Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Capítulo 8

História da Terceira Revolução Industrial

 

 

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Secção 9

Os demónios acordam

O capitalismo chegou ao fim da sua fuga cega através da história; já só pode despedaçar-se. Mas quanto mais inegável se torna que a humanidade não pode continuar a reproduzir-se nas formas da "bela máquina" e do seu já apenas gaguejante movimento de fim-em-si, mais a forma capitalista de consciência se endurece. A crise mundial da Terceira Revolução Industrial já não depara com nenhum projecto emancipatório que possa ser mobilizado como alternativa social. A crítica radical do capitalismo é geralmente considerada como um mero anacronismo escandaloso, porque é identificada na consciência social (tanto pelo "homem da rua" como pela literatura das ciências sociais) apenas com o paradigma de museu do movimento operário, irremediavelmente obsoleto, que na realidade sempre permaneceu imanente ao sistema. Assim, a reflexão teórica desaparece completamente da esfera pública capitalista; é superficialmente substituída por uma cultura de efeitos mediáticos auto-referenciais, que se preocupa apenas em atrair a atenção: a "teoria" é uma empresa comercial como qualquer outra.

Mas o lúdico culturalismo pós-moderno, que ainda redefine a pobreza como um traje e a humilhação social como um jogo, é apenas um fino evento superficial, sob o qual algo bastante diferente já se está a agitar. Mesmo que a "economia do como-se" tenha conduzido a uma "cultura do como-se", que aparentemente já não leva nada a sério e ao mesmo tempo espalha democraticamente o conservador espírito pequeno-burguês a grande velocidade, no entanto a verdade da crise sem solução no capitalismo é muito grave e cada vez menos pode ser recalcada. Já não é segredo que a consciência social obstinada, que quer a todo o custo agarrar-se às formas sociais do capitalismo, procura silenciosamente e com pezinhos de lã um novo paradigma – que é o mais antigo da ideologia burguesa. Os demónios acordaram e estão a regressar a passos gigantescos no pensamento e na acção das mónadas pós-modernas da concorrência. Uma nova biologização radical da sociedade está a abrir caminho, o reino animal humano do século XIX está a regressar com um disfarce apenas superficialmente modernizado.

Para lá do pátio de recreio culturalista dos suplementos culturais pós-modernos, o triunfo neoliberal tornou a nova naturalização do social democraticamente aceitável, antes de mais na ideologia económica. A crença geralmente invocada na economia de mercado como "ordem económica natural", o "desemprego natural" de Friedman e os vários prémios Nobel pela simplória repetição da ideia vinda do século XVIII de uma "natureza humana" economicamente egoísta deram alimento a um darwinismo social aberto ou encoberto, desde considerações de "economia médica" até à justificação pseudonaturalista da selecção social, que há muito tempo vem conseguindo esquivar-se em paz a objecções intelectuais. Se hoje em dia a doutrina malthusiana pode ser de novo discutida positivamente com toda a compostura em gazetas liberais de esquerda, isso indica o grau já alcançado de uma nova "darwinização" da consciência social.

Na bruma desta redarwinização neoliberal do económico e do social, há muito que se tem vindo a verificar um retrocesso ainda mais profundo do pensamento. Juntamente com a teoria social inspirada em Marx e o pensamento reflexivo de crítica social, todas as correntes, escolas e abordagens teóricas que procuram compreender os seres humanos principalmente como seres sociais e psicológicos e entender a sociedade com base na sua própria constituição histórica estão em retirada ou já desapareceram, tanto na academia como no jornalismo. A culturalização pós-moderna do social foi apenas um interlúdio no caminho para a sua biologização renovada. Depois do discurso auto-referencial e inconsequente, culturalmente reduzido, cuja função era apenas afastar a crítica radical da economia, está agora a tornar-se popular a ciência natural, ou, mais precisamente, a pseudonaturalização da sociedade e da consciência.

Grisalhas vedetas intelectuais ex-esquerdistas descobrem as alegadas "constantes antropológicas" perante as quais a história se desvanece. A psicossomática está mega out e a psicanálise é considerada refutada. Não é o inconsciente que nos move, de acordo com o novo materialismo científico vulgar, mas sim a bioquímica e os processos neuronais dos nossos corpos. Em geral, o ser humano aparece menos como um ser social, mas é a sociedade que aparece como um "corpo". E os indivíduos também cuidam principalmente da sua pele e descobrem a sua corporeidade muscular; o culto pós-moderno do outfit remonta ao físico nu, e os day traders do capitalismo de casino tentam aproximar-se da aparência das figuras de Arno Breker nos centros de fitness. Está em ascensão espécie de estética nazi modificada do biológico, e um esoterismo popular como vertente da cultura de massas pós-moderna adapta-se tão bem a ela como as aparições, o misticismo do Extremo Oriente e o culto indogermânico o faziam antes de 1933: todo o tipo de ficção científica da conspiração mundial está com tiragens de best-sellers e a tornar-se leitura de cabeceira para condutores de autocarro, desempregados e assistentes de dentista.

A genética, a ponta de lança de uma nova ciência da criação e da selecção com verdadeiro poder de penetração, já começa a ideologizar no turbilhão social do neoliberalismo. Desde logo, em contextos aparentemente distantes, está a tornar-se cada vez mais arraigado o pressuposto de que todo e qualquer fenómeno social e individual é "geneticamente" ou neurobiologicamente preformado. O neurologista dos EUA Steven Pinker afirma que a linguagem é "inata ao ser humano como a tromba ao elefante" e que deve haver um "gene gramatical". Para o Prémio Nobel Francis Crick, de San Diego, mesmo o livre arbítrio consiste em "nada mais do que neurónios". Os cientistas do Instituto Robert Koch de Berlim afirmam ter encontrado um vírus que alegadamente desencadeia a melancolia e é transmitido por gatos domésticos. E o biólogo molecular americano Dean Hammer rastreou recentemente a homossexualidade até ao gene Xq28, numa secção terminal do cromossoma sexual X.

