A Intelligentsia depois da luta de classes
(1)Da desconceitualização à desacademização da teoria
Robert Kurz
A formulação de teorias com pretensão explicativa saiu de moda. Quem ousa emitir seja um pensamento concatenado, uma tese crítica à sociedade ou uma reflexão qualquer acima do nível rasteiro da atual democracia de mercado, se torna objeto de suspeita. O aparato teórico-conceitual é visto como impertinência: quase se poderia falar numa desconceitualização das ciências sociais e humanas. O suposto renascimento do pensamento cínico pertence à fenomenologia de uma época que vive o fim da história teórica até então vigente. O "grunhir e peidar coletivo nos seminários-Sloterdijk" (revista Spiegel) (2), pode ser avaliado, não como um novo florescer da filosofia, mas antes como sintoma de uma capitulação incondicional. É natural que tais tendências penetrem, aos poucos, na prática académica cotidiana, cujo suspirar desesperançado já poderia quase suscitar compaixão. Com gestos de relativização, de masoquista humildade, se revoga qualquer conceito, apenas pronunciado. A preocupação contínua com as "diferenças", exacerbada a ponto de se converter em vício, parece dissolver os objetos históricos e sociais, tornando-os irreconhecíveis.
Não se trata, é certo, daquela crítica do conceito ainda levada a cabo por Adorno em sua "Dialética Negativa". Esta mereceria antes o nome de crítica heróica, pois conservava ainda a dignidade do pensamento conceitual e estava indissociavelmente ligada, por isso mesmo, a uma crítica fundamental, mesmo que desesperançada, à sociedade. Nesta medida, a nova aconceitualidade de hoje não pode de modo algum se reportar a Adorno, devendo, ao contrário, tratá-lo como o mais morto dos cachorros. A bandeira adorniana, por assim dizer, foi enrolada cedo demais e os novos filósofos da aconceitualidade se limitam a hastear a bandeira branca, esperando ser reconfortados por aquele que fora objeto da crítica. Por conseguinte, a nova aconceitualidade não significa mais que o desejo de rebaixar história e filosofia a objetos de uso capitalista.
A cada dia que passa, nos vemos mais às voltas com Yuppies filosóficos, que parecem dar as cartas. Também nesse sentido, decerto, a filosofia continua a ser "sua época concebida em pensamentos" (Hegel), pois os Yuppies filosóficos correspondem a seus similares sociais. O "dinheiro do espírito" se encontra na mesma situação que o dólar: reduzido a mera massa de manobra na mão de especuladores, à superestrutura de crédito capenga à beira do colapso. Em uma economia-cassino globa1, o espírito se converte em filosofia-cassino para o uso doméstico da máquina autonomizada do dinheiro. Não é casual que também o face-lifting "ético" da economia de mercado receba o nome de "filosofia", a exemplo da cosmética de Jil Sander, ou de quando se põe à venda uma nova concepção administrativa ou o perfil de uma corporação. Não deixa de ser irónico que justamente desse modo venha abaixo o velho muro que separava filosofia e "vida", espírito e sociedade: revela-se aqui o impulso universal, essencial ao capitalismo, de vender tudo que seja vendável.
Contudo, os yuppies do espírito dizem mais do que imaginam – ou afinal querem dizer – sobre o atual quadro da realidade social. Quando, por exemplo, Odo Marquardt (3) recomenda, de modo sedutor, sua mercadoria filosófica a administradores e à classe política como "instância compensatória incompetente" (4), sob a indicação expressa de que também ele tem uma família para alimentar, isto beira já uma semi-involuntária crítica social. E se o filósofo da moda, Gerd Gerken (5), vem a público com o lema: "para ser bem sucedido deve-se acreditar em algo, não importa em que", essa declaração poderia ser sentida como uma bofetada sonora, ainda que não planejada, na cara da completa falta de conteúdo e arbitrariedade, que nem mesmo um Adorno teria podido desferir melhor. Assim, talvez valha a pena constatar que, a partir da maneira involuntariamente irónica com que se faz coincidir filosofia e "vida", poderia ser operada, às costas de seus protagonistas, a transição para uma nova distancia irónica, tanto frente à filosofia quanto frente à "vida" capitalista.
Todavia, para tanto seriam necessários novos conceitos ou, ao menos, um modo novo de abordar os velhos. Em suma, seria preciso uma nova teoria que reagisse às mudanças sociais e formulasse uma crítica da sociedade correlata ao novo terreno histórico. Ainda muito pouco foi feito nesse sentido. A suposta derrota da velha crítica e a nova aconceitualidade devem ser enfrentadas de uma vez por todas, em seus múltiplos aspectos. Na imprensa em geral, a exemplo do que domina há muito o mundo intelectual anglo-americano, o debate teórico aprofundado cedeu lugar a uma espécie degradada de literatura especializada; não mais que uma massa informe reunida sob a categoria de "não-ficção", comparável à divisão de outro universo de mercadorias entre food e no-food.
O jornalismo político-sociológico parece decair ao mesmo passo que o econômico: vê-se, em vez de crítica, auto-ajuda capitalista; em vez de economia política, "guia financeiro". No melhor dos casos, entra em cena em lugar de uma reflexão acerca da totalidade social (identificada agora de maneira tão falsa quanto desenfreada como "totalitarismo"), o recitar monótono de um único e sequioso pensamento: seja ele "discriminação econômica das mulheres" (Renate Schubert) ou "o Estado tutelar’ (Rolf Schubert). A este tipo de avaliação unidimensional se limita, em larga medida, uma crítica acabrunhada, que obedece aos novos imperativos do pensamento isolado e da imediatez do factível.
