulação real é possibilitado por um evento quase esquecido que teve lugar a 15 de Agosto de 1971: Nessa altura, o Presidente Nixon anunciou que os EUA deixariam de trocar as reservas em dólares dos bancos centrais estrangeiros por ouro ao preço de 35 dólares por onça troy. Com a convertibilidade em ouro do dólar, caiu o último laço do sistema monetário mundial a uma substância de valor objectivo e "coberto". Após o fim do padrão-ouro nas economias de guerra e a crise mundial do período entre guerras, apenas a convertibilidade em ouro do dólar permaneceu como sinal da supremacia dos EUA, mas esta foi corroída pelo rápido aumento da inflação após um bom quarto de século: Para evitar o colapso previsível do valor do dólar, cada vez mais bancos centrais trocavam os seus créditos por ouro, de modo que o stock em Fort Knox derretia como neve ao sol. Em 1973, dois anos após a medida de emergência de Nixon, o sistema de taxas de câmbio fixas chegava ao fim. Desde então, porém, não só tivemos de lidar com um sistema instável de taxas de câmbio livremente flutuantes, mas também a última salvaguarda imanente do sistema financeiro global foi removida, juntamente com a convertibilidade em ouro do dólar.

É por isso que, uma boa década mais tarde, poderia começar aquela fantástica descolagem dos preços das acções, cuja massa fictícia de valor tem de ser expressa em dinheiro (agora já nem sequer indirectamente "coberto"). A alma-dinheiro do capitalismo, libertada de qualquer corpo, estende aparentemente até ao infinito o seu etéreo corpo fantasmagórico. No entanto, os áugures neoliberais da "new economy" assumem com ligeireza pelo valor facial o carácter virtual e simulado destes aumentos de valor, uma vez que podem apontar para o "fim simultâneo da inflação". Como esperado, com a tomada do poder neoliberal, as taxas de inflação caíram drasticamente em poucos anos, o que foi tomado como prova da superioridade da doutrina de Milton Friedman. Nos EUA, a taxa de inflação anual caiu de 13,5% (1980) para 1,9% (1986), na RFA de 6,3% (1981) para -0,1% (1986), no Reino Unido de 18,0% (1980) para 3,4% (1986). A situação é semelhante em todos os outros países industrializados e agora também em partes da periferia. Ao longo dos anos 90, a inflação tem-se mantido entre zero e dois por cento; só em algumas regiões em colapso é que ocasionalmente sobe, mas normalmente não com a antiga pressão hiperinflacionária.

"O vulcão extinguiu-se!", "A besta foi domada!", "A luta valeu a pena!" – com slogans assim floreados e triunfalistas, os economistas, os políticos e a imprensa económica celebram "a morte da inflação" (Sauga 1997). Este grito de vitória tem algo de infantil, porque recalca um facto muito óbvio com uma ignorância quase embaraçosa: A criação irregular de dinheiro não foi interrompida, apenas se deslocou do Estado para os mercados financeiros e para a bolha de aumentos fictícios no valor do capital em acções – e fê-lo com a mesma precisão com que se liga um interruptor eléctrico. O início do triunfo neoliberal e o fim da inflação coincidem precisamente com o início da crise da dívida e a descolagem dos mercados bolsistas. Mas, se a criação irregular de moeda pelo Estado é punida pela inflação, porque aparece directamente como uma procura igualmente irregular, a consequência da "inflação de activos" fictícia nos mercados bolsistas ("asset inflation") é precisamente o choque deflacionista, desencadeado pelo "crash" e pela correspondente desvalorização abrupta das massas fictícias de capital monetário.