Provas incertas, uma mistura de hipóteses, descobertas e interpretações experimentais aparentemente já não incomodam ninguém, porque as ciências naturais estão obviamente envolvidas num processo de demarcação das fronteiras do capitalismo e em programas de processamento da crise. As suas questões supostas "puramente objectivas" são tanto mais facilmente influenciadas pela corrente intelectual cheia de medo e ódio na sociedade mundial do capitalismo de crise, quanto as ciências naturais, como em toda a sua história que acompanha o capitalismo, nunca quiseram nem foram capazes de reflectir criticamente sobre a sua posição social, mesmo depois da Segunda Guerra Mundial, excepto ocasionalmente em secundárias considerações morais pouco profundas; e porque nada mudou a este respeito, os seus próprios demónios estão também a regressar na nova crise mundial. A "genetização" da degradação social está a atrair largos círculos nas ciências sociais e nas humanidades. Já na sua publicação "The Bell Curve", os cientistas sociais norte-americanos Richard Herrnstein e Charles Murray estabeleceram uma ligação entre "Race, Genes and IQ" que pseudobiologicamente define os americanos negros fora da "elite cognitiva".

O constructo do "quociente de inteligência" representa a ligação entre o antigo e o novo discurso da darwinização. Num debate "genético" altamente ideológico, podemos ver como, face ao repetido aumento das "classes perigosas" de pobres "inúteis" no capitalismo de crise global, os eugenistas e os medidores de crânios do século XIX e início do século XX estão a regressar, sob o disfarce de uma "ciência genética da selecção", para definir mais uma vez os "criminosos natos", os "sub-humanos" e as "vida indignas de viver" no final do século XX. É previsível quando nos será apresentado um "gene do crime" ou um "gene da pobreza". E a invenção de um destino social geneticamente ancorado vem naturalmente a pedido da política neoliberal de redução de custos sociais. Não é a forma capitalista que é posta em causa, mas aqueles que "caíram fora" é que voltam a ser cada vez mais vistos como "existências que são um fardo". O que é um consenso pela calada no centro da sociedade já está a ser abertamente executado pelos bandos neonazis sobre os sem-abrigo e os deficientes.

Na mesma medida em que a biologização e a naturalização da sociedade começa mais uma vez a inundar a consciência de crise do capitalismo e a flanquear a selecção social neoliberal, esta tendência assassina está também mais uma vez a transformar-se numa pseudocrítica de direita e fascistóide do liberalismo e da "economificação do mundo" capitalista. A nação "étnica" e a "raça", numa compulsão patológica a repetir-se, tomam o lugar, como contra-imagens fantasmáticas, de uma crítica radical da economia que o marxismo do movimento operário não conseguiu cumprir.

"Alemã", neste sentido, é não em último lugar a "nova direita" francesa, cujo mentor Alain de Benoist tem estado numa trip nazi desde o final dos anos 70; camuflado por uma suposta "inocência" que se imagina não onerada por Auschwitz. De Benoist não deixa nada de fora; regala-se com o fantasma do "indogermanismo", e para ele "raça" é um facto positivo, "marcado" pela "frequência média de alguns genes (!) que estabelece características ou predisposições físicas, patológicas e psicológicas para uma dada população" (de Benoist 1983, 53). Seguindo o biólogo dos EUA Robert Ardrey, declara que os seres humanos são "carnívoros com grandes cérebros" (op. cit., 362), em quem os critérios da concorrência estão biologicamente inscritos:

 

"O nosso antepassado mais antigo era um carnívoro. A sua essência predadora é a coisa mais segura que herdámos. O ser humano não é descendente de um anjo caído, mas de um (altamente) evoluído antropóide (macaco humanóide). Ele é um predador" (de Benoist, op. cit., 362).

 

O que se apresenta como crítica do liberalismo limita-se a repetir o pressuposto axiomático do liberalismo desde Hobbes nessa forma agravada, uma vez que se sobrepõe ideologicamente à concorrência económica desde o século XIX, que se propagou como darwiniana "continuação da concorrência por outros meios" entre "raças", "povos" e "nações". E de Benoist não é "espancado fora da sala" por reavivar este racista liberalismo mitologizado, mas é levado a sério como um radical de direita aceitável para a burguesia e convidado para congressos científicos com o gesto da tolerância. O ressuscitado Adolf Hitler fala aqui francês. Mas, "claro", também já há muito tempo que ele voltou a falar alemão. Na pátria da pseudocrítica da modernidade com base na biologia das raças e do romantismo irracional, esse demónio da "ideologia alemã" está a erguer-se do seu leito nocturno como reacção à crise capitalista após o "fim do marxismo" com uma consequência pavorosa, com a qual, desde Herder e Fichte, a invenção burguesa-liberal da "nação" tem sido enobrecida como um ser de sangue supra-histórico e oposto à desdenhosa democracia ocidental de Mamon.

 

Agora paga-se amargamente pelo facto de a esquerda, apesar de Auschwitz, nunca ter realmente percebido este derivado demoníaco do liberalismo nem o ter criticado até ao fim. Acima de tudo, a contribuição do próprio socialismo para a darwinização do social e para a ideologia do sangue em geral, até ao conteúdo anti-semita dos utópicos iconizados, permaneceu escondida, tal como a raiz liberal do marxismo do movimento operário enquanto tal não foi exposta criticamente. Também neste aspecto, a "nova" esquerda de 1968 não ultrapassou a antiga esquerda do movimento operário. Depois de ter tematizado brevemente o fetichismo moderno do sistema de produção de mercadorias, o carácter destrutivo e irracional do "trabalho" abstracto e da racionalidade da economia empresarial, a integração funcionalista da ciência etc., mas não ter atravessado este Rubicão, o seu aprisionamento na "jaula de ferro" das categorias capitalistas foi selado, e não só ao nível das formas económicas.

