Trabalho Fetiche
O marxismo e a lógica da modernização
Este número da exit! começa com um texto de Robert Kurz: "Trabalho fetiche – O marxismo e a lógica da modernização", publicado já em 1994 (Fleischer, Helmut (ed.): Der Marxismus in seinem Zeitalter [O marxismo na sua época], Leipzig 1994, 162-184). Neste texto, Kurz explica que, com o fim da União Soviética, o marxismo até aí vigente também chegou ao seu fim histórico. A moderna categoria real do trabalho patriarcal era central para o marxismo como ideologia da modernização, (tal como para o liberalismo e para o fascismo). Em contraste com uma crítica categorial do capitalismo, que concebe o trabalho, a dissociação, o valor etc. como categorias históricas e assim torna concebível a sua ultrapassagem e abolição, em vez de positivar a sua imposição ou regulamentação (ou mesmo aluciná-las como determinação ontológica do ser humano), o marxismo formulou uma crítica do capitalismo do ponto de vista precisamente desse trabalho. Face à crise mundial do capital, o marxismo do movimento operário clássico, que pensa já ter reconhecido o factor decisivo na "luta de classes" e na "expropriação da propriedade privada", já não consegue captar a gravidade da realidade da crise. Com o fim da sociedade do trabalho, um ponto de vista do trabalho só pode ser reaccionário, como Kurz deixa claro. (Apresentação do texto na exit! nº 20, Maio de 2023)
1. O "trabalho" como identidade histórica da modernidade
Uma teoria que se tornou historicamente poderosa já não pode ser descartada como "erro e engano", nem mesmo quando certas manifestações históricas com ela relacionadas se esgotaram e desapareceram no abismo do passado. Porque a história não é um processo científico de declaração de falsidade face a uma objectividade morta, mas um desenvolvimento humano. A verdadeira história é "superação [Aufhebung]", na terminologia hegeliana, e não declaração de falsidade. Isto também se aplica a todas as grandes teorias, como momentos internos desta história. A este respeito, a teoria de Marx só pode ser superada, não declarada falsa. A actual forma de oportunismo histórico, que se apressa a pôr fim a Marx, ao marxismo e a qualquer crítica do capitalismo sob a pressão de uma história externa dos acontecimentos ainda não compreendida, e a proclamar o positivo "fim da história" (Fukuyama 1992), já se envergonhou terrivelmente em pouco tempo. Após o colapso do socialismo de Estado marxistamente legitimado no Leste, não estamos a viver a ascensão mundial da democracia da economia de mercado, mas a embaraçosa crise do próprio Ocidente: económica e socialmente, mas também ideologicamente e em termos de legitimação.
Na dialéctica, tal como no misticismo e nos sistemas esotéricos e cabalísticos, existe a doutrina da identidade de opostos. Esta identidade de opostos pode ser decifrada na história real e na teoria como a determinação da forma social geral abrangente, como a essência de uma forma histórica de sociedade que é comum a todos os participantes e facções "dentro" dessa forma, relativiza os seus opostos e apresenta-os como determinações polares dentro de um todo idêntico. No entanto, uma tal visão só é possível quando o fumo das batalhas imanentes se dissipou, quando a formação se torna visível como um todo idêntico apenas no momento do seu afundamento, ao passo que antes esta identidade teve de permanecer oculta aos participantes: caso contrário, não teriam sido capazes de travar as suas batalhas, de conduzir a formação histórica à sua maturidade e por fim "superação".
Neste sentido, a ruptura epocal que se desenrola diante dos nossos olhos pode ser entendida talvez surpreendentemente de modo completamente diferente daquele que a consciência ainda presa à época em declínio é capaz de imaginar; nomeadamente, não como a vitória do capitalismo sobre o socialismo, não como o triunfo dos princípios liberais sobre os dogmáticos ou da direita política sobre a esquerda política, mas antes como o limite histórico e a crise do sistema comum de referência, da forma histórico-social comum, cujo desenvolvimento e realização determinou não só a história do pós-guerra desde 1945, mas pelo menos os últimos 200 anos. Nesta perspectiva, o marxismo, que se tornou historicamente poderoso neste período, só pode realmente ser enterrado juntamente com todos os seus adversários.
Numa análise mais atenta, torna-se evidente que a categoria "trabalho" representa o idêntico dos opostos na modernidade, não só enquanto conceito teórico, mas também enquanto categoria real objectivada da existência histórico-social. As objectivações do "trabalho" sob a forma de "valor" económico, na encarnação da mercadoria e das relações de mercadoria, do dinheiro e das relações monetárias, a concorrência e a rentabilidade, a racionalização e a economificação do mundo determinaram a vida da modernidade numa linha ascendente e em grau crescente. E foi apenas através destas objectivações "do trabalho" que se foram desenvolvendo que surgiram as formas políticas modernas: os opostos do mercado e do Estado, do capitalismo e do socialismo, da direita e da esquerda, do nacionalismo e do internacionalismo, da ditadura e da democracia. Esta perspetiva pode, à primeira vista, provocar um abanar de cabeça incrédulo, mas apenas porque a consciência teórica, tal como a consciência quotidiana, desistoricizou e ontologizou instintivamente as suas próprias formas sociais de existência no processo da modernização: elas aparecem nas suas determinações mais abstractas como formas humanas de existência em geral.
