A DOMINAÇÃO DAS COISAS MORTAS
Notas críticas sobre a mais recente crítica das forças produtivas e a ideologia da dessocialização
1. Dominação da natureza e abstracção do valor: da “crença no progresso” ao pessimismo cultural
2. A desintegração da totalidade social
3. A fetichização da tecnologia
a) Subjectivação da natureza e “dominação” como pecado original
b) A reificação do conceito de forças produtivas e a lógica da produção aniquiladora
c) A degradação do trabalhador
4. Moral miserável e moral da miséria: consequências da crítica das forças produtivas
a) Dessocialização e fetiche da mercadoria: “Small is beautiful”
b) Moral miserável: a “redução da dimensão do fazer”
c) Moral da miséria: a “redução das necessidades”
d) O resgate do produtor imediato como sua perpetuação
1. Dominação da natureza e abstracção do valor: da “crença no progresso” ao pessimismo cultural
De acordo com um neologismo muito em voga, ocorreu uma “mudança de paradigma” no seio da esquerda desde o final da década de 1970. O mais tardar com a ascensão parlamentar dos VERDES, foram declaradas ultrapassadas todas as tentativas de voltar a despertar historicamente um movimento operário revolucionário através de uma agitação de massas no papel; em vez disso foi um modelo de interpretação ecológica da sociedade que passou a ocupar o primeiro plano da formação de conceitos e da tomada de decisões da oposição.
Como é sabido esta “mudança de paradigma” teve consequências profundas, tanto a nível teórico como a nível político e ideológico: A “crise do marxismo” e o “adeus ao proletariado” estavam ligados a uma “viragem” POLÍTICA à direita, não só à escala social global, como mudança de governo no seio do campo burguês, mas também no terreno da própria oposição de esquerda, como regresso ao reformismo parlamentar, como “adeus à revolução”. IDEOLOGICAMENTE esta mudança exprimiu-se, pelo menos em parte, como um “adeus à ciência” e um “regresso do imaginário”, como uma viragem para o irracionalismo e para a mundividência biologicista da “filosofia da vida”, como uma revitalização da religião e do misticismo na procura de “novos mitos” etc. A viragem “para dentro” foi acompanhada por um processo de encolhimento do quadro social de referência, por uma redução da escala de formação da ideologia: Enquanto a oposição extraparlamentar e o movimento estudantil ainda se tinham visto, mesmo que abstractamente, como um momento de um movimento revolucionário mundial, relacionando-se directamente com o quadro da socialização mundial capitalista, agora a “nação” e a “região” tomavam cada vez mais o lugar do desvanecido “internacionalismo proletário” como espaço social formador de identidade.
Mas a “viragem” da esquerda surgiu mais decisivamente no centro da própria teoria social; o “adeus a Marx” mais ou menos amplo ocorreu como transição de uma crítica da exploração económica e do “princípio do lucro” para uma CRÍTICA DOS MEIOS TÉCNICOS DE PRODUÇÃO E DAS CIÊNCIAS NATURAIS (“crítica das forças produtivas”, crítica do “sistema industrial”). É claro que seria fácil denunciar este desenvolvimento como uma regressão pura e simples, do ponto de vista de uma teoria revolucionária suposta firmemente estabelecida. Em muitos aspectos é de facto uma regressão; mas ao mesmo tempo surge inevitavelmente a questão do “porquê”, especialmente para a teorização crítica, se a figura metafórica tão chã como venerada da “traição” não servir para ofuscar o problema e trazê-lo para um nível moral subjectivo, ou se não servir como explicação a igualmente bem conhecida redução sociológica do conceito vazio e a-histórico de “pequena burguesia”.
Não há dúvida que a “mudança de paradigma” da esquerda, que aliás não ocorreu de modo nenhum de maneira uniforme mas sim em múltiplas rupturas e contradições, pode ser atribuída à sua fixação no movimento social de superfície e ao consequente curto-circuito com a sua formação teórica e ideológica. A redução crescente da teorização crítica às necessidades de legitimação dos respectivos movimentos espontâneos de oposição poderia explicar por que razão o notório insucesso da “agitação operária”, as crescentes catástrofes ambientais ou os ameaçadores projectos tecnológicos do capital (centrais nucleares) e a torrente de “iniciativas cidadãs” que lhes estão associadas conduziram a esquerda aos seus diversos “adeuses”.
É claro que o próprio marxismo de esquerda, hoje posto de lado ou pelo menos feito recuar em muitos aspectos, teria também de ser examinado quanto a tal pressa nos resultados e a tal retro-alimentação continuada de mera legitimação do “movimento”; deixaria então de ser possível adoptar um ponto de vista aparentemente seguro do marxismo supostamente “ortodoxo” e do movimento operário tradicional (incluindo a sua ala revolucionária) “incompreensivelmente” abandonado pela esquerda. Nesta perspectiva a regressão da esquerda acima descrita, precisamente através da sua crítica mais acutilante, poderia ser simultaneamente entendida como uma etapa NECESSÁRIA, isto é, como um ponto final (ainda que inconscientemente aposto) numa forma de emancipação social afundada e ainda em agonizante declínio, cuja pele se tinha voltado a vestir brevemente, mas que de facto já não é adequada à actual fase da socialização capitalista. Tratar-se-ia então apenas de um “adeus a Marx” para voltar a ele por um novo caminho; a um Marx, evidentemente, como o antigo movimento operário e os seus teóricos nunca o perceberam.
No centro destas considerações tem de estar obviamente a relação entre a crítica da exploração e do lucro, por um lado, e a crítica da tecnologia e do “industrialismo”, por outro. Se a esquerda ecológica pretende hoje SUBSTITUIR ou COMPLEMENTAR uma crítica do “sistema do lucro” por uma crítica do “sistema industrial”, está obviamente a colocar estes dois elementos numa relação meramente externa entre si. Isto aponta para uma falha do marxismo tradicional, ao mesmo tempo que faz uma transição para problemas da idade da pedra da filosofia e da ideologia BURGUESAS.
Desde o ROMANTISMO que a única autocrítica “admissível” e possível para a burguesia dentro do seu horizonte de consciência se referiu sempre e cada vez mais ao lado TECNOLÓGICO/DAS CIÊNCIAS NATURAIS do processo de socialização capitalista. Não foi a relação SOCIAL de capital mas a sua forma tecnológica que foi responsabilizada pelos males do modo de produção capitalista: uma visão verdadeiramente desesperada que conduz a um PESSIMISMO CULTURAL generalizado, procurando sempre mobilizar a “primeira natureza” (instintos, sentimentos, consanguinidade, dependência pessoal, coabitação natural etc.) contra a “fria” REIFICAÇÃO da “vida moderna”. As ciências naturais como pecado original da humanidade, a tecnologia como maldição, a grande cidade como “deserto de asfalto” e o “declínio do Ocidente” já eram as palavras-chave de uma diversificada “filosofia da vida” burguesa no limiar do século XX, de cujos ideologemas o fascismo viria a retirar uma enorme fatia.
Por outro lado o movimento operário parecia ser o herdeiro risonho da crença burguesa no progresso. As suas críticas à exploração capitalista referiam-se sempre apenas positivamente aos poderes desencadeados pela ciência e pela técnica, que só precisavam de ser “libertados” do controlo do capital para poderem trabalhar em benefício das pessoas em vez de as escravizarem. “Economia planificada” foi e é a palavra-chave central desta posição a tornar historicamente eficaz. Assumindo o “Estado operário” o controlo dos meios de produção deixados pelo capitalismo, a “anarquia do mercado” deve ser substituída por uma reprodução social “planificada”, “não para o lucro mas para a necessidade”.
Esta velha figura programática tornou-se completamente obsoleta. Mesmo nas sociedades industrializadas altamente desenvolvidas do “socialismo real”, as massas a que o marxismo sempre se referiu não estão em melhor situação do que no Ocidente, mas muito pior; não só são mais exploradas, como também estão sujeitas a um Estado policial num grau de opressão sem precedentes. Ao mesmo tempo o socialismo real de “economia planificada” não fica de modo nenhum atrás das sociedades industrializadas ocidentais no que se refere à destruição e à devastação dos recursos naturais. TSCHERNOBYL deve ser entendido como o farol de uma lógica de destruição a que o marxismo tradicional não conseguiu resistir, nem teórica nem praticamente. A evidência destes factos é de tal modo retumbante que só insensatos desesperados podem continuar a referir-se obstinadamente a um programa de emancipação social assim desacreditado. A este respeito a “mudança de paradigma” da esquerda deve ser levada a sério e contém um momento de justificação. Por outro lado a regressão a posições claramente identificáveis historicamente como da ideologia burguesa não pode ser aceite sem crítica, quanto mais não seja porque estas já provaram não ter saída.
Para resolver este dilema, no entanto, a crítica teórica tem de ter a coragem de reabrir e desenvolver uma dimensão da teoria de Marx hoje completamente recalcada e enterrada. A divergência conceptual entre a crítica do lucro e da exploração e a crítica da destruição tecnológica da vida aponta para uma enorme redução do debate marxista corrente sobre o modo de produção capitalista.
Como se sabe o verdadeiro ponto de partida da crítica de Marx ao capitalismo não é de modo nenhum o “mercado” (que poderia ser contrastado com o “plano”) mas a MERCADORIA. Embora o mercado seja constituído como um processo de troca de mercadorias, não é a causa última mas a consequência necessária do carácter de mercadoria da produção. Todos os pressupostos e consequências da “economia de mercado” baseada na produção de mercadorias já se encontram na sua “forma celular” (Marx), a mercadoria individual. A contradição entre valor de uso e valor de troca, que destrói a natureza e a humanidade, já se encontra na forma da mercadoria enquanto tal, e não apenas no mecanismo do mercado. Como valor de uso a mercadoria é apenas uma coisa qualitativa e útil, mas no processo de valorização capitalista ela só é considerada como tal externamente e por necessidade. Como valor de troca, porém, é uma coisa de valor, uma “coisa abstracta”, a encarnação do “trabalho humano em si e em geral” – a “objectivação” do “trabalho abstracto”. O processo de valorização capitalista só se preocupa com esta “riqueza abstracta”. Mas uma vez que a riqueza abstracta do “valor”, do “trabalho abstracto” objectivado não pode aparecer directamente na mercadoria individual na sua forma natural (como coisa imediatamente sensível, seja um par de meias ou uma ferramenta, a sua “objectividade de valor” não pode ser apreendida nela), a mercadoria tem de se “duplicar” no DINHEIRO, representando o dinheiro a objectividade abstracta do valor na sua forma natural (o ouro e suas formas substitutas de papel).
Para sublinhar plenamente o carácter demolidor destas categorias, que são apresentadas em todas as “lições do capital” mas que nunca são apreendidas, é necessário chamar a atenção para a seguinte circunstância: No conceito de VALOR e de DINHEIRO, que se baseia no conceito de TRABALHO ABSTRACTO, a determinação substantiva e qualitativa do trabalho e do seu produto é completamente APAGADA. O que é que significa este apagamento? Nas categorias reais do trabalho abstracto, do valor e do dinheiro, realiza-se um PROCESSO DE ABSTRACÇÃO do ser humano e da natureza, ao qual toda a reprodução social acaba por ser submetida no desenvolvimento histórico do capital. Este processo tem a ver com o “dispêndio de trabalho” em si mesmo, como um FIM EM SI e sem qualquer consideração pelo seu conteúdo. A produção social está a seguir cada vez mais o caminho de menor resistência encontrado para este dispêndio de “trabalho em si” sem limites, ou seja, sem qualquer consideração pelas consequências naturais e sociais. A massa das pessoas só pode viver (reproduzir-se) submetendo-se como “mercadoria força de trabalho” a esta finalidade própria de acumulação de riqueza abstracta, e sendo “utilizada” no âmbito desta finalidade própria abstracta; ao mesmo tempo este dispêndio apresenta-se como indiferente a qualquer conteúdo. Por outras palavras: o dispêndio abstracto de “força de trabalho” pode muito bem consistir numa produção SEM SENTIDO ou mesmo DESTRUIDORA em termos de conteúdo, e cada vez mais assim é. O desenvolvimento das FORÇAS PRODUTIVAS não conduz pois a uma redução do trabalho necessário à subsistência imediata (nem portanto a um crescente fundo de tempo para a actividade livre e autodeterminada de todos), mas precisamente ao contrário, de modo que a produção como fim em si deve continuar a evoluir para uma produção aniquiladora, ao mesmo tempo que cada “libertação” deste trabalho indiferente em termos de conteúdo aparece como um corte na possibilidade de reprodução e portanto de vida (“desemprego”). Assim a natureza e o ser humano ou são gastos para a produção abstracta “por amor de si mesma” – ou são “supérfluos”. Mas é precisamente neste dispêndio aparentemente ilimitado de trabalho abstracto como fim em si de acumular riqueza abstracta que a exploração do ser humano e a destruição da natureza se entrelaçam como dois momentos de um único processo. Por isso quando Marx diz: “A produção capitalista ... só desenvolve a técnica e a combinação do processo social de produção, exaurindo simultaneamente as fontes de toda a riqueza: a terra e o trabalhador” (O Capital I, p. 529ss), ele não se refere de modo nenhum a uma inconsideração moral subjectiva dos ‘capitalistas’, mas sim à lógica objectiva e ‘material’ do trabalho abstracto, que com a sua ‘totalização’ social causa cada vez mais estragos, na sua indiferença pelos conteúdos e pelas qualidades humanas e naturais. Assim capitalistas e trabalhadores, como pólos opostos de uma mesma relação social, estão igualmente à mercê de uma lógica que se autoperpetua, a compulsão para a expansão permanente da produção abstracta por amor de si mesma, na qual têm de desencadear conscientemente processos de produção destrutivos. O absurdo de uma “dominação das coisas mortas” torna-se assim uma realidade na dominação do dinheiro como pseudo-sujeito social material. Enquanto estiverem sujeitas a esta lógica do trabalho abstracto, as pessoas têm de manter um processo de autodestruição para poderem viver. Esta contradição absurda aparece como um “constrangimento material” da sua própria socialidade não dominada na “abstracção do valor”; mesmo a mais óbvia produção aniquiladora é justificada com referência à “competitividade” e aos “postos de trabalho”.
A CRISE desta socialização abstracta não aparece de modo nenhum apenas como uma “crise cíclica” do mercado “cego”, mas, a partir de uma certa fase de desenvolvimento que obviamente atingimos hoje, como uma crise ABSOLUTA de reprodução da sociedade em dois sentidos: Em primeiro lugar, o afastamento pela tecnologia do trabalho vivo do processo de produção imediato (automatização, microeletrónica) leva a que a lógica do trabalho abstracto se conduza ao absurdo e a que o processo de abstracção deixe de poder ser realizado suficientemente com a força de trabalho HUMANA; a consequência é uma “desvalorização do valor” (que não pode ser compensada por serviços, por exemplo, uma vez que estes são em grande parte “improdutivos” no sentido da produção abstracta de valor), e finalmente uma tendência para o colapso do mercado mundial e do sistema monetário global (“catástrofe económica”). Em segundo lugar, o mesmo processo tecnológico, na sua indiferença pelo conteúdo dos fundamentos naturais da vida, ou seja, na subjugação da tecnologia à lógica da abstracção do valor, conduz a uma destruição da natureza que progride rapidamente (“catástrofe ecológica”).
Em última análise, a consequência só pode ser que a humanidade continue a submeter-se à lógica do trabalho abstracto destruindo-se assim a si mesma, ou que esta lógica de abstracção do valor seja revolucionariamente “abolida”. Mas isso implicaria ter de abolir TODA a série teleológica “trabalho abstracto – valor – dinheiro – mercado” e substituí-la pela “socialização directa”. Embora as referências de Marx a uma tal formação social socialista sejam escassas e muito gerais (convém ter em conta que a lógica do desenvolvimento do valor abstracto por ele descoberta não estava ainda plenamente desenvolvida no seu tempo), ele não deixa dúvidas de que não é só o “mercado”, enquanto contexto meramente externo da produção de mercadorias, que tem de ser abolido, mas também a própria produção de mercadorias, e com ela a lógica subjacente do trabalho abstracto. Só uma tal abolição do trabalho abstracto, do valor e do dinheiro poderia conduzir a uma “planificação” consciente da produção social, que incluísse desde o início todas as determinações e consequências da produção relacionadas com o conteúdo qualitativo. Isto não eliminaria a “racionalidade formal” da produção, mas esta poderia ser calculada na sua “medida natural”, o TEMPO (isto é, como gastos em HORAS DE TRABALHO social). O cálculo necessário em horas de trabalho representa também uma “abstracção”, mas esta abstracção enquanto tal não pode ser SEPARADA do conteúdo concreto do trabalho. O cálculo imediato do processo de reprodução social em termos de horas de trabalho não é possível sob a dominação do trabalho abstracto, precisamente porque o processo de abstracção do trabalho se AUTONOMIZOU DO SEU CONTEÚDO CONCRETO e aparece assim “materialmente” independente sob a forma de valor e de dinheiro.
Para os ouvidos de um marxista “tradicional” estas considerações têm de soar extremamente estranhas. A razão para isso é muito simples. Com efeito o marxismo tradicional e o velho movimento operário quebraram a ponta da “crítica da economia política” de Marx, deixando desta teoria apenas a crítica do “mecanismo cego do mercado”, mas nada puderam fazer com a crítica do trabalho abstracto propriamente dito. Nesta visão redutora da teoria de Marx, que ainda hoje é comum, apenas o último elo da série teleológica “trabalho abstracto – valor (mercadoria) – dinheiro – mercado”, o contexto externo da produção de mercadorias, parece ser especificamente capitalista; para chegar a uma “economia planificada” apenas o “mecanismo de concorrência” teria de ser eliminado como “falso princípio”, mas não a “objectividade do valor” da produção. A ideia de abolir a produção de mercadorias tem então de ser abandonada completa e abertamente (como é o caso hoje no “socialismo real”), ou o conceito de tal abolição é falsificado numa mera abolição dos “cegos” mecanismos de mercado da “oferta e procura”, enquanto a abstracção do valor como tal continua a existir. Em última análise deste modo o capitalismo não é entendido como uma RELAÇÃO DE PRODUÇÃO, mas apenas como uma RELAÇÃO DE CIRCULAÇÃO. Aparentemente a crítica da “exploração do trabalho assalariado” contradiz este facto. Mas um olhar mais atento revela que mesmo esta crítica, na dicção marxista comum, não visa de todo o cerne da relação de produção capitalista, ou seja, a subjugação da força de trabalho humana ao trabalho abstracto, mas apenas o PROCESSO DE CIRCULAÇÃO DA MERCADORIA FORÇA DE TRABALHO. O entendimento da “mais-valia” não como lógica imanente à própria abstracção do valor, mas como mera “fraude”, como “redução do rendimento do trabalho” tem as suas raízes nisto, tal como todas as ideias de “produção de mercadorias sem crises”, em que o trabalho assalariado não é realmente abolido, mas apenas o mercado do trabalho, tal como o mercado das mercadorias deve estar sujeito a uma regulação social (“política”).
É claro que esta redutora recepção histórica da “Crítica da Economia Política” de Marx tem ela própria fundamentos históricos objectivos. Que teriam de ser procurados sobretudo no facto de, desde o surgimento do antigo movimento operário até aos anos de 1970, a lógica capitalista do valor ainda não se ter esgotado, ou seja, de o processo abstracto de valorização só temporariamente se ter deparado com limites relativos à sua expansão, os quais à primeira vista só se fizeram sentir como “crises cíclicas” no PROCESSO DE CIRCULAÇÃO. Com o aparecimento de novos ramos de produção, a lógica de produção do trabalho abstracto pôde sugar repetidamente grandes massas de pessoas a uma nova escala e submetê-las ao processo de abstracção do valor (“fordismo”). Ao mesmo tempo o processo de valorização abstracta ainda não se tinha instalado em todos os “poros” da produção social, ou seja, por um lado, o trabalho assalariado ainda não se tinha tornado total, mas estava intercalado com diversas formas de economia doméstica e de subsistência; por outro lado, pela mesma razão, a destruição dos fundamentos naturais da vida ainda não se verificava de forma geral e absoluta, mas apenas parcialmente em alguns centros industriais.
A redução “à circulação” do marxismo tinha assim uma certa plausibilidade objectiva, mas condenava o velho movimento operário a tornar-se ele próprio ELEMENTO DA LÓGICA DO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA, em vez de ser o suporte da sua abolição. No Ocidente a luta dos sindicatos e da social-democracia completou a esfera do CIDADÃO ABSTRACTO como função “política” cindida da produção de mercadorias (cf. a história da luta tenaz pelo direito de voto igualitário, que se prolongou pelo século XX fora) e tornou-se o marcapasso da produção de mais-valia relativa, dentro de cuja lógica "fordista" o trabalho assalariado pôde ser cada vez mais bem estabelecido ao longo de muitas décadas; a ala revolucionária deste movimento operário ocidental permaneceu impotente e abstractamente “política” na sua dicção (questão da violência, “ditadura do proletariado” etc.).
Mesmo as diferentes versões de uma “teoria do colapso” (Kautsky, Luxemburgo, Grossmann) acabaram por não ir além de uma concepção “imanente ao valor”. No Leste a revolução bolchevique teve de se tornar o suporte directo da imposição do trabalho abstracto devido ao subdesenvolvimento social das forças produtivas, após tentativas iniciais, ainda que limitadas à circulação, de “abolir o dinheiro”. O seu sentido HISTÓRICO mantém a produção abstracta de valor como uma formação “transitória”, apenas na qual a sociedade humana pode emergir dos seus laços com o solo agrário e portanto da sua fixação no contexto da “primeira natureza”, mas no processo dessa emergência submete-se inicialmente ao trabalho abstracto e acaba por vivê-lo como uma crise abrangente. Na Rússia de 1918 ainda não estava na ordem do dia a ultrapassagem do valor abstracto, mas pelo contrário a sua formação e generalização social. Não se tratava de um trabalho assalariado já generalizado, mas pelo contrário a enorme massa de pequenos produtores camponeses tinha primeiro de ser transformada em trabalhadores assalariados. Tal como no Ocidente, o centro da crítica do valor de Marx foi distorcido até ficar irreconhecível sob estas premissas. O mesmo processo que no Ocidente aparecia como a integração do movimento operário na socialização “fordista” do capital exprimia-se na União Soviética como a transformação de um “partido revolucionário do proletariado” nas instituições de uma máquina de desenvolvimento da abstracção do valor, da “acumulação original atrasada”. A “economia planificada” daí resultante, que não toca na lógica da produção do trabalho abstracto e por isso continua a basear-se em categorias abstractas de valor e dinheiro, continua necessariamente a ser um mecanismo regulador externo da circulação do mercado de mercadorias e de trabalho, e por isso só com afirmações ingénuas e ignorando o seu conteúdo real pode ser descrita como uma “economia da necessidade com base em valores de uso”.
