Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

Epílogo

 

 

Pessoas privadas de qualquer autodeterminação das suas vidas sob o ditame da "responsabilidade pessoal" capitalista, não sendo elas próprias nada, inevitavelmente pedem uma "receita" quando se vêem sem saída no seu modo de viver. Apenas provam assim que até a ultrapassagem do capitalismo querem manter presa nas categorias capitalistas. Pois uma "receita" já pressupõe que a autodeterminação a que se aspira tem de proceder de acordo com os padrões prefabricados de uma instância externa, ou seja, que a si própria se desmente. O que pode ser dado não são "receitas" de acordo com um sistema social de construção modular (que não seria senão tecnologia social, que só pode ter lugar no capitalismo), mas sim critérios de emancipação. A "horizontal mal-comportada" não começa com o desenrolar de um programa preconcebido, mas sim com a rebelião social contra as imposições ultrajantes da "economia de mercado e democracia".

É preciso unir a crítica teórica radical e a rebelião, não a "ética" enfraquecida e o apelo a uma "justa" administração democrática da humanidade. O conceito de "justiça social" faz parte do vocabulário plástico dos políticos dos media, ou seja, do discurso da administração democrática da crise. Com ele não se exige a libertação da produção de riqueza das absurdas restrições capitalistas, mas a protestante atribuição "justa" de rações de necessidade, precisamente sob este ditame da falsa lei natural. Assim, em Julho de 1999, o chamado "Apelo Duisburg" de uma iniciativa dita "Renúncia para todos", significativamente instigada pelo protestante "Serviço da Igreja no Mundo do Trabalho", exigiu com toda a seriedade "aumentos zero também para os trabalhadores com melhores salários" – a "planeada ligação dos empregados à renúncia dos reformados" deve ser "complementada pela solidariedade de todos os outros" (Nürnberger Nachrichten, 30.7.1999). É uma ideia simplesmente tola reagir à catástrofe de natureza social do capitalismo com uma "solidariedade" meramente negativa, como se se tratasse da visitação de um Deus irado que pudesse ser apaziguado pela "renúncia" geral. Para além do facto de esta "renúncia" não fazer qualquer sentido económico (nas condições da Terceira Revolução Industrial, não desviaria o dinheiro do consumo para o investimento real, mas sempre apenas para a bolha especulativa), tais iniciativas indicam que, após a alegada "morte da crítica", a ética regurgitada à saciedade só pode transformar-se em tolice, em vez de traçar uma linha de resistência contra a barbárie aberta.

Mas, mesmo no sentido positivo da "redistribuição" monetária, não se vai a lado nenhum; o keynesianismo esgotou-se objectivamente, e já não pode ser reavivado, muito menos por apelos morais: A ética da redistribuição tornou-se tão insignificante como a ética da renúncia. Todo o circo ético, cujas actuações se tornaram cada vez mais idiotas nos anos 90, tem como premissa tácita a submissão incondicional à forma capitalista dominante da sociedade. É por isso que os modelos éticos de acção social só podem ser concebidos na forma fetichista do dinheiro, que preenche o espaço social como um omnipresente meio de fim-em-si. Mas mesmo que todos os multimilionários tivessem de dar parte dos seus activos financeiros aos pobres deste mundo, isto talvez nem sequer resultasse num punhado de arroz para cada um dos mil milhões de pessoas que passam fome. O problema não é a "justiça" na forma social vigente, mas a forma em si.

As tarefas que precisam ser resolvidas são de uma simplicidade quase comovente. Trata-se, em primeiro lugar, de utilizar os recursos e materiais naturais, equipamentos e, não em último lugar, competências humanas, reais e abundantemente existentes, para que seja garantida a todas as pessoas uma vida boa e aprazível, livre da pobreza e da fome. É desnecessário referir que há muito tempo que isso seria possível facilmente se a forma de organização da sociedade não impedisse sistematicamente esta pretensão elementar. Em segundo lugar, trata-se de pôr fim à catastrófica má alocação de recursos, na medida em que são mobilizados à maneira capitalista em projectos piramidais sem sentido e em produções destrutivas. Escusado será dizer que estas "más alocações", tão óbvias como perigosas, também são causadas justamente pela ordem social vigente. E, em terceiro lugar, finalmente, por maioria de razão é de interesse elementar traduzir o fundo de tempo social enormemente aumentado pelas forças produtivas da microelectrónica num lazer igualmente grande para todos, em vez de "desemprego em massa", por um lado, e aumento do stress no trabalho, por outro.