Poderia ser esclarecedor o facto de isto se aplicar igualmente aos opositores imanentes da história da modernização, apenas sendo diferentes as acentuações e a ocupação dos pólos. Isto torna-se evidente quando os vários momentos socializadores da modernidade são alinhados com os seus opostos. O momento liberal do mercado, do capitalismo, do internacionalismo e da democracia é constantemente contrastado com o momento iliberal do Estado, do socialismo, do nacionalismo e da ditadura. No entanto, tal como o momento iliberal pode sempre ser ocupado tanto pela esquerda como pela direita e, portanto, remete para a identidade da oposição esquerda-direita (o liberalismo ideológico nunca foi capaz de representar um eixo independente que rompesse com o esquema esquerda-direita do sistema de coordenadas políticas, mas apenas coloriu sempre o respectivo curso da resultante), a série de conceitos liberal e iliberal também tem a sua identidade: estas categorias não estão numa relação dualista, mas numa relação de oposição histórico-genética entre si. A ditadura não é o antagonista externo da democracia, mas o outro da própria democracia: A sua forma histórico-genética de aplicação, tal como aparece de forma desigual nas diferentes regiões do mundo. Do mesmo modo, o nacionalismo é simultaneamente um factor condicionante e um produto da própria internacionalização e não a sua negação externa; o mesmo se poderia dizer da oposição entre mercado e Estado ou entre capitalismo e socialismo.
Uma comparação com outras formações históricas mostra que a identidade central de todos estes opostos é o "trabalho" com as suas categorias objectivadas. As sociedades agrárias pré-modernas, desde o Neolítico até ao arranque da industrialização, não conheciam nem o "trabalho" no sentido moderno, como categoria social de totalidade, nem as suas abstracções de forma (mercadoria, dinheiro) e leis de movimento (concorrência, rentabilidade) no nosso sentido. O conceito abstracto de "trabalho", na medida em que existia, referia-se apenas à existência dos menores e dependentes (escravos, clientes, servos); não possuía, portanto, a dignidade da universalidade social, mas, pelo contrário, exprimia a degradação per se (Arendt 1981). A esfera social do "trabalho" e, portanto, do económico abstracto ainda não estava diferenciada; a reprodução material ainda estava entrelaçada com a religião, as tradições sociais etc. Consequentemente, a mercadoria e o dinheiro não tinham uma existência central, nem sequer independente e abstracta, mas permaneciam integrados num sistema de obrigações recíprocas; ou haveria um conjunto de regras sociais de qualidade completamente diferente de "dádivas" mútuas (Mauss 1990)?
Que o "trabalho" e as suas categorias reificadas e independentes ("valor", mercadoria, dinheiro, capital, salário do trabalho, "processo de valorização") são o elemento idêntico da modernidade é o que demonstra também o facto de eles, juntamente com as suas formas de representação, terem sido igualmente aprovados, afirmados em termos de identidade e ontologizados por todos os manifestantes ideológicos e políticos da nossa época. O marxismo, como sabemos, não só não é excepção, como se identificou com o "ponto de vista dos trabalhadores" e reivindicou fundamentalmente o ponto de vista do "trabalho" como suposta antítese do "capital". No entanto, significativamente, os conservadores de direita e mesmo os radicais de direita também o fizeram, elevando a "figura do trabalhador" (Jünger 1982) a uma figura luminosa e de identificação. Mas os próprios representantes do capital não seguiram menos tal identificação. Quem acredita que a reivindicação do "direito ao trabalho" e a palavra de ordem "Fora com os ociosos!" é um privilégio da Internacional Marxista, tem de atentar no que diz a figura simbólica do capitalismo americano em ascensão: "O princípio moral básico é o direito do ser humano ao seu trabalho [...]. Na minha opinião, não há nada mais abominável do que uma vida ociosa. Nenhum de nós tem direito a ela. A civilização não tem lugar para os ociosos" (Ford 1923, 11ss.).
É certo que, no decurso do processo histórico da modernização, os vários funcionários e posições ideológicas deste processo idêntico colocaram em confronto as várias manifestações, modos de existência e encarnações do sistema do "trabalho" emergente: A forma viva de acção "trabalho" contra a sua forma morta e reificada "dinheiro" (capital), a nação como forma coerente de reprodução do "trabalho" (que só surgiu no processo da modernização) contra a forma de referência incoerente do mercado mundial e da sociedade mundial etc. Mas o sol central de todas as identificações (à excepção de alguns dissidentes hedonistas em todos os campos) foi e continuou a ser o "trabalho" ontologizado e axiomaticamente definido, sem que a mudança de significado deste termo no decurso da história real fosse reflectida.
Se virmos os opostos na modernidade não como uma batalha de princípios metafísicos eternos, mas como momentos complementares e genéticos de um único processo histórico, então o caminho da modernidade pode ser reconstruido como o desencadear do "trabalho": O sistema das antigas sociedades agrárias, assente na religião e nas tradições, foi substituído pelo sistema da economia abstracta, em que o "trabalho", sob a forma de capital, se impôs como um paradoxal fim-em-si. O reacoplamento tautológico do dinheiro a si mesmo ("valorização", lucro) é idêntico a um correspondente reacoplamento do "trabalho" a si mesmo, na medida em que o dinheiro e, por conseguinte, o capital, mais não é do que a forma morta e reificada de representação do "trabalho".