Ligado a estas figuras históricas do movimento operário como elemento imanente da produção abstracta de valor, também o marxismo como teoria ficou cada vez mais enredado na redução da “crítica da economia política” à circulação ; a discussão de qualquer memória das abordagens “mais abrangentes” da teoria de Marx foi posta de lado e em última análise apagada. No entanto, uma vez que as APARÊNCIAS da abstracção do valor não podiam ser simplesmente negadas mesmo no “socialismo”, surgiu um estranho sistema de apologética “crítica”: o socialismo “em si”, suposto já “economicamente” presente (“economia planificada”), teria sido supostamente “deformado” por uma “burocracia” (que no entanto enquanto tal não pode fornecer um conceito de socialidade) e necessitava de toda uma série de “ADITAMENTOS”, por exemplo, “DEMOCRATIZAÇÃO”. Nestes constructos dos chamados “marxistas” a teoria já degenerou de tal modo que nem sequer se consegue já entender a esfera da cidadania abstracta (“democracia”) como um produto separado da abstracção do valor, que teria de ser abolido juntamente com o trabalho abstracto. Em vez disso um momento da produção de mercadorias é apenas contraposto ao outro, porque as distorções históricas da “acumulação atrasada” do modo de produção soviético permanecem fora da conceptualização deformada. Uma confusão adicional é criada pelo facto hoje evidente de que uma “economia planificada” limitada à circulação-distribuição pode ser adequada para um fazer-surgir “atrasado” das bases mais grosseiras da industrialização, mas a longo prazo fica disfuncional e não é capaz de produzir mais-valia relativa em grande escala. A base social do trabalho abstracto enquanto não for eliminada não é compatível com uma regulação “política” abrangente dos processos de circulação e distribuição. Com a categoria do trabalho abstracto estabelece-se também a categoria da “troca” e por conseguinte do mercado; a série teleológica que se forma através da forma do valor pressiona no sentido da sua conclusão e tem de a forçar afinal a “soltar” o mercado. A crise do “socialismo real” actual é portanto dupla: só se “iguala” ao Ocidente na destruição dos fundamentos naturais da vida, mas fica cada vez mais para trás na produtividade do trabalho abstracto. Não há que questionar que um “marxismo” que se tornou fetichista do valor na própria história do valor está de facto obsoleto e “ultrapassado”, encontrando ainda na melhor das hipóteses no “Terceiro Mundo” condições que lhe podem emprestar momentos de plausibilidade social (embora esta opção esteja também a tornar-se cada vez mais implausível com a crescente integração no mercado mundial dos países da Ásia, África e América Latina).
Se considerarmos agora a “mudança de paradigma” da esquerda no contexto da história mais alargada do valor e do marxismo, a justificação relativa deste “adeus” também se torna clara. A pressão social objectiva de uma crise da reprodução com base na abstracção do valor em geral, que vai muito para além das crises económicas anteriores, tem de desvalorizar não só o “valor”, mas também o “velho” marxismo fetichista do valor, que a Nova Esquerda tinha adotado na sua ingénua “orientação prática” durante alguns anos, depois de ter passado por quase todas as “velhas” ideias históricas de emancipação social.
Por outro lado, porém, e é aqui que tem de começar a crítica teórica e política mais acutilante, esta “viragem” da esquerda não se baseia numa reavaliação consciente da história (incluindo a sua própria história), mas continua a seguir uma orientação superficial e míope de “movimento”. Assim não se tratou de um “adeus” a uma figura histórica conceptualizada do marxismo, mas de um “adeus” sem conceito à teoria de Marx em geral, pelo menos entre os “críticos das forças produtivas” verdes-alternativos, enquanto a esquerda residual académica socialista de esquerda insiste mais ou menos nas reduções tradicionais (mas justifica-as cada vez mais com Keynes em vez de Marx, no que não está tão errada).
A “viragem” da crítica do “sistema do lucro” para a crítica do “sistema industrial” deixa assim por resolver a redutora “crítica da economia política” limitada à circulação e deformada. Mas ao fazê-lo cai necessariamente na abstracção do valor, só que de um ângulo diferente. Seguindo as pegadas da filosofia burguesa da vida e dos seus precursores românticos, a oposição tem agora de percorrer os caminhos não menos trilhados do pessimismo cultural burguês; a lógica “esquecida” da produção do trabalho abstracto reaparece como a suposta lógica da tecnologia e das ciências naturais, que é jogada contra a crítica da produção de mais-valia, em vez de as entender como momentos de um processo social unificado de abstracção do valor. No entanto, uma vez que para a consciência burguesa a subjectividade é imediatamente idêntica à abstracta subjectividade dualista do indivíduo abstracto do valor-dinheiro e do cidadão abstracto, a própria crítica da reificação só pode aparecer reificada como uma crítica do aparelho tecnológico morto, que é assim absurdamente reconhecido como um sujeito vivo. Na medida em que esta crítica se torna política prática, como no caso dos VERDES com os seus famosos “programas económicos”, ela própria se torna uma cria da produção de mercadorias, cujas consequências destrutivas se pretende que sejam remediadas com os meios do trabalho abstracto. Mas uma tal concepção, que se limita a lutar por uma “atenuação” da lógica abstracta da produção ou mesmo pela sua “inversão” histórica (reactivação da ideologia cooperativa, produção de mercadorias em pequena escala etc.), não está menos condenada ao fracasso do que a redutora ideologia da “economia planificada” do marxismo tradicional. Este facto será analisado de seguida através da crítica aos críticos das forças produtivas teoricamente mais ambiciosos.
2. A desintegração da totalidade social
Com a difusão da pequena produção alternativa (mais como ideologia do que na realidade, e na realidade mais no sector dos serviços do que no sector produtivo), com a emergência do movimento antinuclear e com a ascensão política dos VERDES, a literatura popular e teórico-científica sobre a “CRÍTICA DO SISTEMA INDUSTRIAL” aumentou imensamente. A “mudança de paradigma” estende-se até aos seminários de sociologia. Para não ir além do quadro estabelecido, abordarei de seguida sobretudo dois autores que podem ser considerados como teoricamente formadores da literatura “crítica das forças produtivas”, pelo menos na RFA: Otto ULLRICH e Winfried THAA. Por muito diferentes que sejam as suas abordagens (Ullrich trata da relação entre a tecnologia ou as ciências naturais e a sociedade em geral, Thaa tenta uma reavaliação “crítica das forças produtivas” do modo de produção soviético), as conclusões teóricas são tão concordantes que Ullrich e Thaa podem certamente ser classificados como representantes de uma mesma orientação. Isto é tanto mais verdade quanto ambos os autores fazem o seu “adeus a Marx” de modo não tão cego e indiferenciado como outros críticos da indústria, mas com um elevado nível de reflexão teórica. Contudo as rupturas na lógica da respectiva argumentação tornam-se ainda mais claras.
É característico da abordagem teórica de ULLRICH o facto de não basear a sua análise social na LÓGICA ECONÓMICA, ou seja, no trabalho abstracto, no valor/mercadoria e no dinheiro, mas (com Max Weber) no conceito de “dominação”; “Technik und Herrschaft [Tecnologia e Dominação]” (Frankfurt 1977, doravante citada como TuH) é por isso também o título da sua publicação científica mais abrangente, que ele popularizou em “Weltniveau [Nível mundial]” (Berlim 1980, doravante citada como WN) e expandiu para uma concepção quase sociopolítica. Enquanto Marx derivou coerentemente o “dominação do homem sobre o homem” nas sociedades modernas, precisamente na sua forma “objectivada”, da lógica da produção de mercadorias, e a contrastou com todas as sociedades de classes pré-capitalistas cuja dominação se baseara sempre em relações de dependência directas e PESSOAIS, Ullrich cai assim desde o início numa típica redução científico-positivista do “sociologismo”: Dominantes e dominados são justapostos sem pressupostos fora da lógica económica como “grupos sociais”, e depois analisados de acordo com “características” e “estruturas” cuja ligação interna deve carecer de qualquer lógica abrangente, excepto precisamente o “facto” da “dominação”.
Trata-se assim da “contradição entre as necessidades individuais ... e um objectivo organizativo, um interesse da empresa” (TuH, 14), da “necessidade de uma estrutura de papéis regulada por normas e baseada na divisão do trabalho” (TuH, 14), da “necessidade de uma hierarquia de autoridade na empresa” (TuH, 16), da “legitimação da dominação nas unidades de produção” (TuH, 17), das “forças formadoras de estruturas” (TuH, 18) na indústria e na sociedade etc. O conceito de trabalho abstracto não aparece de todo no “sociólogo especializado” Ullrich, impedindo assim à partida o acesso aos “potenciais de objectivação” da produção capitalista de mercadorias. Mas a análise tem de cair de um dualismo para o outro: o conceito de objectivação fixado pela categoria real do trabalho abstracto, que se desenrola por etapas até à produção mundial global de mais-valia relativa, não é portanto válido à partida para o modo de produção capitalista; pelo contrário segundo Ullrich o modo de produção capitalista também se divide numa fase de “dominação pessoal” e numa fase posterior de “dominação objectivada”: “A dominação pessoal passa para segundo plano, a dominação torna-se invisível, todos incluindo os patrões só têm de se submeter ao processo técnico(!) racional”. (TuH, 23).
Como mera afirmação descritiva esta afirmação é banal, mas no contexto de uma lógica do processo de produção já conduz ao ponto decisivo: não é a lógica do trabalho abstracto e do valor que está em causa, mas a lógica da TECNOLOGIA como tal. O processo de “objectivação” é directamente derivado do desenvolvimento tecnológico de maneira redutora, o que também pode ser descrito superficialmente assim porque o desenvolvimento tecnológico decorre de facto da produção de mais-valia relativa. No entanto Ullrich cai num curto-circuito lógico quando fala do “processo técnico racional” de modo aparentemente cativante. É claro que uma certa “racionalidade” está subjacente ao CARÁCTER DE OBJECTIVAÇÃO da produção capitalista; mas trata-se, segundo uma expressão de Max WEBER hoje muito invocada, de uma “RACIONALIDADE FORMAL” – para Weber a “racionalidade formal do mercado”, que por sua vez tem de remontar à racionalidade formal do trabalho abstracto: Ao dispêndio de quantidades de “trabalho humano em geral”, indiferente a qualquer conteúdo qualitativo. Mas nesta racionalidade formal e abstracta do valor não se “extinguem” apenas os conteúdos, as necessidades e as qualidades humanas, mas também as NATURAIS e com estas em última análise também as TÉCNICAS, na medida em que a tecnologia mais não é que a transformação QUALITATIVA da matéria natural. A lógica da tecnologia não é em si mesma formal, mas pelo contrário qualitativa, relacionada com a moldagem de valores de uso. A abstracção formal do valor não pode prescindir de qualquer conteúdo qualitativo, embora esse fosse o seu ideal; tem de produzir valores de uso (seja como for que estes são determinados em termos de conteúdo, eles têm de ser conteúdo, porque nenhuma quantidade formal pode existir sem conteúdo) para poder produzir o lhe é “próprio”, o “valor” abstracto. Do conceito de racionalidade formal, tal como está subjacente à objectivação capitalista, apenas se pode inferir uma SUBSUNÇÃO de todas as determinações qualitativas do homem, da natureza E da tecnologia sob o vazio de conteúdo da abstracção do valor. Por isso quando Ullrich afirma que o “princípio da pretensão total”, a “eliminação de todas as energias ociosas e não utilizadas” etc. (TuH, 31) foi transferido das ciências naturais e da técnica “para os domínios sociais e interpessoais” (TuH, 31), ele vira os factos do avesso. Na realidade não existe nenhum “princípio de pretensão total” (ou seja, qualitativo) “natural” ou “técnico” etc.. Este “princípio”, enquanto QUANTITATIVO-FORMAL, é um produto puramente social do mundo humano; surge da lógica da abstracção social do valor.
Para manter a sua abordagem, Ullrich tem de separar sistematicamente o conteúdo da técnica e das ciências naturais da abstracção do valor, transformando a técnica e as ciências naturais num “domínio autónomo”. Para isso é ajudado em primeiro lugar pelo aparecimento do “socialismo real”, que pode ser facilmente transformado num ponto de partida popular: “Uma vez que o desenvolvimento das forças produtivas como base de uma nova sociedade era tão importante na análise e na política marxistas, a ‘atrasada’ União Soviética foi industrializada pela ‘via não capitalista’ após a abolição do regime czarista. Hoje, mais de sessenta anos após a Revolução de Outubro, mesmo no ‘socialismo realmente existente’ há forças produtivas desenvolvidas que Marx nem sequer podia sonhar como base necessária para o socialismo. Mas os países do ‘socialismo realmente existente’ estão também muito longe do ‘socialismo humano’, de uma sociedade livre sem alienação nem dominação paternalista. Será que – contrariamente ao pressuposto original – as hipóteses de um socialismo humano se tornaram piores, em vez de mais favoráveis, com o crescente desenvolvimento das forças produtivas? Terá a maioria dos marxistas, com Marx, subestimado o possível 'lado negativo' do desenvolvimento das forças produtivas?” (WN, 7).
Ullrich toma assim à letra o “socialismo real”, na medida em que lhe reconhece uma via de desenvolvimento “não capitalista”. Mas ao fazê-lo já reduziu implicitamente a qualidade SOCIAL da “relação de produção” à banal oposição entre plano e mercado DENTRO da relação de valor, ou seja, no terreno social não mais questionado do trabalho abstracto. Não se apercebeu de que na União Soviética as forças produtivas na “acumulação original atrasada” surgem precisamente em função do DESENVOLVIMENTO DA RELAÇÃO DE VALOR, que no decurso deste desenvolvimento a abstracção do valor não foi evidentemente ultrapassada, mas pelo contrário se formou em grande escala com base no trabalho assalariado. Só por esta razão, só sob a condição de um escamoteamento sistemático da abstracção do valor é que ele pode colocar a sua “inocente” questão sobre as forças produtivas “enquanto tais”.
Já aqui se vê como Ullrich pretende confrontar-se com Marx: de acordo com o marxismo tradicional que supostamente se pretende ultrapassar, o conceito de “relações de produção” é castrado, separado da lógica do trabalho abstracto (e portanto também naturalmente do conteúdo social do desenvolvimento das forças produtivas), em última análise falsificado num conceito de meras relações de circulação e de propriedade externa. Os traços desta redução teórica podem ser encontrados em abundância na obra de Ullrich. Assim ele afirma, em total consonância com a sua definição sociológica de “dominação”: “O objectivo da dominação é assim cumprido enquanto os trabalhadores da empresa criarem um produto excedente do qual não são eles que podem dispor, mas sim a direcção da empresa, os proprietários do capital ou outra classe dominante.” (TuH, 174).
É quase comovente como aqui vem ao de cima todo o velho socialismo da distribuição, toda a redução do conceito de produção de mais-valia à circulação-distribuição! Esta redução muito “tradicional” torna-se ainda mais clara quando Ullrich põe em campo repetidamente a ideia de “dominação pessoal”, que é identificada “marxistamente” com a “questão da propriedade” (juridicamente limitada). Por um lado, por exemplo, constrói um argumento que se baseia largamente na sociologia conservadora da tecnologia (Freyer, Schelsky etc.): “Poder-se-ia citar muitos autores influentes que vêem a tecnologia industrial como um poder autónomo, que já não pode ser controlado pelo ser humano e que se desenvolve e difunde segundo as suas próprias leis. A crítica cultural de origem alemã é particularmente rica em teses deste género”. (TuH, 35).
Ullrich distancia-se formalmente destes autores reaccionários, apesar de o impulso deles corresponder exactamente à sua própria intenção (este truque, esta inocente lavagem das mãos aparecerá mais vezes nele), para depois confessar que para o “seu” contexto “os autores conservadores Freyer e Schelsky ofereceram análises mais precisas da ‘lógica da tecnologia’ ...” (TuH, 150) do que as abordagens marxistas. Por outro lado estas abordagens “marxistas” devem então ser deixadas inteiramente no seu chão entendimento da circulação-distribuição, no seu conceito juridicamente limitado de “propriedade” desligado da verdadeira lógica de produção do trabalho abstracto, e apresentadas como tal papão para poder fazer aparecer como por magia a lógica “independente” da tecnologia. Sob tais premissas Ullrich limita-se a discutir, como uma “contra-tese marxista” contra as conclusões da sociologia conservadora da tecnologia (que afinal são também as suas), que “por detrás” da “dominação da tecnologia” existe uma “dominação pessoal(!) de grupo e de classe” (TuH, 42); “por detrás da dependência aparentemente objectiva está a dominação pessoal das classes orientadas para o lucro... Ao mesmo tempo que esta contra-tese, é também considerada ou explicitamente formulada uma ‘inocência’ ou ‘neutralidade’ da tecnologia. A tecnologia é um meio nas mãos das pessoas, utilizável para objectivos discricionários” (TuH,42).
Em parte seguindo o entendimento tradicional, em parte até distorcendo-o e simplificando-o, o marxismo é aqui reduzido a uma ideia de dominação de classe como dominação “pessoal” de proprietários jurídicos (uma ideia que tem muito mais origem no cérebro de sociólogo burguês do próprio Ullrich), à qual é “colada” externamente por assim dizer uma “orientação para o lucro”. O facto de no conceito do processo de valorização todas as “dominações pessoais” conduzirem à partida ao absurdo, o facto de na lógica do trabalho abstracto as classes que dele derivam tanto os capitalistas como os trabalhadores assalariados estarem igualmente à mercê do “sujeito automático” do valor, e de por conseguinte a “classe dominante” não ser mais do que a “máscara de carácter” de um pseudo-sujeito social coisificado, estes pontos centrais da teoria de Marx têm de ser constantemente ignorados por Ullrich.
Agora que a redutora definição jurídica de um conceito meramente externo de propriedade foi suficientemente explorada como uma fraqueza do marxismo tradicional e apresentada como uma espécie de caricatura, o crítico da tecnologia pode seguir o mesmo padrão e explorar a limitação à circulação para os seus próprios fins. Para poder atribuir pelo menos em parte os “processos de reificação” que também podem ser claramente identificados no “socialismo real” directamente à “lógica da técnica”, Ullrich tem de limitar cuidadosamente o processo de reificação da produção de mercadorias à ESFERA DA CIRCULAÇÃO (que aliás nem sequer consegue separar conceptualmente da distribuição), ou seja, separá-lo novamente da subjacente lógica de produção do trabalho abstracto. Felizmente há um representante explícito desta redução já implícita no marxismo tradicional na figura de A. SOHN-RETHEL, de quem Ullrich diz com razão “que ele coloca o processo de abstracção no processo de troca” (TuH, 91). A posição de Sohn-Rethel é também imediatamente imputada ao próprio Marx: “Marx analisou o processo de reificação principalmente(?!) em ligação com a circulação das mercadorias... Uma grande parte da reificação também pode ser atribuída a esta. Há no entanto o perigo de que uma fixação demasiado unilateral na lógica do capital signifique que se preste muito pouca atenção a outros processos reificados.” (TuH, 178 ss).
Não deixa de haver um certo traço bárbaro na conceptualização para falar de uma “grande parte da reificação”, como se fosse possível dividir a lógica imanente de um modo de produção e cortá-la em fatias como se faz a um pão. Está escrito no rosto de um tal modo de pensar que ele próprio é reificado. Além disso esta afirmação falsifica a análise de Marx do processo de reificação da PRODUÇÃO de mercadorias num processo de mera CIRCULAÇÃO de mercadorias. Quando Sohn-Rethel afirma: “O trabalho não se abstrai a si próprio. A sede da abstracção encontra-se fora do trabalho, na forma social particular de circulação da relação de troca” (citado em TuH, 91), então ele ignora o ponto decisivo: o trabalho social torna-se de facto abstracto através da SEPARAÇÃO ECONÓMICA dos sujeitos humanos, não se torna abstracto apenas no “acto de troca” na esfera da circulação mas já no próprio processo de trabalho, precisamente porque a abstracção do valor se torna independente do conteúdo qualitativo do trabalho, ou seja, está sempre já directamente presente no processo de trabalho (ver mais adiante). Na verdade Ullrich, que considera a redução à circulação de Sohn-Rethel extremamente conveniente, pode agora afirmar triunfantemente “que os princípios abstractos, que mais tarde serão constitutivos das ciências naturais matemáticas, não tiveram origem na esfera do trabalho, da produção, mas na esfera da distribuição”. (TuH, 91s. O que se quer dizer obviamente é circulação!).
Ele apenas se opõe a isto na medida em que pretende “complementar” ou “adicionalmente” incluir a própria lógica da tecnologia como um elemento independente. A redução da lógica do valor e portanto da reificação da produção de mercadorias à esfera da circulação (“acto de troca”), e com ela o entendimento do capital reduzido à circulação revela-se assim ideal para os “teóricos do aditamento” críticos das forças produtivas e da tecnologia. No fim de contas toda a abordagem se resume a um “aditamento” ao marxismo, depois de este ter sido neutralizado de acordo com os seus representantes tradicionais e reduzido a uma vulgar teoria da circulação-distribuição. A “lógica do capital”, enquanto alegada mera lógica externa da propriedade e das transacções de mercadorias tornada conceptualmente inválida no seu núcleo da produção, requer assim um apoio adicional. Estranhamente Ullrich parece considerar que esta limitação autofabricada ou adoptada da interpretação do marxismo, que para ele é a autêntica, é inteiramente adequada ao século XIX: “No século XIX com a melhoria do nível de vida a exploração dos trabalhadores não estava ainda tão inextricavelmente ligada a uma racionalidade tecnológica que TAMBÉM (ênfase de Ullrich) tivessem sido absolutamente necessárias para analisar as relações de dominação análises psicossociais diferenciadas e uma análise da lógica de dominação da ciência e da tecnologia. A análise de Marx dos modos de produção capitalistas centrou-se historicamente e com razão na crítica da economia política ... A crítica da economia política, que Marx sublinhou como prioridade em função de uma constelação histórica, tem sido desde então considerada como o único foco de análise admissível no 'campo marxista'.” (TuH, 47s.).
Não é claro por que razão a análise deste contexto de “dominação” entre todas as épocas deveria ser mais “necessária” actualmente do que no século XIX, quando a ascensão social da ciência e da tecnologia como processo de industrialização capitalista se desenrolou inicialmente segundo o modelo da mais-valia absoluta em verdadeiros infernos fabris. Mas, para além destas incoerências, é evidente que Ullrich só quer entender a “crítica da economia política” como uma crítica das relações jurídicas de propriedade e da esfera da circulação de mercadorias (“mercado”) depois de todas as suas “reduções” (seguindo o marxismo tradicional), e é precisamente a esta redução que está a implicar o próprio Marx. Se as “relações de produção” são assim despojadas do seu núcleo produtivo, ou seja, se já não são de todo relações de produção, então é necessária uma análise “adicional” da lógica social do processo de produção imediato, que já não parte da categoria do valor “banida” para a circulação, mas directamente da forma material morta da tecnologia de produção enquanto tal.
Uma vez efectuada esta falsificação reducionista da “crítica da economia política”, Ullrich pode voltar a ela repetidamente, negando qualquer totalidade social da relação de capital e oferecendo ao mesmo tempo o seu “aditamento” de crítica da tecnologia, situando mesmo toda esta construção de ideologia puramente burguesa “no quadro da análise marxista”: “Para evitar mal-entendidos: também eu considero a ‘crítica da economia política’ como o domínio central da crítica e da análise da dominação capitalista. No entanto considero que um 'aditamento' é possível e necessário, possível dentro do quadro da análise marxista e necessário porque a dinâmica do desenvolvimento e as relações de dominação nas sociedades industrializadas modernas não são determinadas apenas pela lógica do capital.” (TuH, 48).
Deste modo, porém, Ullrich vê-se obrigado a generalizar a “autonomia” da lógica da tecnologia e das ciências naturais em termos de teoria social, ou seja, a atacar qualquer conceito de TOTALIDADE social. Com efeito, se a tecnologia pode ser descrita como um “domínio autónomo” relativamente à “relação de capital”, então todos os outros “domínios” o podem ser também. Assim Ullrich não só se insurge contra “a ‘ânsia’ de tentar DERIVAR (ênfase de Ullrich) e explicar todos os fenómenos a partir de uma ‘lei básica’ ou de um ‘teorema principal’, de um ‘conceito’” (TuH, 145), ou contra os teóricos marxistas que “monomaniacamente(!) ‘derivam’ tudo a partir de uma lógica do capital...” (TuH, 130), ele também tem de confessar-se abertamente um positivista, o que no entanto ele tenta repetidas vezes retirar “timidamente”, sem ser capaz de abandonar o impulso anticonceptual do seu pensamento sociologista burguês: “Para chegar a uma ‘visão bem sucedida’ dos processos de dominação, é necessário em primeiro lugar perceber que hoje, provavelmente mais do que no passado, a dominação é apoiada, mantida e estabilizada por muitos mecanismos em parte independentes ... Uma vez que a dominação do homem sobre o homem não pode ser desfeita a partir de um único ponto, uma teoria que acredite ter encontrado esse ponto falha a realidade de uma forma semelhante à ciência social burguesa com o seu interesse restrito ao processo particular”. (TuH, 149).