O facto de ter sido completamente recalcado na consciência social o que é evidente e realmente nem precisa de ser dito, como se tivesse sido pronunciado um feitiço, apresenta os traços de uma história da carochinha incrível, em que o absurdo parece normal e o óbvio parece incompreensível. Apesar do facto gritantemente evidente de o uso mesmo moderadamente racional dos recursos comuns se ter tornado totalmente incompatível com a forma capitalista, discutem-se apenas "concepções" e procedimentos que pressupõem exactamente esta forma.

Não é um problema material técnico nem organizativo, mas apenas uma questão de consciência. Para poder sobreviver civilizadamente, a humanidade tem de se livrar da lavagem cerebral do liberalismo e do seu sistema de Bentham, ou seja, de certo modo, deitar fora novamente as restrições e imposições internalizadas da cega máquina do dinheiro, para poder enfrentar imparcialmente a relação entre os recursos disponíveis e a sua razoável aplicação social. Isto significaria já não querer agrupar as formas, categorias e critérios sociais dominantes em qualquer outra combinação, mas simplesmente aboli-los. Toda a operação de "trabalho" abstracto, racionalidade de economia empresarial, compulsão de crescimento e economia de mercado, reprodução social através de "mercados de trabalho" sob a direcção do fim-em-si do capital monetário e da sua "valorização" – todo este contexto sistémico, que se tornou insustentável, só pode ser encerrado. O que é necessário é uma "destruição de máquinas" socioeconómica mundial contra a máquina mundial do capital, na verdade horrivelmente má, a fim de a deter e desmantelar, antes que expluda completamente e arraste consigo para a ruína os restos da civilização humana.

A tarefa é como a de um "selvagem" supersticioso (e o verdadeiro "selvagem" é o homem moderno capitalistamente domesticado) que só pode salvar a vida quebrando um tabu profundamente enraizado e totalmente sem sentido. Este tabu é o da santificada tríade de "trabalho" abstracto (produção de mercadorias para mercados anónimos), rendimento monetário e consumo de mercadorias de acordo com o "poder de compra". O nó górdio do "enigma do dinheiro" não pode ser desatado, mas apenas, por assim dizer, cortado com uma espada. É claro que não há sinais de que este tabu tenha sido quebrado em lado nenhum. Tal como as pessoas do século XVIII e início do XIX preferiam muitas vezes morrer à fome em vez de se submeterem aos ditames da máquina do dinheiro, também hoje, aparentemente, o material humano domesticado por esta máquina prefere morrer à fome em vez de sacudir a sua enraizada subjectividade fetichista do dinheiro. A crítica do dinheiro, virado fim-em-si como capital, deste ofuscante atestado da paranóia social, está no entanto presente na crise como um espectro. De outro modo não se pode explicar o facto de dois economistas do "Clube de Roma", Orio Giarini e Patrick M. Liedtke, defenderem os seus projectos de trabalho forçado e baixos salários numa estranha passagem contra um adversário completamente invisível:

 

"De modo nenhum se pode falar de um regresso às velhas utopias do século passado ou a novas utopias que sonham com uma sociedade sem dinheiro. O dinheiro foi uma das criações essenciais da civilização, porque foi através da sua introdução que o verdadeiro progresso (!) se tornou possível pela primeira vez. Claro que é da natureza do ser humano que o dinheiro [...] pode ser mal utilizado [...] Mas deve ser igualmente claro que as velhas utopias do passado de uma sociedade sem dinheiro eram na realidade esforços inconscientes para fugir às realidades e oportunidades (!) modernas, e que apenas reflectem resistência a uma possível nova melhoria. Seja qual for o mito inventado, uma sociedade da idade da pedra (!), especialmente numa situação de interdependência humana maciça, não é viável, e muito provavelmente conduziria à catástrofe. Uma vez que o nosso sistema económico actual se baseia em grande medida na utilização do dinheiro – e não queremos alterar isso – é de importância fundamental que cada indivíduo tenha acesso a uma certa quantia de dinheiro para pagar as coisas mais necessárias na vida [...]" (Giarini/Liedtke 1998, 191s.).