No entanto, esta transformação da actividade da vida no fim-em-si social abstracto e absurdo do "trabalho" só foi possível através da separação deste "trabalho" do processo coerente da vida e da consequente diferenciação da esfera económica abstracta do mercado e dos seus critérios; os elementos da religião, da tradição, da obrigação pessoal, da "dádiva" etc., foram eliminados como formas e critérios de relacionamento social, e a humanidade foi submetida ao fetichismo "economicista" do trabalho. Só através da sua separação e diferenciação do resto do processo da vida é que o "trabalho" se tornou autónomo e se elevou à categoria de totalidade, subordinando a si como princípio abstracto e dominante os dissociados domínios da vida, colorindo-os e tornando-os gradualmente conformes à sua imagem.
Sem dúvida que este processo não foi um processo consciente e reflectido, mas passou sempre por motivações particulares e limitadas do sujeito. O carácter intrinsecamente absurdo e de fim-em-si da formação "do trabalho", que surgiu em surtos irracionais, e a falta de auto-reflexividade do processo condicionam-se mutuamente. O que Melville faz o seu capitão Ahab dizer pode ser dito sobre a modernização: "Todos os meus meios e métodos são razoáveis; só o meu objectivo é louco". A "loucura" do objectivo, a saber, a acumulação como fim-em-si de "trabalho" morto, também tinha naturalmente de ter um efeito a longo prazo nos "meios e métodos", porque não pode haver uma mera racionalidade interna em si mesma. Neste sentido, a modernização, enquanto desencadeamento do "trabalho", das suas formas de representação e das suas formas funcionais, mais não é, em última análise, do que uma religião secularizada. Max Weber, por um lado, examinou este facto na sua "Ética Protestante" (Weber 1984), mas não o compreendeu com suficiente profundidade; por outro lado, descreve o mesmo processo como o "desencantamento do mundo" (Weber 1972), embora se pudesse igualmente falar de um tipo simplesmente novo de encantamento negativo do mundo, através do moderno fetichismo do trabalho.
Tal como a racionalidade da modernidade se revela irracional no seu âmago e a razão abstracta deriva do carácter abstracto e alheio ao conteúdo do "trabalho", também a história da imposição desta formação é marcada por graves convulsões irracionais, surtos de violência e novas relações de coerção. O novo sistema do "trabalho", com as suas imposições absurdas, só foi violentamente aplicado contra a resistência feroz não só das velhas forças da sociedade agrária, mas também dos "produtores directos" de origem camponesa e artesanal na sua forma pré-moderna; por exemplo, na disciplina do tempo desnaturada e sem sentido da fábrica e do escritório: "Os imperativos e as imposições comportamentais do trabalho assalariado: ser independente dos ritmos biológicos e climáticos, repetir os mesmos movimentos monótonos das mãos dia após dia, chegar à fábrica a horas e não a deixar antes do fim do dia de trabalho eram estranhos às pessoas pré-industriais. As suas vidas seguiam um ritmo diferente e não reconheciam ainda a separação estrita entre o trabalho e a vida" (Eisenberg 1990, 105).
Por outro lado, o mesmo sistema de "trabalho", que se desenvolveu compulsiva e patologicamente, também produziu os seus próprios novos atractivos, gratificações e momentos de emancipação. A história da imposição do "trabalho" pode ser dividida, grosso modo, nesta contínua ambivalência: Desde as marcas ou misturas ainda corporativas, feudais e agrárias na história da industrialização do século XIX, passando pela "ideologização das massas", pela luta de classes, pelas ditaduras da modernização e pelo impulso de duas guerras mundiais, até à "democratização" geral, à "desideologização" e à crescente "individualização" (Beck 1986) na segunda metade do século XX. Tal como a ditadura se encontra numa relação histórico-genética com a democracia e é ela própria a sua forma de imposição, o colectivismo, na sua variante marxista e também na sua variante nacionalista-radical de direita, revela-se uma fase transitória da própria individualização abstracta posterior, dirigida contra a antiga "comunidade" agrária (Tönnies 1979), ainda que isso não fosse consciente ou fosse mesmo formulado de uma forma ideologicamente contraditória (por exemplo, através do termo nacional-socialista em si contraditório "Comunidade de povo [Volksgemeinschaft]"), sendo a "desideologização" também o resultado genético do estádio de desenvolvimento ideológico anterior que produziu o marxismo e o nacionalismo, e não o seu mero oposto.
Este desencadeamento histórico do "trabalho" abstracto e a conexa separação entre a vida e a actividade produtiva tiveram, desde o início, um aspeto de género; a história da imposição do "trabalho" foi idêntica ao desenvolvimento das modernas relações de género. Em comparação com as sociedades pré-modernas, observa-se uma peculiar inversão estrutural. Nestas últimas, a actividade produtiva não era pública e não tinha uma forma social generalizada; fazia parte, em grande medida, da economia doméstica e, por conseguinte, do "oikos", da "casa inteira", em cujo espaço as donas de casa tinham um significado social incomparavelmente maior do que na modernidade. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da "polis" masculina e da sua esfera pública, a actividade produtiva no contexto doméstico era algo inferior e degradado, reforçado por um conceito de trabalho baseado na actividade dos escravos. Na modernidade, esta relação é invertida: o "trabalho", enquanto esfera libertada do contexto da vida, representado abstractamente sob a forma de dinheiro, torna-se um novo tipo de terreno público e, por conseguinte, um assunto "masculino". A esfera pública masculina da "polis" é "economificada" (em contraste com a Antiguidade) e só então se torna ideologicamente positiva no sentido do patriarcado moderno.
