O Estalinismo do Dinheiro
Notas para o debate sobre a transformação da economia de mercado
O socialismo de Estado “pôde” afundar-se, mas a economia de mercado como tal “não pode”. Pelo menos segundo Michael Brie, que não consegue reconhecer senão “o pathos vazio da ruptura absoluta”, o “apocalipse” etc. na minha análise teórica de que a modernização da economia de mercado também chegou ao seu fim histórico, devido ao limite absoluto autogerado no processo de valorização do trabalho abstracto (racionalização, globalização, etc.) e que, por isso, é necessária uma transformação social para além do sistema mercadoria-dinheiro, (ND-Forum de 16/17 de julho de 1994). Devo concluir daqui que Brie rejeita pura e simplesmente, à partida, qualquer alternativa concebível ao moderno sistema produtor de mercadorias. A sociedade humana deve continuar a ser uma sociedade “ganhadora de dinheiro” ou tem de perecer: esta é a sua conclusão (não a minha).
Tudo o que é terreno, humano e histórico tem um fim, só o mundo moderno da produção total de dinheiro é que nunca deveria acabar? Pretender que todas as formações sociais anteriores estiveram sujeitas à transitoriedade histórica, mas que a modernidade dever “continuar a modernizar-se” por toda a eternidade com as suas categorias sociais de base não passa de um fundamentalismo quase religioso de um sistema social supostamente esclarecido. Actualmente há uma verdadeira inflação de teorias oportunistas de perpetuação da modernidade que, não negando completamente a grande crise mundial do final do século XX, pretendem no entanto permitir que a modernização (na forma do mercado e do dinheiro) continue a todo o custo, agora como a chamada “modernização reflexiva” (Ulrich Beck). Se alguma vez um “sermão dominical” académico foi uma fórmula vazia, tipo moinho de orações, foi esta. Michael Brie está no mesmo comprimento de onda quando afirma: “A modernidade não está a chegar ao fim, mas continua a ser essencialmente semi-moderna, ou mesmo não moderna” (loc. cit.). Um sistema mundial que se tornou total, com a automatização, o “global outsourcing”, a inteligência artificial, a comunicação por satélite, o cibersexo, um elevado grau de individualização das pessoas etc., e que já devastou ecologicamente e degradou socialmente metade do mundo – para onde é que esta monstruosidade nascida do dinheiro ainda há-de “continuar a modernizar-se” na mesma eterna forma insensata e fetichista? Não estaremos já a ultrapassar os limites da insanidade social e histórica com toda a elaborada linguagem da sociologia?
O fundamentalismo não admitido da modernidade corresponde a um pseudopragmatismo demasiado zeloso. O pseudopragmatismo consiste no facto de que, apesar de se trabalhar com todo o tipo de conceitos para ultrapassar a crise, nunca se trata realmente de lidar de forma pragmática com os recursos materiais-sensíveis (terra, natureza, forças produtivas, conhecimento humano, energia) para uma “vida boa”, mas, em vez disso, todo o pragmatismo pressupõe sempre impiedosamente os fetichistas critérios abstractos do sistema produtor de mercadorias, assim negando ele próprio o seu alegado pragmatismo. Tudo é possível, mas só se for submetido a priori à lei enlouquecida do dinheiro. Tal como um católico se persigna perante qualquer pensamento próprio, Michael Brie curva-se perante o “interesse da rentabilidade da economia de mercado” (loc. cit.), que ele canoniza antes de ter esclarecido a condicionalidade histórica deste critério. O facto de a economia planificada estatal-burocrática ter falhado no critério da rentabilidade não prova a correcção e a eternidade deste critério, mas apenas que o socialismo de Estado podia ser medido por ele, porque era carne da carne da modernidade produtora de mercadorias (nomeadamente o modo de entrada específico dos retardatários históricos).
As propostas que então surgem ultrapassam facilmente qualquer verdadeira crítica do dinheiro em termos de ingenuidade e má utopia, precisamente porque querem permanecer tão desesperadamente “modernas”. Michael Brie, por exemplo, pretende seriamente “redefinir” a categoria económica fetichista do “valor”: “O valor do trabalho deve ser transformado – sob pena de queda da humanidade – num outro valor, num valor de reprodução. E no valor de reprodução o valor do trabalho manter-se-ia ao mesmo tempo como seu momento imanente” (loc. cit.). Aqui vejo apenas uma superstição teórica, que pretende, por assim dizer, enganar a morte com uma fórmula mágica (cf. a crítica de Hans-Christoph Linke a Brie no ND-Forum de 6/7 de agosto de 1994). E Brie não é o único: quanto mais a crise sistémica avança, mais inflacionárias são as belas sugestões para rebaptizar o sinistro “valor” económico, que está a tornar “sem valor” a natureza e cada vez mais pessoas, num “valor social” filantrópico, ou para criar um esplêndido “valor da natureza” etc. Embora haja a sensação de que algumas coisas já não estão bem com o “valor” até agora cegamente assumido, continua a haver um apego desesperado a esta categoria central da socialização da modernidade. A febre da “redefinição” a este respeito parece ser particularmente desenfreada entre a intelligentsia das ciências sociais e da pedagogia social. É a clássica reacção burguesa à crise: querer lavar o pêlo sem o molhar. Pelo contrário, não creio que seja necessário esquecer o ABC da teoria de Marx para enfrentar a crise. O “valor” económico mais não é do que a fantasmática “representação” social de quanta de trabalho abstracto passado nos produtos. Esta forma absurda de medir o dispêndio de tempo e de material deve-se à separação entre si dos produtores de mercadorias, que só indirectamente se relacionam através do mecanismo do mercado (a relação mercadoria-dinheiro). No entanto, quando se chega a uma fase do desenvolvimento das forças produtivas em que as ciências naturais aplicadas minimizam até ao limite da sua “capacidade de representação” os quanta de trabalho que aparecem fantasmaticamente nos produtos, então o modo de produção baseado no “valor” (na linguagem corrente: a transformação permanente de trabalho em dinheiro) está historicamente acabado, ponto final. Todas as reinterpretações teóricas são tão inúteis como se eu “redefinisse” arbitrariamente uma granada de mão como uma cafeteira – ela continuaria a manter a sua forma objectivada.