 

O fantasma da crítica do fetiche do dinheiro já tem de estar a causar um forte pânico quando se lançam argumentos tão fracos contra ele numa batalha de sombras. Até ao início da modernização, o dinheiro era um meio totalmente marginal, para a troca de produtos excedentários ou (no comércio de longa distância) de artigos especiais, como sedas, metais etc. entre produtores independentes, enquanto que a reprodução diária era quase toda "de economia natural", sem dinheiro nem mercado. A grande maioria das invenções e realizações civilizacionais em toda a história humana anterior ao século XVII surgiu sem qualquer dependência da forma de dinheiro. É apenas um sinal do fetichismo dos economistas o facto de eles pretenderem que o "verdadeiro progresso" seja válido apenas como expressão da forma de dinheiro, pelo que a invenção da agricultura, da criação de gado, da roda, da escrita, da pintura e de inúmeras outras realizações deveriam ter sido, aparentemente, um progresso "falso". O dinheiro, porém, não se tornou uma forma comum de relação social através de qualquer progresso humano, pelo contrário, foi apenas através da introdução forçada e sangrenta dos "mercados de trabalho", com os quais os primeiros déspotas militares modernos transformaram as pessoas no material da sua fome de dinheiro.

Como escravos "livres" de uma irracional máquina social de mercados anónimos, os membros da sociedade tiveram de se subordinar às leis do movimento do capital monetário autonomizado, até ao auto-sacrifício social, cujo auge parece ter sido atingido hoje. Não são propriamente os "produtores independentes" que no capitalismo "trocam" os seus produtos por meio do dinheiro, como a ideologia dos economistas gostaria de nos fazer crer. Pelo contrário, trata-se de agregados altamente socializados, em que as pessoas já não se reproduzem isoladas umas das outras em economias familiares, mas em interacção social directa. Mas é justamente esta reprodução altamente socializada que é controlada por uma forma ou meio que só originalmente teve o seu significado relativo e marginal na relação entre economias familiares realmente independentes!

A "interdependência maciça" em agregados imediatamente sociais fala assim precisamente contra a forma de dinheiro, que nestas circunstâncias é tão louca como se as pessoas que vivem na mesma casa só pudessem comunicar entre si por telefone via satélite. Com um grau de socialização tão elevado, a forma de dinheiro não é precisamente uma forma de comunicação humana, pelo contrário, todas as relações humanas estão sujeitas ao ditame de uma coisa furiosamente em processo, incompreensível e incomunicável. Que deturpação atrevida denunciar a crítica desta loucura como o "mito" de uma "sociedade da idade da pedra"! Com isto, os economistas provam mais uma vez que só querem equiparar o fantasma do "não-dinheiro" à extrema primitividade, porque a libertação do fim-em-si capitalista excede o seu intelecto fetichistamente doutrinado. Assim, apressam-se a psiquiatrizar antecipadamente todos os representantes imagináveis de uma crítica a este fetichismo como pessoas que "inconscientemente" quereriam "fugir" às "hipóteses" de modernização (sendo o trabalho forçado e os salários baratos a última palavra!). Porque "o nosso actual sistema económico" é "baseado no uso do dinheiro", nada deve ser feito; o não-argumento tautológico de que deve ser assim porque assim é anuncia o fim de qualquer capacidade capitalista de argumentar.