Por outro lado, isto significa que a "oikonomia" é retirada às mulheres para as responsabilizar, no reduzido agregado familiar privado, por tudo aquilo que não pode ser coberto pela agora público-social "economia do trabalho" e pelo seu abstracto fim-em-si (a valorização do dinheiro): "trabalho doméstico" no redutor sentido moderno, educação dos filhos, "amor". Por conseguinte, a modernização através do "trabalho" não significa, à partida, uma melhoria da posição das mulheres na sociedade, mas, pelo contrário, a exclusão e a desvalorização do "feminino" em potência acrescida; as actividades ingratas atribuídas às mulheres servem agora apenas para "assegurar e racionalizar a busca instrumental do desempenho como padrão da socialização masculina" (Eckart 1988, 202ss.), ou seja, como lixeira dos males do sistema. Na medida em que as mulheres, seguindo a falsa promessa do universalismo do "trabalho", procuram afirmar-se na esfera deste, permanecem ainda hoje estruturalmente desfavorecidas como "estranhas ou [...] como um grupo histórico de retardatários no mercado de trabalho" (ibid., 206). Não é, pois, exagerado afirmar que a "dissociação" e a codificação moderna do "feminino" se tornaram a "condição de possibilidade do princípio masculino do 'trabalho' abstracto" (Scholz 1992, 24).
Neste sentido, tanto o movimento operário do Ocidente como os regimes de acumulação de socialismo de Estado da "modernização atrasada" do Leste e do Sul podem ser entendidos como portadores do desenvolvimento interno do próprio capitalismo, estruturalmente dominado pelos "homens", contra o qual apenas lutaram superficialmente na sua forma empiricamente encontrada e ainda não desenvolvida. Num caso, o seu objectivo imanente era a igualdade dos "homens do trabalho" como sujeitos monetários e jurídicos modernos, no outro, a auto-afirmação dos retardatários históricos como nações modernas e como participantes no mercado mundial: ambos logicamente necessários no sentido do sistema total do "trabalho".
Se Marx e o marxismo são vistos como "acabados" desde a ruptura epocal de 1989, o mais tardar, então esta designação é involuntariamente ambígua. Porque o marxismo, visto de "fora", não está "acabado" como o derrotado na batalha, deixando outro como o vencedor brilhante; pelo contrário, está "acabado" como tarefa concluída e, portanto, tornada irrelevante do próprio processo de modernização. Esta tarefa era a generalização social e a imposição global do "trabalho" moderno. O marxismo foi o marca-passo deste processo contra os poderes de representação tacanhos das fases ainda imaturas do desenvolvimento capitalista. Para o pensamento imanente ao sistema, que se agarra aos conflitos do passado, o resultado só pode ser formulado como um paradoxo: o marxismo chegou ao fim porque o "trabalho" já não pode continuar a ser imposto e porque a história do desenvolvimento capitalista, de que fazia parte, atingiu os seus limites absolutos.
Este resultado surpreendente lança naturalmente uma nova luz sobre a questão da teoria de Marx. Afirmou-se muitas vezes que Marx, com o seu imenso tronco teórico, não fica absorvido no marxismo; por outro lado, ninguém quereria afirmar que Marx não tinha nada a ver com o marxismo. De facto, a teoria de Marx pode ser lida, em longos trechos, como uma teoria imanente da modernização, que certamente tem uma visão positiva do capitalismo e argumenta abertamente em termos de ontologia do trabalho, por vezes mesmo directamente "protestante". Neste aspeto Marx é compatível com o marxismo e a sua "tarefa" imanente. E não é de admirar que ele se revele um "homem do século XIX", para quem a "dissociação" da esfera complementar feminina e a separação do "trabalho" do processo da vida não são um tema central de crítica; é precisamente neste aspeto que Marx permanece afirmativo.
Por outro lado, Marx contém também uma linha de argumentação algo oculta e "esotérica" que ultrapassa o marxismo e o modo de socialização moderno em geral. Apesar da sua afirmação do "trabalho", Marx não tinha dúvidas de que as suas formas fetichistas e reificadas de representação, as mercadorias e o dinheiro, deviam ser abolidas num processo revolucionário de transformação. Esta contradição da sua teoria, que aponta para além da modernidade, foi sempre um incómodo para todos os marxismos, que ficaram presos à tarefa imanente da modernização, tendo sido tratada como uma vergonha de família. Marx pode ser lido de tal modo que, ao contrário do marxismo, não afirma o "trabalho" de forma incondicional e inconsciente, por assim dizer, mas sim como um meio historicamente produzido de forma inconsciente que "abre as fontes de riqueza" (Marx 1974, 135) e que actua como uma espécie de "pedagogia da história", isto é, não no sentido absolutamente protestante.