É claro que também existia nos anos 60 e 70 essa espécie esforçada de literatura da banalidade; todavia, se antes ela não passava de acompanhamento musical, hoje ela dá o tom. Esses florescentes e mal-acabados compostos sensacionalistas alcançaram seu apogeu com aqueles produtos kitschs que, em particular desde Gorbachev, acompanham a derrocada do socialismo de Estado com o charme sombrio do "Eu estava lá", ou "Agora quem fala sou eu", até o mais lastimável dos triunfos: "Também fui uma vítima da Stasi" (6). Porém, talvez se deva estender o manto da indulgência sobre esse tipo de jornalismo; talvez ele espelhe uma carência, uma desamparada incapacidade de assimilar criticamente os acontecimentos históricos. Mesmo porque ele se tornará, em breve, monótono.
Falta simplesmente à imprensa, em sentido amplo, o reforço teórico daquelas esferas de logística intelectual que se até ao momento pareciam competentes para tanto, agora só têm produzido ruminadores acanhados e pavões da venalidade. Ora, uma vez que o "trabalho do conceito" foi empurrado para a esfera negativa e que não é mais possível resistir à pressão da suposta "sociedade mundial pós-histórica e sem alternativa" (Lutz Niethammer) do dinheiro total, o jornalismo se torna cada vez mais acanhado. A máquina de conceitos do pensamento ocidental perdeu sua força material e parece se despedaçar antes do sucateamento. A crítica se inverte em crítica da crítica. Não é só a partir de Sloterdijk que podem ser escritas 800 páginas de "grande teoria" justamente para se contrapor à "grande teoria". Essas teorias-antiteóricas parecem apenas retomar e dar continuidade ao traço afirmativo do estruturalismo e da teoria sistémica. Não obstante isso, elas talvez sinalizem, assim como o surfismo universal dos filósofos em voga e os campeões da ética, uma transformação social não amadurecida. Mas, em que direção?
O mundo científico não parece mais ser capaz de recobrar a força necessária para oferecer uma resposta a tal situação. Se a vida académica ainda não se enrijeceu de todo numa "calcária paisagem cultural" (Enzensberger), muito antes da extinção do movimento de 68 ela já havia escamoteado em face do dilema teórico o impulso de pesquisa propriamente académico. A literatura sensacionalista na imprensa corresponde à retirada académica em direção à arqueologia histórico-cultural. Se o empreendimento, algo ingénuo da "oral history", serviu com frequência para a assistência de idosos e para formar uma coleção de objetos de devoção dos movimentos operário e socialista, o ampliado boom de história cultural passa em revista os bolsos de colete e as latrinas da história.
Na França, em particular, esses esforços produziram resultados notáveis. Seja na "História da Infância" ou na "História da Morte", de Philippe Ariès, nos trabalhos sobre a Idade Média, de Jacques Le Goff ou Georges Duby; seja na "História da Vida Privada", editada em conjunto pelos dois últimos, ou na grande trilogia histórico-social sobre "As origens da economia de mercado", de Fernand Braudel: em todas se reuniu uma quantidade monumental de informações, formando um conjunto de significado histórico indubitável. Todavia, essas obras carecem de uma síntese desse material na perspectiva de uma história crítica da socialização ocidental; lhes falta a visão de conjunto capaz de viabilizar uma avaliação histórica renovada e orientar uma nova pauta de questões. Em suma, falta-Ihes o horizonte teórico de uma crítica radical da sociedade, que permita ordenar os resultados da pesquisa histórico-cultural. Pode soar um pouco descarado e arrogante, mas desse ponto de vista Foucault também não pode ser considerado sempre e sob todos os aspectos um teórico em sentido rigoroso. Suas "arqueologias" da sexualidade, das instituições e do saber, são também louváveis sobretudo pelo trabalho de garimpagem material, ao passo que a reflexão teórica, propriamente dita, ao fim de contas, desagua em perplexidade. A calmaria teórica se tornou um problema central, a desmoralização do pensamento ameaça ascender à paralisia.
Se a teoria, sobretudo a de cunho académico, só ousa ingressar na esfera pública na ponta dos pés, ela talvez deva essa situação lamentável à morte do marxismo. Pelo visto, o marxismo foi de tal modo determinante para a formulação teórica do século XX, que esta parece deixar de existir junto com ele. Se no marxismo a herança da filosofia parecia ter sido suprimida (7), fazendo com que toda formulação conceitual posterior passasse a se definir frente a este, seja por afinidade ou rechaço, com o declínio dos conceitos marxistas, decai a conceitualidade da teoria enquanto tal. Hoje, essa instância referencial, positiva ou negativa, parece desvanecer sem deixar rastro.
Obviamente, estamos falando de gatos escaldados. O movimento mundial de 1968 havia conduzido o já senil marxismo operário a uma prosperidade tão ilusória que, durante algum tempo, mesmo o último dos oportunistas da sociologia se via obrigado, ao menos, a escrever sua tese de doutorado sobre a história social das guerras camponesas ou sobre as lutas de classe do século XIV na Valaquia (8). No entanto, paralelamente a esse despertar tardio e fantasmagórico, se preparava o enterro definitivo do corpo teórico marxista, já estripado e embalsamado a moda estruturalista (Althusser) e teórico-sistêmica. Hoje, depois do desmoronamento catastrófico da ordem social erigida em seu nome, não se ergue para este sequer um mausoléu. Já no outono de 1989, o semanário alemão Wirtschaftswoche podia apresentar a quase totalidade dos marxistas renovados da vida académica alemã como delinquentes arrependidos que deveriam balbuciar solenemente sua retratação. Na França, a enfática transição para a democracia entusiástica do Ocidente já havia sido concluída anteriormente e, em meio ao desert storm, finalmente ocorreu, aos berros, a reunificação do núcleo duro de 68, que se apresentava agora como círculo ilustre de filósofos pró-bomba atômica em traje de guerra.