Também nunca foi verdade que o dinheiro, como é frequentemente afirmado, seja pelo menos uma espécie de "medida do desempenho", quando já não pode ser um meio de troca de produtores independentes, devido ao elevado grau de socialização. Nem as grandes fortunas monetárias, dos conquistadores aos Rockefellers, foram acumuladas por outros meios que não fossem "desempenhos" assassinos e destrutivos, nem o "desempenho" na vida capitalista quotidiana é outra coisa que não sinónimo de falta de escrúpulos, por um lado, e de auto-opressão, por outro; referindo-se sempre a uma forma de actividade incompreensível e altamente irracional. Na Terceira Revolução Industrial, mesmo este conceito irracional de desempenho leva ao absurdo; nestas condições, já não pode haver qualquer conceito significativo de desempenho individual, porque a potência produtiva real há muito que está contida no agregado social cientificizado. A flatulência do capitalismo de casino torna a forma de dinheiro como "medida de desempenho" completamente ridícula.

O pânico dos economistas perante o fantasma da crítica do dinheiro é também evidente na falsa referência às alegadas "velhas utopias" de um "século passado". Na realidade, uma crítica consistente à forma de dinheiro nunca existiu até agora, excepto no aspecto "esotérico" da teoria de Marx, sistematicamente suprimido pelo marxismo do movimento operário. Para além de algumas observações moralizantes contra o "vil Mamon", tanto os utópicos como os anarquistas e o marxismo nunca criticaram o fetiche do dinheiro como tal, mas sempre se limitaram a tratar de formas de substituição do dinheiro ou de uma moderação estatal-leviatânica desta forma social não ultrapassada. Uma crítica radical do fetiche do dinheiro, contudo, não pode preocupar-se com uma superficial "abolição do dinheiro" na sua manifestação imediata, mas sim com a abolição das relações sociais subjacentes a esta forma, ou seja, precisamente do sistema de "trabalho" abstracto, "mercados de trabalho", racionalidade da economia empresarial e mercados anónimos de mercadorias, cujo resumido meio de fim-em-si é apenas o dinheiro.

Que o verdadeiro problema só agora está a chegar a uma ruptura, após várias centenas de anos de domesticação, torna-se involuntariamente claro na estranha formulação de Giarini/Liedtke de um "regresso a novas utopias", porque de facto é uma espécie de "regresso ao futuro": a Terceira Revolução Industrial coloca inevitavelmente na ordem do dia o problema em que falharam as velhas revoltas sociais contra o sistema de terror do "trabalho" abstracto. É claro que não pode haver regresso a estas constelações sociais nem ligação com o nível de consciência dessas revoltas. Mas, numa fase muito mais avançada do desenvolvimento, coloca-se novamente a questão de como as forças produtivas, que há muito deixaram de estar organizadas sob a forma de empresas familiares independentes, devem ser postas na forma de um entendimento consciente entre os membros da sociedade, em vez de serem controladas por um mecanismo cego e anónimo.

O mero fantasma deste pensamento razoável já é denunciado por Giarini/Liedtke como um "caminhar para uma catástrofe". Na verdade, é exactamente o contrário: o capitalismo, ou seja, o sistema de "mercados de trabalho" e economia monetária generalizada é que já conduziu a uma catástrofe. A "mão invisível" açoita cegamente e destrói todos os padrões mínimos de civilização, precisamente porque as possibilidades humanas foram tremendamente aumentadas! Não é a realização de alguma utopia sonhadora e "irrealista" que está na ordem do dia, pelo contrário, é a negativa utopia do capitalismo realizada que tem de ser parada no seu amoque socioeconómico, a fim de escapar aos dogmas loucos do dinheiro através do entendimento social consciente, e pela primeira vez deliberar pragmaticamente (ou seja, não seguindo uma lei fetichista sem sentido e independente das necessidades) sobre a utilização sensata dos recursos e das forças produtivas.