Assim visto, o "trabalho" seria apenas uma escada histórica que pode ser afastada quando a pobreza pré-moderna das necessidades tiver sido ultrapassada com a sua ajuda. Apesar das suas afirmações em contrário, Marx esteve sempre na iminência de romper com a ontologia do trabalho; mas provavelmente sentiu que ainda não era tempo para essa ruptura e que o movimento histórico da sua época ainda não podia saltar por cima dessa sombra. Hoje, porém, é precisamente este Marx já não compatível com o marxismo que pode revelar-se fecundo e surpreendentemente contemporâneo. Com efeito, a crise do sistema de referência comum dos combatentes anteriores está a emergir cada vez mais claramente como uma crise do próprio sistema mundial do "trabalho"; e conduz-nos assim a uma crise do capitalismo muito mais fundamental do que os marxistas alguma vez poderiam ter sonhado. Quando se fecha a cortina final de uma época, a história volta a cair numa profunda ironia objectiva.
2. A teoria da crise de Marx e a utopia marxista do trabalho
À sombra da grande crise global no final do processo da modernização e no limiar do século XXI, as ideias do marxismo sobre o fim do modo de produção capitalista também estão imersas numa penumbra peculiar. Na crise fantasmática que aparecia nas teorias e ideias marxistas, o (suposto) limite do capital tinha de ser idêntico a uma generalização e máxima expansão do "trabalho". Na crise real que começa a surgir diante dos nossos olhos, passa-se o contrário. A identidade negativa entre "trabalho" e capital torna-se visível precisamente nesta crise, que surge como uma "crise da sociedade do trabalho".
A contradição, na qual ironicamente o marxismo atinge os seus limites absolutos juntamente com o capitalismo, ainda pode ser encontrada sem disfarce no próprio Marx. Na medida em que ele próprio é um fetichista do trabalho e, por conseguinte, um ontologista do trabalho, tem naturalmente de insistir que o capitalismo perece precisamente devido à massificação e totalização da "classe operária", que não seria uma das suas categorias sociais funcionais, mas supostamente o seu "coveiro". A formulação "clássica" do marxismo, no sentido desta perspetiva, é a famosa passagem do capítulo 24 de O Capital (vol. 1) sobre a acumulação original do capital: "Com a diminuição constante do número de magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação, aumenta a extensão de miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora em constante crescimento, educada, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um ponto em que se tornam incompatíveis com o seu invólucro capitalista. Este é rebentado. Soa a hora final da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados" (Marx 2005, 790 ss. [1996, 381]).
Esta passagem, que durante muito tempo provocou uma espécie de arrepio sagrado nos marxistas, argumenta inteiramente no âmbito do fetichismo do trabalho, historicamente ainda em expansão. A contradição social aparece numa redução sociologista. Os "capitalistas" são cada vez menos e os "proletários" são cada vez mais; o marxismo contentou-se com este cálculo simples, avaliando mal o seu papel histórico e concluindo daí a sua "vitória inevitável". Neste entendimento, não é a abolição do "trabalho" que marca a fronteira do capitalismo, mas a sua "socialização" a um nível elevado. E o estranho conceito de "monopólio do capital", que tem de ser quebrado, sugere precisamente a ideia marxista vulgar de que não é a forma do capital ou o fetiche do capital enquanto tal que tem de ser ultrapassado, mas apenas a sua "monopolização" injustificada por uma classe social. O conceito de "propriedade privada" é aqui extremamente redutor; não parece estar ligado à forma social sem sujeito das mercadorias ou do dinheiro, mas ao "poder de disposição" subjectivo e sociologicamente definido de um determinado grupo de pessoas sobre os meios materiais de produção. Aqui ouvimos o Marx marxista e nenhum dos marxismos ultrapassou este limite da consciência.
Nos Grundrisse, por outro lado, Marx regressa por vezes à sua intenção "esotérica" original e muito mais consistente, e aqui encontramos uma visão quase diametralmente oposta do fim histórico do capital: "No entanto, à medida em que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza efectiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho aplicado do que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho [...] cuja poderosa eficácia [...] depende antes do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação desta ciência à produção" (Marx 1974, 592 [2011, 941]). Estamos a falar abertamente de uma situação histórica em que os "trabalhadores produtivos" não estão de modo nenhum a tornar-se cada vez mais numerosos, mas, pelo contrário, a cientificização da produção está a torná-los positivamente supérfluos em grande escala. O verdadeiro fim do capital caracteriza-se, assim, pelo facto de, juntamente com os "capitalistas", também os "proletários", no sentido de actividade reprodutiva de massas organizada pelo capital, serem cada vez menos numerosos, e de ambas as classes atingirem, em conjunto, os limites do seu sistema de referência.
Marx suspeita aqui de alguma coisa; para evitar uma ruptura aberta com a ontologia do trabalho, tenta reduzir o problema a uma mera superfluidade do "trabalho imediato". Mas será que as actividades da produção cientificizada ainda podem ser incluídas no conceito de "trabalho"? Se os Grundrisse já tivessem sido publicados no século XIX, o marxismo teria de reconhecer este problema como fundamental e rejeitar também fundamentalmente esta afirmação do seu mestre, porque nessa altura o conceito de "trabalho" ainda estava muito mais ligado à "actividade produtiva imediata". Desde então, porém, a própria história da imposição do "trabalho" inflacionou também o seu conceito; toda e qualquer actividade ou expressão da vida humana é definida como "trabalho". Esta inflação do termo exprime o carácter totalitário do sistema do "trabalho", que, no decurso do seu desenvolvimento, fez todas as esferas diferenciadas ou "dissociadas" à sua imagem e semelhança, e esbateu o traço da sua génese. No entanto, isso não altera o facto de este sistema se basear objectivamente no "trabalho de produção imediata" repetitivo e massivo, que pode ser transformado em poder de compra massivo e só assim permite o ciclo de valorização do capital. O conceito de "trabalho" enquanto tal, que apenas emergiu deste modo de produção, está e cai com este contexto sistémico.