Como a crítica de esquerda ao capitalismo foi demasiado curta e não chegou aos fundamentos categoriais, tal como o "trabalho" abstracto também a "nação" permaneceu intocada; não foi uma questão para a esquerda que nesta categoria como tal espreitasse o crime contra a humanidade , e que depois de Auschwitz não só a "nação alemã", mas a "nação" em geral tivesse de ser rejeitada de alto a baixo como um nível da forma capitalista de sociedade. Em vez disso, a "nação" foi contrabandeada para o debate de esquerda através da mitologização dos "movimentos de libertação nacional" na periferia capitalista e conseguiu funcionar como um conceito positivo a par da "democratização". Deste modo, o antigo nacionalismo socialista de 1848, adaptado mais uma vez através deste desvio, pôde assim ser também carregado positivamente de novo para a própria nação burguesa, inteiramente no sentido do constructo da RDA da "nação socialista alemã". Depois de 1989, tudo o que restou dela foi a "nação alemã", tal como, aliás, tudo o que restou do socialismo de Estado em toda a Europa de leste foi o nacionalismo como forma de decadência.

Se a "disputa dos historiadores" dos anos 80, quando Ernst Nolte (paralelamente à crise incipiente da Terceira Revolução Industrial) apresentou a sua pérfida reabilitação do nacional-socialismo em nome de uma legitimação democrática anticomunista, ainda pareceu ser um avanço do pensamento conservador de direita, que foi combatido pela esquerda como sempre fora, desde então a "ideologia alemã" irrompeu nos processos de decomposição da esquerda de um modo provavelmente impensável poucos anos antes. Isto é tanto mais significativo quanto tal transição teve lugar num clima social que dificilmente poderia ser mal interpretado. O colapso da RDA e a anexação do seu território à RFA, celebrado como "unificação alemã", foi já um momento da (negada) crise mundial do sistema de produção de mercadorias; e assim a "unificação alemã", a crise socioeconómica e as formas racistas de reacção fundiram-se num complexo global de "agarrar as massas": em nome da comunidade de sangue, no final do século XX estão de novo a ser caçadas, queimadas e espancadas até à morte pessoas na Alemanha. Estes "excessos" de bandos de extrema-direita, como já foi suficientemente notado mesmo em comentários moderadamente críticos, contam com uma boa vontade silenciosa e não reconhecida entre a "maioria silenciosa" e no "centro" da sociedade. E, sobretudo na Alemanha oriental, emergiu uma cultura pop e de massas francamente neonazi como triste resíduo da RDA.

Quanto mais a crise mundial da Terceira Revolução Industrial é minimizada, negada e ideologicamente distorcida, mais massiçamente a síndrome anti-semita, que nunca desapareceu completamente, volta a entrar na consciência social. Este pior de todos os demónios da modernidade leva a explicação irracional do mundo e da crise a extremos – e é agitado no contexto do capitalismo de casino, muito antes do devido colapso financeiro global. Assim, pela quarta vez na história do desenvolvimento capitalista, desde os motins hep-hep do início do século XIX, explosões anti-semitas de ódio e pogroms acompanham a crise e a descolagem do capital financeiro. Paralelamente à estrutura do capital monetário transnacional, o anti-semitismo globaliza-se como nunca antes: do Atlântico aos Urais e mesmo no Japão, a agitação contra as comunidades judaicas floresce; e até Louis Farrakhan, o líder dos influentes "muçulmanos negros" nos EUA, prega tiradas de ódio anti-semitas. Também na Alemanha, é palpavelmente evidente como poucas consequências foram retiradas de Auschwitz, apesar de todos os falsos melodramas.

Embora os "sinais dos tempos" possam ser entendidos com bastante clareza, a esquerda socialmente desarmada está a apropriar-se fantasmagoricamente dos fantasmas da ideologia de crise capitalista. Por um lado, o discurso da "democratização" produziu logicamente a esquerda Armani que hoje cogere responsavelmente a crise capitalista e a repressão social. Enquanto encurta a vida dos beneficiários da assistência social e dos desempregados em todos os aspectos, esta ex-esquerda estatista atira ao ar palavras plásticas no circo político mediático que apenas indicam como a política começa a tornar-se irreal: a "comunidade democrática das nações", em harmonia com uma "Europa democrática de economia de mercado" e um habermasiano "patriotismo constitucional" alemão, é suposto banir os demónios que se erguem do interior desta mesma democracia e tornar conhecida a sua falsidade. Mas neste "patriotismo constitucional" continua presente como categoria positiva a mesma "nação" que constitui o termo de referência central de todas as explicações irracionais da crise e das campanhas de exclusão racistas. Deste modo, a esquerda democrática Armani contribui para a darwinização da consciência social, tal como o faz com a sua naturalização neoliberal da economia capitalista. Na RFA, isto nunca foi tão evidente como no debate sobre a reforma da lei da nacionalidade. O plano do governo "verde-rubro", que de qualquer modo era apenas meio convicto e não queria abolir por princípio a comunidade de sangue e de descendência alemã legalmente codificada, mas apenas modificá-la, terminou, após uma campanha maciça e bem sucedida de mobilização dos conservadores pelo direito de sangue, com um compromisso duvidoso, que não tocou decisivamente a base étnica da democracia da RFA.

Por outro lado, uma parte da esquerda de 1968, com a sua referência positiva à "nação", tornou-se directamente o pacemaker de um novo discurso étnico de dominação e exclusão. A "nação alemã" foi descoberta como um objecto do coração a ser afirmado contra a globalização capitalista. Bernd Rabehl, um antigo porta-voz da revolta estudantil, surgiu como profeta étnico-nacional, tal como o fez Horst Mahler, o antigo advogado e mentor da "Fracção do Exército Vermelho" (RAF). Numa "revolução cultural de direita", a nova direita e a ex-esquerda encontram-se intimamente unidas.