No entanto a pseudocrítica do “particularismo burguês” aqui aludida não é elaborada em lado nenhum, e enquanto mera frase formulativa tem um carácter puramente de álibi para Ullrich, que se considera ecleticamente para além do pensamento da totalidade conceptual, bem como do positivismo, mas para quem o conceito de sociedade se decompõe em “domínios autónomos” de forma plenamente arquipositivista. Uma vez que eliminou o conceito de valor (e com ele o conceito de trabalho abstracto) da sua análise sociológica, perde também o processo histórico de TOTALIZAÇÃO social da forma do valor, ao qual foi sujeito não só o desenvolvimento da técnica, mas também todas as expressões sociais da vida, até às actividades mais quotidianas e às relações humanas mais íntimas. A ABOLIÇÃO DO VALOR E DO TRABALHO abstracto tornou-se de facto o “ponto central” a partir do qual se poderia desvendar o “dominação do homem sobre o homem”, sendo que esta dominação do valor significa já o absurdo da dominação na medida em que é a dominação de uma COISA, de uma abstracção real, de um “sujeito automático”. Tal como muitos teóricos críticos das forças produtivas influenciados de uma maneira ou de outra pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, Ullrich vira praticamente de pernas para o ar a lógica histórica: Na medida em que “outros” mecanismos desempenham um papel “estabilizador de dominações” “adicional” ao processo de reificação da abstracção do valor, são PRÉ-CAPITALISTAS; estes desempenham o seu papel “adicional” tanto mais quanto mais SUBDESENVOLVIDO for o capitalismo, quanto mais lacunas no processo de socialização ainda rudimentar da abstracção do valor tiverem de ser colmatadas por formas tradicionais de circulação originárias do modo de produção agrário pré-capitalista. Com a totalização da forma do valor, com a emergência do capital como socialização mundial e com o desaparecimento destas lacunas, tais formas “adicionais” de mediação pré-capitalistas (“profissão”, família, sistema de parentesco, resquícios da produção doméstica de subsistência etc.) tendem também a desaparecer e a ser substituídas por formas abstractas de valor, isto é, relações mediadas pelo dinheiro de indivíduos cada vez mais abstractos como mónadas sociais.
Por muito que estes processos de transformação total da forma do valor devam ser examinados em pormenor (e portanto empiricamente) com base em todas as APARÊNCIAS sociais, dificilmente podem ser CONCEBIDOS sem o próprio conceito de abstracção do valor e, portanto, sem o conceito de TOTALIDADE social, que enquanto tal só se forma historicamente através da generalização do valor. Ullrich cortou deliberadamente o seu próprio acesso a esta conceptualidade e deixou claro que não acredita na lógica conceptual. Não surpreende assim que ele também acabe por ter de proferir o veredito sociológico obrigatório contra HEGEL, invocando pejorativamente “o fascínio da ‘coreografia hegeliana’ ...” (TuH, 147) e afirmando: “No entanto, se alguém tenta ‘derivar’ todos os mecanismos sociais relevantes e as ‘tendências gerais de desenvolvimento da relação de capital’, sucumbe a este fascínio, derivando novamente como Hegel o número e os movimentos dos planetas a partir de conceitos outrora considerados verdadeiros.” (TuH, 147).
Ora a relação de capital não é um “conceito outrora considerado verdadeiro”, no sentido de um constructo idealista-especulativo, mas o conceito concreto de uma totalidade de valor real, experimentável no quotidiano, de cujo desenrolar histórico real têm de ser “derivados” os vários fenómenos sociais. Ullrich confunde a exigência bastante correcta de fazer esta derivação COM BASE em material empírico, ou seja, não “fora” dos fenómenos reais na sua mudança, com a eliminação do conceito de totalidade. É a velha lira do positivismo, que mantém “método” e “conteúdo” como momentos separados e mutuamente externos, e que assim declara o material empírico dos “domínios” individuais como a única realidade que pode ser simplesmente “somada” numa totalidade de fenómenos, enquanto a conexão lógica interna degenera num “método” meramente externo que só ocorre na mente do cientista. A redução do marxismo no seu verdadeiro núcleo crítico do valor corresponde assim logicamente à eliminação do “legado hegeliano” do pensamento de crítica social. O lamentável tronco desbastado que resta como suposta teoria marxiana parece certamente muito “necessitado de aditamento”!
De facto Ullrich não consegue escapar à lógica interna da sua própria argumentação. Quem diz A, também tem de dizer B. A criação de uma “lógica autónoma” da técnica e das ciências naturais resulta necessariamente na desintegração do conceito de totalidade social numa lógica incoerente de “domínios autónomos” em geral. Trata-se então de “muitos processos objectivados postos em movimento por pessoas, que podem desenvolver-se de modo relativamente autónomo, que podem influenciar e interagir uns com os outros, mas que no entanto mantêm a sua própria lógica de desenvolvimento” (TuH, 190s.), de um “processo diferenciado”, “relacionado com diferentes domínios da vida” (TuH, 193), de “parâmetros políticos, económicos e jurídicos”, “ao lado” dos quais se coloca o “parâmetro” da “tecnologia” (TuH, 24s.) etc.
A proximidade com a “TEORIA DOS SISTEMAS” da sociologia burguesa é óbvia; Ullrich também utiliza abertamente a sua terminologia ao falar constantemente de “subsistemas sociais”. Não se coíbe sequer de definir de modo positivista o Estado capitalista como um “subsistema” e de o considerar, juntamente com os outros “subsistemas”, como uma “associação” meramente externa: “Os grandes projectos tecnológicos são (...) o resultado de uma interação organizada e concentrada de vários subsistemas da sociedade. Para descobrir os factores determinantes, ... faz sentido portanto analisar primeiro individualmente os subsistemas envolvidos, a fim de esclarecer como a lógica específica desses sistemas determina o resultado ... Os subsistemas mais importantes para a produção de projectos tecnológicos de grande escala são ... o Estado, o sistema de empresas industriais e a comunidade científica.” (TuH, 321).
Embora Ullrich se oponha ao conceito vazio de “complexidade” da teoria burguesa dos sistemas (N. Luhmann), porque “explica tudo e portanto nada” (TuH, 194), ele assume no entanto um “estatuto semelhante para o conceito de relação de capital” (TuH, 194). Mas é preciso ter uma certa ousadia para colocar o conceito de Marx da relação de capital definido de forma abrangente (como a unidade lógica de produção, distribuição, circulação e esfera separada do Estado, na qual o indivíduo abstracto da mercadoria-dinheiro se duplica como cidadão abstracto) ao mesmo nível que a categoria vazia da “complexidade”; Ullrich está evidentemente apenas a tapar o seu próprio rasto, que conduz precisamente a esta teoria burguesa dos sistemas, nomeadamente a uma eclética “lógica multicausal” de várias “esferas autónomas”. A mera especificação da “complexidade” da ligação entre “tecnologia e dominação” como um “aditamento” à “relação de capital” não seria mais do que uma concretização da abordagem sociológica da teoria dos sistemas, não apontando assim de modo nenhum para uma diferença em relação a ela como Ullrich gostaria de sugerir.
Na teoria dos sistemas, tal como para Ullrich, já não é possível um conceito concreto do todo social, mas apenas um contexto externo de ligação como um “sistema cibernético”. O próprio Ullrich demonstra claramente a abstracção vazia de um tal conceito sociológico da teoria dos sistemas no “contexto” na sua argumentação: “Os conceitos têm sempre de ‘reflectir’ o contexto global do domínio individual(!). O seu sentido, o seu significado só surge do contexto de todo o domínio. Uma síntese de várias “teorias de domínio” com base em conceitos implicitamente definidos não é portanto possível sem mais. A síntese só poderia ter lugar através de uma NOVA (ênfase de Ullrich) conceptualização implícita, decorrente do conhecimento e da reflexão das ligações dentro e entre os domínios individuais.” (TuH, 195s.).
O conceito de abstracção do valor, como lógica central da socialização do capital que permeia todas as esferas sociais, é assim substituído por uma “soma de lógicas de domínio” meramente externa, uma metaconceptualidade formal subordinada que tem de basear-se em pura “estupidez da indução” (Engels). Ullrich tenta ainda justificar este eclectismo “positivo” com Marx, nomeadamente com a “abertura para novas investigações e concretizações”, ou seja, “contra uma rigidez dogmática dos conceitos”. Uma tal rigidez “contrasta de modo notável com a abordagem de Marx, que era muito sensível a novos ‘factos’ e os incorporava constantemente nos seus conceitos, que mudavam em consequência ...”. (TuH, 197).
Isto é inteiramente verdade, mas Ullrich não poderia ter descrito um contraste maior com a sua própria abordagem. Esta consiste, como vimos agora muito claramente, precisamente na direcção oposta, em deixar de lado os conceitos teóricos da análise do capital de Marx, não INCORPORANDO NELES quaisquer “factos” novos para os “CONCRETIZAR”, mas pelo contrário utilizando a “rigidez dogmática” existente nesses conceitos (em vez de a eliminar), como um pretexto bem-vindo para inventar um “sistema complementar” de “outros conceitos” que CONTRAPÕEM à lógica central e negativa de socialização do valor a “lógica da tecnologia” como um “campo autónomo”, em vez de concretizar mais a lógica real de socialização do valor com base em fenómenos reais (incluindo a tecnologia! ), libertando-a assim da dogmática postura do Além. O próprio Ullrich trabalha assim com os conceitos redutores, estreitos e rígidos do marxismo tradicional, que constituem o próprio pano de fundo da sua evasão para as teorias complementares da teoria dos sistemas.
Winfried THAA também indica no título da sua obra “Herrschaft als Versachlichung [Dominação como objectivação]” (Frankfurt 1983, doravante HaV) que pressupõe o conceito de “dominação” sociológico, redutor e situado fora da lógica económica da socialização, como um fenómeno independente e externo às categorias económicas. É certo que a sua derivação é muito mais difícil que a de Ullrich, uma vez que procura simultaneamente aderir a uma definição sistemática da abstracção do valor em vez de simplesmente a excluir da análise, e localizar uma “lógica de dominação” da tecnologia ou das ciências naturais como tal para lá do valor. Mas a verdadeira conquista do seu livro é a forma como consegue subordinar o conceito de valor ao conceito sociológico de “dominação”.
A adesão ao conceito de valor como questão continuada é forçada pelo facto de Thaa não querer examinar a relação entre tecnologia e dominação em geral, mas ter como tema a análise específica do modo de produção soviético. Thaa entra assim num terreno científico historicamente já muito povoado, e no qual o problema do valor e da mercadoria sempre desempenhou um papel tão dominante que não pode ser imediatamente posto de lado sem mais, como um “subsistema” do “movimento das mercadorias” que não necessita de tratamento mais aprofundado, como é o caso de Ullrich. Thaa tem de fazer um desvio elaborado para poder continuar a falar de “trabalho abstracto” e de “valor”, mas ao mesmo tempo negar a lógica social destas categorias e por fim remodelá-las em termos de “crítica das forças produtivas”.
Inicialmente Thaa segue Ullrich quase passo a passo, nomeadamente na apologia do modo de produção soviético como fundamentalmente “não capitalista”. Tal como em Ullrich, esta afirmação baseia-se nas categorias “dogmaticamente rígidas” do marxismo tradicional, que não são de modo nenhum criticadas, mas utilizadas e exploradas para a sua própria argumentação: “propriedade estatal” e “economia planificada”. Thaa começa por criticar alguns teóricos anteriores do modo de produção soviético, de que referirei apenas brevemente a sua discussão com E. MANDEL e Ch. BETTELHEIM. Mandel fugiu às dificuldades conceptuais de um socialismo “na forma da mercadoria” criando a monstruosidade lógica de uma “sociedade de transição para a sociedade de transição”, ou seja, enquanto para Marx o socialismo é a “sociedade de transição” para o comunismo plenamente desenvolvido (e já não baseado no trabalho abstracto), Mandel vê o “socialismo real” como uma “sociedade de transição” adicional PARA o socialismo; a qual seria determinada pelo “... conflito entre duas lógicas económicas antagónicas: A lógica do plano e a lógica do mercado (distribuição dos recursos económicos de acordo com as prioridades conscientemente estabelecidas pela sociedade ou distribuição de acordo com as leis objectivas do mercado que se afirmam nas costas dos produtores)...” (citado em HaV, 12).
Não é difícil reconhecer que Mandel está aqui simplesmente a seguir a oposição plano-mercado do marxismo tradicional, ou seja, a permanecer no terreno da abstracção do valor e a definir a oposição como apenas na circulação-distribuição. Consequentemente Thaa também critica o facto de Mandel entender “por ‘lógica económica’ um princípio de distribuição de recursos, mas não a lógica de produção como a relação dos trabalhadores com o objectivo E (ênfase de Thaa) com a organização da sua própria actividade produtiva. No antagonismo das lógicas económicas de Mandel, a determinação social da forma de trabalho limita-se assim ao modo de distribuição dos recursos económicos.” (HvA, 12).
Seria agora coerente utilizar esta crítica para atacar o reducionismo de uma concepção do socialismo que se limita essencialmente a ultrapassar o “mecanismo cego do mercado” e que não tem em conta o cerne da relação social de valor. No entanto Thaa não chega a este cerne na sua crítica a Mandel; a referência à “lógica da produção como a relação dos trabalhadores com o objectivo e a organização da sua própria actividade produtiva” permanece vaga e sociologicamente redutora, ou seja, sem referência ao “sujeito automático” do valor. Neste ponto Thaa ainda não pode introduzir o seu próprio conceito de valor “crítico das forças produtivas”; no entanto já indica aqui que pretende construir a sua argumentação específica AFASTANDO-SE da lógica de socialização da abstracção do valor e remetendo para uma esfera “autónoma”, ou seja, que pretende efectivamente visar a “lógica da produção”, mas SEPARADA da lógica da mercadoria e do mercado. Podemos adivinhar para onde vai o caminho quando finalmente questiona com Mandel se a “dominação burocrática” não terá a sua origem “precisamente na ligação entre a planificação centralizada e um certo tipo de desenvolvimento das forças produtivas” (HaV, 15) em vez da oposição plano-mercado.
A discussão de Thaas com Bettelheim, que pertence aos teóricos do “capitalismo de Estado”, ou seja, que classifica o modo de produção soviético como directamente capitalista, produz um resultado semelhante. Ele parte da ideia de que o baixo nível inicial de desenvolvimento das forças produtivas na União Soviética “não permite (ainda) uma integração técnica(?!) das empresas” (citado em HaV, 16); como resultado, no entanto, as empresas individuais separadas tornar-se-iam portadoras de relações de valor de troca, e os seus gestores, directores etc. tornar-se-iam os “proprietários”, se não no sentido de títulos jurídicos de propriedade, pelo menos no sentido de “poder de disposição de facto”. Isto resulta numa “dupla separação, a separação dos trabalhadores dos seus meios de produção (cuja contrapartida é a propriedade dos meios de produção pelos empresários, ou seja, de facto pelos gestores) e a separação das empresas individuais entre si”. (citado em HaV, 16).
Nestas circunstâncias é importante que “a separação das empresas que reproduz a forma do valor seja contrariada por um poder estatal que comande efectivamente a utilização dos meios de produção” (citado de HaV, 16). Bettelheim considera que essa influência ainda existia sob a dominação de Estaline; a União Soviética ainda era “socialista” nessa altura e só mais tarde é que a influência política da “força do trabalho” etc. foi afastada e se expandiram as relações de mercadoria, ou seja, a “dupla separação” acima mencionada. O projecto centralizado tornou-se assim uma mera “ilusão” que mais cedo ou mais tarde teria de ser substituída por relações abertas de mercadoria e de concorrência.
Bettelheim alinha aqui obviamente com a tese “maoista” da “recapitalização” da União Soviética. No entanto a sua crítica a Mandel refere-se apenas ao facto de ele se limitar a completar o mecanismo de alocação contraditório de “plano” e “mercado” com a “questão da propriedade”, que é despojada da sua forma meramente jurídica e reduzida a uma disposição “factual”, mas que por isso permanece no quadro do conceito sociológico da “dominação”. Bettelheim não chega ao ponto decisivo, à lógica do trabalho abstracto e, A PARTIR DAÍ, ao seu desenvolvimento através das categorias do valor, do valor de troca da mercadoria, do dinheiro E do mercado. O conceito de propriedade como “poder de disposição” permanece assim externo à lógica da relação de valor social na sua forma específica “de socialismo real”; é apenas sugerida uma ligação através da definição extremamente vaga de uma “separação técnico-espacial” das “empresas” devida ao fraco desenvolvimento das forças produtivas. Mas afinal Bettelheim também fica preso à superfície da circulação-distribuição e tem de rotular chãmente os “dirigentes” das empresas como os principais portadores da relação de valor, que ele só consegue entender como uma relação de valor de troca (isto é, do ponto de vista dos “mecanismos de mercado”). O poder central do Estado torna-se assim o suporte (pelo menos potencial ou histórico) de uma lógica de plano “progressista”, “proletária”, de “valor de uso” etc.
Mas o que se passa é exactamente o contrário. Se a lógica das relações de valor de troca entre empresas for levada de volta para a lógica da relação de valor na própria produção, ou seja, para a lógica do trabalho abstracto, então deparamo-nos com o facto do TRABALHO ASSALARIADO, ou seja, com o carácter de mercadoria da própria força de trabalho. Mas isto envolve uma “dupla separação” diferente da de Bettelheim, nomeadamente a existência do “trabalhador assalariado duplamente livre” conhecido de Marx: livre, por um lado, das dependências e laços tradicionais pré-capitalistas como cidadão abstracto e indivíduo abstracto, como proprietário de uma mercadoria (a sua força de trabalho), e “livre”, por outro lado, dos seus próprios meios de produção e portanto forçado a vender a sua força de trabalho como mercadoria.
Neste sentido a administração de Estaline na União Soviética, precisamente sob a forma de “poder central do Estado”, deve ser vista como o PRINCIPAL PROMOTOR do desenvolvimento de uma “mercadoria força de trabalho” social. Não foram a separação técnica das empresas e o poder de disposição dos administradores que constituíram a força motriz do desenvolvimento das relações de valor de troca, mas sim a TRANSFORMAÇÃO DOS PRODUTORES IMEDIATOS EM TRABALHADORES ASSALARIADOS controlada centralmente, o seu afastamento das relações camponesas tradicionais e a sua transformação em portadores de trabalho abstracto. Isto corresponde às tarefas de uma “acumulação original atrasada”, em que os meios de produção “cientificizados” são criados também como meios sociais, que separam o trabalhador assalariado como produtor imediato dos meios de produção, não só juridicamente mas também de facto (em termos da sua competência), permitindo que o sistema da máquina social o confronte externamente. E ao contrário da Europa Ocidental esta “acumulação original” não podia ocorrer naturalmente, mas enquanto “atrasada” apenas com a entrada em acção de uma máquina estatal centralizada. Bettelheim falha assim completamente, porque não parte da lógica histórica do trabalho abstracto nem a segue até à superfície das relações de mercado, mas toma estas últimas como ponto de partida de maneira não mediada e portanto “sociológica” reificada.
Por seu lado Thaa, tal como Mandel, assume as fragilidades do argumento de Bettelheim, por exemplo no que se refere ao facto de que na União Soviética “a esmagadora maioria das grandes decisões de investimento ... são tomadas a nível central e não a nível da fábrica”. (HaV, 18). Mas também aqui Thaa não recua desta crítica para a UNIDADE DA REPRODUÇÃO SOCIAL TOTAL na abstracção do valor, com base na qual a oposição mercado-plano se torna secundária, dado que ambas as formas de alocação se baseiem na abstracção do valor. Em vez disso estranhamente ele afirma que “não se vê porque é que a exclusão dos trabalhadores da disposição dos meios de produção, o carácter de valorização da produção e o desenvolvimento de uma técnica correspondente ao modo de produção capitalista devem ser possíveis exclusivamente sob a forma de relações de mercadoria.” (HaV, 19).
O facto de Bettelheim como Mandel acabar por não ultrapassar a oposição plano-mercado não é aproveitado por Thaa como oportunidade para apontar a base comum destas duas formas de alocação na lógica da socialização negativa da abstracção do valor, mas pelo contrário para sublinhar a Bettelheim “a diferença de forma entre mercadoria e plano” (HaV, 19)! NÃO considera que “a mercadoria como forma total da sociedade” (HaV, 19) exista para o Bloco de Leste, fala “de uma forma de mercadoria nestas sociedades em última instância precisamente não socializadora” (HaV, 19) e censura Bettelheim pelo facto de o seu “elogio da industrialização de Estaline” se dever à sua “fixação na forma de valor da mercadoria” (HaV, 20).
Pelo menos estas formulações fazem-nos parar e prestar atenção. Será que a “forma de mercadoria dos produtos” ou a “forma de valor da mercadoria” não existe no “socialismo real”? Já aqui se vê que o próprio Thaa, tal como Mandel, Bettelheim e todos os marxistas tradicionais, considera a “diferença de forma” entre plano e mercado como critério distintivo PRIMÁRIO da socialização e apenas acusa os autores que critica de incoerências DENTRO desta visão redutora. Para ele aparentemente não é de todo essencial que o plano “do socialismo real” também se refira à lógica negativa da socialização do valor e se baseie portanto em categorias de valor, sob a forma de TROCA DE MERCADORIAS e através do DINHEIRO.
Thaa cai assim num dilema conceptual que pode ser descrito do seguinte modo: Se “plano” e “mercado” estão em oposição nas sociedades soviéticas (como acreditam Mandel, Bettelheim et al., embora com conclusões diferentes), então não se percebe como é que uma socialização a um nível elevado de industrialização não se desmorona todos os dias vendo-se à mercê de formas lógicas do seu contexto interno tão mutuamente excludentes. Este dilema só pode ser resolvido se a análise der um passo atrás na chã oposição entre plano e mercado para mostrar que tanto os “elementos” do plano como os do mercado se referem a um terreno comum, nomeadamente à abstracção do valor, como a verdadeira totalidade social e lógica de socialização subjacente. Só porque partem da base comum da abstracção do valor é que plano e mercado podem coexistir em contextos formais variáveis. Mas Thaa não procede de modo a elaborar esta base comum de valor abstracto como a verdadeira base da socialização. Pelo contrário ele toma à letra a chã oposição plano-mercado e declara assim que a forma de mercadoria que existe obviamente à superfície do “socialismo real” é uma mera “ilusão”, tal como Bettelheim tinha declarado inversamente que o “plano”, contrariamente a todas as evidências superficiais, é uma mera “ilusão” por trás da qual se esconde um contexto formal completamente idêntico ao do capitalismo ocidental!
Este dilema de Thaa, reproduzindo na íntegra a terminologia redutora dos marxistas tradicionais que ele critica no debate sobre o socialismo real, só que com os sinais invertidos, encontra-se em todas as suas argumentações. Quando afirma que “o Estado e a burocracia com suas formas de direcção social substituem a mercadoria na generalização do trabalho abstracto” (HaV, 158) ou fala de “socialismo real” como “uma realidade social em que ... a anarquia do mercado e com ela a reificação no dinheiro e no capital foram substituídas pelo planeamento estatal” (HaV, 173), permanece completamente obscuro por que razão esta forma de socialização alegadamente diferente continua a ocorrer no fundamental através das categorias de valor e de mercadoria, por que razão continuam a existir “actos de troca” como forma geral de circulação, e por que razão a “reificação no dinheiro” alegadamente “substituída pelo plano” continua ainda assim a existir de modo muito real como forma monetária de socialização. Quando Thaa afirma com confiança que “em nenhum lugar do ‘socialismo real’ ocorre uma apropriação privada do produto excedente que não seja legitimada pelo princípio do desempenho” (HaV, 200), ele não só cai conceptualmente na redução do marxismo tradicional à “propriedade” jurídica e à distribuição (como Ullrich antes dele), mas até faz afirmações factuais patentemente falsas dentro desta limitação (talvez devesse falar com os trabalhadores polacos ou da RDA sobre a alegada inexistência de apropriação privada do produto excedente ou, na medida em que ela existe, sobre a sua legitimação pelo “princípio do desempenho”! ).