O aclamado fim da inflação e a ainda mais aclamada "alta do milénio" dos mercados bolsistas são praticamente a prova de que a doutrina de Friedman praticada em todo o mundo apenas mudou da forma inflacionária para a forma deflacionária da crise. Como a válvula de segurança da convertibilidade dólar-ouro foi removida muito antes, e a "desregulação" neoliberal dos mercados financeiros também removeu as últimas inibições, a bolha pode ser tão incrivelmente grande e inflada durante tanto tempo. No entanto, o estrondo com que acabará por rebentar deve ser ainda mais devastador. As dimensões astronómicas que a bolha do capital financeiro desacoplado está a assumir após uma década e meia podem ser vistas nos mercados de divisas:

 

" (Nos) últimos dez anos de desregulamentação selvagem, deu-se um salto quântico nas transacções financeiras. Em Abril de 1995, foram negociados diariamente 1,572 biliões de dólares americanos nos mercados de divisas [...] Com um comércio mundial anual (1996) de 5,113 biliões de dólares americanos e tendo em conta a média de valores activos e passivos sobre o estrangeiro dos bancos na ordem dos nove biliões de dólares americanos (no final de 1996), pode-se facilmente estimar quão elevada é a parte do volume de negócios diário de que tem a ver com a liquidação de negócios reais. Em 250 dias de negociação por ano, cerca de 56 mil milhões de dólares são entregues diariamente para trocas 'reais', ou seja, cerca de 4% das transferências de divisas. O grande remanescente de 96% é obviamente para especulação de curto prazo [...]" (Altvater 1998).

 

Relativamente aos mercados bolsistas, o famoso índice Dow Jones da Bolsa de Nova Iorque, hoje o centro global do capitalismo de casino, pode dar uma ideia de como a criação de capital fictício já se afastou anos-luz da realidade da "substância de trabalho" da economia empresarial. Após o seu início em 1900, o Dow levou mais de seis décadas a tocar brevemente a marca mágica dos 1000 pontos em 1966, no auge do boom fordista. Foram necessários mais 16 anos até que esta marca fosse ultrapassada de forma sustentável em 1982, mesmo a tempo do início da era especulativa neoliberal. O que aconteceu desde então ilustra a dimensão absurda da criação fictícia de valor: em 1995 o Dow já estava nos 4000 pontos, em 1996 nos 6000, em Fevereiro de 1997 nos 7000, em Julho de 1997 já nos 8000, em 1998 nos 9000 e, entretanto, em meados de 1999 nos 11 000 pontos. Um "salto quântico" semelhante pode ser encontrado em quase todo o mundo, embora não em todo o lado à mesma escala.

Há que perceber o que isto significa: embora o crescimento real da massa de valor à altura do nível fordista, do capital social acumulado e da subsequente explosão microelectrónica da produtividade, se tenha tornado muito mais difícil, e agora bastante impossível, a bolsa de valores "capitalizou" em apenas 17 anos "expectativas futuras" de uma magnitude que excede em mais de dez vezes o volume de capitalização da bolsa de valores durante 82 anos do século XX! E, embora as reais expectativas futuras de uma nova "onda longa" industrial-capitalista não tenham desempenhado qualquer papel durante anos e a expectativa futura de um boom de serviços só seja falada de uma forma forçada e tão má como sem fundamento económico, é ainda mais "capitalizada" em dimensões cada vez mais absurdas uma "expectativa futura" completamente vazia, sobre a qual já ninguém questiona a verdadeira base. É difícil imaginar: a capitalização bolsista não só já transformou todo o século XXI em riqueza fictícia presente, como antecipou um futuro imprevisível que nunca se seguirá como criação de valor real. "O futuro já foi", e a um ponto que Ralf Dahrendorf não poderia ter imaginado em 1984 nem nos seus mais ousados pesadelos. Este futuro capitalista já não é um "fardo", porque tal "fardo" não poderia sequer ser "trabalhado" por uma humanidade multiplicada em muitos mundos; este futuro é um zero, um nada, um espaço em que já não se pode viver – se os critérios e categorias capitalistas continuarem a aplicar-se.