Mas talvez o judeu-alemão Karl Marx, acostumado a tais atribulações, tenha sido levado à cova dessa vez com mais precipitação que nunca. No enterro apressado da teoria marxista, os pensadores da cautela, talvez já algo débeis com tanto "diferenciar", não fizeram qualquer tentativa de diferenciação. No entanto, assim como toda teoria dotada de força histórica, também a teoria de Marx não se esgota na versão vinculada a uma única época; ela tampouco é aquela totalidade fechada, imaginada tanto pelos garimpeiros da citação quanto pelos coveiros apressados. Com o fim de uma época, selado com a derrocada do socialismo de Estado, se extinguiu apenas o momento da teoria que se encontrava ligado a este período, o que não significa de modo algum que a mesma tenha se esgotado ou exaurido.
Tampouco se tratava simplesmente de uma derrota. Um pensamento historicamente reflectido, que não se banaliza associando os predicados "certo" ou "errado", "bom" ou "ruim" aos grandes movimentos sociais e formações político-econômicas, se aproximará mais do problema perguntando que tarefa foi concluída, do ponto de vista do desenvolvimento histórico, com essa ruptura de época. Só um questionamento desse tipo pode nos dar uma ideia do que está por vir e merece ser posto em pauta. O conceito-chave para uma tal compreensão poderia ser o que, sob nome de "modernização", possui já há um bom tempo uma existência ambígua na teoria. Esse termo mereceu quase sempre um olhar enviesado dos marxistas; já que parecia encobrir o "conteúdo de classe" de toda interrogação teórica. O real divisor de águas deveria estar situado entre o capitalismo burguês e o socialismo operário; enquanto "modernidade" e "modernização" eram conceitos que pareciam querer anular de modo meramente conciliatório essa "verdadeira ruptura de classes".
Se vê, contudo, um quadro inteiramente distinto se virarmos de ponta-cabeça essa argumentação em vista da efetiva ruptura de época, que hoje contradiz de modo patente qualquer concepção do marxismo vulgar. Nesse caso, a "modernidade" e a "modernização" não seriam mais vistas como conceitos de uma aguada ideologia (pequeno-)burguesa, mas antes como a invólucro burguês real, no interior do qual se desenrolavam as "lutas de classe". Ademais, o caráter burguês seria o caráter da época mesma, incluindo os supostos antípodas do Capital. Ou, dito de outro modo: o Capital mesmo seria idêntico à modernidade e a seu processo de formação, enquanto forma social comum das facções em conflito.
Nessa medida, não seria possível classificar como "anticapitalista", senão condicionalmente, nem o socialismo de Estado do Leste, nem o movimento operário ocidental, nem tampouco o movimento anticolonialista de libertação nacional nos países do Hemisfério Sul, incluindo aí suas correntes mais radicais. Ou melhor, seu anticapitalismo não se referia ainda à autêntica forma de base do capital mesmo, mas apenas a um capitalismo empírico dado; àquilo que fora tomado como o capitalismo em pessoa, mas que, efetivamente, não passava de um estágio ainda incompleto do desenvolvimento da modernidade burguesa. Assim, o marxismo desta época não poderia ser mais que um marxismo da modernização, imanentemente burguês, parte, ele mesmo, da história de implementação do capital. E esse momento modernizador, limitado ao invólucro burguês formal, se encontra igualmente a cada passo da própria teoria marxiana.
Tudo que aparece em Marx como a incondicionalidade do "ponto de vista operário" e da "luta de classes", o que é dito sobre a "mais-valia não paga" e a "exploração", é ainda teoria capitalista do desenvolvimento e reflecte que o capital ainda não encontrou sua via própria de reprodução. Trata-se, neste sentido, de uma teoria – e assim também ela foi lida – que aponta essencialmente para dois problemas imanentes ao capitalismo: em primeiro lugar, para a crítica dos momentos patriarcais, corporativos, nas relações sociais estabelecidas pelo capital, ou seja, para a transformação dos trabalhadores assalariados em sujeitos burgueses em sua acepção plena – sob o ponto de vista monetário, jurídico e estatal; e em segundo, para o conflito distributivo na forma monetária, no qual o caráter relativo do "valor da mercadoria força de trabalho" (o momento histórico-"moral", como diz Marx por vezes) é explorado no sentido de uma normalidade capitalista, de um "bem-estar no capitalismo", seja através de acordos colectivos ou por meio de políticas distributivas estatais.
Hoje esse marxismo imanente á modernização se tornou, de facto, inteiramente obsoleto, não por estar "errado", mas porque sua tarefa foi concluída. Nos países do Leste e do Sul, o processo de modernização tardia atingiu sua barreira absoluta; o ciclo de implementação das relações capitalistas se fechou quando estas foram totalizadas na forma de uma relação imediatamente mundial, o One World produtor de mercadorias. Os trabalhadores assalariados se converteram em sujeitos monetários e jurídicos na plena acepção burguesa, sendo impossível maior "liberdade" e "igualdade", pois, de qualquer modo, o jogo distributivo estatal alcançou seu limite absoluto. Com isso, chega ao fim a luta de classes, que não era senão o processo de implementação do Capital, que em sua lógica formal pura e abstrata se contrapões aos capitalistas, histórica e empiricamente limitados.
Os diversos coveiros de Marx e os novos amigos da democracia e do mundo de mercadorias ocidental tiram daí a conclusão apressada de que a crítica da sociedade foi rifada, ao menos em sua variante radical, e que de agora em diante e por toda a eternidade aquela "sociedade mundial sem alternativa" do capital ditará as regras para tudo o que for feito e pensado. Nada mais distante da verdade. Pois só agora pode entrar na cena histórica aquele "outro" Marx, que estava oculto, aquele Marx "obscuro" e "esotérico", com o qual, não por acaso, o movimento operário em peso nunca soube o que fazer. A tentativa marxiana de transcender o capital por meio de uma mera absolutização da "classe operária" ("Ditadura do Proletariado") foi sempre uma construção enviesada, pois assim se intentava alçar em totalidade o que era um momento particular, imanente ao próprio capital. Essa pseudotranscendência ainda deve ser imputada inteiramente à teoria marxiana enquanto mera teoria da modernização, que, partindo de uma falsa imediatez sociologista, enfoca as classes e relações sociais sem que apareça no campo visual a forma social comum às mesmas. Essa forma, no entanto, é o Capital. É a forma-valor ou forma-mercadoria enquanto tal que, diferentemente de sua existência embrionária como forma restrita a alguns nichos sociais nas sociedades pré-modernas, se desenvolveu no Capital a ponto de se converter em forma total de reprodução social.