Thaa dá voltas e reviravoltas, mas não consegue escapar conceptualmente ao problema não resolvido da socialização do valor que se baseia ao mesmo tempo na “planificação”. Assim ele afirma: “De facto, com uma planificação social global centralizada, os produtos individuais também são produzidos como uma tarefa planeada, como parte de uma produção global formulada em quantidades materiais, e portanto em última instância não de forma privada(!), como meros portadores de valor(!). A lei do valor deixou assim de ser o vínculo interno da sociedade; o plano é que socializa...” (HaV, 247) e noutro lugar fala de uma “incorporação das formas de valor num planeamento central relacionado com o valor de uso” (HaV, 204). A referência à “planificação do valor de uso” em “quantidades materiais” é muitas vezes utilizada na literatura sobre as sociedades soviéticas de uma forma mais ou menos criticamente apologética (por exemplo, por H. Ticktin, R. Damus e outros), mas numa análise mais atenta este facto revela-se muito vago. Porque este alegado “planeamento em quantidades materiais” não se baseia na realidade num debate social sobre o CONTEÚDO QUALITATIVO da produção, sobre as suas CONSEQUÊNCIAS NATURAIS E SOCIAIS, em suma: sobre a QUALIDADE DA REPRODUÇÃO SOCIAL TOTAL. Pelo contrário não passa de uma magra extrapolação dos dados puramente quantitativos da produção dos sectores individuais, que além disso só é finalizada a posteriori. A categoria abstracta do valor não é assim minimamente quebrada. Por isso mesmo estas “quantidades materiais” têm sempre de aparecer simultaneamente como quantidades de valor e de dinheiro, ou seja, como quantidades de trabalho social despendido sem ter em conta a sua qualidade. Thaa evita este problema de forma muito deselegante quando fala de uma socialização que é “em última instância” uma socialização “não-privada”, sendo que, para piorar a situação, também opera com um conceito obviamente grosseiro de “privado” que não é derivado da relação de valor abstracto e pode portanto ser entendido de forma bastante simples no sentido do “senso comum”, para quem o atributo “Estado” já se opõe muito directamente a “privado” (embora conceptualmente o Estado possa certamente confrontar os trabalhadores como uma entidade privada separada, desde que e porque se trata da generalidade abstracta com base na produção de mercadorias). O facto de segundo Thaa os “produtos individuais” não deverem ser produzidos como “meros portadores de valor” não explica absolutamente nada e pelo contrário obscurece os factos. Qual é o significado desta afirmação, que contém uma concessão, nomeadamente que os produtos são certamente produzidos como “portadores de valor”, mas não como “meros portadores de valor”? Estas formulações contêm uma capitulação conceptual perante o objecto, em vez de o esclarecerem analiticamente. A referência a uma “incorporação” das “formas do valor” (reconhecidamente existentes!) “num planeamento central relacionado com o valor de uso” é igualmente impotente e obscura; Thaa não consegue obviamente explicar por que razão as “formas do valor” têm de ser “incorporadas” num tal alegado “planeamento do valor de uso”! A sua análise fica completamente no ar neste ponto crucial e perde-se em frases feitas não vinculativas.
Esta impotência torna-se ainda mais clara quando Thaa (baseado em R. Damus) aborda a questão da “economia do tempo”. Uma produção “directamente social” teria também de medir o trabalho social directamente na sua “medida natural”, ou seja, o TEMPO. Apesar dos seus outros erros, Sohn-Rethel também sublinha entre outros este facto. Thaa toma agora o partido de R. Damus no debate com Sohn-Rethel, em que aquele se opõe ao conceito de economia directa do tempo de uma forma altamente reveladora. Como relata Thaa, “... Damus considera que a inclusão completa da socialização no processo de produção directa não é possível nem desejável. Não é possível, porque mesmo a maior maquinaria composta tem de permanecer empresarial e, por conseguinte, a comensuração do trabalho a nível social não pode ter lugar directamente no processo de trabalho ... Mas também não é de todo desejável, uma vez que a comensuração segundo a economia do tempo permanece puramente quantitativa e não permite uma combinação de considerações quantitativas e qualitativas na organização dos processos económicos. A crítica de Damus dirige-se portanto contra a própria economia abstracta do tempo, na qual Sohn-Rethel vê o princípio formal da sociedade socialista.” (HaV, 89s.).
Este argumento é surpreendentemente irreflectido em dois sentidos. Por um lado, a “impossibilidade” de “incluir a socialização no processo de produção imediato” significaria também a “impossibilidade do socialismo”, ou seja, a perpetuação da produção de mercadorias. Mas a “possibilidade” resulta da “cientificização da produção”, isto é, do facto de a existência de uma produção “empresarial” em termos técnico-espaciais já não ser idêntica a uma separação sócio-ECONÓMICA dessas “operações”, mas antes torná-las meras partes de um organismo global de produção directamente social (pelo menos ao nível actual da microeletrónica). Por outro lado, esta “inclusão da socialização” como economia de tempo directa é também mais do que desejável, na verdade já hoje é NECESSÁRIA PARA A VIDA, porque só assim a reprodução social global pode ser determinada e controlada na sua qualidade de conteúdo para o ser humano e para a natureza. Juntamente com R. Damus, Thaa é obviamente incapaz de distinguir entre a economia directa do tempo e a economia do valor. O valor não seria valor se pudesse ser expresso DIRECTAMENTE como tempo de trabalho social. É essa de facto a sua base (como em QUALQUER economia), mas de uma MANEIRA INDIRECTA, AUTONOMIZADA PERANTE O CONTEÚDO DO TRABALHO. É portanto completamente errado que uma comensuração do trabalho social segundo a economia do tempo (directa) “permaneça puramente quantitativa e não permita uma combinação de considerações quantitativas e qualitativas na organização dos processos económicos”. Esta classificação baseia-se obviamente na equiparação entre valor e economia directa do tempo. É exactamente o contrário, porque a medição de uma hora de trabalho social sob a forma directa não pode ser SEPARADA do CONTEÚDO desse trabalho (incluindo as consequências sociais e naturais), ao passo que a expressão abstracta do valor desse trabalho sob a forma indirecta (monetária) “apaga” precisamente esse conteúdo qualitativo e, por conseguinte, permite ou mesmo obriga a uma produção aniquiladora! Rejeitar a “abstracção” do tempo em relação ao trabalho, como fazem Damus e Thaa, não significaria outra coisa senão rejeitar completamente a produção social e regressar à economia doméstica e de subsistência (mesmo nesta, a abstracção do tempo como tempo de trabalho não poderia ser completamente evitada). É o VALOR que torna a abstracção independente do conteúdo do trabalho, precisamente através da sua forma de existência separada na esfera da circulação como DINHEIRO. Mais tarde Thaa repete novamente o monstruoso equívoco, quando refere que na RDA, na União Soviética etc. é frequentemente citada a observação de Marx nos “Grundrisse”, segundo a qual “toda a economia acaba por se dissolver na economia do tempo” (assim HaV, 198). Nas publicações da RDA e da União Soviética, esta referência a Marx é agora utilizada precisamente de forma a não apontar para a obsolescência do modo de produção “do valor abstracto”, mas a legitimar a máxima compressão do trabalho vivo dos produtores imediatos sob o ditame da abstracção do valor no sentido capitalista da “economia empresarial”! Em vez de criticar esta inversão da afirmação de Marx no seu oposto, Thaa toma a interpretação “real-socialista” e fetichista do valor desta passagem apenas como uma indicação de que (tanto para Marx como para os autores da RDA) o tempo (tempo de trabalho) é entendido “como o tempo abstracto da produção de valor” (HaV, 198). Nem os autores da RDA nem Thaa podem ou querem compreender que a dissolução de “toda a economia na economia do tempo” significa sobretudo uma CRÍTICA do valor, uma vez que este REIFICA o tempo como abstracção no dinheiro, e assim separa-o do seu conteúdo, “extingue-o”. O que deve ser abolido não é a abstracção do tempo como tempo de trabalho em geral, mas a sua independência material no valor, ou seja, o aparecimento do trabalho social como trabalho abstracto, como fim em si do dispêndio de força de trabalho humana sem conteúdo nem limites.
Em última análise, toda a argumentação de Thaa se resume a uma ignorância quase violenta da evidente existência do valor e da forma da mercadoria no “socialismo real”. Ele é forçado a esta ignorância se quiser chegar onde ele quer absolutamente chegar – juntamente com Otto Ullrich –, nomeadamente a uma reificação separada e “autónoma” através da “tecnologia”. Isto é já indicado quando afirma que a reificação através da produção de mercadorias é “uma – e talvez não a única – forma de submeter as pessoas à abstracção do valor” (HaV, 114). Esta afirmação é apoiada unicamente por esta mesma ignorância da existência real da forma dinheiro no “socialismo real”, por exemplo, quando Thaa declara alegremente que a “reificação da forma da mercadoria” só existe onde “o contexto social é mediado pelo dinheiro... Se isto não acontecer(!), mas em última instância(!) prevalecer um planeamento consciente(!) – então o equivalente geral também perde o seu carácter de sujeito(!). Então já não se pode falar de reificação do valor em sentido pleno(!), mesmo que a troca de mercadorias(!!) continue.” (HaV, 114). Para piorar as coisas imediatamente a seguir fala do “carácter de dominação da produção mesmo no caso da socialização não mediada pela troca de mercadorias”. (HaV, 116).
A confusão é obviamente total! Por um lado, supõe-se que a socialização “não é mediada pela troca de mercadorias”, por outro lado, tem de se admitir que esta mesma troca de mercadorias “continua”; por um lado, supõe-se que a ligação social “não é mediada pelo dinheiro”, por outro lado, supõe-se que o dinheiro, que mais uma vez “continua”, perde o seu “carácter de sujeito”. Deixa então de existir a “reificação do valor”, ou melhor, volta a existir, mas “não no seu sentido pleno” etc.
A confusão de Thaa, que é tão desesperada quanto tensa, resulta do facto de, para chegar finalmente à sua reificação “separada” através da “tecnologia em si”, ele estar demasiado disposto a acreditar na ideologia do planeamento “do socialismo real” e a ignorar deliberadamente as suas antinomias lógicas ou a incorporá-las directamente na sua própria argumentação. A “socialização consciente” e a “produção de mercadorias” são mutuamente excludentes, absolutamente incompatíveis. O absurdo do socialismo real de querer “planear” POR MEIO das categorias do valor e da mercadoria só pode ser explicado historicamente, a partir da contradição social específica da “acumulação original atrasada” na União Soviética. Aliás este “planeamento do mercado” abrangente (uma lógica contradictio in adjecto!) atingiu hoje os seus limites absolutos; talvez Gorbachev ainda possa dizer a Thaa e companhia uma ou duas coisas sobre o “continuado” carácter de sujeito do equivalente geral. No socialismo real a lei do valor não é anulada nem “controlada”, mas é suposto “funcionar” através do buraco da agulha da “consciência” burocrática – uma construção que em última análise tem de conduzir à agonia da reprodução social, se o mercado não for “libertado” (ou se o trabalho abstracto não for revolucionariamente abolido).
Esta contradição do “socialismo real” é inerente à sua génese histórica, à compulsão de realizar a “acumulação original”, isto é, a transformação das massas em trabalhadores assalariados, a SUBMISSÃO DOS PRODUTORES IMEDIATOS AO TRABALHO ABSTRACTO como condição prévia para um desenvolvimento industrial das forças produtivas através da centralização social, ou seja, através de uma máquina estatal centralista, ao contrário do Ocidente. Na IDEOLOGIA, como sempre, dá-se aqui uma INVERSÃO; a lógica das relações é virada do avesso. Enquanto o carácter “continuado” de forma da mercadoria e do valor da reprodução social externa e burocraticamente centralizada resulta apenas do carácter de mercadoria da força de trabalho humana, ou seja, da necessidade histórica de submeter os produtores imediatos à lógica do trabalho abstracto para desenvolver as forças produtivas, os ideólogos “do socialismo real” invertem este facto e afirmam que a força de trabalho humana, ao contrário dos produtos, já não tem carácter de mercadoria; isto é “justificado” com a afirmação disparatada de que a eliminação da propriedade privada (jurídica) dos meios de produção transformou os trabalhadores em “senhores” e “proprietários colectivos” das fábricas. Também neste ponto Thaa tem de adoptar sem hesitação a ideologia “do socialismo real” para poder manter a sua própria argumentação; assim procura denunciar como infundadas todas as abordagens que “sublinham o alegado carácter de mercadoria do trabalho assalariado” (HaV, 157) nas sociedades soviéticas. No entanto, uma vez que se poupa ao trabalho de enevoar com frases eufemísticas a forma monetária do salário do trabalho efectivamente existente (por exemplo, ao dizer que já não se pode falar de um salário normal “em sentido pleno” etc.), também eu me posso poupar a mais crítica.
Agora que Thaa declarou a forma do valor e da mercadoria no “socialismo real” como uma mera “miragem” em todas as questões relevantes, e podou à maneira de Procrustes todos os fenómenos reais existentes desta forma do valor e da mercadoria da reprodução social, pode falar de uma pura “socialização directa” no “socialismo real” apesar destes fenómenos persistentes. O conceito sociológico de “dominação”, aparentemente colocado no seu devido lugar, pode agora desenvolver a sua função, tal como o fez em Ullrich. Com efeito Thaa gosta de reconhecer os fenómenos reais de “dominação” exercida pelo homem sobre o homem no que diz respeito ao “socialismo real”; neste ponto contradiz a ideologia da RDA e soviética. No entanto, com base em R. Damus e outros, afirma que esta “dominação”, enquanto “característica específica das sociedades soviéticas”, é uma “FORMA de socialização da dominação directa que é fundamentalmente diferente do capitalismo” (ênfase de Thaa) (HaV, 157). A “dominação directa”, se é que o termo deve ter algum significado, só poderia basear-se em RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA PESSOAL, que seriam “directamente” mediadas pela violência: Isto é, através da auto-organização armada de uma classe dominante face aos produtores imediatos, em relações de produção agrárias PRÉ-CAPITALISTAS cujo grau de socialização é ainda muito baixo. Nem Thaa nem os seus apoiantes teóricos conseguem explicar como é que os modernos meios de produção sociais são compatíveis com essa “dominação directa”, que está conceptualmente ligada a meios de produção não sociais.
Este conceito de “dominação directa” também não pode ser utilizado para explicar a real existência da CIDADANIA ABSTRACTA no “socialismo real”, nem todo o sistema jurídico, nem o processo de “juridificação” que tem prevalecido historicamente nas sociedades soviéticas com base nesta cidadania abstracta do Estado. SÓ a existência da forma do valor como forma central de socialização pode explicar a duplicação do indivíduo abstracto da mercadoria-dinheiro em cidadão abstracto, enquanto qualquer noção de “dominação directa” continua a ser incapaz de apreender a verdadeira lógica dessas relações.
Mas Thaa continua a trabalhar sistematicamente com este conceito sociológico de “dominação directa” mais do que insatisfatoriamente introduzido, procurando relacioná-lo com um conceito altamente peculiar de “abstracção do valor”, que está completamente desligado da forma do valor e da socialização da mercadoria: “Assim a propriedade estatal dos meios de produção e o planeamento económico centralizado eliminam de facto a forma reificada de existência do valor no capital, mas no seu lugar surge a realização da abstracção do valor através da burocracia objectivamente legitimada e hierarquicamente organizada.” (HaV, 248).
A “burocracia” (uma insuportável fórmula vazia que apenas tem de substituir o conceito ausente de uma socialidade concreta) é assim supostamente portadora dessa sinistra “dominação directa”; mas de que deriva por sua vez esta “burocracia”? Inicialmente Thaa dá apenas indicações negativas: “...A socialização directa, ao contrário da troca, pressupõe uma certa autoridade governante que não pode ser derivada da própria forma de socialização.” (HaV, 83). Agora que sabemos que o “dominação directa” da burocracia “realiza uma abstracção do valor”, mas que isso não deve ter nada a ver com a “troca de mercadorias”, nem sequer com a “forma de socialização”, chegamos lentamente ao cerne da questão. Thaa assegura-nos: “A abstracção do valor não existe apenas no dinheiro” (HaV, 114) e: “A inversão análoga à reificação na relação dos indivíduos com a sua actividade não exige uma forma de representação puramente material correspondente ao dinheiro.” (HaV, 121). Esta fantástica “abstracção do valor” que “não está representada no dinheiro” não é, no entanto, outra coisa senão “a forma do valor interna da tecnologia” (HaV, 145). A revolução da ciência do Sr. Winfried Thaa! Aqui a temos, reconhecível como a monstruosidade lógica de uma abstracção do valor não na forma da mercadoria! É suposto existir uma “forma do valor interna da tecnologia” que nada tem a ver com a forma de existência do valor como dinheiro em circulação – Thaa tem de impor aos seus leitores este desaforo ao pensamento lógico com toda a seriedade. Mas os saltos fantásticos de tal argumentação são novamente quase admiráveis; ele explica sem pestanejar: “A socialização da produção, que na empresa individual sintetiza o trabalho em quantificação pura e sem qualidade do ‘trabalho total funcional’, é uma socialização directa do trabalho como produtor de valor abstracto.” (HaV, 93).
O desmembramento da totalidade social da produção e da circulação por Thaa produz aqui os seus resultados absurdos: Afirma uma contradictio in adjeto duas vezes na mesma frase, a saber, por um lado, uma “quantificação sem qualidade” e, por outro, uma “socialização directa do trabalho como produção abstracta de valor”. Esquece-se de que não pode haver quantificação sem um conteúdo qualitativo quantificado. O “processo de produção directa” de Thaa seria aquele em que os trabalhadores gastam a sua força de trabalho, mas não em qualquer material nem produzindo produtos materiais (mesmo que produtos destrutivos), ou seja, uma impossibilidade lógica e prática. A única determinação correcta seria a de que a quantificação abstracta (aparentemente sem conteúdo) apenas na circulação, na abstracção real do valor como dinheiro, se TORNA INDEPENDENTE em relação ao conteúdo sempre qualitativo do trabalho, mas precisamente por isso faz do trabalho um fim em si e impõe-lhe um conteúdo sem sentido e até destrutivo. Mas isto também tornaria claro que o processo de abstracção do valor só pode ser explicado pela TOTALIDADE da reprodução capitalista do valor abstracto, ou seja, precisamente pela interconexão lógica da produção e da circulação.
A independência do momento abstracto e quantificador da PRODUÇÃO só pode APARECER como tal na sua forma imediatamente material na CIRCULAÇÃO como DINHEIRO e na forma social geral de circulação que nele se baseia. A abstracção é feita como indiferença ao conteúdo do trabalho e às necessidades do trabalhador na produção, mas só “se realiza” como dinheiro na circulação. Este facto básico não tem obviamente nada a ver com a forma externa de socialização do valor, ou seja, com o facto de a circulação de mercadorias estar sujeita a um mercado “livre” ou a um mercado “planeado” (ambas as formas secundárias de socialização do valor estão hoje a atravessar, cada uma à sua maneira, uma crise catastrófica de reprodução). Mas porque Thaa aproveitou precisamente esta característica SECUNDÁRIA da diferenciação para separar completamente o “circuito de controlo” da “socialização externa” (mecanismo de mercado) da lógica da produção, ele tem de afirmar o absurdo de uma “quantificação sem qualidade” DENTRO dos processos imediatos de produção.
Pela mesma razão esquece que a abstracção do valor como lógica do trabalho abstracto exclui por definição qualquer “socialização directa”. A independência do aspecto quantificador em relação ao conteúdo só pode opor-se à determinação qualitativa do trabalho no processo de produção imediato porque encontrou uma forma material independente no processo de circulação, que enquanto tal só permite a socialização através de VALORES DE TROCA. A abstracção do valor na produção força o VALOR DE TROCA na circulação e, portanto, uma forma geral de circulação na forma da mercadoria, ou seja, precisamente uma socialização INDIRECTA do trabalho. Tal como a maior parte dos apologistas críticos da economia soviética, Thaa confunde a regulação político-administrativa de processos de circulação que continuam na forma da mercadoria com uma “socialização directa” do TRABALHO, caindo assim no “fetichismo do plano”, na insustentável “planificação do mercado”, que só pode representar uma fase histórica transitória da acumulação original atrasada. Thaa falha completamente a crítica a este modo de produção, ao desmembrar sistematicamente a produção e a circulação (ou “forma de socialização”) para chegar à sua fantástica “forma do valor interna da tecnologia”, “não tornada independente como coisa”, da qual o “dominação directa” de uma “burocracia” é suposto derivar e legitimar-se. Na medida em que a reprodução social ainda aparece conceptualmente aqui, a crítica equivale na melhor das hipóteses à tolice de acusar coisas mortas da sua coisidade, enquanto a socialidade económico-social das pessoas como conceito sociológico de “dominação” permanece externa à totalidade concreta das relações. Ironicamente Thaa nomeou com uma clareza desejável o cerne desta forma de pensar e analisar, que ele próprio persegue com um sinal invertido, nas abordagens marxistas tradicionais ao exame do modo de produção soviético por ele criticadas: “De facto, uma tradição solidificada de separação entre forma social e produção(!!!) atravessa a história da crítica social marxista, o que torna compreensível em primeiro lugar a história de impotência da crítica das sociedades soviéticas.” (HaV, 50).
É realmente raro um teórico pronunciar calmamente um juízo tão condenatório sobre si próprio! Podemos agora tirar uma conclusão preliminar sobre o método fundamental dos críticos das forças produtivas. Tanto Ullrich como Thaa são forçados a separar fundamental e sistematicamente a “lógica da produção” da “lógica da socialização”, e a permitir que o conceito sociológico de “dominação”, que permanece incondicionalmente localizado fora da lógica económica da socialização, seja o único ponto de ligação determinado externamente entre estes dois “domínios” ou “subsistemas”. Tanto Ullrich como Thaa provam assim que a crítica das forças produtivas só pode criar uma base científica para si mesma com os meios positivistas da sociologia burguesa e tem de abandonar qualquer conceito concreto da totalidade da sociedade. Isto não pode ser um “aditamento” ao marxismo, mas sim a sua redução a uma sociológica lógica de “domínio” da “circulação de mercadorias”. E tanto Ullrich como Thaa provam assim não criticar nem rever as reduções históricas do marxismo tradicional, a redução da teoria de Marx a uma vulgar lógica da “propriedade” jurídica e da circulação, mas sim adoptá-las na íntegra durante longos percursos, como pré-requisito para as suas teorias “do aditamento” críticas das forças produtivas, incorporando-as no seu sistema teórico de sociologia burguesa como um papão e uma falsa legitimação.