Os economistas já estão axiomaticamente afastados deste pensamento elementarmente razoável; o seu "realismo negativo" só pode referir-se ao sistema categorial da "bela máquina", que para eles é idêntico à socialidade em geral. Também é a isto que está vinculado o "capital humano" do seu sectário saber sacerdotal. Se a humanidade se libertar da máquina capitalista, quase toda a literatura económica dos últimos trezentos anos será "desvalorizada" de repente, juntamente com o seu sistema social de referência. Este sistema de pensamento, fixado como um corpus escrito, será então tão histórico como os antigos livros dos mortos dos Egípcios ou os rituais sacrificiais dos Maias. Nada se pode esperar dos economistas para a crítica da economia tornada necessária à sobrevivência.

A ideia de uma consulta social permanente sobre a utilização dos recursos já aponta para uma possível estrutura institucional que possa substituir "economia de mercado e democracia": nomeadamente "conselhos", assembleias consultivas de todos os membros da sociedade a todos os níveis da reprodução social. Simplesmente reunir e tomar as coisas nas próprias mãos, sem se deixar intimidar pela administração capitalista de seres humanos e sem se deixar submeter desnecessariamente a ridículas rações de necessidade – só nisto se pode representar o desencadear da "horizontal mal-comportada". As abordagens históricas, sempre curtas, dos "conselhos" desde a Comuna de Paris falharam porque permaneceram presas nas categorias capitalistas de "trabalho" abstracto, forma de dinheiro, mediação do mercado e "política", isto é, porque não conseguiram afirmar o seu próprio ponto de vista contra as formas fetichistas dominantes. Por outro lado, nas condições da Terceira Revolução Industrial, só os "conselhos" poderiam de facto tomar o lugar da forma monetária e dos mercados anónimos. Ao mesmo tempo, a microelectrónica disponibiliza para isso a possibilidade de uma rede de comunicação global, que pode facilmente minar todos os centros de dominação da administração "vertical" de seres humanos.

Para que a "horizontal mal-comportada" possa funcionar, é necessária uma consciente "cultura do palavreado"; por outras palavras, precisamente o que para Ford e Lenine era o horror da eterna "tagarelice", que podia interferir com a sua bela máquina social. É exactamente disso que se trata: falar sobre as coisas e ponderá-las, em vez de se submeter a uma máquina de desempenho abstracto cega e destrutiva, e funcionar como sua engrenagem. Haverá tempo para palavreado; e não só através das forças produtivas da Terceira Revolução Industrial, mas também através da perspectiva de encerrar sem substituição todas as produções destrutivas e sem sentido que apenas servem para manter o sistema capitalista (desde a gestão do dinheiro até aos incómodos sinos mediáticos da "publicidade").

O problema crucial é se, na desestabilizada sociedade de crise mundial do capitalismo do início do século XXI, consegue surgir um foco de ideias e de organização que ouse formular uma crítica radical e seja capaz de lhe dar um rosto. É ainda a esquerda, no sentido mais lato, a única que pode fazer isso. Mas, no que diz respeito à verdadeira tarefa, o caminho foi aberto exactamente ao contrário desde os anos 80. A esquerda, por natureza apanhada nas categorias capitalistas, tirou do fim do socialismo de Estado a consequência completamente inapropriada do desarmamento teórico, abandonando amplamente a crítica da sociedade para se fazer passar por aluno modelo da lógica da rentabilidade. A negligência intelectual e moral da esquerda Armani no governo progrediu a tal ponto que já se tornou irreversivelmente parte integrante da administração da crise capitalista, da repressão social e da barbarização das condições.

No entanto, uma parte maior da esquerda em todo o lado está em fase de latência indefinida. Ainda é possível fazer uma inversão de marcha e enfrentar as experiências catastróficas dos anos 90. A esquerda tem de compreender que não foi "demasiado radical", pelo contrário, nunca foi suficientemente radical. Não é uma adaptação mais forte à lei económica do capitalismo que está na ordem do dia, mas sim a ruptura total com esta lei. A esquerda tem de criticar a sua própria história, expor o seu apriorístico apego ao mundo burguês e romper com ele. As lutas imanentes ao sistema dos últimos cem anos, com as quais a esquerda arrancou do capitalismo, sempre apenas temporariamente, um mínimo nunca suficiente de gratificações sociais e uma limitação das piores imposições, só não terão sido em vão se esta esquerda encontrar a coragem, no fim definitivo da história capitalista, para sair da jaula de ferro da "economia de mercado e democracia".