Com sua crítica, o marxismo da modernização ou o marxismo operário nunca visara essa forma mesma, que concebia sobretudo como fundamento ontológico insuperável (9) da socialidade em geral. Para este, o problema não era o "valor", isto é, a forma social das mercadorias, mas simplesmente a "mais valia" imposta de fora para dentro. Em Marx mesmo, ao contrário, o plano imanente da teoria é possibilitado justamente pela crítica radical do valor enquanto valor. O conceito de fetichismo é a categoria central dessa crítica, ascendendo do fetiche da mercadoria aos fetiches do dinheiro, do capital, do salário, do direito e do Estado. No fundo, todas as categorias sociais da modernidade são aqui submetidas a crítica radical, ao passo que a ideologia burguesa, inclusive o marxismo, sempre se limitou a postular seu lado positivo. Vemos, portanto, em Marx, duas linhas argumentativas entrelaçadas, mas incompatíveis entre si. Hoje, porém, esse nó górdio deve ser desfeito, não importa se à maneira clássica ou se por meio de um lento desatar. O Marx dos operários e da luta de classes cai em desgraça, mas o crítico radical do fetichismo e da forma-valor continua de pé e só agora passa a ser efetivo.
É preciso sair às apalpadelas do labirinto da modernidade, guiando-nos com o ténue fio de Ariadne da radical crítica marxiana da mercadoria e do dinheiro, ainda forçosamente abstrata e incompleta. O conceito marxiano do fetichismo, liberto do antigo fardo do marxismo do movimento operário, poderia ser ampliado – ou dar-se a conhecer – através da crítica do fetiche mesmo do trabalho. O problema não é mais a "exploração" na forma-valor, mas antes o trabalho abstrato mesmo, isto é, a utilização abstrata empresarial, do ser humano e da natureza. O "trabalho" perdeu sua dignidade; enquanto terapia ocupacional, moderna construção de pirâmides, fetichismo do posto de trabalho e produção destrutiva, é só artificialmente e com custos operacionais cada vez mais ruinosos que ele mantém em funcionamento o sistema capitalista globalizado.
Obviamente, essa proposta teórica não agrada nem um pouco aos teóricos ainda predominantes. Ela é recebida, ao contrário, como uma proposta indecente, como uma espécie de grosseria ou enormidade. Não pode reagir de outro modo uma consciência cuja imaginação teórica se esgota no empreendimento arriscado de continuar eternamente modernizando a modernidade, observando-a sempre como um "projeto inconcluso" (Habermas). Por essa razão, toda crítica à modernidade é acusada de pertencer ao velho repertório da reações reacionárias choramingas, que desejam apenas voltar à pré-modernidade: passar da socialização à "comunidade", da forma-mercadoria à economia natural de subsistência, do direito ao despotismo, do mercado mundial ao vilarejo. Mas não se trata de acertar contas com a modernidade retrocedendo, mas sim avançando. O dinheiro total produziu o One World, e quanto a isso não é possível qualquer volta atrás: este, no entanto, era apenas a muleta da humanidade, que agora deve ser eliminada. É preciso libertar este mundo unificado de sua conformação mercantil, resguardando seu nível civilizatório, sua força produtiva e seus conhecimentos. Essa tarefa histórica, que o marxismo operário havia deixado de lado e protelado para um futuro supostamente longínquo, está agora na ordem do dia.
Com a "vitória", o Ocidente encontra também seu próprio fim. Ele precisa suprimir e ultrapassar a si mesmo (10). A supressão (Aufhebung), no caso, não significa apenas o termo final de um processo. Ela pressupõe uma ruptura histórica decisiva (e decidida), a qual os teóricos da civilidade, da democratização e da modernização queriam inutilmente se furtar. Apesar de se ocuparem continuamente com o enterro de Marx, eles próprios não passam de formas residuais e degradadas do marxismo da modernização, que não deixaram para trás, como imaginam, mas antes diluíram até que se convertesse em algo inteiramente inofensivo e desprovido de objeto. Eles não são os precursores de uma teoria nova, mas os escombros teóricos de um processo histórico já concluído. Isso pode ser comprovado, na prática, pelo facto de eles terem perdido por completo a imaginação enquanto críticos da sociedade.
Não é de modo algum casual que o conceito teórico (e, aliás também a chamada "política") tenha perdido sua dignidade juntamente com o "trabalho". Tampouco foi obra do acaso que a crítica marxiana do valor e do fetichismo tenha sido de longe mais menosprezada que os "caprichos filosóficos" de Marx. Com efeito, levando a sério a crítica do fetichismo, dispomos não somente da forma social real, mas ainda do instrumentário ideal da modernidade. O valor não é nenhuma "coisa econômica" crua, mas ao contrário, a forma social total, ou seja, forma-sujeito e forma de pensamento. Mesmo que se empregue continuamente o prefixo "pós" nos discursos sobre a pós-modernidade, seja para falar em pós-fordismo, em pós-industrialismo, ou termos afins, inconscientemente ainda se pensa nos moldes da forma-mercadoria.
Contudo, se a modernidade, em essência, é justamente a totalização da forma-mercadoria, não poderá haver nem um "pós-industrialismo" mercantil, nem tampouco um pensamento mercantil da pós-modernidade. Seria necessário retomar e levar à frente criticamente o pensamento iniciado por Sohn-Rethel sobre o nexo entre "forma-mercadoria e forma de pensamento", a fim de desvendar a conformação mercantil de todo debate ocidental em torno da teoria do conhecimento. Esse programa poderia conduzir a uma nova forma de desmascarar Kant e decifrar conceitualmente, como de constituição fetichista, a cisão da filosofia em teoria do conhecimento e ética, com o que, alias, se atingiria sensivelmente a discussão ética atual.