3. A fetichização da tecnologia
A separação sistemática entre a lógica da produção e a lógica da socialização (externa), isto é, a destruição de qualquer conceito de totalidade social, tal como claramente expressa por Ullrich e Thaa, representa apenas a base metodológica da crítica das forças produtivas, a qual, apesar de todas as negações intercaladas, está em última análise orientada para o burguês entendimento positivista da “ciência social”. A partir desta base metodológica o conteúdo da crítica das forças produtivas desenvolve-se numa série de passos sucessivos.
a) Subjectivação da natureza e “dominação” como pecado original
Já vimos como o conceito sociológico de “dominação” em si sem pressupostos encontrou metodologicamente o seu caminho para a argumentação da crítica das forças produtivas. Na sua definição substantiva mais pormenorizada, porém, este conceito de “dominação” sofre agora uma reinterpretação clandestina. A fórmula vazia de que a dominação é “social” (basicamente uma banalidade lógica) é sub-repticiamente transformada numa nova definição completamente diferente, segundo a qual a “dominação” é a forma de relação do “homem” com a NATUREZA pré-humana e extra-humana. Esta inversão do conceito de dominação já se encontra na “filosofia da vida” burguesa do início do século XX (Simmel, Klages, Spengler etc.), onde serve, por um lado, para lamentar e combater exteriormente o desenvolvimento “liquidador do sujeito” da lógica da socialização capitalista monetária material, mas também, por outro lado, para o mistificar como um dado ontológico natural e inelutável, como uma “desgraça”. O fascismo virou positivamente esta ideologia filosófica do decadente pensamento idealista da burguesia e incorporou-a no seu sistema racista como uma “necessidade natural” de dominação (racial). Tal tema culturalmente pessimista aparece também de forma modificada em Horkheimer e Adorno, o mais tardar na “Dialéctica do Iluminismo”: A “dominação” é assim antes de mais uma relação “dominadora” (repressiva, violadora) do homem com a natureza. O “eu”, ou seja, o homem enquanto confronto consciente com a natureza, na sua constituição “corta” a “conexão flutuante” com a natureza (Dialektik der Aufklärung, Frankfurt 1981, p. 48 [Trad. port.: Dialética do Esclarecimento, Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p. 59]). A cultura e a civilização em geral são assim “pagas com a negação da natureza no homem, em vista da dominação sobre a natureza extra-humana e sobre os outros homens. Exactamente essa negação, núcleo de toda racionalidade civilizatória, é a célula da proliferação da irracionalidade mítica. Com a negação da natureza no homem, não apenas o telos da dominação externa da natureza, mas também o telos da própria vida se torna confuso e opaco. No instante em que o homem elide a consciência de si mesmo como natureza, todos os fins para os quais ele se mantém vivo – o progresso social, o aumento de suas forças materiais e espirituais, até mesmo a própria consciência – tornam-se nulos, e a entronização do meio como fim, que assume no capitalismo tardio o carácter de um manifesto desvario, já é perceptível na proto-história da subjectividade.” (ibid., p. 51 [p. 60s.]).
Na medida em que a herança da filosofia da vida burguesa na Teoria Crítica deixa assim a sua marca, a crítica do positivismo também se transforma subitamente numa crítica da civilização, na verdade numa crítica do pensamento em geral. Nesta crítica cultural, que também inclui a reaccionária ideologia cultural pessimista de FREUD, acontecem duas coisas: Por um lado, a história da emancipação do homem do mero contexto da natureza é reinterpretada como a história da sua auto-alienação enquanto ser natural e, portanto, como uma lógica ontológica de auto-destruição; por outro lado, a natureza sem sujeito é reinterpretada como “vítima” da auto-alienação ontológica do homem, isto é, como um sujeito sofredor objectivado pela “lógica de dominação” humana. A auto-alienação puramente histórico-social do homem na sociedade de classes e no capitalismo como seu clímax e ponto de viragem é assim irremediavelmente mistificada como a auto-alienação do homem em relação à natureza, em última análise a condição humana como um facto de alienação em geral. A dominação e a alienação são assim transformadas de contextos históricos e sociais em contextos antropológicos e por conseguinte ontológicos que já não podem ser pensados como superáveis. Deste modo a existência da “dominação” nas relações sociais e socioeconómicas já não pode ser derivada da própria socialidade histórica, da lógica histórica das forças produtivas e das relações de produção, mas aparece como uma consequência imutável e SECUNDÁRIA da relação de “dominação” da natureza subjectivada. A mistificação fetichista da relação de produção capitalista apenas se exprime assim num novo absurdo: não é a subjugação histórico-social do homem à lógica material da socialização do trabalho abstracto que obriga a processos de produção destrutivos e a uma produção aniquiladora contra o homem e a natureza, mas inversamente é a relação de “dominação” com a natureza enquanto tal, a existência do homem como “toolmaking animal” que gera a “dominação” no interior do próprio mundo humano na sua socialidade. O “pecado original” da “dominação da natureza”, a dissolvente vontade de conhecer da subjectividade humana, que aparece no processo de metabolismo com a natureza como desenvolvimento das forças produtivas, é que constitui assim o segundo “pecado original” secundário que é a dominação do homem sobre o homem. A lógica histórico-social do modo de produção capitalista é virada do avesso e deslocada para os primórdios da civilização.
Não surpreende que este conceito antropológico e não histórico de alienação e dominação da Teoria Crítica tenha encontrado o seu caminho nos argumentos dos nossos novíssimos críticos das forças produtivas. Uma vez que o modo de produção capitalista foi definido “em termos de teoria dos sistemas” como um mero “subsistema” de relações externas de propriedade e circulação e posto de lado, a lógica “autónoma” da tecnologia pode agora ser trabalhada com ainda maior desinibição como a “lógica de dominação” do homem contra a NATUREZA. Mas isto faz das ciências naturais o alvo principal da crítica “a par” ou mesmo “em vez” da relação de capital. Assim Ullrich diz sobre os primórdios das CIÊNCIAS NATURAIS modernas: “É a forma já mais racional do ‘desejo primordial’ da magia de controlar as forças da natureza através de uma ‘fórmula’, de forçar as potências estranhas ao seu próprio serviço através do símbolo correcto ... O desejo de dominação dos mágicos recebe pela primeira vez um poder real em relação à natureza através das ciências naturais experimentais.” (TuH, 100s.).
Apesar de todas as outras e repetidas afirmações, a “dominação”, depois de já ter sido conceptualmente reduzida a um positivo “facto” sociológico sem pressupostos, é aqui transformada num “anseio primordial” pré-civilizacional, antropológico-ontológico, cujo objecto de referência primário (“pecado original”!) é a “natureza”. O contexto social constitucional da dominação é desvanecido e reinterpretado como relação com a natureza, apenas para ser reintroduzido no mundo humano como um fenómeno secundário derivado desta mistificação, mas desligado da sua verdadeira génese histórica. A origem “na filosofia da vida” burguesa desta mistificação torna-se bastante clara quando Ullrich fala do “princípio redutor da vida das ciências naturais” (WN, 47) e afirma: “No sistema industrial estas abstracções que negam a vida podem manter um efeito ameaçador através da tecnologia mesmo sem as relações de propriedade nem a exploração capitalistas”. (WN, 47).
Assim, se retirarmos a relação de capital e a exploração, o que resta é o mal “original”, “primário”, “autêntico”, a “relação de dominação” com a natureza, a constante antropológica primordial que se diz ter encontrado a sua expressão máxima nas ciências naturais. Esta mistificação herdada da Teoria Crítica e dos seus professores burgueses da filosofia da vida torna-se ainda mais clara na obra de Thaa. Ele baseia-se nas teses de H. J. Krahl sobre o carácter da abstracção do valor, que são pouco discutidas na Nova Esquerda e nas quais a reinterpretação antropológica do conceito de dominação e alienação da Teoria Crítica é expressa de maneira concentrada: “A abstracção do valor é o a priori endo-histórico da razão técnica, o valor é a dominação idealizada da natureza, a razão política é a dominação sobre a natureza alargada ao homem.” (citado em HaV, 95).
Esta mistificação de uma relação social não podia ser formulada de maneira mais concentrada! A “abstracção do valor”, enquanto relação social puramente histórica, é reinterpretada como “dominação idealizada da natureza” e assim transformada de lógica social material do dinheiro no “a priori da razão TÉCNICA”, invertendo-se a constituição histórica deste contexto da forma. Como na “Dialéctica do Iluminismo”, como na filosofia de vida burguesa e nos seus precursores, mas ainda mais claramente, a dominação do homem sobre o homem não deriva do desenvolvimento da sua socialidade, mas da sua relação com a natureza. O facto de esta relação com a natureza ser sempre já “a priori” uma relação social pode então ser admitido, mas pode permanecer externo à análise como uma determinação vazia. A dominação “real” como coisa primária já não aparece socialmente mediada, mas como uma relação pura e abstracta com a natureza, que apenas tem um efeito secundário nas relações socioeconómicas como socialização negativa: “O trabalho abstracto, a substância do valor, é (...) a pura dominação da natureza socialmente produzida e projectada no homem.” (HaV, 135).
Thaa pode assim afirmar com satisfação que “uma crítica da tecnologia e das ciências naturais já aparece em Krahl” (HaV, 96), pois ele “vê na tecnologia e na ciência ... uma manifestação separada da abstracção do valor” (HaV, 97). Assim, enquanto Ullrich se limita a colocar a “lógica de dominação” das ciências naturais contra a natureza subjectivada como um fenómeno sociológico primordial, Thaa utiliza esta mistificação para tentar reinterpretar o conceito de abstracção do valor e o próprio trabalho abstracto de uma maneira “crítica das forças produtivas”, transformando-o de uma categoria da socialização capitalista numa categoria da relação com a natureza. Aqui temos já o núcleo conceptual da monstruosidade lógica que Thaa designa por “forma do valor interna da tecnologia”: o valor já não como abstracção do trabalho no interior da sociedade, mas como abstracção da relação com a natureza. Como Krahl já afirmou, isto deveria então ser independente da socialização negativa da relação de capital, da VALORIZAÇÃO DO VALOR: “Com a expansão do sistema de máquinas do capital fixo, o valor como tal – sem tomar os desvios da mediação via valor de troca(!) – é capaz de subjugar o valor de uso.” (citado de HaV, 97).
Torna-se agora claro quão necessário era para Thaa negar a interconexão lógica da produção e da circulação e separá-las contra todas as evidências; só assim o conceito de Krahl de “valor como tal”, que é suposto ser “independente do valor de troca”, pode ser introduzido como uma alegada “abstracção do valor da relação com a natureza” e declarado como o primum, o “a priori real”. A abstracção real social do dinheiro é retirada da linha de fogo da crítica e declarada como uma manifestação secundária, talvez mesmo sem importância, enquanto o cerne da crítica se refere às ciências naturais e à tecnologia “enquanto tal”. A relação social da abstracção do valor não poderia ser torcida e reinterpretada de modo mais grotesco. Como relação social, o valor não pode aparecer directamente nas coisas, especialmente quando subjugou toda a produção social no “sistema de máquinas de capital fixo”; pelo contrário, só pode “vir a si” na circulação, na abstracção material do equivalente geral. O desenvolvimento histórico do “sistema de máquinas de capital fixo” é, portanto, acompanhado pela generalização e totalização históricas da forma monetária de todas as relações sociais. Este facto evidente não pode ser apagado por uma disparatada reinterpretação crítica das forças produtivas de categorias centrais da crítica da economia política de Marx.
Thaa no entanto imagina que, com a ajuda da sua reinterpretação filosófica do conceito de valor, está finalmente para além de Marx: “A partir daí, uma reinterpretação da ‘Crítica da Economia Política’ pode agora ser desenvolvida...”. (HaV, 97). E, com um orgulho de descoberta completamente descabido, proclama: “Enquanto o fenómeno da reificação é habitualmente discutido em termos das formas objectivas invertidas das relações sociais, ou seja, sobretudo em termos da forma do valor e do dinheiro, aqui, na determinação substantiva da socialidade do trabalho no valor, pode ser identificada uma inversão objectivante mais profunda.” (HaV, 104).
Aqui, tal como no que se segue, Thaa faz uma falsa diferenciação entre “reificação” (entendida como fenómeno da “circulação de mercadorias”), por um lado, e “objectivação” (através da “dominadora” relação com a natureza da ciência e da tecnologia), por outro, o que corresponde inteiramente à sua falsa separação entre produção e circulação. A “reificação” através da “forma do valor e do dinheiro” como “formas objectivas invertidas de relações sociais” é supostamente secundária e sem importância, o entendimento supostamente “vulgar” tal como é supostamente “discutido habitualmente”, enquanto o “conceito de valor” da pura relação com a natureza, que inacreditavelmente “não tem forma”, é supostamente uma “objectivação” “mais profunda”. O absurdo de um valor “sem forma” aponta na verdade para a “alteridade” do valor na circulação, para a sua manifestação no dinheiro, e por conseguinte para a totalidade de produção e circulação do valor abstracto, por mais que Thaa possa dar voltas e reviravoltas. Continua a ser um segredo de Thaa o modo como a “socialidade do trabalho” deve ser plenamente compreendida com base na abstracção do valor através da “determinação do conteúdo” de um valor “sem forma”, que deve existir independentemente da forma monetária e portanto fora da “forma objectiva das relações sociais”. O que resta dizer é que tanto Ullrich como Thaa, independentemente da forma do valor e do dinheiro e fora das relações sociais reais, colocam uma relação de “dominação” prévia e completamente abstracta com a natureza como a base “real” da “dominação” à maneira da filosofia da vida. Fora e “abaixo” da relação de capital, independente das relações sociais, uma “dominação pura da natureza”, “subjugação da natureza”, “ilusão de dominação total da natureza”, “dominação abstracta da natureza”, “pura lógica da dominação da natureza”, “racionalidade tecnológica da dominação da natureza” (HaV, 100, 102, 103, 106, 109 etc.) é a base primária de todos os fenómenos negativos da socialidade humana, como Thaa não se cansa de repetir e apresentar em contextos sempre novos (sem no entanto nunca mencionar a origem da ideia básica em última análise na filosofia burguesa da vida).
Então como é que o “princípio redutor da vida das ciências naturais” (Ullrich) ou a “forma do valor interna da tecnologia” (Thaa) devem ser apresentados em termos concretos? Thaa refere-se aqui directamente a Ullrich de modo positivo, atestando que ele conseguiu “descrever o carácter dominador da ciência e da tecnologia na sua própria forma com as suas características estruturais.” (HaV, 146). No entanto esta “caracterização estrutural”, tal como a própria forma do valor e do dinheiro, tem a ver com aquilo a que Ullrich chama “abstracções que negam a vida”. Só que a (má) abstracção real do dinheiro é supostamente ultrapassada pelas “abstracções” supostas independentes e autónomas das ciências naturais, que são mesmo supostas ser a base “real” de todas as “más abstracções que negam a vida”. Thaa chama a isto a “objectivação do valor abstracto” através das ciências naturais e da tecnologia, que ele entende como independente da “reificação da forma da mercadoria”. Mas o que são as “abstracções independentes” das ciências naturais em relação à “circulação de mercadorias” ou à “relação de capital”? Em última análise são as “abstracções quantificadoras” de medir, contar, pesar etc. Já desde o romantismo que Galileu tem sido repetidamente criticado pelo seu lema de que a ciência consiste em “medir tudo o que é mensurável e tornar mensurável tudo o que não é mensurável” (a correspondente crítica a Galileu e às ciências naturais modernas em geral pode ser encontrada em toda a massa crescente da literatura mais ou menos popular crítica das forças produtivas, como a de L. Mumford, C. Hofmann e outros). Esta concretização do conceito de “dominação” na sua mistificação como uma relação abstracta com a natureza também não é nova, mas já se encontra em grande parte na literatura sobre a filosofia da vida após a viragem do século. Também Ullrich recorre implicitamente a esta velha crítica às abstracções científicas quantificadoras da “medição”, que são interpretadas como “hostis à vida”, nas suas ideias básicas sobre a “lógica de dominação das ciências naturais”. Para Ullrich, o “contexto estrutural” do conhecimento da natureza caracteriza-se portanto “pela dissecação, pela separação e pelo isolamento do processo natural” (TuH, 98), resultando no “horizonte particular e limitado da ciência” (TuH, 100) e em última análise numa “arbitrariedade e indiferença como componente da racionalidade científica” (TuH, 106) (sobre o aspecto do “controlo externo” de “processos uniformes” como ideal das ciências naturais e do capital, cf. abaixo, na secção sobre a degradação do trabalhador).
Só que há tanta verdade neste argumento que, de facto, as ciências naturais não PUDERAM desenvolver-se senão de tal maneira que as grandes especulações sobre filosofia da natureza da antiguidade, que tinham lançado uma certa base conceptual, tiveram de ser substituídas por uma imensa colecção de material empírico, de inúmeros detalhes de todos os contextos naturais. Isto significou, de facto, “dissecar, separar e isolar o processo natural”. Para compreender o corpo humano vivo nos seus contextos funcionais orgânicos, era preciso primeiro abrir o corpo humano morto (por vezes contra as proibições eclesiásticas) e decompô-lo nas suas partes mortas; o mesmo se aplicava a todos os outros domínios do conhecimento natural. E é neste contexto que a famosa definição de Galileu encontra a sua justificação histórica. Naturalmente que não é novidade nenhuma o facto de esta etapa histórica (necessária) do conhecimento científico ter dado origem a um espírito de cientificidade empirista e “positivista”, que ainda hoje domina as universidades e trata o pensamento conceptual-sintetizante com um cepticismo defensivo. Desde o final do século XIX, o mais tardar, a abundância de material empírico, a “riqueza dos factos” das ciências naturais aumentou de tal modo que esta abundância mais ou menos isolada e incoerente quase clama por uma síntese conceptual. Periodicamente desde o final do século passado fala-se de uma “crise das ciências naturais”, tal como periodicamente os cientistas naturais reduzidos ao positivismo e os desprezadores do conceito “filosófico” fogem para os braços do espiritualismo, da religiosidade, de uma “totalidade” irracional etc., para escapar ao seu insuportável particularismo do conhecimento; Capra, Dürr e outros estão hoje de novo a fazer isso com grande vigor. É também indiscutível que as ciências naturais surgiram logicamente como “ciências burguesas” juntamente com a ascensão histórica da burguesia, isto é, juntamente com e imbuídas das formas de pensamento SOCIAL burguesas. A afinidade do positivismo das ciências naturais com as teorias sociais burguesas é assim evidente e tem sido exposta há muito tempo; há também uma discussão marxista detalhada sobre isto há mais de um século (por Engels e Lenine, entre outros).
Mas Ullrich e Thaa não se referem de facto a estas ligações do desenvolvimento histórico das ciências naturais com a ideologia e a teoria social positivistas burguesas. De facto, com a sua conceptualização sociológica da “dominação”, a sua “lógica autónoma dos domínios” nos termos da teoria dos sistemas, as suas condenações positivistas da alegada “coreografia hegeliana” de Marx etc., eles próprios já há muito que se encontram no terreno do entendimento burguês da ciência e, portanto, já sucumbiram à lógica historicamente herdada das ciências naturais positivas. Em última análise o que lhes interessa é algo completamente diferente, nomeadamente substituir a abstracção real social do valor pelas abstracções quantificadoras da “medição” das ciências naturais ou equipará-la a estas. Não é portanto a estreiteza social do pensamento científico que está em causa, mas directamente o conteúdo positivo do conhecimento da própria natureza como supostamente “hostil à vida” e como “verdadeiro fundamento” das abstracções sociais destrutivas. Aqui, do mesmo modo que na relação entre economia do valor e economia do tempo, confundem a abstracção social do valor, que se concretiza no dinheiro e ganha vida própria contra qualquer determinação e qualidade substantivas, com a abstracção em geral. O pensamento humano não pode apropriar-se da natureza e da sua própria socialidade de outro modo que não seja através de abstracções conceptuais e de simples determinações abstractas como sua base. A “loucura” da relação de valor é precisamente o facto de se tratar de uma abstracção REAL, uma abstracção (no dinheiro) que é AUTONOMIZADA COMO COISA em relação ao homem e à natureza. É completamente absurdo acusar as ciências naturais de “medir”, uma noção que é reconhecidamente alimentada pela ideia desesperada do “pecado original” de “dominar a natureza” inerente ao facto de se ser humano. O que quer que os cientistas naturais meçam, esta medição “enquanto tal”, enquanto quantificação, não pode por princípio tornar-se independente na sua abstracção em relação ao conteúdo, precisamente porque a “medição” na sua abstracção não se pode representar em termos materiais como o dinheiro. Investigadores empíricos obsessivos podem mesmo ter ocasionalmente imaginado algo deste género, isto é, a dissolução do mundo num mar de factos e números; se são realmente cientistas naturais, podem ser perdoados por essa tolice. O que é socialmente destrutivo não é a obsessão bizarra do entomologista ou mesmo do físico nuclear, mas a abstracção material do dinheiro que se tornou sujeito da dominação e que, enquanto trabalho abstracto, apaga todos os conteúdos da reprodução social. A mera medição científica é sempre a medição de “algo” e não pode ser outra coisa para além disso; como tal, enquanto medição de coisas, não é a lógica determinada da socialização humana. Mesmo o cientista mais esquisito teria dificuldade em perceber um elefante pesado e uma pedra pesada após o procedimento de pesagem como “a mesma manifestação de peso”, diferenciada apenas pela quantidade. Do mesmo modo, mesmo no estabelecimento científico mais positivista, seria provavelmente pouco compreendido se alguém quisesse reduzir todo o mundo humano e natural a medidas de comprimento sem qualquer definição de conteúdo, tanto a cobaia como o corredor do instituto e os seus superiores ou subordinados; a uma tal tentativa seria rapidamente posto fim por homens de bata branca. No entanto, na lógica da socialização negativa do trabalho abstracto e do valor, esta loucura foi há muito reconhecida como “normal” e tornou-se um facto incontestável da vida, precisamente porque aqui a abstracção da socialidade indirecta ganhou vida própria numa coisa morta, o dinheiro, contra todo o conteúdo humano e natural. Mas este facto básico da “vida moderna”, que é destrutivo na sua totalidade, é obviamente tão difícil de apreender, precisamente devido à sua natureza quotidiana, que se torna realmente impossível para a mente científica positivista, que é também a dos críticos das forças produtivas, distinguir a “louca” abstracção real social da economia do valor da abstracção vulgar e meramente intelectual em geral.
Na verdade as ciências naturais e a tecnologia tal como todos os outros “domínios” sociais estão sujeitos à lógica central e hegemónica da abstracção do valor, que se desenvolve com a sua totalização na história do século XX como uma lógica de aniquilação absoluta. Apesar das diferenças de forma (que devem certamente ser tidas em conta), esta lógica no seu núcleo, o trabalho abstracto e o dinheiro, aplica-se igualmente no Ocidente e no Leste de hoje. A mistificação desta relação puramente endo-social como relação com a natureza, o alegado “pecado original” de uma “lógica de dominação” contra a natureza como um dado primário que remonta historicamente às condições pré-civilizacionais obscurece qualquer acesso à abolição real da reificada lógica social de destruição, sendo por isso menos que nada útil. Ullrich e Thaa deveriam reflectir sobre o modo como as ideias da filosofia da vida, em que se baseia a sua argumentação, são hoje repetidas até pelos jornalistas reaccionários mais vulgares, a fim de esconder de maneira religiosa e pseudo-moral a obsolescência social do trabalho abstracto (e do dinheiro como sua encarnação). Depois de Chernobyl, por exemplo, o moralismo de direita preocupou-se em falar de “choque antropológico” e o célebre comentador da Springer, Wilfried Hertz-Eichenrode, soluçou perante a “natureza violada” num dos jornais da capital da Alemanha Ocidental: “O ambiente é a natureza alienada, ocupada pelo homem para ser seu beneficiário... No entanto, a ponderação do nosso Presidente Federal levou Richard von Weizsäcker a incluir a palavra ‘criação’ três vezes num discurso sobre o estatuto do ambiente e da natureza na nossa ordem mundial. O objectivo fundamental é preservar a criação: ‘Só se protegermos a natureza é que ela nos permitirá viver’. Viver, acrescente-se, não apenas como seres racionais, mas também com a nossa existência vegetativa e instintiva...”. (Die Welt, 22.11.1986).