Enquanto neste clima a esquerda Armani "constitucionalmente patriótica" do "novo centro" executa as leis fetichistas do dinheiro, a esquerda nacional virada étnica, juntamente com os neonazis, revitaliza a falsa crítica racista e anti-semita do dinheiro que vai dar ao assassinato. Cada vez mais escritores proeminentes na RFA estão a aderir ao irracionalismo nacional-racista. Depois de a figura literária Botho Strauß já ter declarado o seu apoio aos motivos reaccionários e aos mitos de uma nacionalista "crítica do capitalismo", com uma polémica apelidada de "Canção do bode em crescendo", o romancista alemão nacionalmente glorificado Martin Walser veio apoiar, significativamente por ocasião da atribuição à sua pessoa do "Prémio da Paz do Comércio Livreiro Alemão":

 

"Todos conhecem o nosso fardo histórico, a vergonha sem fim, não há um dia em que a vergonha não nos seja apresentada [...] Nenhuma pessoa séria nega Auschwitz; nenhuma pessoa responsável deixa de tomar a sério o horror de Auschwitz; mas quando este passado me é apresentado todos os dias nos media, noto que algo em mim resiste a esta apresentação permanente da nossa vergonha. Em vez de estar grato pela apresentação incessante da nossa (!) vergonha, começo a desviar o olhar (!). Gostaria de entender porque é que nesta década o passado está a ser apresentado como nunca antes. Quando percebo que algo dentro de mim se opõe a isso, tento ouvir os motivos da apresentação da nossa vergonha, e fico quase feliz quando penso que posso descobrir que a maior parte das vezes o motivo já não é a lembrança, o não se poder esquecer, mas a instrumentalização da nossa vergonha para fins actuais [...] Alguém não acha bem o modo como queremos ultrapassar as consequências da divisão alemã e diz que é assim que tornamos possível um novo Auschwitz. Mesmo a própria divisão, enquanto durou, foi justificada por intelectuais de autoridade com referência a Auschwitz [...] Em 1977 tive de fazer um discurso não muito longe daqui, em Bergen-Enkheim, e aproveitei a oportunidade para fazer a seguinte confissão: ‘Considero intolerável deixar a história alemã – por muito má que fosse no final – acabar num produto catastrófico’ [...] Isto vem-me à mente porque agora estou novamente a tremer com a ousadia quando digo: Auschwitz não é adequado para se tornar uma rotina de ameaça, um meio de intimidação que pode ser usado em qualquer altura, ou uma moca moral, ou mesmo apenas um exercício obrigatório […]" (Walser 1998, 17ss.).

 

Involuntariamente, Walser esclarece com tal discurso que uma "identidade nacional" alemã hoje em dia só pode levar a "ter bastante de se lembrar constantemente de Auschwitz". O estereótipo do anti-semita disfarçado: "Auschwitz foi um crime, mas...", este "mas" que abriga um abismo – é meia desculpa antecipada pelos reincidentes, e a confissão de que há algo decididamente mais importante do que Auschwitz, nomeadamente a "nação alemã". Walser acredita que está "a tremer com a ousadia" quando exprime coisas que, na verdade, há muito que são o consenso da "maioria silenciosa" e que estão agora a romper da meia obscuridade do discurso da cerveja nas mesas dos bares para o aberto processamento da crise social. Mergulhado na sua descoberta literária privada do sentimentalismo nacional, não repara (ou não quer reparar) nas mudanças de consciência social que assim certifica, que são mediadas pela crise da Terceira Revolução Industrial, e como a controvérsia de Walser reforça a avalanche desencadeada pela controvérsia de Nolte. Julius Schoeps, director do Centro Moses Mendelssohn de Estudos Judaicos Europeus, resumiu o impacto de Walser e a controvérsia que se seguiu com palavras secas:

 

"Existem 15% de anti-semitas abertos na Alemanha. Além disso, existem outros 30% de anti-semitas latentes. Eles só se passam quando algo assim acontece. Depois temos 17 profanações de sepulturas por semana. Normal na Alemanha é uma por semana" (Die Zeit 51/1998).

 

Esta avaliação é tudo menos exagerada. A ressonância social chegou-me no Natal de 1998, sob a árvore de Natal da família alargada, onde ninguém se consideraria nazi. Mas a uma hora tardia, a frase caiu: "Numa democracia é permitido dizer algo contra tudo, menos contra os judeus". Graças a Nolte, Walser e outros, o monstro está de novo sentado à mesa de perna aberta em toda a Alemanha, até à classe média, membros de sindicatos e, não menos importante, funcionários públicos, especialmente nos aparelhos de poder do Estado. Apenas alguns anos antes, um discurso como o de Walser do Outono de 1998 teria sido completamente impossível no contexto da "cultura Suhrkamp". Após o abandono da crítica da economia, que de qualquer modo nunca tinha sido particularmente forte nesta cena literária, o discurso democrático de esquerda entrelaça-se involuntariamente com o discurso neonacional e neo-étnico ao "mais alto nível" da linguagem literária e da filosofia.

E ainda e sempre de novo se lhe acrescenta. A estrela democrática e filósofo da moda Peter Sloterdijk, também em transição da reflexão sócio-crítica para a renaturalização do social, divagou no final do Verão de 1999 sobre "Regras para o Parque Humano" como prelúdio para um discurso neobiologista sobre "antropotecnias" genéticas; inocentemente, também ele. Como tantos intelectuais, Sloterdijk fez a sua paz com o sistema de produção de mercadorias, os seus "mercados de trabalho" e as suas contradições socioeconómicas autodestrutivas mesmo antes de 1989 (se é que alguma vez teve um problema com eles); na "Wirtschaftswoche" até se fez passar por conselheiro filosófico para a gestão transnacional. Assim, o filósofo mediático já não percebe os problemas do mundo no seu contexto histórico e através do confronto com a ordem dominante; deixa que o capitalismo seja capitalismo e transfere a consciência do problema para o a-histórico onto-antropológico. Foi precisamente para isto que os desvios pós-modernos via Nietzsche e Heidegger acabaram por ser bons.