Mas é a riqueza monetária simulada deste futuro completamente esvaziado que sustenta o presente sem fundo do capitalismo que aparentemente absorveu a crise da dívida, que sustenta os Estados, empresas e consumidores privados dentro da "normalidade" capitalista dramaticamente encolhida, e que gera a ficção de que as forças produtivas da Terceira Revolução Industrial poderiam continuar a ser mobilizadas sob a forma de dinheiro. A expansão irregular da criação monetária pela bolha especulativa, embora exceda a criação monetária estatal keynesiana numa escala fantástica, não aparece como inflação porque actua apenas indirectamente como procura e permanece em grande parte dentro do sistema financeiro.

Ao contrário da desbotada regulação keynesiana, porém, esta criação monetária especulativa não tem um efeito relativamente compensatório, mas é a força motriz da extrema divisão social. Enquanto uma parte crescente da população é empurrada para a pobreza, mesmo para a fome, e o Gulag democrático é galopante, nos sectores sociais da riqueza especulativa explode um bizarro consumo de luxo, que trata os pobres como domésticos e os reproduz apenas através dos seus produtos de desperdício. Mas como esta riqueza já não é substancial, também já não pode ser comparada com qualquer anterior arrogância do dinheiro. Não só a antiga classe média produtora de capital está a ser desgastada, mas também os upper ten do capitalismo de casino assentam economicamente em pés de barro. A transição para a simulação é evidente precisamente na interface social do precário "novo centro".

 

"É duvidoso que a classe média vá continuar a accionar a máquina do trabalho. Porque a labuta rende cada vez menos. Assim o director-geral da associação federal de pequenas e médias empresas, Dieter Härthe, explica: 'O fosso entre os rendimentos do mercado de capitais e os da actividade empresarial é cada vez maior’. Entretanto, é mais rentável para muitas pequenas e médias empresas vender os seus negócios e investir o dinheiro em títulos. Isto está a tornar-se uma alternativa lucrativa, especialmente para a geração dos herdeiros. Até 2003, mais de 300 mil empresas familiares, com quatro milhões de empregados, irão enfrentar uma mudança de propriedade. O problema da sucessão pode criar uma tensão considerável nos próximos anos, em particular no mercado de trabalho [...]" (Wirtschaftswoche 7/1998).

 

O que se apresenta aqui como argumento para o incentivo ao empreendedorismo através da isenção fiscal e da desregulamentação aponta na realidade para a dimensão do capitalismo de casino que há muito escarnece de qualquer iniciativa de "fundador". A divisão social atravessa agora todos os grupos sociais. Os perdedores são aqueles que perderam a participação na produção fictícia de riqueza; os supostos vencedores são aqueles que foram capazes de se aguentar no boom da bolsa de valores. Numa escala incomparavelmente maior do que na alta bolsista anterior a 1929, são pessoas bastante comuns, desde secretárias a mecânicos ou taxistas, que conseguem ganhar um "segundo rendimento" através do aumento simulado do valor das acções, juntamente com investidores institucionais, fundos e grandes especuladores individuais. Neste clima social, o conceito de "valor para o accionista" pôde ser alçado ao estatuto de "filosofia" geral: O aumento fictício do valor das acções torna-se o nec plus ultra económico, completamente independente de qualquer estratégia de economia real. Numa "revalorização dos valores" a nível mundial, os mercados financeiros já não aparecem como expressão da produção de mercadorias da economia real, mas, exactamente ao contrário, esta última aparece como uma expressão secundária do movimento nos mercados bolsistas. Os "accionistas" passivos (proprietários de acções) são cortejados como os verdadeiros actores, enquanto a produção real de mercadorias aparece apenas como um apêndice insignificante. Através dos media, este absurdo torna-se a consciência social geral:

 