A crítica radical do valor, enquanto crítica da sociedade, restabelece a identidade, no pensamento, entre forma de existência e forma de pensamento; a crítica das modernas dicotomias ocidentais, tanto entre indivíduo e sociedade, quanto entre economia e política, precede a superação prática das mesmas. Com isso, abre-se não apenas a possibilidade de uma re-historicização das formas de relacionamento e "legalidades" sociais, antropologizadas e ontologizadas pelo estruturalismo e pela teoria sistémica, mas também uma via de acesso mais fácil e eficaz a todas as problemáticas contemporâneas.
Isso pode ser visto de maneira exemplar e central na relação entre os sexos, tema que, não por acaso, esmoreceu lentamente sob a égide do movimento operário e da modernização. É só no âmbito de uma crítica do valor, enquanto definição basilar da forma social, que a atribuição de papéis sexuais pode aparecer na consciência teórica. A relação ocidental entre os sexos é definida pela forma-valor, ou seja o valor é constituído sexualmente. Uma sociedade fetichista de produção de trabalho abstrato pressupõe a "cisão de um contexto de vida feminino" (Roswitha Scholz), ou seja, a separação daqueles momentos sensíveis, não passíveis de monetarização, e, com isso, a constituição de papéis sexuais específicos, social e historicamente. O homem se converte em representante do trabalho abstrato, a mulher em "ente natural domesticado", no qual se descarrega tudo que não possa ser reduzido à abstração do valor.
Também desse modo se estabelece a relação especificamente burguesa entre esfera pública e privada, que atinge na modernidade seu ponto culminante. A atividade da mulher no interior de um espaço privado (sexualidade, família), não atrelada à forma-valor, é o pressuposto estrutural e histórico do sistema produtor de mercadorias e antecede todas as relações, forjadas pela abstração viril, entre a esfera privada (dinheiro) e a esfera pública (Estado). Quando a totalização da forma-valor corrói esse seu fundamento próprio, convertendo a mulher, tendencialmente, em sujeito monetário e estatal, não apenas se torna possível reivindicar a "igualdade" no último terreno que ainda restava, mas vai pelos ares toda a relação entre esfera pública e privada que correspondia a forma-mercadoria. No âmbito de uma mera "crítica da mais-valia", o problema nem mesmo aparece; no entanto, na medida em que o valor, enquanto relação social, esbarra em seu limite, a relação entre os sexos se torna um foco de crise e remete à crise do valor enquanto valor.
Com a chave da crítica radical do valor se poderia descerrar, igualmente, o atual debate em torno de uma orientação pragmática ("realistas") (11), do fim da utopia e do fim da história. Os realistas, práticos e teóricos, os espíritos de mudança, democratas da temperança, artistas da negociação e abstémios da crítica foram apressados nas conclusões. Talvez a história, de facto, tenha chegado ao fim, mas o que até agora levava este nome era apenas a história ocidental do valor ou do sistema produtor de mercadorias. A partir da Antiguidade Ocidental, passando pelo cristianismo e pelo Renascimento, foi posto em marcha um processo, cujo espaço de tempo efetivo perfaz exactos 200 anos: de 1789 a 1989. Tudo o mais é um "ainda-não" história. Para o Marx esotérico, porém, esse período corresponde justamente à pré-história do género humano, incluindo aí a fase do capital (enquanto, poderíamos complementar, forma derradeira e mais elevada do primitivismo fetichista). Também o "fim da história" não remete a outra coisa senão à crise e ao fim do valor; se quisermos, ao fim do próprio Ocidente.
As coisas não são melhores quando se trata do fim da utopia, anunciado aos quatro ventos. Também a utopia é uma criação tipicamente ocidental, um produto da relação de valor e das cisões por este engendradas. Assim como o potencial dessensibilizador da abstração mercantil real criou "a mulher" como ser compensatório, a "utopia" foi forjada como acompanhamento musical fixo que devia soar mais estridente a cada novo passo histórico da abstração real de valor. O caráter insuportável da contradição, quando essa se manifesta na forma social da alienação inerente à forma-valor, produz, ao divinizar essa contradição mesma, o desejo de uma ausência total de contradição. Talvez seja esse o elemento nuclear não apenas do pensamento utópico, mas da razão burguesa em geral.
Por certo, o dogmatismo da utopia pode ser reencontrado no pensamento marxiano, enquanto estrutura dogmática, mas isso ocorre apenas na medida em que este se mantém imerso na forma-valor, ou seja, quando se trata do pensamento formulado pelo teórico burguês da modernização e, portanto, do movimento operário. Nesse caso, nos referimos ao dogmatismo essencial do pensamento moderno iluminista, o dogmatismo objetivo da razão burguesa enquanto tal. Por uma ironia do destino, os novos antiutopistas e coveiros da teoria marxiana, que acusam Marx de utopista, e a utopia de visão escatológica da história, falam agora, eles mesmos, do "fim da história" como suposta eternização da normalidade capitalista. Ora, essa concepção mesma é uma espécie de escatologia para boi dormir, cuja realização em âmbito mundial na sociedade pode, porém, causar pesadelos.
É o pensamento iluminista burguês que precisa fazer coincidir o fim da história com o seu próprio. Essa estrutura dogmática tende a desaguar numa "visão de mundo" (12) homicida, quando é expressamente vedada a possibilidade de se pensar nessa visão do mundo, como ocorre não apenas nas teorias pragmáticas burguesas, mas igualmente nos marxismos críticos ocidentais, ainda cativos da modernidade e do iluminismo. A teoria crítica também via a razão ainda como uma entidade fora da história, e simultaneamente télos da mesma. O pragmatismo burguês opera, da mesma forma, com um conceito de razão que não pode mais ser inferido. Não é à toa que ambas as correntes se encontrem hoje na filosofia "realista" (13), no sentido mais amplo do termo, na forma de uma propaganda homicida, pró-capitalista e pró-ocidental, da sociedade mundial do capital.