Assim, para Sloterdijk, não se trata de uma crise mundial da forma capitalista da sociedade, mas sim de uma crise que surge periodicamente da "natureza do ser humano"; mais uma vez, a ideia fundamental de todo o pensamento burguês, desde o padrinho Hobbes, de que o "estado natural do ser humano" é uma "guerra de todos contra todos". Assim, quando Sloterdijk fala da "domesticação" do ser humano, isto não é uma metáfora da degradação social e da internalização da disciplina capitalista, mas é dito num sentido biológico terrivelmente literal; é, como o texto publicado declara explicitamente, uma questão de "criação" (Sloterdijk 1999). O resultado de tal pensamento não pode ser a questão da emancipação social das relações sociais fetichistas, nem o programa de sacudir a disciplina capitalista e mobilizar a "horizontal mal-comportada", mas, muito pelo contrário, "a questão da conservação e formação do ser humano" (loc. cit.), a questão do que "domestica os humanos" (loc. cit.). A história aparece assim, quando não como uma "disputa entre diferentes criadores e diferentes programas de criação", então como uma expressão de uma "deriva biocultural sem sujeito (!)" (loc. cit.).

Que a "reprodução humana" é entendida de forma bastante positiva torna-se claro o mais tardar quando Sloterdijk interpreta a onda de violência nas escolas do mundo ocidental não como uma forma de asselvajamento da concorrência capitalista, mas como uma "desinibição" sinistra, para a qual se poderia talvez esperar "sucessos na domesticação" na perspectiva de uma "reforma genética das características da espécie (!)" (loc. cit.) através de um "planeamento explícito das características" (loc. cit.). Esta tem sido a última palavra do conservador mundo pequeno-burguês dos sustentados pelo Estado com rendimentos elevados e dos administradores de humanos há mais de cem anos em cada crise: a biologização dos problemas sociais é a sua simultânea solução.

Segundo Sloterdijk, a questão não é a emancipação social da "bela máquina" do fetiche do capital, mas uma "luta titânica ... entre os criadores" (op. cit.), o que traz imediatamente à mente o mesmo vocabulário em Spengler, com os seus "homens de raça duros como o aço". E não se fica por aí: Invoca-se a "manutenção de humanos.... como tarefa zoopolítica", a "arte de guardar humanos" (loc. cit.), fundada em "conhecimentos reais de criação" de uma "realeza especializada" para o "planeamento de características numa elite, que tem de ser criada especialmente para o bem do todo" (loc. cit.). Tais meias frases não precisam de qualquer contexto para uma compreensão adequada, mesmo que Sloterdijk finja referir-se apenas a Nietzsche e a Platão (em todo o caso sem qualquer crítica); aqui é dado um tom inconfundível que não tem de esperar muito tempo pelo eco retumbante no "centro" da sociedade da crise capitalista. Que Sloterdijk também coloque estas monstruosidades sob o signo da "livre vontade" deixa claro o parentesco de tais "discursos sobre a guarda e criação de humanos" (loc. cit.) com as ideias liberais e democráticas primordiais de Bentham, para cuja panóplia teriam sido um enriquecimento. O "autocontrolo" em vez de libertação funcionaria, afinal de contas, de forma mais infalível com uma ancoragem  biológica e genética dos "traços de comportamento" (em vez de apenas pedagógica e punitivamente inculcada).

Quanto mais Sloterdijk se ensoberbece, mais claro se torna, como ele próprio admite, que este "nocturno filosófico" lhe veio, por assim dizer por osmose, do discurso catastrófico interno da Terceira Revolução Industrial. A inconfundível proximidade com a "eugenia" e a "higiene racial", apenas evitada de passagem e de forma implausível pelo autor porque, de qualquer modo, argumenta a-historicamente, aponta de forma ainda mais gritante para o contexto da constelação de crise na época da Guerra Mundial, que agora se repete muito mais intensamente – e ao nível de um poder de acesso biotecnológico incomparavelmente maior. Sloterdijk, que já não quer formular a emancipação social e promete tornar-se irmão intelectual de um de Benoist, acabou consequentemente na "biopolítica" do "super-homem"; com isto ele apenas prova que quem não quiser pensar segundo as linhas de Marx tem de continuar a pensar segundo as linhas de Bentham, Sade, Malthus, Darwin e Nietzsche (com a sua divisão da humanidade em "elites chamadas a governar", "material" e "supérfluos").

Mas, precisamente porque tal pensamento não tem noção do limite económico interno do desenvolvimento capitalista, também não compreende que a manipulação genética "biopolítica" prevista em vez da política social emancipatória, mesmo que não acabe (como é de esperar) em catástrofe, não deve chegar a nada em termos da tecnologia da dominação. Pois a Terceira Revolução Industrial derrete cada vez mais a "substância de trabalho" e conduz assim a valorização do valor per se ao absurdo, independentemente de as pessoas quererem continuar a existir nesta forma em servidão voluntária ou mesmo com ancoragem "biopolítica e/ou da tecnologia genética". Neste último caso, o resultado não seria um bom funcionamento, mas os humanos "criados" ficariam então na mesma situação que as vacas nas aldeias abandonadas das regiões em guerra civil, que perecem miseravelmente porque já não são ordenhadas.