A teoria de Marx não foi refutada, só agora está a ganhar a sua veracidade histórica; mas apenas se for escovada a contrapelo do marxismo do movimento operário, e finalmente lida como uma crítica radical do moderno fetichismo do sistema de produção de mercadorias. A ideia de emancipação social tem de parar de se deixar repetidamente seduzir na armadilha do liberalismo e ser caçada entre os pólos capitalistas do mercado e do Estado. Mercado e Estado são as duas faces da mesma moeda, e é uma evasiva barata estabelecer o mercado como "sem alternativa" após o colapso do socialismo de Estado, como se a crítica estatal-capitalista do sistema de concorrência fosse a única possível. A verdadeira alternativa é a autogestão da sociedade através da "horizontal mal-comportada" de um sistema de conselhos abrangente; e essa autogestão é o oposto não só do Estado, mas também do mercado.

Tal reformulação da crítica radical, no entanto, só é possível numa perspectiva que já não fique cega pela falsa ideia de progresso da "modernização", que hoje definitivamente se expõe como sinónimo de degradação social, empobrecimento e dessolidarização. É precisamente nesta fixação na "modernização", que nunca foi outra coisa senão o cego processo de desenvolvimento capitalista, que se manifesta o cativeiro babilónico da esquerda no sistema burguês de pensamento. Desde que o "antimodernismo" das antigas revoltas sociais foi sufocado no próprio sangue pelos regimes terroristas do liberalismo, a ideia de emancipação social foi incapaz de se posicionar contra a perfídia da "novilíngua" e do "duplipensar" da filosofia do iluminismo, pela qual a submissão à escravatura do sistema moderno foi vendida como epítome da liberdade. No lugar do antimodernismo emancipatório e socialmente rebelde veio aquele antimodernismo reaccionário, de "direita", que na verdade sempre foi um derivado do próprio pensamento burguês do iluminismo. Esta pseudocrítica de direita da modernidade foi capaz de libertar o potencial demoníaco do capitalismo; apenas demonstrou o irracionalismo da própria racionalidade burguesa, a fim de instrumentalizar o lado escuro da modernidade para os massacres da "modernização".

A falsa contraposição de uma boa modernidade iluminista, que seria de ocupar pela esquerda, a uma antimodernidade negativa, supostamente contrária ao iluminismo e que idolatra uma "Idade Média" fantasmática, é uma armadilha ainda maior. Também a este respeito estamos a lidar com os dois pólos da própria modernidade capitalista. No limiar do século XXI, é necessária uma nova "antimodernidade emancipatória", que já não se deixe instrumentalizar e tomar por tola pelos antagonismos no interior do capitalismo, mas que leve a julgamento toda a história da modernização no auge da Terceira Revolução Industrial. Esta ideia não tem de assustar, pois um novo antimodernismo emancipatório pode facilmente distinguir-se do falso antimodernismo reaccionário, e nunca irá apertar a mão a de Benoist e Cª.

O antimodernismo de direita é sempre irracional e biologista; prolonga o liberal naturalismo do social nas mitologias darwinistas da raça e do povo. O antimodernismo emancipatório, pelo contrário, só pode ser a ruptura completa com qualquer tipo de naturalização do social; concebe a sociedade como um plano de existência sui generis que só pode ser decifrado em categorias sociais, psicológicas e históricas. O antimodernismo de direita é sempre anti-solidário, excludente e cheio de discursos de extermínio; mais não representa do que a continuação da concorrência por outros meios. O antimodernismo emancipatório, pelo contrário, é a ruptura completa com o sistema capitalista de concorrência, e concentra-se na solidariedade, para lá de todas as fronteiras. Além disso, o antimodernismo de direita é sempre elitista e autoritário; a sua forma de organização é o "princípio do líder" e portanto a forma extrema da "vertical bem-comportada" no sentido capitalista. Em contraste, o antimodernismo emancipatório desencadeia exactamente o oposto na "horizontal mal-comportada"; é consistentemente anti-elitista, anti-autoritário e socialmente rebelde.