Sob as condições de uma inflação socialmente abrangente do conceito de "trabalho", o marxismo conseguiu inicialmente interpretar o desagradável problema surgido nos Grundrisse com algumas contorções, na medida em que de algum modo o registou. O facto de o "trabalho produtivo" estar a tornar-se cada vez menos, e não mais, e de estar a ser tornado supérfluo pela cientificização, foi escamoteado para um futuro distante de ficção científica, muito para além da "revolução proletária" (comunistas) ou da "transformação socialista" (social-democratas), embora Marx diga bem o contrário. No entanto, num futuro historicamente previsível, o processo de cientificização deveria, se possível, continuar a um ritmo tão lento que diminuísse ainda mais o "trabalho", em vez de o tornar supérfluo. A velha ideia marxista do fim do capital parecia, assim, estar entretanto firmemente estabelecida.
Restava o pequeno problema de como transportar a ontologia do "trabalho", como uma suposta "eterna necessidade natural", para esse distante futuro pós-capitalista. Os marxistas também encontraram em Marx aquilo que procuravam. O "trabalho" devia ser reduzido, enquanto pretensa "necessidade", a migalhas cada vez mais pequenas para todos. O marxismo não colocou a questão de saber como é que uma ontologia do "trabalho" poderia ainda ser derivada de um resquício em desaparecimento, nem considerou a ideia de que o "trabalho", em vez de ser reduzido a um resquício cada vez mais pequeno (ao qual o fetichismo do trabalho se deveria então agarrar), poderia ser reintegrado no processo de vida a um nível superior e abolido enquanto esfera diferenciada e abstracta. Em vez disso, a "superestrutura" de um "reino da liberdade" deveria erguer-se sobre a absurda "base" de uma quantidade residual cada vez menor de "trabalho necessário", na qual a humanidade poderia então entregar-se à resolução de palavras cruzadas ou a prazeres ainda mais elevados. Alguns bem ousados quiseram mesmo definir este domínio como "trabalho", mas como o seu lado lúdico, por assim dizer (no sentido do utópico Fourier, por exemplo). E as "mulheres" seriam então graciosamente aceites nesta utopia masculina do trabalho em "pé de igualdade", com a secreta consciência de que toda esta construção está sempre estruturalmente definida em termos masculinos.
3. A real crise da sociedade do trabalho
O colapso da ideologia marxista é determinado precisamente pelo facto de se ter aproximado o fim do capital, e portanto do fetichismo do trabalho na segunda versão mal interpretada de Marx. Como é sabido, foi a revolução microeletrónica, com as suas novas técnicas de controlo, automatização e racionalização, que pela primeira vez tornou supérfluo mais "trabalho" do que aquele que pode ser reabsorvido pela expansão dos mercados. De acordo com um estudo recentemente publicado em Washington pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) de Genebra, o desemprego mundial atingiu proporções historicamente sem precedentes: "Na sequência da maior crise do mercado de trabalho desde a depressão dos anos de 1930, no início de 1994 estavam desempregadas 820 milhões de pessoas em todo o mundo, ou seja, 30% de toda a força de trabalho" (Handelsblatt, 7.3.1994). Isto significa que se chegou finalmente a uma fase em que o "trabalho produtivo" está a diminuir inexoravelmente em resultado do processo de cientificização. Nem as novas áreas de actividade no "sector terciário" nem as campanhas de luta contra os baixos salários podem alterar esta situação. Os primeiros são, em grande medida, sectores dependentes e derivados que continuam indirectamente dependentes dos rendimentos industriais; os segundos resultam em ofensivas de exportação unilaterais que só podem agravar a crise global através de uma concorrência predatória.
Assim não é por acaso que, desde o início dos anos 80, se fala periodicamente da "crise da sociedade do trabalho" à medida que a racionalização avança. No entanto, este discurso só é válido se a "sociedade do trabalho" for entendida como idêntica à relação de capital. Com efeito, "capital" e "trabalho" são apenas as duas faces da mesma moeda. Qualquer lógica que se baseie na fórmula pars pro toto tem de se conduzir a si própria ad absurdum. Tal como era ilusório admitir que através do socialismo de Estado o "trabalho" triunfasse unilateralmente sobre o "capital" e "continuasse a trabalhar" por si próprio, sem se auto-superar, também é ilusório, e mais ainda, ver o "trabalho", que foi racionalizado, mergulhar unilateralmente na crise, enquanto o "capital" continuaria a acumular-se. Em ambos os casos, a reciprocidade da relação é mal avaliada. O reverso do desemprego estrutural em massa é inevitavelmente o fim estrutural da acumulação de capital. Na superfície empírica, este problema aparece como o colapso global do poder de compra das massas, que é, no entanto, a última instância mediadora do ciclo da valorização. O capital começou assim a dissolver a sua própria substância social. Embora este limite possa ser protelado através do crédito estatal, da criação especulativa de dinheiro, da inflação da emissão monetária e de crises de dívida, isso não pode ser feito duradouramente e só é possível à custa de crises financeiras.