Mesmo considerada na imanência, a ideia pouco apetitosa da "criação humana" é um disparate: a autocontradição socioeconómica do modo de produção capitalista não pode ser "descriada" biologicamente, nem para o lado do servo nem para o lado do senhor. E que tipo de "sobre-humano" seria esse, que pudesse ser reproduzido pela tecnologia genética? Em qualquer caso, a capacidade de reflexão crítica e de auto-reflexão não é uma função biológica, mas o resultado de um processamento discursivo dos processos sociais. No máximo, através da manipulação genética, pode ser possível saltar cinco metros de altura e calcular mais rapidamente do que qualquer ser humano actual (mas nunca tão rápido como um computador), ou tornar-se resistente aos resíduos tóxicos da economia de mercado, como certas populações de ratos; por outro lado, querer fazer tal coisa consigo mesmo já pressupõe uma estupidez incompreensível em termos reflexivos. Que elite "sobre-humana"! Sloterdijk prova com a sua retórica "biopolítica" que já se despediu da intelectualidade reflexiva e está a avançar para a bestialidade social das ciências naturais com efeitos sociais. Isto são munições para a desumanização na concorrência de crise social, mas não um caminho para qualquer futuro.

Face a tais projectos biologistas "Zaratustra", a intelectualidade democrática Habermas faz soar o alarme, que, no entanto, não dá em nada. De onde vem toda esta bestialidade, se não do ventre da sua amada "economia de mercado e democracia" em si? O que é necessário é a crítica emancipatória radical da democracia, que não é senão o modo auto-repressivo da cega máquina de dinheiro capitalista. Também a intelectualidade democrática à la Habermas nunca tomou uma posição fundamental contra a vergonha e a desonra da existência de "mercados de trabalho"; nem sequer compreende por que razão deveria haver qualquer vergonha e desonra nisso. Muito menos quer reconhecer a autodestruição logicamente programada e irreversivelmente agudizada da "economia de mercado e democracia", na qual se torna visível a impossibilidade de continuar a reprodução social através dos "mercados de trabalho".

Nestas circunstâncias, o que vale ainda o alarme de uma intelectualidade democraticamente "domesticada" contra os novos biologismo e darwinismo social? Nada. Pois é o eco da sua própria história que ressoa nos ouvidos da intelligentsia burguesa republicana. A triste celebração da democracia de Paulskirche de 1848 sempre negou que é precisamente a partir daí que o rasto leva aos nazis. As "ideias de 1848" foram o precursor das "ideias de 1914"; o democratismo andou de mãos dadas com o nacionalismo desde o início. Assim, os intelectuais democratas-esquerdistas recebem hoje mais uma vez a conta por nunca terem atravessado o Rubicão da crítica categorial do moderno sistema de produção de mercadorias. Não deveria dar-lhes que pensar o facto de na "cultura Suhrkamp" as suas obras estarem agora lombada com lombada com as dos novos nacionalistas alemães, etnicistas e biologistas?

Contra as bolas de demolição social dos neoliberais (incluindo os caseiros partidos democratas de esquerda "verdes-rubros" e seus heróis das "exigências de razoabilidade") e contra o novo nacionalismo e biologismo étnicos, Habermas só pode defender o democrático livro de estudos sociais dos tempos do milagre económico, enquanto, ao mesmo tempo, ele e os seus semelhantes querem estilizar as acções de apaziguamento da polícia mundial dos "leviatãs democráticos unidos" como sendo uma nova "política interna mundial" de "direitos humanos" (justamente por meio de bombardeamentos de área). Tudo isto faz lembrar desesperadamente as recomendações das autoridades de defesa civil durante a Guerra Fria para segurar uma pasta sobre a cabeça depois de uma explosão nuclear. É a própria "política democrática", com o seu disparatado frenesim de configuração em relação ao que ainda era "desastre" e "ilusão" para Adorno, que se transforma nos fantasmas a-humanos da "biopolítica" e da "política da espécie" no fim da escravatura do mercado de trabalho. Sloterdijk pode escarnecer: "A teoria crítica está morta" (Die Zeit 37/1999). Os rúnicos escritos democráticos de apoio ao Estado da hipocrisia histórica e social não podem constituir um antídoto contra os discursos desumanizadores de Nolte, Strauß, Walser, e Sloterdijk, que se erguem das gritantes contradições internas da modernidade em ruptura e, de qualquer modo, têm as audiências democráticas do seu lado.

É claro que esta não é uma constelação apenas alemã, embora tenha as suas raízes históricas na Alemanha. Em todo o mundo, e mais flagrantemente nas regiões em colapso económico, a impossibilidade de sobrevivência no capitalismo, negada pela fraseologia democrática, traduz-se nas formas de exterminadora concorrência nacional, "étnica" e pseudobiológica. Como reverso da economia empresarial transnacional, o pensamento em categorias de loucura étnica está a florescer em todas as partes da Terra. Mas mesmo assim, a história não se repete como uma imagem no espelho. O défice democrático é também reconhecível no facto de o carácter da ameaça de barbárie ser menosprezado. O totalitarismo político da primeira metade do século XX, que não foi entendido como o protótipo do totalitarismo económico nas democracias do pós-guerra, surge, precisamente por isso, como perigo de repetição imediata. Na realidade, estamos a lidar com o processo oposto: O totalitarismo económico fracturante das democracias está a desintegrar-se em estilhaços pseudopolíticos.

A particularização da sociedade capitalista é imparável, justamente no seu desaparecimento. O renascimento do darwinismo social é também filtrado através do paradigma microeconómico revitalizado. Se a primeira naturalização e biologização burguesa do social na viragem do século XVIII para o XIX esteve sob o impacto do individualismo liberal, e o apogeu das ideias de darwinismo social e de "higiene racial" um século mais tarde coincidiu com a ascensão do Estado regulador imperial e com a modernização das ditaduras, a biologização pós-pós-moderna, a etnicização e outras radicalizações da concorrência no limiar do século XXI acaba por ser a continuação da economia empresarial por outros meios. Já não se trata, portanto, da produção ditatorial ou democrática de uma unidade social, de uma universalidade produtora de mercadorias. Em vez disso, paradoxalmente, mesmo o nacionalismo étnico na sociedade de crise transnacional acaba por se revelar uma espécie de seita. A ditadura já não é uma estrutura universal orwelliana, mas ela própria aparece sob uma forma particular, porque agora só pode executar o processo de dissolução social, em vez de formar o espartilho obrigatório para uma formação social.