A mistificação da relação de valor social como “relação de dominação da natureza” tem sempre de conduzir a este insuportável disparate reaccionário. Valeria a pena Ullrich e Thaa reflectirem se não devem a sua teoria crítica das forças produtivas, apresentada como “aditamento” ou mesmo “desenvolvimento” do marxismo, talvez mais à sua “existência vegetativa” do que ao seu “dom da razão”…
b) A reificação do conceito de forças produtivas e a lógica da produção aniquiladora
Seria agora necessário esclarecer que conceito de forças produtivas decorre necessariamente da mistificação da relação de valor, que foi reinterpretada de relação social para relação natural. Na crítica de Marx à economia política, as “forças produtivas” representam sobretudo um POTENCIAL SOCIAL, uma capacidade social que se baseia num conhecimento geral da natureza. Tal como ao nível do trabalho individual isolado no seio do trabalho social total é necessário distinguir entre “FORÇA DE TRABALHO” (enquanto potência, capacidade) e “TRABALHO EXECUTADO” (enquanto se “objectiva” socialmente – ficticiamente – nos produtos), também ao nível da reprodução social total seria necessário estabelecer analiticamente a mesma distinção entre “FORÇAS PRODUTIVAS” e “MEIOS DE PRODUÇÃO” em sentido imediato. Um certo nível de conhecimento social da natureza e da sua mediação geral com a produção gera também um certo nível de forças produtivas como potência social geral. A forma “técnica” material em que esta potência social aparece, no entanto, é necessariamente marcada pelas RELAÇÕES DE PRODUÇÃO, ou seja, pelas relações dentro da sociedade nos processos de reprodução.
O carácter social das forças produtivas, como cada MOMENTO na real unidade da reprodução social global, só pode portanto ser compreendido a partir de uma concepção concreta da totalidade da sociedade. Mas, uma vez que os críticos das forças produtivas já dissolveram metódica e sistematicamente este conceito de totalidade e afirmaram uma isolada “lógica de produção” das ciências naturais e da tecnologia “como tal”, isto é, como pura relação com a natureza, o carácter das forças produtivas como potência social desaparece inevitavelmente para eles. Em vez disso, este conceito é REIFICADO, isto é, as forças produtivas não são percebidas “mediatamente” na sua potencialidade social, mas sim imediatamente na sua forma “objectivada”, como coisas “técnicas” mortas. Uma vez que o suposto “fundamento mais profundo” da lógica da produção foi determinado como uma relação puramente natural, desaparece todo o contexto social de mediação a partir do qual a potência das forças produtivas determinada pela lógica das relações de produção é “objectivada” numa estrutura tecnológica concreta dos meios de produção.
Não será desinteressante o facto de uma tal fetichização da técnica associada a um modo de pensar sociologicamente redutor não constituir nada de completamente novo ou invulgar no terreno do marxismo histórico; só que a referência ideológica não se apresenta como uma “crítica das forças produtivas”, mas pelo contrário como uma “crença tecnológica no progresso”, cujo herdeiro o antigo movimento operário em grande parte entendia ser. Apesar desta inversão não se pode ignorar uma identidade estrutural essencial entre a crítica das forças produtivas e a crença tecnologicamente redutora no progresso. Tal identidade está presente não apenas na redução sociologística a nível metodológico, mas também directamente em termos de conteúdo na reificação do conceito de forças produtivas, apenas com os sinais invertidos em cada caso. Um conhecido representante deste sociologismo “marxista” é N. BUCHARIN, que na sua obra mais ou menos notória “Theorie des historischen Materialismus [Teoria do Materialismo Histórico]”, com o significativo subtítulo “Gemeinverständliches Lehrbuch der marxistischen Soziologie [Manual compreensível de sociologia marxista]” (em alemão, Hamburgo, 1922), entre outras reduções da teoria de Marx, também veicula um tal conceito reificado de forças produtivas e atribui directamente à “tecnologia” um papel decisivo no desenvolvimento social, virando assim implicitamente do avesso a relação entre a relação de valor e a relação com a natureza, de uma maneira muito semelhante à que Ullrich e Thaa fazem hoje (embora com uma fé positiva na tecnologia).
Precisamente devido a esta semelhança estrutural de argumentação, a crítica contundente que G. Lukács fez à posição de Bucharin numa recensão em 1925 pode ser lida quase sem alterações como uma crítica às posições actuais de Ullrich e Thaa etc. que criticam as forças produtivas. Em primeiro lugar Lukács critica a metodologia de Bucharin, que se aproxima do positivismo burguês: “A teoria de Bucharin, que está muito próxima do materialismo burguês – das ciências naturais –, assume assim o tipo de uma ‘ciência’ (segundo o uso francês da palavra) e por conseguinte, na sua aplicação concreta à sociedade e à história, por vezes faz desaparecer o que é decisivo do método marxista: atribuir TODOS OS FENÓMENOS DA ECONOMIA e da ‘sociologia’ ÀS RELAÇÕES SOCIAIS DOS SERES HUMANOS ENTRE SI. A teoria adquire o acento de uma falsa 'objectividade': torna-se fetichista.” (Georg Lukács, Schriften zur Ideologie und Politik [Escritos sobre ideologia e política], Neuwied/Berlin 1967, p. 191).
A mesma acusação também pode ser feita a Ullrich e Thaa em termos metodológicos. E, tal como acontece com os críticos das forças produtivas, este método redutor aparece também no “crente no progresso” Bukharin como uma fetichização da tecnologia: “Este resquício de coisidade não resolvida, de falsa ‘objectividade’ exprime-se mais nitidamente no tratamento do papel da TECNOLOGIA no desenvolvimento social. Bukharin atribui-lhe um papel que ela por certo não merece objectivamente ... É óbvio que a ... identificação da tecnologia com as forças produtivas não é correcta nem marxista. A tecnologia é uma PARTE, embora um elemento muito importante das forças produtivas da sociedade, mas não é simplesmente idêntica a elas, nem ... o elemento afinal ou meramente decisivo da transformação dessas forças.” (ibid., p. 191s.).
Lukács justifica isto com o facto de que “qualquer tentativa de ver a determinação fundamental da sociedade e do seu desenvolvimento num princípio que não seja a relação social dos homens entre si no processo de produção ..., isto é, na estrutura económica correctamente compreendida da sociedade, conduz ao fetichismo ...” (ibid., p. 192) e que “... a técnica autónoma como base do desenvolvimento apenas transforma o naturalismo grosseiro num naturalismo dinamicamente refinado. Pois a técnica, se não for concebida como um ELEMENTO do respectivo sistema de produção, se o seu desenvolvimento não for explicado a partir do desenvolvimento das forças produtivas SOCIAIS (em vez de as explicar), é igualmente um princípio fetichista que se confronta transcendentalmente com os seres humanos...” (ibid., p. 193).
Como podemos ver, o sinal positivo de Bukharin só precisa de ser substituído por um negativo, mantendo-se a estrutura lógica do fetichismo tecnológico completamente inalterada, e temos perante nós a lógica da crítica das forças produtivas. Enquanto o optimismo de Bukharin em relação à tecnologia é claro que pode ser explicado historicamente a partir da “construção do socialismo” (na realidade “acumulação original”), também a definição negativa das ciências naturais e da tecnologia entre os críticos das forças produtivas pode ser explicada historicamente a partir da produção aniquiladora e da destruição das bases naturais da vida que se tornaram manifestas hoje em dia. Mas tanto os antigos crentes na tecnologia como os actuais críticos da tecnologia ignoram completamente a verdadeira lógica social da relação de valor, e por isso permanecem impotentes perante as suas manifestações.
Enquanto Winfried Thaa se mantém generalista nesta questão, a reificação do conceito de forças produtivas por parte de Otto Ullrich é expressa de forma particularmente forte pelo facto de (especialmente na popular brochura “Weltniveau”) quase sucumbir a uma fúria concretista na sua crítica da tecnologia, assim expondo claramente as fraquezas da argumentação crítica da forças produtivas. De maneira colorida ele inclui no conceito de “forças produtivas” as ciências naturais, os meios técnicos de produção, certas máquinas e produtos, até mesmo simples objectos do quotidiano, por exemplo, “uma bicicleta” (WN, 72). Tendo reificado desta maneira o conceito de forças produtivas e tendo-o transformado de uma categoria histórico-social numa categoria morta de objecto e de “sistema”, pode imputar-lhe a “fórmula marxista” do “duplo carácter das forças produtivas” (WN, 72), o que significa a chã transferência para o “socialismo” de qualquer sistema tecnológico, de qualquer produção tecnológica destrutiva, de qualquer maquinaria, independentemente da sua finalidade qualitativa, directamente na forma morta e material deixada pelo modo de produção capitalista. Neste contexto Ullrich inclui mesmo a “máquina do Estado” e a “máquina militar e de guerra” (WN, 72 ss.), sendo que o “socialismo real” do modo de produção soviético constitui naturalmente o pano de fundo para esta interpretação.
O núcleo racional da crítica de Ullrich (e de todos os outros) à tecnologia é a questão central da ORIENTAÇÃO SOCIAL PARA O VALOR DE USO, que se tornou uma exigência absolutamente justificada e mesmo vital. Poder-se-ia até concordar com Ullrich quando diz que “para muitos ... sistemas tecnológicos e máquinas: eles estão tão imbuídos do objectivo de dominação e exploração, tão construídos para a transferência de custos, desperdício e destruição, que não podem tornar-se um instrumento de emancipação através de uma ‘aplicação diferente’. Só podem ser abolidos” (WN, 72s.) e que ”somos forçados a examinar as tecnologias e os sistemas tecnológicos individualmente: Temos de nos envolver na 'crítica da tecnologia'”. (WN, 77).
Mas a “crítica da tecnologia” NESTE sentido já não teria realmente nada a ver com a própria derivação ideológica feita por Ullrich da relação abstracta com a natureza; não poderia alimentar-se de uma crítica fundamental das “abstracções quantificadoras”, mas pelo contrário teria de trabalhar com estes meios e abstracções das próprias ciências naturais para poder levar a cabo uma tal análise do valor de uso a nível social. Com uma ideologia fetichista da tecnologia esta necessária orientação para o valor de uso e uma crítica concreta da tecnologia dela derivada não podem ser alcançadas em concreto. No debate sobre Chernobyl teve de surgir um indício desta lógica. Por exemplo, a antiga marxista Christel Neusüß, que tinha mudado para o campo (feminista) crítico da ciência e das forças produtivas, escreveu sobre a situação após Chernobyl, aparentemente um pouco surpreendida com tais ligações: “Acho que estou louca. Desde que entrei para a 'ciência', e tive uma experiência semelhante na política, tenho sido constantemente admoestada pela minha falta de interesse por 'factos concretos', por números, pelo que pode ser medido. Dizem-me: Minha querida, o que não pode ser quantificado não pode ser objecto de ciência, é ideologia... A situação inverteu-se estranhamente desde Chernobyl. De repente são as mulheres que querem medir tudo. As mães querem medir a areia do jardim de infância, a relva, o leite, o seu próprio leite, o ar, a chuva, a água. As mães com filhos pequenos querem os números, os instrumentos de medição... Os olhos, as mãos e o cérebro são a única natureza real, ou seja, os órgãos que percebem as leis da natureza. As mãos e o cérebro fazem os instrumentos de medida, e os nossos olhos vêem, lêem. Os nossos olhos? Não, os olhos dos peritos que manuseiam os instrumentos e que, como vimos, são muitas vezes obrigados a permanecer em silêncio. Assim os nossos olhos também nos podem ser retirados, precisamente porque já não são nossos. Sem aparelhos de medição somos incapazes de nos apercebermos do perigo”. (Christel Neusüß, Sie messen, und dann essen sie es doch: Von der Wissenschaft zum Aberglauben [Medem e depois comem: da ciência à superstição]. In: Gambaroff, Mies et al, Tschernobyl hat unser Leben verändert [Chernobyl mudou as nossas vidas], Reinbek 1986, p. 108ss.).
Para lá da enfadonha ideologia da maternidade que transparece, as frases aqui citadas dificilmente podem ser contestadas. Mas então também se torna imediatamente claro que o fetichismo da tecnologia crítico das forças produtivas falha o tema que é sobre a relação social básica, sobre a questão da ORIENTAÇÃO SOCIAL PARA O VALOR DE USO e não sobre a relação abstracta com a natureza, que é percebida como uma categoria de objecto morto na “tecnologia como tal”.
Isto também se torna perfeitamente claro quando Otto Ullrich trata da indústria química e da agricultura industrializada. Na medida em que ele fala do facto de “enormes quantidades de substâncias perigosas” serem produzidas na indústria química com “baixos padrões de segurança” (WN, 86), de que “apenas algumas das substâncias produzidas artificialmente foram até agora sistematicamente testadas em experiências de longo prazo” (WN, 87), pode-se definitivamente concordar com ele ao nível da questão do valor de uso; mas isto já não seria então uma real crítica das forças produtivas e da ciência, mas uma crítica do valor de uso e da reorientação da indústria social que trabalha ela própria com meios científicos. O mesmo se aplica à crítica de certas produções da indústria química, tal como Ullrich as apresenta com referência aos estudos do biólogo e ecologista americano Barry Commoner: “Para produzir a mesma mercadoria, por exemplo uma camisa, foram necessárias muito mais energia e matérias-primas e foram produzidos e consumidos muito mais resíduos em 1971 do que em 1946.” (WN, 89).
Quando Ullrich acrescenta: “Isto não parece um progresso das forças produtivas, mas foi causado substancialmente por tecnologias alegadamente mais avançadas” (WN, 89), então ele está a dar um pontapé na sua própria ideologia básica e a reconhecer involuntariamente que “forças produtivas” (como potência social) e “certas tecnologias” não são imediatamente idênticas, que é a relação social da economia do valor que medeia o carácter de objecto das forças produtivas “aplicadas”, e de facto de um modo completamente (e cada vez mais!) contraproducente no que respeita à reprodução social global. Mas então a abstracção real do valor como dinheiro, que o próprio Ullrich tem sistematicamente ignorado como um “subsistema” da “circulação de mercadorias” etc., teria de ser novamente tematizada. Ullrich argumenta involuntariamente contra si mesmo quando repentina e abruptamente afirma: “Apesar do balanço global muito negativo da indústria petroquímica, não se pode no entanto rejeitar totalmente esta indústria” (WN, 90) e cita com aprovação Commoner que diz: “Algumas das suas utilizações SÃO únicas e importantes... Mas estas utilizações representam apenas uma pequena fracção dos milhares de milhões de libras de plástico ... produzidos todos os anos”. (citado de WN, 90).
Então não se trata das forças produtivas “enquanto tais”, mas da orientação para o valor de uso da indústria social? O cerne da argumentação de Ullrich torna-se claro de um só golpe quando ele diz: “Cada produto e a tecnologia associada da indústria petroquímica terão de ser cuidadosamente examinados no balanço global e em comparação com outras tecnologias. Mas uma coisa é já certa: uma grande parte destas FORÇAS PRODUTIVAS (ênfase de R.K.) “avançadas” só pode ser aproveitada através do seu desmantelamento.” (WN, 90).
Ullrich está obviamente enredado na sua reificação falsa e fetichista do conceito de forças produtivas. Ele diz “forças produtivas”, mas refere-se a meios de produção materiais individuais e específicos e a produtos que se revelaram nocivos em termos do seu VALOR DE USO social. Mas se, como diz o próprio Ullrich, a indústria petroquímica “não pode ser totalmente rejeitada”, então não são as ciências naturais e as forças produtivas “enquanto tais” que devem ser criticadas, mas é a LÓGICA DA ABSTRACÇÃO DO VALOR puramente social que pare os meios de produção e produtos assim destrutivos (já falarei do “balanço global” mencionado na última citação).
Encontramos o mesmo cerne da crítica fetichista das forças produtivas no tratamento dado por Ullrich à agricultura industrializada. Mais uma vez afirma com toda a razão as “consequências fatais” das “cadeias de consequências” da intervenção industrial na produção agrícola: “O gado é retirado dos pastos e colocado em silos de alimentação. As fezes e os dejectos que aí se acumulam não são devolvidos ao solo como fertilizantes, mas tornam-se ‘resíduos’ que têm de ser eliminados: Estes resíduos azotados são transformados em compostos solúveis, como o amoníaco e o nitrato, que causam graves danos ambientais nos rios e nas águas subterrâneas. Os adubos naturais assim eliminados têm de ser substituídos nos campos por adubos artificiais. O problema dos fertilizantes é agravado pelo facto de o gado nos silos não ser alimentado com erva ou feno, mas com cereais. O cultivo de cereais nas antigas pastagens sobrecarrega ainda mais o solo. Necessita ainda de mais fertilizantes artificiais. O cultivo intensivo de monoculturas em grande escala significa que o solo tem cada vez menos capacidade de se regenerar por si próprio. É necessário adicionar quantidades crescentes de fertilizantes artificiais. Para obter o MESMO rendimento (sublinhado de Ullrich), foi necessário utilizar cinco vezes mais fertilizantes artificiais na América em 1968 do que em 1949 ... Em geral ... observa-se que, na agricultura industrializada de “nível económico superior”, é necessário movimentar um aparelho cada vez mais gigantesco, que permite obter rendimentos cada vez mais baixos com os mesmos factores de produção e que só pode parecer rentável através da deslocação dos custos.” (WN, 91ss.).
Ullrich descreve uma cadeia de produção material e objectiva que prejudica o valor de uso e, uma vez que esta ligação pode ser descrita assim, ele também a remete imediatamente para causas materiais, para a “tecnologia” ou “sistema industrial” ou para a sua mãe espiritual, a ciência moderna. Toda a inter-relação SOCIAL da economia do valor, que gera e praticamente força este absurdo em primeiro lugar, permanece completamente oculta e externa à objectividade morta. No entanto a fonte de Ullrich, Commoner, não ficou alheio a esta ligação, mesmo que só a consiga comentar com categorias superficiais: “Quase se pode admirar o EMPREENDEDORISMO e as INTELIGENTES QUALIDADES DE VENDEDOR (ênfase R.K.) da indústria petroquímica. De algum modo ela conseguiu persuadir o agricultor a abandonar a energia solar gratuita que faz funcionar todos os ciclos naturais e a obter a energia necessária – sob a forma de fertilizantes e combustíveis – da indústria petroquímica.” (citado em WN, 92).
A reacção de Ullrich a esta referência é tão incerta quanto rude, para logo a seguir tirar de novo o “socialismo real” da gaveta para “salvar” o seu argumento de base crítico das forças produtivas: “Se se perceber por que razão se entrou nos becos sem saída da indústria química e da indústria agrícola, os motivos de lucro das empresas podem ser reconhecidos muito claramente nos países capitalistas. Commoner, por exemplo, refere-se constantemente a este facto. Mas é igualmente importante ver que, na adopção destas tecnologias, na adopção ou no desenvolvimento próprio da petroquímica em grande escala e na industrialização da agricultura, o caminho para os becos sem saída continua, mesmo que a motivação do lucro seja eliminada. Uma vez que o socialismo realmente existente adoptou ou desenvolveu todas as tecnologias sem saída descritas, incluindo a máquina de guerra e a tecnologia nuclear, seria muito importante, para uma comparação de sistemas, identificar os mecanismos 'semelhantes ao capital' para este desenvolvimento.” (WN, 93).
Por “mecanismos semelhantes ao capital”, Ullrich entende naturalmente as ciências naturais e a tecnologia “enquanto tal”, como um “campo autónomo” etc.; como vimos esta ideia é completada pela “forma do valor interna da tecnologia” de Thaa, que é concebida como um mecanismo de objectividade técnica morta que é tanto “autónomo” como “semelhante ao capital”. Mas a verdadeira identidade básica das duas formas de sociedade que hoje se enfrentam não consiste na semelhança das suas bases de produção técnico-científicas (“sistema industrial”), mas no facto de ambos os sistemas assentarem, na sua relação SOCIAL fundamental, na economia do valor abstracto. A este respeito, a “motivação do lucro” não é simplesmente “eliminada” no “socialismo real”, no sentido de desaparecer sem deixar rasto através da transição para a produção real de valor de uso, mas meramente transformada, através dos mecanismos específicos de acumulação da produção de valor social, numa constelação histórica de “acumulação original atrasada” centralizada pelo Estado (Não precisa de ser aqui discutida em pormenor a crise específica que surge para as sociedades com o modo de produção soviético a partir da transição para a produção de mais-valia relativa, uma fase de desenvolvimento da economia do valor que tem de conduzir à estagnação com a continuação da regulação burocrática estatal dos processos de mercado, e que por isso força cada vez mais a “soltar” o mercado. Só quero recordar este ponto para evitar mal-entendidos acerca de uma identidade imediata da reprodução social no Leste e no Ocidente, que naturalmente não é assim tão banal).
No entanto em ambas as formações sociais a base real dos processos de circulação e distribuição é a produção abstracta de valor, independentemente da sua diferente regulação. Para os exemplos de “tecnologias sem saída” citados por Ullrich em termos de valor de uso, dois fenómenos desta economia do valor revestem-se de particular importância: em primeiro lugar, a produção de objectos de produção e de consumo sob o ditame da abstracção do valor significa a compulsão incondicional de despender a força de trabalho humana como FIM EM SI. O significado histórico desta compulsão, como já assinalei acima, consiste no “desenvolvimento das forças produtivas” para além da antiga sociedade de classes, isto é, no desprendimento da reprodução social do mero contexto natural dos modos de produção agrários pré-capitalistas; mas, no estádio de desenvolvimento da industrialização atingido hoje, esta forma histórica da economia do valor tem de conduzir a uma crise global da reprodução e ser substituída pela produção social directa de valor de uso. No entanto, sob o ditame do dispêndio de força de trabalho humana como fim em si, qualquer produção “gratuita” no sentido do valor abstracto tem de parecer inútil; mesmo o projecto mais inútil e perigoso em termos de conteúdo, qualidade e valor de uso terá necessariamente de ser justificado deste modo numa economia do valor (por exemplo, com referência a “empregos” – ou seja, com referência directa ao fim em si!). No sentido inconscientemente pressuposto da acumulação social de riqueza abstracta, isto é, de “valor”, as inter-relações materiais da química e da agricultura em grande escala, sobre as quais só se pode abanar a cabeça do ponto de vista do valor de uso, não parecem tão absurdas, mas sim um “constrangimento material” directo. A substituição materialmente insensata e perigosa dos processos naturais de reprodução por uma sobre-fertilização quase insana, o esgotamento total das terras agrícolas etc. são forçados em termos de valor pelo interesse em CONVERTER EM PRODUÇÃO DE VALOR cada processo de metabolismo com a natureza. E como o valor abstracto só pode aparecer em termos reais no DINHEIRO, este processo também tem de ser chamado de “monetarização do mundo”: A partir deste mecanismo cegamente pressuposto, cada momento do metabolismo social com a natureza que não aparece algures como DINHEIRO aparece como “não económico”. Enquanto Ullrich ignorar sistematicamente a lógica da abstracção do valor, a sua crítica da produção aniquiladora não levará a lado nenhum. Assume ingenuamente critérios de valor de uso sem ser capaz de desvendar os mecanismos sociais através dos quais as forças produtivas são canalizadas para os caminhos da produção aniquiladora.