"Todos os dias, trabalhadores de colarinho branco deixam os seus empregos e dedicam-se à negociação na bolsa de valores através da Internet, um método supostamente mais lucrativo de ganhar a vida. Sete milhões de americanos já comercializam online, a partir das suas secretárias, onde um clique do rato pode mover centenas de milhares de dólares, em segundos e praticamente sem taxas. Se anteriormente costumavam estar corretores profissionais à frente de cada negócio, para avisar os investidores contra manobras demasiado erráticas, hoje em dia cada vez mais pessoas estão a tomar o negócio nas próprias mãos. O comércio de acções tornou-se cultura pop, como os Rolling Stones, os computadores Apple ou a Coca-Cola – só que cada vez mais pessoas se estão a tornar viciadas nele. Uma gigantesca máquina mediática promove o entusiasmo. As estações de televisão informam a toda a hora sobre os mercados financeiros mundiais, os jornais diários e as revistas financeiras com tiragens de milhões fornecem informações ao exército de especuladores. Mesmo em centros de fitness, há monitores a cintilar com os últimos dados das cotações, e nas ruas das metrópoles muitos usam receptores de bolso nos cintos, que mostram os preços das acções e apitam em caso de flutuações abruptas. Dezenas de milhares de pessoas estão agora em actividade como ditos day traders. Põem dinheiro em acções e retiram-no segundos, minutos ou algumas horas mais tarde, a fim de ganharem dinheiro a partir de flutuações mínimas de preços. Não estão interessados no que as empresas estão a produzir ou se estão a obter lucros; o que importa é o 'momentum', o impulso por detrás de um movimento de preços a curto prazo. O sentimento é alimentado por obscuros gurus online que espalham as suas dicas em salas de conversação na Internet e assim colocam em movimento matilhas de traders online, incluindo cada vez mais estudantes – para que os preços se movam na direcção desejada. Dão-se nomes como Tokyo-Park, ou ainda vão à escola – como Daniel Miller, de 15 anos, que gere a sua própria página de acções na Internet, e fornece à sua comunidade de fãs em rápido crescimento dicas durante os intervalos das aulas" (Der Spiegel 12/1999).

 

A especulação bolsista tornou-se cultura pop, parte da indústria cultural – seria impossível expressar mais claramente até que ponto a sociedade mundial do capitalismo de crise caiu na cegueira. E esta cegueira não se limita ao estado de espírito do topo do capitalismo de casino, nem mesmo aos centros ocidentais como um todo, mas também atingiu os últimos recantos do mundo. No fim do mundo, em Ulan Bator, a bolsa de valores da Mongólia negoceia em surreais certificados de privatização de uma economia moribunda. Na Ucrânia, Bulgária ou Roménia, papéis duvidosos são frequentemente colocados com sucesso em bancos igualmente duvidosos, enquanto pessoas morrem de fome na porta ao lado. As bolsas oficiais da Europa de Leste estão também a atrair "capital de risco" para fundos opacos e cupões de privatização duvidosos com selvagens montanhas russas das cotações. O "risco" há muito que deixou de se referir a possíveis sucessos de industrialização, novos produtos e mercados de mercadorias, mas refere-se apenas ao oco processo especulativo. Mesmo em África, o continente da fome e da guerra civil, uma nova bolsa de valores está a ser criada após a outra. Numa reportagem sobre o mercado de valores mobiliários na Zâmbia, cujo "conjunto liberal de regras atrai", diz-se:

 

"A discreta entrada na bolsa de valores da Zâmbia, a Lusaka Stock Exchange (LuSE), está eloquentemente localizada entre uma gravataria e uma retrosaria. Atrás de uma porta e de um lanço de escadas, os visitantes entram numa sala com um par de secretárias, uma fotocopiadora e alguns computadores. Qualquer pessoa que pergunte pela sala da bolsa é olhada com espanto. Afinal de contas, o visitante está mesmo dentro dela. Apesar do espaço limitado, não é preciso ser arrogante. Em 1996, o volume de negócios da LuSE aumentou quase dez vezes. Desde o início do ano, a capitalização do mercado mais que duplicou" (Handelsblatt, 11.8.1997).