O "discurso apocalíptico" que resulta desta dissolução produziu as suas conclusões que irradiam para a Europa, especialmente em França. Enquanto na Alemanha o conformismo democrático apoiante do Estado e o fantasmático discurso étnico-biologista ocupam o debate, em França a nova qualidade é mais fortemente percebida na decadência quase empresarial do político. O cientista político francês Jean-Marie Guéhenno, que favorece a ideia fantasmática de um novo "império" a funcionar de acordo com os princípios "asiáticos", que é suposto emergir da desintegração dos Estados-nação burgueses, fala logicamente sobre "O Fim da Democracia". Fiel ao modelo da teoria dos sistemas / cibernético, a nova estrutura imperial deve ser "sem centro", mantendo ao mesmo tempo formas sociais capitalistas de relacionamento em estruturas atomizadas:

 

"Os empregados individuais de uma empresa moderna estão demasiado isolados para que surjam laços solidários entre eles, demasiado desenraizados para encontrar na noção de classe social uma resposta ao seu desejo de pertença [...] O calor reconfortante de um grupo homogéneo e simplista é então uma tentação natural. Para aqueles que consideram a ideia de nação cada vez mais abstracta, para aqueles que são excluídos da integração na empresa, para aqueles que a empresa isola em vez de os conduzir à comunidade, o grupo pode aparecer como o quadro natural em que todos encontram a sua identidade. O ser humano moderno – sem ligações a um território, 'nómada' e no entanto preso numa função, privado de uma localização que pudesse dar sentido ao seu trabalho, um nó tecido, infinitamente reproduzido da sociedade e no entanto sempre solitário – está assim condenado a encontrar a sua particularidade na busca das suas origens. Ele precisa delas para poder partilhar com os outros, também 'especiais', o sentimento de uma pertença comum" (Guéhenno 1994, 70ss.).

 

A "ideia de nação" também pode parecer abstracta como tal, mas pode ligar-se a "grupos", ou antes a bandos, que nada mais precisam do que uma imagem do inimigo. O velho discurso burguês do extermínio, que do ponto de vista das elites funcionais transnacionais visa as massas das "classes perigosas" de "supérfluos" potenciais ou manifestos – também aparece nestas mesmas massas como a penetrante definição "micro-social" de um qualquer "nós" irracional contra os "outros" a exterminar. Nas condições de uma economia empresarial globalizada, estas definições já não têm qualquer capacidade de generalização social; quando muito, "políticos dos media" demagógicos na linha de um Reagan nos EUA, um Haider na Áustria, um Berlusconi em Itália ou, por outro lado, um Blair na Grã-Bretanha e um Schröder na Alemanha podem pescar votos com elas. Tais figuras de certo modo virtuais já não são "líderes" de um verdadeiro movimento de massas. Em vez disso, sob o firmamento dos media, formam-se através do processo de crise aqueles grupos ou gangues com muitos pequenos "líderes", que já não têm um projecto social, um "império", uma pretensão imperial.

A exclusão e o extermínio dos "outros" tem lugar a um nível "molecular" paralelo à diferenciação da economia empresarial transnacional. Esta forma molecular da darwinização pode assumir muitas faces. As imagens do inimigo e objectos de extermínio ostentam os nomes antigos ou mesmo novos: Judeus, estrangeiros, deficientes, pessoas de cor, "associais", não-humanos, sub-humanos ... Mas quem se enquadra no seu âmbito, isso é determinado pelo respectivo bando. Podem também ser os vizinhos da região ao lado e do outro bloco de apartamentos ou os membros de outros bandos rivais. E o conceito destes bandos é também amplo. Podem ser bandos de jovens e da rua, bandos de ladrões comuns, ligações mafiosas, milícias "étnicas" e sociedades secretas de todos os tipos, mas também clãs familiares (especialmente em regiões do mundo onde esta estrutura arcaica sobreviveu sob a sociedade oficial, como no Próximo Oriente, Ásia, África e partes da América Latina) e por último, mas não menos importante, seitas religiosas.

O discurso biologista e etnicista mistura-se com ideias religiosas ecléticas e um esoterismo caótico. Ideologicamente isto não é novidade, basta pensar na estranha mistura na mente do "Cromwell alemão" Erich Ludendorff. O que é novo é que estes sincretismos selvagens já não podem ser socialmente sintetizados sob as condições do capitalismo de crise globalizado. Os novos Hitlers não passam de chefes de gangues, milícias ou mesmo seitas e exercem eles próprios o seu reino de terror à escala molecular. Enquanto em certos distritos ou regiões bandos étnicos ou milícias caçam os "Outros étnicos", estes programas de exclusão e assassinato correm frequentemente em paralelo com lutas sectárias religiosas ou sobrepõem-se a elas (por exemplo, no Kosovo, no Cáucaso etc.).

Estes fenómenos de "guerra civil molecular" (Hans Magnus Enzensberger) há muito que se propagaram aos países industriais centrais. Se na Alemanha oriental bandos etnicistas estão a criar depósitos de armas, em Londres sociedades secretas racistas estão a realizar ataques com explosivos contra pessoas de cor, ou nos EUA, na Suíça etc. seitas suicidas e apocalípticas estão a dar que falar, jovens magos negros e adoradores de Hitler estão a realizar "massacres nas escolas" etc., tais desenvolvimentos estão todos na mesma linha. As famigeradas seitas suicidas representam, por assim dizer, a versão de bando do amoque individual, com a variante mais agressiva das seitas apocalípticas, que, com ataques terroristas completamente sem objectivo, ultrapassam mesmo a actuação étnico-racista (que, no entanto, está frequentemente em segundo plano também entre elas). Estas pontas de lança da insanidade social também vêm do "centro" da sociedade. Assim se fala da seita japonesa Aum Shinrikyo, tornada famosa pelo seu ataque de gás venenoso no metro de Tóquio:

 

"A seita inclui alguns dos mais promissores e inteligentes jovens japoneses [...] Uma curiosidade particular é que Fumihiro Joyu, o porta-voz da seita de 32 anos, é agora adorado por teenagers de todo o Japão e tornou-se a estrela número um dos media da noite para o dia. As moças e mulheres jovens de todo o Japão estão enamoradas com o bem-apresentado e bem-falante licenciado em engenharia de uma das universidades de elite do país, a Universidade Waseda [...] O líder da seita, de 40 anos, Shoko Asahara, foi preso em ligação com os ataques de gás no metro juntamente com mais de uma centena de membros de alto nível da seita. Asahara [...] é o sexto de sete filhos de um paupérrimo fabricante de tapetes tatami. Os seus assistentes ainda muito jovens são licenciados das universidades mais famosas do Japão (incluindo Tóquio, Keio e Waseda). E para o governo foi um choque e ao mesmo tempo embaraçoso quando se soube que 30 soldados do exército japonês eram membros da seita [...]" (Naisbittl995, 69ss.).

 

Nem os vários bandos demoníacos recrutam unilateralmente de entre aqueles que já caíram fora de uma forma ou de outra, nem são apenas um fenómeno que surge do discurso de extermínio dos "In" contra os "Out". Pelo contrário, são uma mistura de grupos sociais, personagens e motivações que se tornaram altamente instáveis. Onde quer que o Estado democrático se retire sob "reserva de financiamento", surgem "territórios cinzentos" de terror, complementando o terror do Estado democrático e continuando-o sob formas "moleculares". O alto executivo e publicista francês Alain Minc vê emergir uma "Nova Idade Média" nestas formas decadentes de civilização capitalista:

 

"Desde Hegel, acreditamos que o Estado é o objectivo final natural de toda a organização social. Erro! Acontece que os Estados se retiram contra a sua vontade, como a maré, e revelam realidades bastante estranhas [...] Existe caminho mais curto para o regresso à Idade Média do que aquele que passa pelo número crescente de zonas fora de qualquer autoridade legal? [...] De repente, tudo se inverte: Vastos espaços regressam a um estado de natureza; a ilegalidade espalha-se novamente no meio das democracias mais avançadas; a máfia já não aparece como um fenómeno arcaico que em breve desaparecerá, mas como uma forma social cada vez mais generalizada; há bairros nas cidades que já não estão sujeitos à autoridade do Estado e que se precipitam para uma preocupante situação extra-estatal [. ...] Novos bandos armados, novos saqueadores, nova 'terra incognita': não faltam ingredientes para uma nova Idade Média [...] Mas as nossas instituições ainda não estão conscientes desta convulsão: não se apercebem que ocupam uma posição minoritária em todo o mundo e que mesmo no Ocidente estão a perder uma parte cada vez maior da sociedade [...]" (Minc 1994, 71ss.).

 

Tais reflexões deslizam sobre uma superfície opaca. Claro, "Idade Média" é apenas uma metáfora, e provavelmente uma metáfora inapropriada. Aquilo a que chamamos a "Idade Média" com um oco termo de época foi uma civilização agrária cujas deficiências não estão aqui em discussão. O que Minc e outros descrevem, por outro lado, é um processo de descivilização, que o capitalismo necessariamente desencadeia no fim do seu "desenvolvimento" frenético. A "tolerância zero", como seria de esperar, não apazigua a sociedade, mas torna-se factor da sua dissolução acelerada. Os "aparelhos de segurança" começam a decair e a apodrecer a partir do interior; tornam-se cada vez menos diferentes dos bandos. Para além dos aparelhos estatais miseravelmente pagos, que caem vítimas da corrupção e se encaixam em estruturas mafiosas, as corporações transnacionais formam as suas próprias culturas de terror. Nos espaços de trânsito e nas "ilhas flutuantes" da economia empresarial transnacional, emergem Estados "desterritorializados" dentro do Estado, tal como nas "zonas cinzentas" das regiões abandonadas em colapso.

No contexto de uma darwinização geral do pensamento e de um asselvajamento das relações sociais, "economia de mercado e democracia" decompõem-se em estruturas particularizadas de luta "pela existência". Sejam empresas transnacionais com exércitos privados e os seus próprios serviços secretos, sejam grupos de mercenários e esquadrões da morte semelhantes a empresas, sejam milícias "étnicas", seitas apocalípticas ou bandos neonazis: O mapa da descivilização está a tomar forma enquanto o circo mediático continua assustador e o plástico discurso democrático cresce cada vez mais ignorante e oco a cada dia que passa. Tal como a democracia sempre foi precedida pela "quarto poder" da máquina capitalista, também agora, como resultado das disfunções irreparáveis dessa máquina na Terceira Revolução Industrial, ela é sucedida pela "quinto poder" dos bandos. Não há revolta emancipatória, mas todos começam a armar-se.

A ultima ratio de extermínio e auto-extermínio é a primeira e última palavra do capitalismo. Isto só pode ser chamado de "apocalipse" sob condição. Pois as ideias religiosas e míticas do colapso do mundo continham sempre a promessa de um outro mundo rejuvenescido. Neste sentido, porém, os pregadores do sistema de terror económico da "economia de mercado e democracia" já nem sequer são apocalípticos, apesar da crise mundial incontrolável deste modo de produção e vida. O espírito do tempo "biopolítico" da concorrência de ódio asselvajada aparece como Spengler redivivo; e o Ragnarök neoliberalmente mediado poderia ter sucesso como destruição "molecular" endémica da sociedade humana em geral. O credo do capitalismo, desta maior seita apocalíptica de todos os tempos objectivada no sistema mundial total, reza assim: Depois deste, não deve vir nenhum outro mundo.

 

 

Original Kasinokapitalismus: Die Dämonen erwachen, pags. 427-438 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (7.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em curso em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

 

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