Isto é exactamente o que o marxismo nunca esperou nem poderia ter esperado na sua ideologia. A suposta ontologia do "trabalho" desmorona-se no próprio desenvolvimento capitalista. O "trabalho" perde o seu poder de generalização social, também na sua forma reificada de dinheiro. Em consequência, degrada-se a consciência que nela se baseia, incluindo e sobretudo a consciência marxista. O "trabalho" perde a sua dignidade; já não pode ser canonizado ideologicamente como o criador do que é imprescindível à vida. Pelo contrário, precisamente na sua crise, revela-se como uma máquina social que funciona cegamente, incapaz de dar sentido a qualquer coisa que não seja o seu próprio fim-em-si tautológico, de transformar "trabalho" em mais "trabalho" e com isso dinheiro em mais dinheiro. Deste modo acaba por produzir a destruição do mundo por si próprio.
Ao mesmo tempo vem à luz a crise da sua diferenciação como uma esfera abstracta e separada. O universo masculino da modernidade está a desmoronar-se. Os domínios dissociados que foram delegados nas mulheres começam a dissolver-se, porque as novas forças produtivas permitem que as mulheres se distanciem cada vez mais dos seus papéis e fluam para a esfera oficial do sistema "do trabalho", precisamente no seu final. Com isto não só se intensifica a concorrência nos mercados de trabalho em colapso, como também os domínios de actividade anteriormente dissociados, que não podem ser integrados no processo de criação de dinheiro "do trabalho" (incluindo os cuidados com as crianças, os cuidados com os idosos, os afectos, o "amor" etc.), ficam abandonados e entram em decadência. Não é a emancipação das mulheres em si que está na origem desta "crise das relações" sociais globais, mas sim a estrutura do próprio sistema "do trabalho" masculino, que pressupõe a dissociação sexual social como a sua secreta base funcional, mas que já não a pode manter. A esperança de poder organizar publicamente como "trabalho" ou mesmo comercializar os domínios dissociados revela-se uma ilusão. É aqui que o carácter dependente do sector terciário ou dos serviços se torna mais evidente: não só a subsidiação monetária das estruturas públicas de acolhimento de crianças no socialismo de Estado entrou em colapso, como as correspondentes instituições (ou meras promessas) nas sociedades ocidentais do "trabalho" também estão a falhar devido à falta de financiamento. No entanto, essas actividades, para além do problema da inadequação psicológica e da alienação, só podem ser comercializadas para uma pequena minoria que as possa pagar.
Isto mostra que a emancipação com base no "trabalho" não é de todo possível. A dupla crise da economia do "trabalho" e da relação de género aponta também neste contexto para o fim do sistema de referência comum. O problema já está a ser formulado em certa medida, embora ainda por vozes isoladas, na teoria feminista: "A expansão do conceito de trabalho possibilitou que se tornasse consciente e tangível em palavras o fardo das mulheres. No entanto, a expansão do conceito de trabalho atingiu os seus limites, que são expressos em monstros verbais como "trabalho relacional" ou "trabalho emocional". Estas palavras artificiais utilizam a analogia com o conceito de trabalho com uma intenção crítica, assim correndo o risco de reduzir as condições humanas ao trabalho [...]. Foi precisamente a discussão consistente sobre o conteúdo do trabalho doméstico que tornou claros os limites das analogias do conceito de trabalho [...]. As propostas são reflexos de uma discussão restrita sobre a emancipação, que se concentrou demasiado unilateralmente no trabalho e submeteu sub-repticiamente as mulheres à ascética ética do trabalho protestante" (Eckart 1988, 206s.). A partir desta problematização, é apenas um passo para a rejeição total de um conceito positivo e perpetuado de "trabalho", que o feminismo também tinha herdado dos marxistas: "A este respeito, o movimento das mulheres nem sequer precisa de redefinir a actividade feminina como ‘trabalho’ para provar o seu valor (moral e económico); pois o ‘trabalho’ neste sentido é, por assim dizer, a ‘raiz de todo o mal’" (Scholz 1992, 20). Isto não significa que os domínios de actividade atribuídos ao "feminino" devam ser afirmados como tal ou mesmo constituir uma espécie de manifestação de transcendência, uma vez que mais não representam do que o reverso do "trabalho" abstracto.
O facto de o conceito de "trabalho" estar a enfraquecer e a desintegrar-se também se tornou claro no debate ecológico e no debate sobre a redução do horário de trabalho, bem como em sectores (embora minoritários) do feminismo. O problema aqui, porém, é que geralmente não se vê uma ligação sistemática com a crise do capital e, portanto, da mediação do dinheiro. O marxismo é, naturalmente, o menos adequado para estabelecer esta ligação. A sua substância ideológica esgota-se na ideia ainda contida no ponto 8 das medidas directas propostas no Manifesto Comunista: "Trabalho obrigatório igual para todos, criação de exércitos industriais" (Marx; Engels 1990, 481). Na medida em que os marxistas não desertaram em massa para a economia de mercado ocidental, reproduzem de forma ainda mais militante este fetichismo histórico do trabalho. Não é o "outro" Marx que é descoberto, para o qual o "trabalho" poderia ser decifrado como uma "pedagogia da história" historicamente temporária, com o objectivo de libertar a riqueza social para depois ser abandonado, mas é a parcialidade que, sob esta forma, se petrifica até à inconsciência.