No fundo, todas as tentativas teóricas de consertar a categoria do valor e todos os correspondentes “ajustes à porcaria do dinheiro” (como lhe chamou Marx) são apenas mais uma manifestação da arrogância fundamentalista da modernidade, que acredita poder controlar o seu próprio carácter fetichista através da “regulação política” sem ter de abdicar dele. O planeamento estatal burocrático das relações de mercadoria não abolidas foi apenas mais uma variante (embora historicamente muito mais compreensível) dessa húbris, que culmina sempre na frase comum a todas as sociedades modernas de que o meio “dinheiro em si” é completamente OK e só depende do que se faz com ele “em termos de conteúdo” (um erro francamente infantil que o teórico da comunicação McLuhan ridicularizou com razão já nos anos de 1960). É por isso que a verdadeira abolição do sistema produtor de mercadorias não pode ser alcançada por qualquer nova forma de planeamento estatal centralista. As novas forças produtivas, que só agora no final do século XX provocam a secular crise sistémica da modernidade, podem ao mesmo tempo mostrar uma forma de socialização completamente diferente, para além do mercado e do Estado. Penso que o objectivo de um sistema em rede de cooperativas de autossuficiência e de autogestão (com forças produtivas modernas, mas para além da economia monetária) é muito mais realista do que todo o charlatanismo de crise dentro do sistema de mercado.
Criticar o fundamentalismo da modernidade não pode ser por sua vez fundamentalista. Não se trata, portanto, de colocar outro sistema de coerção geral e abstracto no lugar do anterior. Isso não seria de todo radical (ir às raízes), mas apenas uma extensão do próprio fundamentalismo moderno ultrapassado. Mas a vida não deve ser sacrificada à economia de mercado. Todos os recursos que já não podem ser mobilizados de forma significativa pelo mercado, pelo dinheiro e pelo Estado têm de ser libertados para uma utilização autogerida, em vez de serem destruídos ou deixados em pousio. É fácil compreender como este caminho pode conduzir gradualmente para além do modo de vida capitalista. É claro que dar um passo nesta direcção significa também continuar a ter um pé na velha forma de sociedade (caso contrário o passo não é possível de todo). É por isso que não se pode falar de um “pathos vazio da ruptura absoluta”. Temos primeiro de aprender a desacoplar-nos parcialmente do dinheiro e a abrir espaços de reprodução e estilos de vida que se libertem dele. Isto conduzirá inevitavelmente a um novo conflito social, porque todos os recursos estão ocupados pela lógica do dinheiro. A questão é saber como é que as forças sociais existentes (incluindo a esquerda) vão reagir a isto a longo prazo. Apoiarão uma iniciativa teórica e prática que ultrapasse a economia de mercado total, ou suicidar-se-ão por medo da morte, deixando-se fechar na extensão de uma modernidade que já não pode fazer justiça aos interesses da vida?
Uma reorientação radical também tem naturalmente o seu lado moral e cultural (como Hans-Christoph Linke salientou no Fórum ND de 16/17 de julho e Ruth Priese no Fórum ND de 10/11 de setembro de 1994). Contra a ideologia conservadora da mera renúncia dentro do sistema de economia de mercado há que contrapor um conceito de riqueza qualitativamente diferente, que substitua a mania da competição e do consumo de bugigangas caras e ecologicamente destrutivas por outras qualidades materiais de vida. Não são apenas as pessoas da Alemanha de Leste e dos outros antigos países socialistas de Estado que “inconscientemente ainda temem a liberdade e a autonomia” (Ruth Priese). Acontece exactamente o mesmo no Ocidente, porque, em vez do estalinismo da burocracia, apenas prevaleceu aqui o estalinismo do dinheiro, que o Leste está agora a experimentar também para seu prejuízo. O “matar-se a trabalhar” sem sentido e heterónomo para um fim-em-si fetichista foi a caraterística comum de ambos os lados, e a unificação sob os ditames do dinheiro não alterou em nada este facto.
A “responsabilidade pessoal” não começa onde as pessoas (e os ideólogos da administração de pessoas) substituem uma forma de “ditadura das necessidades” (Agnes Heller) por outra, mas onde ousam criticar a alucinação social e conquistar um terreno de vida para a autodeterminação material e cultural. A discussão sobre este assunto está apenas a começar. Terá de ser prosseguida em questões concretas (nova reforma agrária, desenvolvimento de novas formas cooperativas e de uma estética e cultura anti-economia de mercado, revolucionamento do sistema escolar e educativo, exigências de espaços de vida e de comunicação livres, mudança fundamental na relação entre os sexos, ideias para um novo planeamento social não burocrático etc.). Há outras esperanças para além de esperar eternamente, como um idiota dependente, pelo Godot “investidor” ou “farol político da esperança”, que como sabemos nunca chega. E há coisas melhores para fazer do que arruinar-se para continuar ou para se tornar uma “localização” do disparate que é o perigo público da concorrência na economia de mercado. Talvez a libertação comece mesmo com uma zombaria insubmissa contra as inconcebíveis imposições a que nos sujeitámos até agora.
Original “Der Stalinismus des Geldes – Anmerkungen zur Debatte über die Transformation der Marktwirtschaft” in exit-online.org, 10/1994. Tradução de Boaventura Antunes, 08/2024