Em segundo lugar, porém, qualquer economia do valor exclui por definição qualquer “conta global” social. Se Ullrich exige o “padrão qualitativo de um balanço social global” (WN, 9), mas ao mesmo tempo não tem qualquer clareza sobre a lógica do trabalho abstracto nem portanto do valor, e por isso a exigência de um “balanço global” não é de modo nenhum idêntica à exigência da abolição da economia do valor, então ele fez contas de merceeiro. Um balanço global real significaria uma distribuição directa e consciente da força de trabalho social de acordo com as HORAS DE TRABALHO disponíveis (economia directa do tempo), às quais se aplica o padrão qualitativo do valor de uso social. Isto tornaria possível ver e julgar cada produção individual “ex ante” em todo o seu contexto de inter-relação social. Mas o problema da economia do valor consiste precisamente no facto de a distribuição da força de trabalho social ser obtida apenas INDIRECTAMENTE, não segundo a “medida natural” do tempo de trabalho, mas de modo fetichista e objectivamente independente no “valor”, que aparece em termos reais como DINHEIRO na esfera da circulação. Esta socialização indirecta e inconsciente do trabalho reificada no dinheiro obriga a um cálculo DE ECONOMIA EMPRESARIAL distinto para cada processo de produção individual concreto, ou seja, a uma RACIONALIDADE PARTICULAR por princípio, cuja aparência superficial Max Weber designou por “racionalidade formal do mercado”. Mas nesta racionalidade formal de economia empresarial as inter-relações materiais são necessariamente anuladas, o que a acumulação de valor abstracto não questiona nem pode questionar: A igualdade abstracta do dinheiro não se diferencia em função do valor de uso social, mas apenas em função da maior ou menor quantidade de riqueza abstracta e sem conteúdo. Neste ponto decisivo a economia do valor “do socialismo real” não difere por princípio da ocidental. Nunca as intervenções históricas da administração soviética na repartição da mercadoria força de trabalho se basearam num balanço global orientado para o valor de uso, mas exclusivamente nas exigências da economia do valor em condições de acumulação original atrasada: prioridade administrativa ao desenvolvimento das bases da indústria pesada, absorção centralizada da mais-valia social para investimento nas indústrias de base consideradas essenciais etc. (não foi por acaso que a economia de guerra alemã da Primeira Guerra Mundial foi frequentemente citada como modelo de organização). Uma tal intervenção administrativa externa nada tem a ver com um verdadeiro balanço global baseado no tempo de trabalho e em valores de uso qualitativos. A “planificação” em “quantidades materiais” (como complemento insignificante da “planificação” em categorias de valor) também não representa esse balanço global directamente social, pois não passa de uma extrapolação sem qualidade de números de produção cujas inter-relações materiais não são consideradas. Na realidade a produção social real permanece sujeita à racionalidade formal da economia empresarial, que não se preocupa (nem tem de se preocupar) com as suas ligações e consequências naturais e sociais. O facto de os processos de circulação e distribuição terem de passar pelo mecanismo regulador político-burocrático não altera a lógica da particularidade, uma vez que esta é necessariamente gerada pela abstracção do valor. E o facto de esta lógica ainda válida ser comprimida no espartilho de uma burocracia reduz a sua eficiência na economia do valor, mas permite ao seu contraproducente potencial de aniquilação em termos de valor de uso emergir ainda mais desenfreadamente. De facto as bases naturais da vida em todo o bloco de Leste são entregues à economia do valor e destruídas de forma muito mais impiedosa e brutal do que no Ocidente: o retrocesso cada vez maior na produção de mais-valia relativa leva a administração estatal do “mercado planificado” a uma produção aniquiladora cada vez mais desenfreada, ao abandono de todas as salvaguardas e a uma vontade irresponsável de correr riscos contra a vida e a saúde das massas trabalhadoras. Por isso, quando Ullrich fala de “equilíbrio global” sem atacar a economia do valor no Ocidente e no Leste como causa dos absurdos do valor de uso material, ele não sabe do que está a falar. O facto de neste contexto ele próprio se limitar a falar de “transferência de custos” e a duvidar da “rentabilidade” das “tecnologias sem saída” que critica ao nível da sociedade como um todo indica apenas que aplica ingénua e directamente os critérios formais da “economia” empresarial ao necessário equilíbrio qualitativo global e pensa em termos da categoria reificada do dinheiro. Mas é precisamente a existência social do dinheiro que impõe a particularidade formal cujas consequências materiais ele critica! Os exemplos de produção contraproducente em termos de valor de uso citados pelo próprio Ullrich mostram como a ideologia crítica das forças produtivas, com a sua falsa fachada contra as ciências naturais e a tecnologia “enquanto tal”, falha na análise dos fenómenos reais da produção aniquiladora. A reificação do conceito de forças produtivas, como decorre necessariamente da inversão da lógica da socialização capitalista para uma relação abstracta com a natureza, tem de se basear na lógica reificada do dinheiro e, assim, tentar inconscientemente combater as suas próprias consequências com meios inadequados, na base ontologizada da economia do valor que foi declarada um mero “subsistema”. A produção qualitativa de valor de uso e a contabilidade social global são incompatíveis com a abstracção real do dinheiro, não podem ser alcançadas sem a sua ultrapassagem revolucionária para uma economia de tempo directamente social, nem podem ser alcançadas através da crítica fetichista das ciências naturais e da tecnologia, pelo contrário, tal só é possível apenas trazendo a terreiro os próprios meios de conhecimento da natureza contra a lógica insana e ameaçadora do dinheiro.
c) A degradação do trabalhador
Nas teorias dos críticos das forças produtivas, a degradação do produtor imediato no processo de trabalho industrial capitalista deriva imediatamente da mistificada relação abstracta com a natureza, tal como a produção aniquiladora que leva à destruição dos fundamentos naturais da vida e prejudica o valor de uso. Como já vimos, o carácter de MERCADORIA da força de trabalho humana é negado nas sociedades do modo de produção soviético, mas nas sociedades capitalistas ocidentais é atribuído ao “subsistema” de “circulação de mercadorias” reduzido à circulação, como para todas as outras mercadorias. A exploração do trabalhador assalariado surge então, seguindo a tradição do “socialismo distributivo” do século XIX e do antigo movimento operário, apenas externamente como uma “redução do rendimento do trabalho”, como um “espremer” do trabalhador da mais-valia de que o capitalista se apropria. Este ponto de vista reificado deixa completamente de fora a degradação do trabalhador no processo de produção mecanizado, em oposição diametralmente oposta à teoria de Marx, em que essa degradação deriva precisamente da própria relação de trabalho assalariado. Também aqui os críticos das forças produtivas não superam a visão redutora do antigo movimento operário e do marxismo tradicional fetichista do valor, mas aproveitam essa redução para a sua própria mistificação específica. Tal como acontece com os produtos materiais e os meios de produção, também no que se refere à força de trabalho humana eles destroem a ligação lógica entre produção e circulação, entre a lógica da produção e a lógica da socialização. Na medida em que a força de trabalho é vista no seu carácter de mercadoria, este permanece banido para o contexto externo de socialização do “mercado de trabalho”, permanecendo a crítica a este carácter de mercadoria limitada à questão externa da propriedade e do poder de disposição sobre o produto total produzido. Mas a “lógica da produção”, que é separada deste contexto em termos das suas consequências para o trabalhador, também é reduzida à relação abstracta com a natureza, às ciências naturais e à tecnologia “enquanto tal”.
Neste contexto a crítica incide também sobre a alegada “lógica de dominação” das ciências naturais, mas agora, para além do aspecto das “abstracções quantificadoras” da “medição” científica, sobre um segundo aspecto que Ullrich refere repetidamente como o “processo reprodutível do conhecimento científico” (TuH, 82). O que é que se pretende com isto? Ullrich assume, em parte explicitamente e em parte implicitamente, um contramodelo das ciências naturais positivo, por exemplo, de confrontos (não científicos) com o material natural por camponeses e artesãos, que trabalham directamente sobre ele e a ele permanecem “sensorialmente” ligados. Isto contrasta com o processo “dessensibilizado” das CIÊNCIAS NATURAIS EXPERIMENTAIS, que procura um processo natural ideal-típico e REPRODUTÍVEL, como uma “construção”. O cientista natural experimental preocupa-se assim com um processo de conhecimento da natureza controlável, purificado de todas as “influências perturbadoras” e cuja verdade é comprovada pela sua reprodutibilidade discricionária. Na sequência da sua subjectivização filosófica da natureza, Ullrich reinterpreta agora também esta estrutura das ciências naturais experimentais como uma mistificadora “relação de dominação”; uma vez que a “dominação” só pode existir como uma relação entre sujeitos, a natureza tem de ser mistificada como um sujeito. Este absurdo “sujeito” da natureza inorgânica e orgânica é agora supostamente “violado”, não só através da “medição” científica enquanto tal, mas também através do arranjo experimental e da preparação do material natural: “O conhecimento dominador da natureza baseia-se em processos ‘purificados’, isolados. Para controlar um processo complexo, um complexo “processo de trabalho” da natureza para o homem, é desde logo necessário um grande número de leis particulares e, por outro lado, o material natural também tem de ser suficientemente “corrigido” para que o processo sintetizado também funcione “realmente” de maneira calculável” (TuH, 101). As ciências naturais experimentais representam assim o “modelo” de um “processo de funcionamento uniforme, automático, externamente controlado e controlável” (TuH, 101). Para levar a mistificação ao extremo, é mesmo necessário construir uma defesa do “sujeito natureza” com toda a seriedade: “Isto causou inicialmente dificuldades; o processo natural também não se deixava forçar a um processo controlado sem resistência” (TuH, 102). O crime das ciências naturais contra a natureza consiste assim neste modelo de “controlo externo”, e de “controlo” em contraste com o tratamento “sensível” não científico e pré-científico da substância natural: “O controlo da natureza, mesmo de um processo composto complexo, através do conhecimento simbólico à distância, sem o envolvimento do próprio corpo(!), é agora possível em princípio” (TuH, 101). Ironicamente, estas mistificações da relação com a natureza, que chegam ao ridículo, só são objectivamente possíveis graças ao distanciamento do homem universitário e puro “trabalhador cerebral” do trabalho físico da produção, só tornado possível graças ao desenvolvimento das forças produtivas e da ciência em grande escala. Ullrich talvez dissesse menos disparates sobre a “dominação da natureza” se pudesse imaginar o que significaria na prática para o trabalho na produção agrícola, por exemplo, passar da ceifeira-debulhadora para o malho, e assim dominar o material natural “com o próprio corpo”! Não deixa de ser tragicómico quando o sociólogo universitário Ullrich acusa a ciência, orientada para a “dominação da natureza”, de eliminar a “arduidade” na reprodução do conhecimento da natureza uma vez adquirido: “No produto da actividade experimental científica, o processo de obtenção de resultados, o confronto árduo com o objecto resistente da natureza já não é visível ... a reprodução do produto intelectual, ao contrário do produto artesanal, é possível com um esforço consideravelmente menor do que o necessário para a produção original, uma vez que o laborioso processo preparatório já não é necessário. O sujeito pode agora ficar fora do processo natural construído experimentalmente. O processo funciona de forma previsível 'automaticamente', pode ser manipulado a partir do exterior, alterando os parâmetros que se sabe que o influenciam” (TuH, 81). O carácter pejorativo de tais afirmações de Ullrich só é possível através da subjectivização mistificadora da natureza. Além disso a sua caracterização negativa das ciências naturais experimentais não faz sentido por outra razão. Pois a denúncia da experiência como “relação de dominação” nem sequer metaforicamente é correcta. Trata-se de um puro processo limitado de conhecimento dos processos naturais, que como tais são por definição INDEPENDENTES dos humanos. O conhecimento humano não pode “controlar” as leis da natureza, pode apenas identificá-las na sua existência independente e objectiva, e alinhar o seu próprio comportamento em conformidade. A produção de aniquilação imposta pela economia do valor é tudo menos uma “dominação” sobre a natureza; seria muito melhor caracterizá-la como uma acção social CONTRA AS LEIS DA NATUREZA, que em última análise não deve provocar a queda da natureza “enquanto tal” e das suas leis objectivas, mas a queda da civilização humana. É por isso que até o próprio Ullrich critica e se opõe à produção aniquiladora com referência a LEIS DA NATUREZA RECONHECIDAS (ecologia etc.). Todo o conceito de “dominação” sobre ou contra a natureza não passa de uma metáfora completamente distorcida a obscurecer o contexto social.
Mas Ullrich PRECISA absolutamente desta metáfora falsa e distorcida, desta denúncia da experimentação científica como “hostil à vida” etc., mesmo que ele próprio discuta alegremente com as descobertas destas ciências experimentais supostamente tão negativas (de que outro modo saberia ele alguma coisa sobre “amoníaco” ou “fotossíntese” etc.?) Ele precisa desta denúncia mistificadora porque quer reconduzir as relações SOCIAIS de dominação, através da cadeia lógica “ciências naturais – tecnologia – sistema industrial”, até à relação abstracta com a natureza. Isto torna-se agora completamente claro na forma como é deduzida a degradação do trabalhador no sistema fabril. Depois de ter pintado de preto e demonizado suficientemente as ciências experimentais, Ullrich passa a uma CONCLUSÃO ANALÓGICA muito simplista. As ciências experimentais, afirma ele, “dominam” a natureza através do modelo de um “processo uniforme que pode ser controlado e monitorizado a partir do exterior”, e A MESMA COISA acontece com os trabalhadores no sistema industrial! Apesar de esta analogia superficial e arbitrária se “basear” apenas nas suas metáforas distorcidas e na subjectivização mistificadora da natureza, Ullrich constrói toda a sua argumentação sobre esta base infundada.
Depois de ter estabelecido para as ciências naturais uma “afinidade estrutural com a lógica do capital” (TuH, 69) da maneira descrita, e de ter derivado a “conformidade da ciência com a dominação” (TuH, 69) não da sua posição social mas do seu próprio processo cognitivo científico, ele pode levar o leitor a acreditar nesta lógica por si fabricada através da sua repetição constante em vários contextos: “A lógica capitalista exige uma organização da produção que tem uma semelhança impressionante com a lógica de dominação das ciências naturais experimentais” (TuH, 115), ou: “A dominação cientificamente motivada da natureza e a dominação capitalistamente motivada do processo de produção têm um elevado grau de semelhança estrutural” (TuH, 138) etc. Mas de facto Ullrich vai um pouco mais longe. A mera “semelhança estrutural” e a “lógica de dominação” mutuamente dependente das ciências naturais e do capital não lhe bastam; ele quer fazer das ciências naturais ou da tecnologia que delas deriva, na lógica do seu domínio “autónomo”, a PRÓPRIA BASE HISTÓRICA E MATERIAL do sistema fabril e da degradação do trabalhador nele contida: “Em resumo, pode então dizer-se: não é à primeira vista surpreendente que a lógica das ciências naturais seja uma lógica de dominação... No entanto não é suficientemente tido em conta o facto de a mesma lógica tornar possível, sugerir(!) e preparar ideologicamente um grupo de dominação da produção material, mesmo antes de a lógica específica do capital desempenhar um papel marcante. É verdade que as ciências naturais e o capital são ambos produtos burgueses e que não é possível uma separação ‘pura’, mas também é preciso reconhecer o carácter burguês das ciências naturais, que faz delas um meio de dominação sobre a natureza E (ênfase por Ullrich) sobre as pessoas, sem que primeiro tenham de ser ‘forçadas’ a fazê-lo pelo capital” (TuH, 103). Note-se que Ullrich não fala aqui da posição social das ciências naturais burguesas nem do modo de pensar social ou dos interesses sociais etc. dos seus portadores, mas sempre do conteúdo e da forma do conhecimento da natureza “enquanto tal”! Não surpreende portanto que a relação de capital acabe por parecer secundária e, na verdade, sem importância no que diz respeito ao carácter de dominação do sistema industrial; de acordo com Ullrich aquela pode ser removida e o carácter da dominação permanecerá inalterado, “será ainda característico de uma técnica científica que foi separada da lógica do capital” (TuH, 107).
Com base nesta construção elaborada, Ullrich atribui agora todos os fenómenos conhecidos de degradação do trabalhador no sistema fabril das economias do valor já não ao trabalho assalariado completamente escondido, mas directamente à relação natural estabelecida pela cientificização da produção. A hierarquização do processo de produção, a separação sistemática e sempre crescente entre trabalho intelectual e trabalho manual, o taylorismo etc. são determinados directamente pela tecnologia científica enquanto tal e como seu “traço estrutural necessário”: “A síntese e a determinação do trabalho por uma vontade alheia sobre a cabeça dos produtores imediatos é um traço estrutural quase natural(!) da produção material moderna, e a tecnologia científica desempenha um papel essencial na estabilização e consolidação deste traço estrutural” (TuH, 116).
A partir destas características estruturais supostamente “naturais” das ciências naturais e da tecnologia científica, Ullrich acaba por deduzir, com base entre outras coisas na obra de L. Mumford, a “grande máquina” que degrada o trabalhador, cujos arquétipos faz remontar aos faraós egípcios (através de novas conclusões analógicas falsas) e na qual vê todas as formas típicas de degradação: “Elevada divisão do trabalho, acorrentamento vitalício a uma actividade, relações de autoridade hierárquicas rigorosas, exploração dos mais fracos, estandardização dos produtos e dos processos de trabalho, separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, expropriação completa dos indivíduos e nulidade dos indivíduos...” (WN, 49).
Em vez da economia do valor, Ullrich tem assim de afirmar as ciências naturais e a tecnologia como a identidade social negativa do “socialismo real” e do capitalismo ocidental, descrevendo a tecnologia como a “máquina de Troia” (TuH, 431) da dominação nas sociedades “pós-capitalistas”; Winfried Thaa concorda expressamente com ele (HaV, 150) e assume que a divisão do trabalho que degrada o trabalhador é “mantida petrificada na constelação das tecnologias” (HaV, 150). A alegada “forma do valor interna da tecnologia” é assim declarada como a causa directa da degradação do trabalhador; Thaa afirma que a própria tecnologia científica cria “na produção uma SOCIALIDADE DESPÓTICA NA SUA FORMA (ênfase de Thaa)” (HaV, 128). Thaa também cria confusão em relação a esta degradação do trabalhador ao falar constantemente de “abstracção do valor” e de “socialidade abstracta do valor”, mas na realidade ele refere-se precisamente à relação abstracta com a natureza na tecnologia das ciências naturais separada da produção de mercadorias; ele coloca mesmo explicitamente a hierarquização das pessoas no processo de trabalho fora do processo capitalista de exploração: “Mas agora a forma de produção cria uma nova existência social para si própria nas relações baseadas na divisão do trabalho entre os representantes da sua socialidade abstracta do valor e os trabalhadores. E a gestão na organização baseada na divisão do trabalho torna-se uma necessidade da própria actividade produtiva ... O que é decisivo agora é que esta socialidade hierárquica do processo de trabalho não só tem a sua origem lógica e histórica no carácter de valorização da produção, como, além disso, REPRESENTA UMA FORMA SOCIAL PRÓPRIA DE OBJECTIVAÇÃO DA ABSTRACÇÃO DO VALOR” (HaV, 126ss., ênfase Thaa).
Ora é claro que ninguém negará que todo PROCESSO COOPERATIVO DE TRABALHO pressupõe uma “função dirigente” (Marx), uma liderança etc. em vários níveis. Isto é evidente, e definir este facto pejorativamente, como fazem Thaa e Ullrich, não significaria outra coisa senão rejeitar completamente os processos de trabalho socialmente cooperativos (para além das empresas familiares artesanais) (será discutido em pormenor no último capítulo o facto de Thaa e Ullrich tenderem, pelo menos, a ir nesta direcção). No entanto não é minimamente evidente que a subsunção ao longo da vida de uma grande parte das pessoas a uma actividade meramente executiva, como “apêndices da máquina” etc. decorra do carácter cooperativo do processo de trabalho e de modo nenhum directamente. Esta degradação não é contudo uma “nova” existência social directamente resultante da tecnologia “enquanto tal”, como sugere Thaa, mas é precisamente a do TRABALHO ASSALARIADO, ou seja, o mesmo fenómeno que aparece na circulação como o carácter de mercadoria da força de trabalho mostra-se IDENTICAMENTE na própria produção como a SUBSUNÇÃO DO TRABALHADOR à função parcial, como a sua subordinação à lógica do trabalho abstracto. Esta necessidade não decorre minimamente da actividade produtiva enquanto MATERIAL, mas sim da transformação desta actividade produtora de material numa actividade produtora de valor (“duplo carácter do trabalho”), em que os trabalhadores são tratados como meras unidades do dispêndio de trabalho abstracto. Do ponto de vista do capital e para a sua finalidade, o VALOR DE USO da “mercadoria força de trabalho”, da capacidade humana de trabalho não consiste na sua capacidade de produzir produtos materiais (estes aparecem para o próprio capital apenas como portadores de valor), mas sim na sua “capacidade” forçada de PRODUZIR MAIS VALOR DO QUE OS SEUS PRÓPRIOS CUSTOS DE REPRODUÇÃO: “O valor de uso da capacidade de trabalho é para ele (capital, R. K.) precisamente o excedente da quantidade de trabalho que ela fornece em relação à quantidade de trabalho objectivada em si mesma e, portanto, necessária para a sua reprodução. Ela fornece essa quantidade, naturalmente, na forma particular que lhe pertence como trabalho útil particular, como trabalho de fiação, de tecelagem etc. Mas não é o seu carácter concreto, que lhe permite representar-se em mercadorias, que constitui o seu valor de uso específico para o capital. Para o capital este consiste na sua qualidade de trabalho em geral e na diferença entre a quantidade de trabalho que realiza e a quantidade de trabalho que custa ... O processo de produção capitalista não é, portanto, apenas a produção de mercadorias. É um processo que absorve trabalho não pago, que transforma o material e os meios de trabalho – os meios de produção – em meios de absorver trabalho não pago” (Teorias da mais-valia, MEW 26, 376).
Produtivo neste sentido do capital, porém, é apenas aquele trabalho que realmente entra no produto e o torna um “objecto de valor”, uma fictícia “encarnação” social do “trabalho em geral”, e para o capital MAIS “trabalho em geral” do que ele tem de “avançar”. No entanto, isto NÃO se aplica à maior parte do trabalho científico, que se realiza separadamente do processo de produção em laboratórios, institutos universitários etc.; este aparece ao capital como apenas materialmente necessário, mas no sentido económico como “faux frais” (custos de desenvolvimento, custos de investigação básica etc.). De acordo com os ditames da finalidade própria do modo de produção capitalista como valorização do valor, as grandes massas da sociedade têm portanto de ser excluídas destes potenciais científicos de reprodução global e submetidas à maquinaria, como seu mero “apêndice” e suporte da produção de valor (mais-valia). Não por si própria, mas apenas com base nesta lógica socioeconómica, a TECNOLOGIA de produção científica torna-se uma coisa estranha e externa ao trabalhador. O mesmo se aplica às funções de direcção no próprio processo de produção. Também a sua existência necessária enquanto tal não pressupõe por si só a total subsunção da massa dos trabalhadores a essas funções ao longo da vida. Pelo contrário, esta subsunção resulta também do carácter dual do processo de produção como processo material e de valorização, tal como a subsunção à maquinaria; estas funções de direcção só são produtivas na medida em que resultam das necessidades da produção material, mas improdutivas na medida em que resultam do carácter da produção como produção de valorização, e portanto da oposição entre capital e trabalho. Por isso, tal como a actividade científica, têm de tornar-se independentes dos trabalhadores enquanto corporações limitadas e exclusivas sob o comando do capital: “A força colectiva do trabalho, o seu carácter como trabalho social, é, por conseguinte, a força colectiva do capital. Como a ciência. Como a divisão do trabalho, tal como ela aparece enquanto divisão dos empregos e respectiva troca. Todas as potências sociais da produção são forças produtivas do capital e, consequentemente, o próprio capital aparece como seu sujeito. Por isso, a associação dos trabalhadores, tal como aparece na fábrica, tampouco é posta por eles, mas pelo capital. Sua união não é a SUA existência, mas a existência do capital. Perante o trabalhador singular, ela aparece como fortuita. Ele relaciona-se com a sua própria união com outros trabalhadores e com a cooperação com eles como algo estranho, como modos de acção do capital” (Grundrisse, 479).