A pretensa orientação pragmática escamoteia sua própria forma social. Um verdadeiro pragmatismo não seria mais capaz de moldar o mundo sensível, os recursos sociais e potencialidade científicas, segundo um princípio racional único, dogmático e abstrato. O verdadeiro pragmatismo significaria, portanto, uma revolução contra o valor e seu sistema de ordenações. Todo pensamento submetido à forma-mercadoria, ao contrário, não passa de "visão de mundo", em virtude da lente deformadora da abstração-valor. Os pseudopragmáticos burgueses obedecem, na verdade, ao dogmatismo real do dinheiro e sua autovalorização fetichista. Na prática social, esse pragmatismo se converte forçosamente em ditadura de estado de sítio, em declaração de guerra contra todos aqueles que não conseguem mais viver dignamente sob o jugo da forma-mercadoria totalizada.
De facto, há algo de terrivelmente consolador no facto do One World talhado pela forma-valor obrigar os a-críticos teóricos profissionais do Ocidente a dizer realmente o que pensam na forma de teorias homicidas da democracia liberal, com seus déficits ecológicos e sociais. Pois a economia de mercado e a democracia ocidental, enquanto formas de superfície ou formas fenoménicas do fetichismo moderno, simplesmente já não são capazes de integrar a imensa maioria da humanidade. O fim do socialismo de Estado, que não foi senão uma ditadura da modernização entre muitas, traz consigo, de modo evidente e com primitiva violência, não uma revitalização da democracia ocidental – como haviam esperado os teóricos da civilidade – mas, pelo contrario, a irrupção galopante da barbárie. O Manetecel (14) iugoslavo serve como profecia de nosso próprio futuro.
Obviamente, este diagnóstico sobre a situação da sociedade e da teoria nos leva a perguntar quais seriam as possibilidades de domínio e mudança da mesma. A práxis social deve passar por uma tomada de consciência teórica. Decerto, com a crise e a crítica do sistema produtor de mercadorias, também se altera a posição da própria teoria. Enquanto crítica radical do valor, ela não pode mais obedecer ao real dogmatismo do dinheiro e tampouco carregar consigo um conceito de razão abstrato, dogmático e externo. A teoria capaz de conceber a si mesma não é mais o comité central do espírito do mundo, e, por isso, não pode mais servir como instância legitimadora de nenhum comité central político, quanto mais de uma comissão parlamentar verde, profissionalizada à maneira capitalista. O velho encadeamento entre teoria, programa, partido e poder deve ser, ele próprio, imputado à forma burguesa, que definia também o lugar da teoria. Se vai pelos ares a relação burguesa entre "vida" e filosofia, enquanto tal, bem como entre economia e política, passa a não ser mais possível impingir ao pensamento a antiga atribuição prescrita pelo modelo mercantil.
A teoria, que não deve mais celebrar nenhuma base de classe sociologística, mesmo se essa se apresenta na figura última e degradada de uma "vontade eleitoral" verde, goza, por fim, da liberdade própria a um "fora da lei" (15) e se reconhece como momento crítico de uma crise social de alcance mundial, sem precisar derivar disso pretensões a respeito da totalidade do mundo ou qualquer metafísica de fundamentação última. A nova modéstia da teoria deve ser, porém, ao mesmo tempo, sua nova e inaudita radicalidade, e nisso justamente repousa sua verdade. A aparente modéstia dos filósofos ocidental-democráticos da capitulação, pelo contrário, desmente a si mesma, pois, ao invés de dirigir a radicalidade da critica contra as atuais condições de vida, mobiliza de maneira sumamente imodesta a radicalidade das relações capitalistas contra os seres humanos reais.
A teoria proscrita (15) não pode mais apelar a qualquer sujeito ontológico que não seja ela mesma. Quando se dissolvem a ontologia e a metafísica do trabalho abstrato, forjadas pela forma-mercadoria, a crise já não pode ser superada mediante a transformação de um sujeito em si, inconscientemente presente desde sempre em sua particularidade capitalista, em um sujeito para-si do trabalho total. E a sociedade, ela mesma, que deve agora se constituir conscientemente naquele descampado em que até agora não havia sujeito algum senão a forma cega e fetichista da "abstração real" (Sohn-Rethel). A teoria fundamenta essa constituição consciente precisamente porque não pode mais evocar qualquer "interesse" imanente à forma mercadoria, mas apenas mobilizar o "interesse" sensível contra a própria abstração real. Os germes desse movimento já estão presentes praticamente na sociedade enquanto crítica feminista, social e ecológica. Essas formas de crítica prática não são mais um ontológico "em si" "para si" do trabalho, mas momentos efetivos do movimento de supressão do valor. O momento teórico ainda anda a passos lentos e deve compensar seu atraso.
Nesse caso, a mudança de lugar da teoria também deve ser entendida em sentido literal. Há muito já deveria ter ficado claro que encerrar o pensamento (sobretudo o revolucionário) na prisão institucional da administração intelectual académica ocidental não lhe faria bem. A universidade não vai se ver livre do "mofo de mil anos" por meio de uma modernização capitalista, pois o próprio capital é o mofo residual de uma pré-história de mil anos do fetichismo social. Mas, por outro lado também, se desfazem nesse sentido as dicotomias do mundo de mercadorias mantidas institucionalmente. A revolução teórica é, ao mesmo tempo, uma revolução institucional, e toda revolução começa com a prática de não mais se levar a sério instituições sagradas.
Assim como não é preciso ter, hoje, qualquer consciência teórica explicitamente crítica ao valor para comparar a gesticulação, a mímica, os discursos e as acções da classe política do sistema produtor de mercadorias com o cerimonial de caciques de uma tribo canibal, também na atividade científica corrente transparece a unidade simiesca da pré-história. E nesta de maneira mesmo particularmente grosseira, pois a vida académica é, ao mesmo tempo, o último bastião de uma consciência estamental. Em nenhuma outra esfera do sistema produtor de mercadorias se manteve tão tenazmente como nesta a grotesca e antediluviana ostentação de títulos. Só a pompa da toga, do barrete doutoral, do talar, etc., já remete a esse estado de coisas. A gente se pergunta por que os reitores e decanos não passaram a usar ossos no nariz como índice de sua importância.