 

A boa nova da salvação através do casino do jogo capitalista espalhou-se mais rapidamente pela Terra do que os ensinamentos de Cristo, por mais falida que esteja a correspondente economia real. A esperança de sorte nos jogos de azar aumentou até se tornar o principal espírito do tempo. Quem não tem dinheiro suficiente para entrar na bolsa fica satisfeito com todo o tipo de jogos a dinheiro. Mesmo os socialmente excluídos são infectados por isto: Em São Paulo e não só podem ver-se mulheres de limpeza e trabalhadores ao dia em paragens de autocarro a apostar em "jogos de azar" o seu dinheiro arduamente ganho. Também a simulação do capitalismo financeiro está a ser simulada mais uma vez: turmas escolares inteiras participam em "jogos da bolsa" organizados pela imprensa económica ou por bancos e caixas económicas. O solitário trader da Internet está a revelar-se o modelo de "aventureiro" dos de 30 anos: "Eu e as cotações, mais nada", como anunciam as respectivas empresas de intermediação.

Não menos importante, a densa rede global de "electronic banking", as instituições a ela associadas, o respectivo circo mediático e a cultura de massas da febre da bolsa produziram esse segmento de "emprego" que, no fundo, trazia originalmente a ilusão do capitalismo dos serviços; significativamente a par da imaginação de um mundo de empregados domésticos e trabalhadores forçados. A individualização e dessolidarização geral é também alimentada pelo facto de cada vez mais pessoas surfarem neste mundo ilusório: A solidariedade no sentido antigo referia-se a interesses comuns, situações sociais e relações no contexto da economia real capitalista; na era de uma simulação especulativa global, pelo contrário, já não existe uma localização social determinável, mas apenas, por um lado, a relação de "in" e "out", como potencial geral de ameaça e medo, e, por outro lado, uma relação puramente individual com o esmagador processo de uma economia de lotaria permanente, em que não se questiona a pertença social a deslizar para o irreal. Esta inversão de aparência e realidade, na qual de forma absurda "cada um é o arquitecto da sua própria sorte", constitui uma democracia de jogadores virtualizada. Os "empreendedores da sua força de trabalho" atomizados são na realidade os "jogadores dos seus cupões", e só a partir desta imaginação é que a imposição ideológica funciona de algum modo entre os que estão "in" ou que gostariam de estar "in". Mesmo o tipo feio do vencedor anti-social que "leva tudo" já não se refere a uma verdadeira assertividade económica, mas a um virtualismo raivoso e à perda completa da realidade, como se pode ver num senhor chamado Albert Dunlap; nos EUA a figura simbólica de "mister shareholder-value":

 

"O gestor que jorra ordens de entre os lábios cerrados como se estivesse em guerra é o reorganizador mais famigerado da América. Ninguém dispara tão impiedosamente como ele, ninguém espanca empresas tão radicalmente, ninguém repreende a gerência de forma tão desenfreada: 'Esta empresa precisava de mim ou do Doutor Kevorkian', um famoso apoiante do suicídio assistido nos EUA, costumava gritar aos respectivos empregados [...] Dunlap, de 59 anos, fez presidentes de câmara chorar, enfureceu sindicalistas e deixou famílias no desespero – mas até agora ninguém foi capaz de deter o bruto gestor. Ele percorre o país como um cruzado do capital accionista. Adora cães-pastores e odeia gestores que não espremem rendimentos decentes das suas empresas [...] 'Dunlapar' é o que os líderes empresariais americanos têm vindo a chamar a tratamento tão rude, acrescentando combustível ao debate sobre o culto da bolsa de valores [...] Dunlapar não cria nova riqueza, mas apenas a redistribui, advertem os críticos. Além disso, quase nenhum dos negócios de Dunlap terá sobrevivido como empresa independente. Foram comprados, partidos ou usados de outras formas – mas principalmente em benefício dos accionistas [...] O bruto até se vê como um benfeitor, como precursor de todo um novo tipo de socialismo. Afinal, diz ele, os accionistas não são apenas os ricos, mas milhões de americanos que investiram o dinheiro da reforma em acções ou fundos [...] 'Não acredito na responsabilidade social', diz Dunlap, que, segundo a sua irmã, se desligou quase completamente da família, nem sequer aparecendo no funeral dos pais: 'Uma empresa não é uma experiência social. É uma questão de lucro. Quem não compreender isso, temos de o fazer sair'. Consequentemente, Dunlap cortou tudo o que as suas empresas doavam a museus, teatros, ou instituições de caridade. Ele aboliu as fundações e proibiu os gestores de se dedicarem a tarefas sociais durante o horário de trabalho [...]" (Der Spiegel 12/1997).