Hoje em dia, ninguém se agarra mais ferozmente a uma fantasiosa capacidade de acumulação do capital, ainda mais perpetuada, do que os remanescentes do marxismo desmoralizado. Isto não é, de modo algum, um reflexo de anteriores previsões de colapso que não se concretizaram, as quais, de qualquer modo, (na medida em que existiram) foram sempre formuladas em termos de ontologia do trabalho. Pelo contrário, esta expetativa quase gananciosa de um novo "modelo de acumulação" revela a identidade interna das oposições consagradas pelo tempo. Isto aplica-se também às potências fósseis do antigo movimento operário. O slogan da Confederação dos Sindicatos Alemães para o 1º de maio de 1994 consistia numa única palavra, na verdade um grito: "Trabalho!". E o slogan do SPD no ano super-eleitoral de 1994 triplicou este grito: "Trabalho! Trabalho! Trabalho!". É por isso que as sete principais nações industrializadas do Ocidente realizaram uma "cimeira do emprego" inconclusiva em março de 1994, significativamente na antiga metrópole do automóvel, Detroit.
O fim da moderna sociedade do trabalho, que é também o fim lógico da valorização do capital, encontra obviamente um momento de inércia em todos os campos ideológicos da modernidade. Enquanto as posições alternativas de esquerda estão irremediavelmente enredadas nas categorias do fetichismo do trabalho e continuam a querer representar a "utopia" na forma monetária reificada do "trabalho", as maciças morenas terminais do movimento operário esgotam-se num programa de emergência completamente irrealista da ideologia do "trabalho" não adulterada. Por outro lado, as posições dominantes neoliberais e radicais de mercado no meio académico e nos velhos partidos burgueses partilham a ideologia de base da ontologia do trabalho, mas apenas querem representar o "trabalho" (de acordo com a lógica real do sistema, que é a sua força) ao nível dos padrões microelectrónicos de produtividade e rentabilidade alcançados, ou seja, querem isolar uma massa crescente de pessoas da sua reprodução da vida de acordo com a "lei natural" da economia de mercado, encolhendo os ombros com pesar e relegando-as para o gueto da miséria. É desta paralisia que vem o ressurgimento fantasmagórico de uma terceira forma de fetichismo burguês do trabalho, ou seja, os zumbis neodireitistas, neopatrióticos e neonacionalistas. Este estranho regresso é alimentado por uma promessa absurda que não pode ser cumprida nas actuais condições do mercado mundial, nomeadamente a falsa esperança de poder reconstituir as formas sistémicas de "trabalho" numa base nacional ou mesmo etno-tribal. A música que acompanha esta promessa é a invocação impotente de velhas "virtudes" conservadoras, há muito desgastadas pelo próprio processo corrosivo do mercado, como se a crise globalmente objectivada da economia do "trabalho" (cegamente assumida) pudesse ser contrariada e superada por campanhas ideológicas éticas e nacionais. Isso significaria querer apagar a grande conflagração de um supermercado (em que o mundo se transformou) através de recordações saudosas das lojas da esquina, de hinos ao Kaiser Guilherme (ou pior) e de orações piedosas. Tal como o programa neoliberal se resume a uma perversa administração democrática da miséria, o programa neonacionalista, enquanto mera forma decadente de uma outra ideologia histórica do "trabalho", tão substancialmente "acabada" como o marxismo, não passa de uma pseudo-étnica guerra de bandos e de explosões irracionais de delírio pseudopolítico.
Assim, podemos constatar que o fim do marxismo é também o fim do capitalismo, o fim da esquerda é também o fim da direita e dos liberais. É o sistema de referência comum do "trabalho", a estrutura "masculina" unilateral e, por conseguinte, a mediação social total do dinheiro que está a decair inexoravelmente. A questão já não é saber qual das ideologias do "trabalho" passadas e todas elas obsoletas sairá vencedora, mas sim se a base comum pode ser ultrapassada. A questão é, portanto, em primeiro lugar, se as pessoas podem voltar a ocupar actividades reprodutivas autónomas para além do mercado e do Estado (ou seja, para além do "trabalho" e do dinheiro) e, em segundo lugar, se os potenciais de socialização (capitalista) e os potenciais científicos produzidos pelo "trabalho" podem ser transformados para além do sistema do "trabalho".
O problema não é a alegada ameaça de "mandriagem" (a fantasmática figura negativa comum ao fetichismo do trabalho marxista, liberal e nacionalista de direita) nem o famigerado "parque de lazer colectivo" fantasiado pelos conservadores de hoje, mas o desacoplamento da actividade da vida e da reprodução humana do fetiche de fim-em-si do "trabalho" e a reintegração desta esfera abstractificada e autonomizada em todo o processo da vida. A abolição do "trabalho", assim entendida, seria também idêntica à abolição dos modernos papéis de género. Só quando as pessoas, organizadas em novas formas de comunicação comunitária, tiverem recuperado o controlo da sua própria vida em relação aos poderes da alienação objectivados, anónimos e agora insustentáveis do Estado e do mercado, é que poderão interrogar-se, sem preconceitos, sobre o que pretendem fazer, material e sensivelmente, com as forças de produção deixadas pelo fetichismo histórico do trabalho, sem destruírem o mundo nem se destruírem a si próprias.
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Original “Fetisch Arbeit – Der Marxismus und die Logik der Modernisierung” in revista exit! nº 20, 2023, p. 24-40. Tradução de Boaventura Antunes