Por ironia, a crise do "mofo de mil anos" coincide com a crise das próprias relações estabelecidas com o valor. Os reproches à consciência académica, daí resultantes, não são desprovidos de graça. Com a obsolescência do solene orgulho estamental, se torna obsoleta, de uma hora para outra, a arbitrariedade abstrata que ganha dinheiro. Com as restrições impostas pela crise fiscal do Estado, também a empresa do pensamento tem seu abastecimento estrangulado. Como se sabe, até mesmo a filosofia já sai em busca de financiamento e tenta provar sua importância para o funcionamento capitalista. A cantilena entoada não deixa de ser divertida. Trata-se de transição institucional da filosofia e das ciências humanas, em geral àquele patamar de leviandade que há muito também já define seu conteúdo.
Não há razão alguma para lamentos pessimistas acerca do porvir da cultura se são cortados os financiamentos para projetos de pesquisa que, de qualquer modo, são em sua maioria disparatados ou constituem uma ameaça pública. Tampouco devem ser objeto de demasiada compaixão aqueles académicos que se mantêm em postos de trabalho parcial ou provisório, por mero apego à sua respeitabilidade profissional estamental, amargando rendimentos equivalentes à ajuda da assistência social. É mais provável que possam surgir conexões inovadoras entre filosofia e "vida", a par de algumas grotescas, daquelas tentativas um tanto extravagantes de se firmar, por exemplo, com um "consultório filosófico", como uma espécie de dentista do espírito ou oficina de bricolagem para pensadores aficcionados.
Em geral, todavia, não se deve esperar que a ciência decaída e intimidada, enquanto ramo institucional da modernidade burguesa, invista contra seus próprios fundamentos e dê, por si mesma, o próximo passo histórico do pensamento, isto é, que passe à crítica radical da forma-mercadoria. Também a ciência, enquanto tal, foi moldada à forma-mercadoria, e nessa medida deve ser superada; não retrocedendo em direção ao mito, mas avançando em terreno desconhecido. O fato desta não ser mais levada a sério indica o primeiro passo na direção certa. A razão relativa de Paul Feyerabend ou Hans Peter Duerr repousa nessa situação.
Essas observações não deveriam ser entendidas de maneira equivocada como expressão de um ressentimento antiacadémico. Não é nenhuma vergonha que alguém tenha concluído sua licenciatura ou doutorado, e que ganhe a vida como académico. Mas, afinal, o que se pode objetar contra a americanização da posição social dos académicos? Nos novos laços compulsórios entre "vida" e filosofia reside também a possibilidade de uma nova capacidade de distanciamento. Assim como a ciência pressupõe uma distância frente aos seus objetos, a superação da ciência de constituição fetichista pressupõe uma meta-distância frente à ciência mesma. Se todos são artistas, como pensavam Joseph Beuys ou Andy Warhol, então, ninguém mais o é. E isso vale igualmente para a ciência.
Na mesma medida em que se massifica a capacidade de abstração, a sociedade fetichista da abstração real é impelida à dissolução. A "proletarização" dos intelectuais e a "desproletarização" da sociedade caminham lado a lado e dão mostra do caráter questionável do mundo conceitual sociologístico. Diminui o número de "filhos de operários" entre os estudantes, mas, com rapidez ainda maior, diminui o de "operários" no conjunto da população. No ano de 1986, pela primeira vez na RFA, era maior o número de alunos que concluía o segundo grau que o que concluía o ensino básico; em 1991, também pela primeira vez, havia mais estudantes universitários que aprendizes de ofícios. Com isso, todo pacote de relações amorosas com a etiqueta "Intelligentsia e classe operária", típico da luta de classes, se vê reduzido ao absurdo. Quando a "Intelligentsia" mesma é convertida em "povo", esta não é mais Intelligentsia, nem o povo é povo. A crise do trabalho abstrato, que pressupõe uma "classe" e um "povo" que lhe corresponda, se expressa na existência social da intelectualidade mesma, assim como a crise de conteúdo da ciência aparece reflectida na crise institucional.
O foco de inovação teórica já não pode mais surgir no interior da atividade intelectual oficial. A nova meta-distância frente à própria ciência, corroborada pela "vida" efetiva de uma Intelligentsia massificada – e assim, suprimida e ultrapassada enquanto Intelligentsia (16) – poderia ser capaz de recarregar a bateria do pensamento socialmente crítico. Não é a partir de uma oposição forçada "contra" o empreendimento científico, senão de uma posição oblíqua em relação a este, que há de surgir um discurso crítico frente à modernidade capitalista, apto a seleccionar as intervenções segundo critérios distintos dos da maquinaria científica burguesa em ponto morto. A "inutilidade de se tornar adulto" (Koch/Heinzen), assim como a visão clara da falta de sentido dos critérios capitalistas de êxito, talvez venham mais de encontro à teoria proscrita da crítica radical do valor do que atualmente querem admitir os executores da empresa intelectual.