 

Face a uma tal loucura, a maioria dos "críticos sociais" que restam já só conseguem pensar no que lhes ocorre face a um capitalismo de crise desinibido: nomeadamente, um moralismo superficial. Radicais de esquerda e de direita, sindicalistas e sacerdotes da televisão, antigos chanceleres e políticos dos media alemães, "pensadores transversais" e pregadores dominicais conservadores usam baldes de "ética" e, no entanto, nada mais querem do que o regresso a um sistema sério e "decente" de produção de mercadorias. A periódica agitação especulativa em nome da maravilhosa "economia de mercado" e dos seus "empregos" há muito que retomou tons reminiscentes dos surtos anti-semitas de 1873 e 1929, enquanto que as medidas propostas (como a tributação dos lucros especulativos) atestam uma ingenuidade ridícula. Está a ser completamente recalcado que a era dos excessos especulativos do capitalismo de casino é o resultado de um processo endógeno, em que o sistema produtor de mercadorias, com a sua imposição básica de "mercados de trabalho", acabou por se conduzir a si mesmo ao absurdo.

O mesmo poder de recalcamento é exibido em sentido contrário pelos eufóricos da cocaína dos mercados financeiros nas nuvens, que perderam todos os padrões. Um homem de espírito e entertainer da grande festa da bolsa de valores como o gestor de fundos nova-iorquino de origem alemã, Heiko Thieme, já está a calcular o milagroso aumento do dinheiro para os próximos cem anos: no ano abençoado de 2097 vê o Dow Jones em 750 000 e o Dax alemão em 400 000 pontos! A partir da inesgotável cornucópia borbulhante da utópica máquina de dinheiro, assim exulta a imprensa económica, todos os problemas podem ser resolvidos no futuro. As pensões de velhice, por exemplo, que nos países industrializados ameaçam tornar-se impagáveis como tantas outras coisas devido à pirâmide etária, já não teriam de ser laboriosamente alimentadas a partir das contribuições deduzidas dos salários ao abrigo de um "contrato intergeracional", mas seriam facilmente alimentadas a partir dos intermináveis ganhos das cotações – obviamente apenas em benefício daqueles que podem investir dinheiro em acções para a sua provisão privada para a velhice. Este argumento tolo há muito que se apoderou das administrações públicas, que estão a participar secretamente no jogo global de se contar como rico. Que a questão pode acabar mal, claro, é o que mostra um exemplo destacado:

 

"Entretanto, a especulação com derivados tornou-se mesmo um 'delito oficial'; vários ministros das finanças dos Estados europeus utilizam derivados para adiar a dívida e o serviço da dívida [...] Isto reduz o serviço da dívida hoje, mas pode aumentá-lo consideravelmente mais tarde. O tesoureiro da cidade de Orange County, Califórnia, tentou algo semelhante nos anos 80 e início dos anos 90. No início, o Sr. Criton foi muito bem sucedido e correspondentemente popular entre os cidadãos. Mas em 6 de Dezembro de 1994, as perdas especulativas acumuladas de dois mil milhões de dólares levaram à falência do município" (Altvater 1998).

 

Orange County – este é precisamente o gueto de luxo californiano, no sunbelt donde irrompeu outrora o "monstro apocalíptico" do reaganismo. Esta bancarrota é simbólica. Antecipa, numa escala microscópica, a falência mundial do capitalismo de casino "sem trabalho". Por mais horríveis que já sejam agora as condições capitalistas de crise: após o "crash" com que a maior de todas as bolhas especulativas tem de rebentar, o sistema capitalista global vai ficar uma ruína económica fumegante. Esta é a única "autocrítica" de que ele é capaz.

 

 

Original Kasinokapitalismus: Das Geld wird arbeitslos, pags. 408-419 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (7.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

 

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