Finalmente, toda a oposição se resume na relação com a invenção capitalista e categoria real da chamada "nação": O falso antimodernismo de direita revela-se parte integrante da própria modernidade precisamente pelo facto de sempre ter escolhido a "nação" como seu campo central de referência e carregar miticamente este conceito, mesmo que na era da globalização isto só seja possível sob a forma de encenações mediáticas ou, por outro lado, de uma ideologia de bandos assassinos. Pelo contrário, o antimodernismo emancipatório só pode realmente libertar-se da prisão burguesa rompendo irrevogavelmente com a categoria "nação" e renunciando consistentemente a qualquer lealdade nacional, a fim de se organizar desde o início em formas de relacionamento transnacionais. Para a esquerda, a ruptura com a "nacionalidade" é a questão crucial de saber se conseguirá sair da "jaula de ferro", porque o cativeiro na "identidade nacional" e no Estado-nação burguês constituiu o grilhão decisivo que acorrentou o socialismo operário ao sistema categorial capitalista, o mais tardar a partir de 1848.

É quase ocioso perguntar como poderá uma nova crítica radical do capitalismo, para além do mercado e do Estado, tornar-se um movimento social de massas como antimodernismo emancipatório. Pois esta é uma questão que só pode ser decidida pela acção. O pré-requisito para tal é, por um lado, a inovação teórica que avança para a crítica das formas sociais capitalistas fundamentais, em vez de se expressar "nestas" formas como antes. Por outro lado, exige-se a insurreição, a rebelião contra a administração capitalista da crise de qualquer cor, com a sua sombria perspectiva do trabalho forçado democrático e da escravatura dos baixos salários. O slogan "Baixos salários nunca mais!" pode talvez transformar-se finalmente no slogan "Abaixo o sistema do salário!" e produzir elementos de um contramovimento social para além da degradada política democrática. O caminho mais curto nas convulsões sociais dos próximos anos seria a ocupação de instalações de produção, instituições administrativas e instituições sociais por um movimento de massas que se apropriasse directamente das potencialidades sociais e realizasse toda a reprodução sob a sua própria direcção, ou seja, simplesmente desempossasse e suprimisse as instituições "verticais" até agora dominantes. Também seria concebível uma fase de transição na qual se formasse uma espécie de contra-sociedade, abrindo certos espaços sociais contra a lógica capitalista, dos quais o mercado e o Estado seriam expulsos.

Actualmente, contudo, o mais provável é que a música do futuro tenha realmente perdido o seu encanto, porque o "salto de consciência" que seria necessário para um novo movimento de emancipação social já não está a ser feito. No entanto, o capitalismo não pode continuar a viver, porque o seu limite interno é tão cegamente objectivado como o mecanismo funcional da "bela máquina", que está a arruinar-se em si mesmo. Se o contramovimento radical não se materializar, o resultado será a inexorável descivilização do mundo, como já agora é visível por toda a parte. Mesmo assim, para uma minoria, seria ainda possível pelo menos uma cultura de recusa. Mesmo que o sistema de terror económico já não possa ser parado no seu processo de destruição e autodestruição, ainda se aplica o lema da teoria crítica de não se deixar estupidificar pela própria impotência. Em determinadas circunstâncias, isto só pode querer dizer recusar qualquer co-responsabilidade pela "economia de mercado e democracia", agir apenas em "greve de zelo" e sabotar a empresa capitalista sempre que possível. Mesmo que sejam poucos a conseguir ganhar um novo distanciamento interior no processo de desintegração do capitalismo, sempre ainda é melhor tornar-se emigrante no próprio país do que juntar-se ao discurso plástico sem conteúdo da política democrática. Os pensamentos são livres, mesmo que nada mais seja livre.

 

 

Original Epilog, pags. 438-445 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Tradução de Boaventura Antunes (7.2021). Original integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pds. Tradução portuguesa em http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html.

 

 

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