Posfácio de Roswitha Scholz
Desde a publicação do texto "A Intelligentsia depois da luta de classes", muita coisa aconteceu na paisagem teórica: "Enquanto nos anos 90 parecia ter-se chegado ao "fim da história" – ao limiar da pós-história, como sugeria a falta de alternativa ao modelo ocidental de democracia de mercado estável –, ou se confiava nas promessas da globalização, da digitalização ou da sociedade do conhecimento, entretanto o horizonte do progresso parece ter encolhido rapidamente. E o ‘modelo ocidental’ também está a recuar geopoliticamente [...]. A auto-reflexão que todas estas crises induzem continua, no entanto, a depender, pelo menos implicitamente, da teoria social ou de outros modelos de desenvolvimento social em grande escala: Como classificar os fenómenos mencionados, como explicá-los e que consequências se podem esperar? Que alternativas são concebíveis, quais seriam desejáveis?" (17)
Enquanto no pós-modernismo se insistia na diferença, na linguagem, no discurso – "guerra ao todo [...], ativemos as diferenças" (Lyotard) – e a influência do neoliberalismo ainda se fazia sentir nas teorias económicas de esquerda, hoje as "grandes teorias" estão de novo "in" na teoria social. Nancy Fraser, por exemplo, defende a ideia de "think big" e, o mais tardar desde o crash de 2008, tem havido um renascimento de Marx. Com a discussão sobre uma "Nova Leitura de Marx" e a recepção de um "Marx no Ocidente", houve até uma crítica do fetiche e da forma – embora academicamente domesticada. Mas há muito que isso voltou a ser afastado por uma "nova" política e teoria da luta de classes historicamente obsoleta. Já nos anos noventa se tornou claro que não se podem iludir situações problemáticas "materiais". No entanto, ao tentar apreender as novas situações de desigualdade com conceitos antiquados como o de classe, tira-se daí uma conclusão errada.
Depois do "anything goes" da desbotada pós-modernidade, em que tudo era contingente, se exigia flexibilidade e, de algum modo, tudo era considerado "inventado" (a nação, a política, o género, etc.), há agora tendências para tornar tudo "fixo" novamente. Na circunstância são (re)activadas as concepções de administração da crise de esquerda das últimas décadas (democracia económica, keynesianismo, commons, economia solidária, eco-socialismo etc., ainda que por vezes com outros nomes). Em contraste com as décadas passadas de individualismo, é agora frequente a ideia de que a salvação está no colectivo. A razão pela qual o socialismo real falhou não interessa a quase ninguém actualmente.
Tendências restauracionistas estão em alta, não apenas na direita, e as campanhas de normalidade são muito populares na AfD, mostrando um "regresso do conformismo" (Cornelia Koppetsch) – e tais ideologias estão a ser adoptadas também pela esquerda. O livro Die Selbstgerechten [Os arrogantes], de Sahra Wagenknecht, é apenas a ponta do icebergue. Neste contexto, a crítica personalizante (marxista vulgar) do capitalismo está também a renascer e as teorias da conspiração (anti-semitas) estão a espalhar-se cada vez mais, alimentadas pela crise do coronavírus. Também há esquerdistas nesta onda, como Nancy Fraser, que há anos apelam a um "populismo de esquerda". Paralelamente está a alastrar cada vez mais um ressentimento anti-intelectual.
A dizimação e a crescente superfluidade do proletariado com as conexas tendências de empobrecimento não levam a que se coloque a questão da superfluidade, mas antes a que a crítica de esquerda duplique uma má prática "reaccionária", ao fazer coro "empaticamente" com a consciência dos destinatários, em vez de prosseguir a crítica da ideologia.
Sobretudo ocorre hoje uma sintetização com outras crises na totalidade social a partir de uma perspectiva de luta de classes: Crise climática, crise dos cuidados, crise do coronavírus, crise económica, crise dos refugiados, etc. Por outras palavras, recorre-se – como antes – ao Marx exotérico, em vez de ao esotérico, para conseguir explicar a crise em grande formato.
Assim, os tempos não parecem nada favoráveis a uma crítica da dissociação-valor. Além disso, existem hoje bolhas de filtragem nas "redes sociais", que substituem a teoria e a reflexão pela emoção e pela falta de conteúdo. Isto torna ainda mais importante reafirmar a distância crítica neste debate, distanciar-se de um fetiche da práxis e também de um fetiche da academia, e não querer assegurar o favor do público a qualquer preço. Deve também reflectir-se que o fosso entre a universidade e a precária "vida real", com que Kurz contava como potencial de resistência entre a "nova Intelligentsia", tendeu a produzir adaptações nesta última: em alguns aspectos, a colaboração no contexto da crítica da dissociação-valor foi para muita gente mais uma fase de pré-doutoramento, que acabou afinal num doutoramento e na procura de um lugar no estabelecimento académico. Muitas das ideias da nossa crítica também se encontram há muito tempo no espectro académico (de nicho) (na maioria das vezes sem citação de fontes, entenda-se); tudo isto, claro, de forma diluída.
É claro que o próprio pensamento de Kurz tinha mudado desde o início da década de 1990. Por exemplo, já há muito que ele tinha lançado borda fora a crença no progresso, e também tinha submetido à crítica um individualismo metodológico no sentido da forma da mercadoria, que não faz justiça à forma do capital. Questão que não pode ser aprofundada aqui. O que continua a ser importante, no entanto, é uma elaboração independente da teoria crítica, para lá das conjunturas do espírito do tempo e das concessões a uma "normalidade" que, de qualquer modo, já não consegue existir. Trata-se, portanto, de pensar mesmo "transversalmente", afrontando precisamente os actuais "pensadores transversais" que assim se autodenominam descaradamente abertos à direita.
Notas:
Original “Die Intelligenz nach dem Klassenkampf. Von der Entbegrifflichung zur Entakademisierung der Theorie” publicado inicialmente no "Münchner Zeitschrift für Philosophie", n. 22, 1992. Incluído nas colectâneas de textos do autor “Der Letzte macht das Licht aus. Zur Krise von Demokratie und Marktwirtschaft” [O Ultimo Apaga a Luz. Sobre a crise da democracia e da economia de mercado], TIAMAT, Berlin, 1993 e “Os últimos combates”, Vozes, Petrópolis, 1997, nesta com tradução a notas de Raquel Imanishi Rodrigues, que aqui se reproduzem com a devida vénia. O original alemão voltou a ser publicado na revista exit! nº 19, 2022, p. 201-217, com um posfácio de Roswitha Scholz, aqui traduzido por Boaventura Antunes.