A separação das produções sociais parciais “como economia empresarial” para fora, com a sua lógica de produção aniquiladora e prejudicial ao valor de uso sem ter em conta as inter-relações materiais da matéria natural transformada, prossegue assim também como degradação do trabalhador para dentro, como desconsideração da sua existência enquanto parte do corpo social, como sua subsunção à lógica do trabalho abstracto enquanto produção de mais-valia. Esta RELAÇÃO DE PRODUÇÃO tem a sua outra existência na circulação como a forma de mercadoria da força de trabalho e como a forma de dinheiro do salário da reprodução do trabalhador expropriado das potencialidades sociais. Esta relação de produção e a forma de mercadoria da força de trabalho não representam “domínios” diferentes e independentes da existência do trabalhador, mas são uma identidade mediada, a identidade da sua existência como capital variável. A separação entre a lógica da produção e a lógica da socialização, a mistificação da relação social de produção numa relação abstracta com a natureza, no entanto, conduz precisamente à separação e negação desta ligação na degradação do trabalhador e na sua subordinação à hierarquização das relações sociais na economia do valor; assim Thaa afirma “que as relações sociais no processo de produção capitalista são fundamentalmente diferentes da forma de mercadoria na esfera da circulação ... que as relações de dominação na produção, mais precisamente as hierarquias funcionais da divisão vertical do trabalho, representam uma forma de objectivação real do trabalho, e por isso, embora não sejam mercadorias, são entendidas como relações de valor” (HaV, 153). Para Thaa, o trabalhador assalariado deveria portanto dividir-se em dois seres completamente diferentes: a forma de mercadoria da sua força de trabalho enquanto tal não deveria ter qualquer relação com a sua degradação no processo de trabalho; a “relação de valor sem forma de mercadoria”, a fantástica “forma do valor interna da tecnologia” deveria assim revelar-se directamente na degradação do trabalhador. Mas porque é que a força de trabalho tem então de assumir o carácter de uma mercadoria “fora” da produção? Apesar de todas as tentativas de negação e de dissimulação, também nas economias do valor do modo de produção soviético isso acontece; também aí a força de trabalho é submetida à forma de dinheiro do salário (incluindo o contrato de trabalho, o direito do trabalho etc.) na sua reprodução para efeitos de acumulação de riqueza abstracta, de obtenção de divisas etc., sendo portanto submetida no processo de produção à lógica do trabalho abstracto, ou seja, com a degradação do trabalhador e a sua exclusão das potencialidades científicas da reprodução social global. A divisão absurda da socialidade em dois “mundos paralelos” completamente separados, o da circulação e o da produção, apaga sistematicamente esta ligação necessária.
No entanto, como já salientei, a mistificação de Ullrich e de Thaa pode certamente basear-se na visão truncada do marxismo tradicional. Thaa, por exemplo, fala com interesse de uma “tradição prevalecente no marxismo – e de modo nenhum apenas nele – de definir o carácter de dominação do modo de produção criado pelo capitalismo essencialmente como uma relação de apropriação” (HaV, 154). Ele usa a definição de dominação do marxista “tradicional” Werner Hofmann na sua obra de 1969 “Grundelemente der Wirtschaftsgesellschaft [Elementos Básicos da Sociedade Económica]” para ilustrar esta redução à propriedade e à distribuição que é externa ao processo de produção: “A dominação ... deve ser entendida como algo muito específico: nomeadamente uma RELAÇÃO FUNDAMENTAL da sociedade, que se caracteriza pela APROPRIAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE TRABALHO POR NÃO TRABALHADORES, e justamente com base no poder de donos dos meios de produção decisivos” (citado em HaV, 154, ênfase W. Hofmann). Por outro lado Thaa critica correctamente o facto de, através da mera “justaposição de trabalhadores e apropriadores não-trabalhadores, a organização social no processo de produção (ser) definida à partida como livre de dominação. A definição de Hofmann não pode entender como de dominação as relações de comando no processo de produção, em que a pessoa que comanda desempenha de facto uma função produtiva (...), em que a relação com o subordinado, apesar das possíveis diferenças salariais, não é essencialmente uma relação de apropriação, mas uma relação de divisão do trabalho” (HaV, 154). E Thaa pode notar triunfantemente a redução conceptual de Hofmann: “É óbvio que uma tal definição de dominação permanece ligada à esfera de circulação da sociedade burguesa, que assume efectivamente a forma de relações de apropriação e contra a qual reivindica o trabalho excedente não pago do proletariado” (HaV, 154s.). Mas Thaa nem sequer se apercebe de que está a atacar indirectamente a sua própria limitação e redução da relação de capital, apenas invertida no espelho. Com efeito, não é apenas Hofmann, mas também Ullrich e Thaa que, com a perspectiva sociológica redutora, ignoram o carácter de fim em si do modo de produção capitalista, ou seja, o abrangente “sujeito automático” material do valor. É precisamente por isso, no entanto, que o carácter da apropriação capitalista parece a Hofmann limitado à esfera da circulação, enquanto Ullrich e Thaa, confirmando essa limitação, colocam a esfera “real” da produção SEPARADA dessa apropriação, como uma relação abstracta com a natureza, cujo carácter “independente” de dominação na degradação do trabalhador decorre da lógica de dominação das ciências naturais no seu conhecimento da natureza. Ambos os lados, tanto os marxistas tradicionais como os críticos das forças produtivas, esquecem em que consiste realmente o processo capitalista de apropriação, o que é realmente “apropriado”. A restrição do conceito de apropriação à esfera da circulação é errada de duas maneiras: primeiro, muito simplesmente porque na circulação não há apropriação nenhuma, mas apenas uma TROCA DE EQUIVALENTES. Por isso a coisa a ser trocada tem de ter sido apropriada já anteriormente, seja por meio do próprio trabalho ou pela exploração do trabalho de outros. A este respeito até Hofmann tem razão na sua redução, em comparação com Ullrich e Thaa, que não conseguem distinguir entre circulação e distribuição, e ignoram o facto de a apropriação do produto excedente já ter lugar antes da circulação dos produtos, devido à propriedade privada dos meios de produção sociais (nos modos de produção soviéticos, o Estado, enquanto corporação independente, assume este papel formal de proprietário privado face aos produtores).
Mas mesmo este conceito correctamente definido de apropriação, como definição formal, permanece externo ao real PROCESSO DE APROPRIAÇÃO. O que é apropriado de facto não é o produto material da produção, que como tal representa apenas VALORES DE USO. O que é apropriado é O PRÓPRIO TRABALHO, como trabalho abstracto, como valor; a formulação de Hofmann da “apropriação do trabalho alheio” também aponta para isso, embora o marxismo tradicional não consiga compreender o verdadeiro conteúdo destas palavras. A verdadeira apropriação do trabalho ocorre no processo de produção, na sua forma de PROCESSO DE FORMAÇÃO DE VALOR, cuja fantasmagórica objectividade abstracta se manifesta materialmente na produção aniquiladora e na degradação do trabalhador reduzido à sua função abstracta de “formação de valor”. A OBJECTIVAÇÃO deste trabalho abstracto, “o trabalho enquanto tal”, é uma FICÇÃO SOCIAL que se torna real, que não pode ser vista nos produtos materiais enquanto tais, mas só se concretiza na circulação como a tangível ABSTRACÇÃO REAL DO DINHEIRO. É por isso que o processo real de apropriação na esfera da produção só se realiza na forma monetária na esfera da circulação; à primeira vista isto aparece como uma necessidade de “REALIZAR” a “mais-valia”, isto é, de transformar em dinheiro o trabalho excedente ficticiamente objectivado no produto excedente. A forma em si mesma absurda e “louca” de apropriação do “trabalho” em vez dos valores de uso produzidos pelo processo fluido do trabalho só se torna possível através da interconexão lógica da produção e da circulação, através do aparecimento material do trabalho abstracto na circulação como dinheiro. Nem os marxistas tradicionais nem os críticos das forças produtivas se apercebem desta identidade mediada, porque não vêem criticamente o carácter fictício e “louco” do “valor”, mas aceitam-no positivistamente de modo puramente definitório e ontológico, como um facto consumado, fixo e imutável. Em vez de entender o dinheiro na reprodução capitalista como a manifestação material da apropriação do trabalho alheio NO PROCESSO DE PRODUÇÃO, ele tem de ser assim mal interpretado como uma mera coisa, como um “instrumento” de circulação. A verdadeira apropriação do trabalho só pode ocorrer no próprio processo de formação de valor da produção, e é precisamente este carácter da produção como formação de valor que dá origem à degradação do trabalhador, bem como à estrutura tecnológica material específica dos meios de produção, até à produção aniquiladora inclusive. A “relação de divisão do trabalho” na reprodução social global, que degrada o trabalhador a um mero átomo da formação de valor, é assim ela própria a relação de apropriação efectiva, em que tanto os “oficiais e sargentos” do processo de produção imediato como os cientistas, os gestores etc. representam apenas os FUNCIONÁRIOS do “sujeito automático”, do valor que se valoriza como fim em si do modo de produção capitalista. A atribuição da degradação do trabalhador à relação abstracta com a natureza e ao absurdo “carácter de dominação” do conhecimento da natureza “enquanto tal” baseia-se assim na mesma conceptualização reificada da “apropriação” reduzida à circulação ou distribuição e fetichista do valor característica do marxismo tradicional, o qual não compreende os seus próprios conceitos.
4. Moral miserável e moral da miséria: consequências da crítica das forças produtivas
O conceito de alienação entendido como uma constante antropológica e o pessimismo cultural colorido pela filosofia da vida, resultantes da derivação da “dominação” social da relação abstracta com a natureza, silenciaram a Teoria Crítica original e os seus posteriores representantes em termos de teoria da emancipação, levando-os a uma manifesta resignação. Horkheimer, Adorno, Marcuse e os seus (poucos) descendentes autênticos não puderam nem quiseram tirar quaisquer chãs consequências “práticas” das antinomias da sua teoria. Os actuais críticos das forças produtivas são diferentes: apenas exploram as partes do aparato conceptual da Teoria Crítica que são úteis para os seus propósitos, e por isso enfatizam muito mais fortemente o momento reaccionário da filosofia da vida (parecendo não estarem plenamente conscientes das suas raízes históricas). O impulso herdado do movimento de 1968 de se tornarem “práticos” a todo o custo e de mediarem politicamente tenta-os a alargar a abordagem crítica das forças produtivas a conceitos sociopolíticos orientados para a acção. No entanto as fraquezas lógicas e analíticas, a tendência em última análise reaccionária dos críticos das forças produtivas em lado nenhum são tão claras como nas suas tentativas quase programáticas, que irei agora discutir em conclusão. Os fundamentos sociais deste pensamento serão também revelados até ficarem reconhecíveis.
a) Dessocialização e fetiche da mercadoria: “Small is beautiful”
Tanto Ullrich como Thaa retiraram da linha de fogo da crítica a abstracção real social do dinheiro e declararam-na como a “lógica de um domínio” secundária e “sem importância”, de um “subsistema” subordinado que supostamente já não domina a socialização no socialismo real. Do mesmo modo ambos os críticos das forças produtivas dobraram e recortaram a relação abstracta com a natureza, e portanto com as ciências naturais e a tecnologia “enquanto tal”, transformando-a na base real e primária da “dominação”. Até agora apenas mostrei que isto não tem em conta o cerne da abstracção do valor com todas as consequências sociais e naturais que daí decorrem. No entanto, uma vez que a crítica das forças produtivas não é hoje apenas uma questão de erros lógicos e conceptuais de teóricos individuais, mas sim uma corrente ampla e poderosa de ideologia social, é preciso também evidenciar a sua base histórico-social, para lá da crítica científica do seu mero conteúdo.
O facto de a crítica concreta do dinheiro ser contornada sugere a conclusão de que a subjectividade e a individualidade, invocadas por Thaa e Ullrich contra os “poderes objectivantes” das ciências naturais e da tecnologia, não representam afinal mais do que a PRIVACIDADE ABSTRACTA do indivíduo abstracto detentor de bens e dinheiro, ou seja, do CIDADÃO. A velha Teoria Crítica de Horkheimer, Adorno e Marcuse já falhou devido a este problema, pois não conseguiu ultrapassar o marxismo tradicional do velho movimento operário no ponto nevrálgico decisivo. Enquanto “proprietário da mercadoria” sua força de trabalho, o trabalhador assalariado também é um indivíduo burguês, estando assim à mercê da sua formação ideológica assente na lógica do dinheiro; a ruptura desta ligação só seria possível através da crítica concreta do trabalho abstracto na sua forma total de produção e circulação. Ora a “naturalização” filosófica da relação de valor oferece ao indivíduo burguês nos seus múltiplos matizes também múltiplas possibilidades de criticar e combater as consequências da lógica da socialização capitalista sem sair verdadeiramente do terreno da subjectividade do dinheiro abstracto. As construções ideológicas da crítica das forças produtivas poderiam assim ser explicadas como uma elaborada manobra de diversão da consciência fetichista do valor. O sujeito burguês, insistindo aberta ou secretamente na sua privacidade abstracta, pode (e tem de) atacar os poderes da socialização negativa da economia do valor na sua objectividade morta e no seu concretismo num segundo nível de fetichização. Mas, visto a esta luz, o branqueamento, o encobrimento e o tapar do dinheiro como a verdadeira forma de abstracção do valor não é um simples mal-entendido. Afinal o dinheiro é a encarnação material dessa privacidade ou subjectividade (abstracta) que se pretende defender a todo o custo contra as suas próprias consequências, porque de outro modo não parece possível qualquer auto-afirmação do indivíduo. O sentido inicialmente secreto da separação teórica entre a lógica da produção e a lógica da socialização, entre a maquinaria técnico-científica morta e a “circulação de mercadorias” pode, portanto, ser decifrado e reduzido a uma fórmula que exprime o eterno sonho do sujeito abstracto da mercadoria-dinheiro: a socialização que parece impossível pensar a não ser na sua inversão não deve violar o limiar de dor da privacidade mediada pelo dinheiro, as forças produtivas não devem poder ultrapassar o horizonte da produção de mercadorias. A prevenção a todo o custo de uma crise de identidade do indivíduo monetário ou assalariado, ou seja, a defesa quase histérica contra a ideia de uma revolução para além do valor de troca é o verdadeiro credo da crítica das forças produtivas.
Para perpetuar a produção de mercadorias, as forças produtivas e por conseguinte o conhecimento científico da natureza e da tecnologia devem ser mantidos em “lume brando”. “Pequeno” deve ser entendido literalmente. Tal como a sua fonte, Mumford, também o Dom Quixote Ullrich se insurge contra a socialização negativa na sua forma fetichizada de moinho de vento como “Grande Máquina”; insurge-se assim contra a “máquina de produção em grande escala, centralmente controlável” (WN, 32), contra “o sistema organizativo cada vez mais integrado da sociedade moderna” (WN, 32), contra os “aparelhos de redes de transportes, comunicações, esgotos(!) devassando o território, e o fornecimento de eletricidade, luz e água” (WN, 33), depois de ter castigado a ‘impiedosa dilaceração dos laços humanos’ (WN, 29) descrita com frieza no Manifesto Comunista. Viva a casa de banho no pátio e a consanguinidade corcunda! Ou, em bom alemão: “Small is beautiful”!
Contudo não é apenas o “tamanho” alegadamente a exceder as proporções “humanas” (isto é, da mercadoria) que é intolerável na produção científica para os críticos das forças produtivas, mas também a “orientação para o poder central” (burocrática) derivada deste “tamanho” e “incontrolabilidade”. É assim a peculiar derivação feita por Ullrich do Estado, que logicamente já não explica o Estado moderno a partir das antinomias da forma da mercadoria, mas directamente a partir da objectividade tecnológica morta: “Um outro ‘aparelho de rede’ centralizado, que é também uma característica do sistema industrial e que está a aumentar de tamanho dentro dele, é a máquina do Estado. Mesmo que ... Marx ainda acreditasse que o Estado se tornaria supérfluo com o desenvolvimento das forças produtivas, é óbvio hoje que uma organização centralizada da produção em grande escala e a ligação em rede em grande escala da sociedade tornam um Estado centralizado e burocratizado igualmente necessário no Ocidente e no Leste” (WN, 33). O processo de socialização é portanto supostamente mau em princípio, porque só pode ser “uma socialização orientada para o poder central” (WN, 34). Também neste ponto Thaa concorda plenamente com Ullrich: “A socialização que corresponde à produção tecnicizada é assim extremamente orientada para o poder central. Idealmente os processos parciais são completamente determinados por normas pré-determinadas do centro. Nos pontos individuais do sistema global, nem o significado da actividade pode ser visto – pelo menos directamente – nem a conveniência do processo pode ser julgada. Ambos requerem o 'nível superior' do centro” (HaV, 144).
Aqui os críticos das forças produtivas confundem o que pode ser confundido. Nunca se pode falar de uma verdadeira “centralização” social com base numa economia do valor. A real existência social da abstracção do valor implica sob qualquer forma específica a “troca de mercadorias” e portanto uma “esfera de circulação”, isto é, UNIDADES ECONÓMICAS SEPARADAS. A relação entre elas só pode ser INDIRECTA, mesmo com uma regulação burocrática altamente organizada (pelo Estado), o que é confirmado pela existência do dinheiro como forma geral de circulação. A lógica interna de produção destas unidades económicas (empresas, grupos, corporações) é e continua a ser uma lógica “DE ECONOMIA EMPRESARIAL SEPARADA”, tanto no Leste como no Ocidente. Ao mesmo tempo, porém, o processo de cientificização da produção abole esta separação económica no sentido material, ou seja, conduz a uma “rede” tecnológica global da sociedade. No entanto, sob o ditame da abstracção do valor, as pessoas continuam separadas umas das outras pelo dinheiro; esta separação é ainda mais intensificada pelo processo de socialização negativa “invertida” do valor com a sua generalização (“monetarização do mundo”). SÃO AS COISAS MORTAS QUE SÃO SOCIALIZADAS, NÃO AS PRÓPRIAS PESSOAS. Tal como os seus antecessores da burguesa filosofia da vida, os críticos das forças produtivas vêem de facto o processo de esvaziamento dos indivíduos humanos e a aparente revitalização das coisas mortas, mas tiram conclusões erradas porque, não conseguem pensar para além do absurdo social do valor.
Na medida em que se pode falar de “centralização” ao nível da relação socio-económica básica, esta refere-se à partida apenas às unidades individuais e separadas (e não verdadeiramente centralizadas). Estas estão de facto centralizadas PARA DENTRO, sujeitas a uma vontade unificada, nomeadamente a do capital monetário dominante (cuja existência formalmente diferente no Leste não altera a relação social básica); neste contexto os indivíduos humanos não são mais do que “funcionários do valor” (Marx), ou seja, do automovimento do processo de valorização. Este “poder central” nas unidades básicas da economia do valor, no entanto, como já foi demonstrado pela questão da degradação do trabalhador no processo de produção, na realidade não é devido ao processo material de cientificização, mas à lógica “económica” da produção de valor, que procura minimizar todas as funções “improdutivas” no sentido do valor e por conseguinte as transfere de forma hierárquica para corporações separadas e exclusivas, a fim de poder organizar a vida dos verdadeiros produtores de valor com uma “racionalidade” óptima como processo de dispêndio de trabalho abstracto. A “orientação para o poder central” PARA DENTRO surge pela MESMA razão que as empresas etc. NÃO estão “centralizadas” PARA FORA. No que diz respeito à economia soviética, basta um olhar sobre o conteúdo económico dos debates sobre a reforma de Gorbachev para perceber que o principal problema é a insuficiente “eficiência” da direcção da economia empresarial em termos de economia do valor. Isto explica, aliás, um fenómeno que é normalmente ignorado no Ocidente: quanto mais “centralizada” parece ser a economia do valor no seu conjunto, ou seja, quanto mais os processos de produção ainda separados em termos de economia empresarial estão sujeitos à regulação externa burocrática do “mercado planeado”, menos “orientadas para o poder central” são internamente as empresas individuais. Um dos fenómenos lamentados é, por exemplo, o facto de os trabalhadores, enquanto produtores de valor, meterem baixa quando lhes apetece, irem para casa antes do fim oficial do dia de trabalho ou fazerem compras durante o horário de trabalho por razões puramente pessoais etc. A tão proclamada DESCENTRALIZAÇÃO económica e a consequente “DEMOCRATIZAÇÃO” da sociedade soviética é, portanto, susceptível de ter um lado negativo elegantemente escondido: a ainda mais acentuada “orientação centralizada do poder” das unidades de produção PARA DENTRO. Como em qualquer democracia, os verdadeiros fundamentos económicos, a racionalidade óptima da produção de valor, devem ser impostos e os trabalhadores devem ser mantidos sob controlo no seu processo de vida real. Em contrapartida ser-lhes-á permitido votar muito mais “livremente” do que antes.
O ESTADO é que tem de ser conceptualmente separado como uma manifestação especial da economia do valor, enquanto Ullrich e Thaa atribuem todos os fenómenos sociais negativos, de modo completamente aconceptual e indiscriminado, a uma “tecnologia de grande escala” geral e a uma “socialização centralizada do poder”. Na realidade o Estado não pode abolir através da “centralização” a separação das empresas etc. imposta pelo valor . Ele próprio é uma consequência dessa separação no que diz respeito ao Estado moderno. A lógica do valor é tão absolutamente cega às necessidades humanas que, como único princípio de socialização, teria de conduzir ao mais rápido colapso da reprodução, à luta de todos contra todos, à negligência e à destruição de muitos momentos necessários da reprodução que não podem ser directamente geridos de forma “rentável” em termos de economia empresarial etc. Isto é tanto mais verdadeiro quanto mais o processo de cientificização material progride e se encontra em contradição cada vez mais flagrante com a abstracção do valor, que no entanto se generaliza precisamente através do mesmo processo. Para assegurar as condições gerais e externas da reprodução é portanto necessário separar também uma instância do “geral”, que no entanto permanece necessariamente um “geral e abstracto” com base no valor. Por outras palavras: surge o paradoxo de que a GENERALIDADE da sociedade se torna independente dela como ESPECIALIDADE, ou seja, aparece sob a forma de uma corporação especial. No seu processo de vida real ditado pelo valor, cada cidadão individual é confrontado com a sua própria generalidade social como um aparelho especial, como um aparelho de Estado alheio e externo (polícia, burocracia etc.). E quanto mais avança o processo material de socialização, mais este aparelho especial da generalidade abstracta tem de aparecer de forma institucional e reguladora (“lei da quota crescente do Estado” no produto nacional bruto). Mas esta abstracção real da generalidade, que corresponde à abstracção real do trabalho social no DINHEIRO como seu gémeo (o dinheiro e o Estado são mutuamente dependentes, como abstracções reais da socialidade negativa), só pode confrontar a reprodução baseada no valor externamente e com os seus próprios meios. O Estado deve representar a sociedade externamente, mas precisamente como a encarnação de uma economia nacional abstracta do valor, face a outras do mesmo tipo e sujeitas às leis cegas do valor. O Estado tem de administrar e reparar, com razão e sem razão, as doenças, os males e as devastações causadas internamente pela economia do valor (desemprego, abandono, criminalidade, doença etc.) e que não podem ser “tratadas” em termos puramente económicos; mas só o pode fazer ele próprio através do dinheiro como meio de circulação geral e, ao fazê-lo, entra em dificuldades crescentes com o aumento da socialização (dívida nacional, debate sobre as privatizações). O Estado tem de assumir directamente sob seu controlo cada vez mais elementos indispensáveis da produção materialmente socializada (fornecimento de energia, sistemas gerais de transporte, instituições infra-estruturais etc.), porque a sua existência não pode ser deixada inteiramente à rentabilidade económica sem o risco de um colapso da produção em geral; mas ainda assim tem também de se gerir a si próprio no sentido da economia empresarial, isto é, da economia do valor, o que dá origem a novas contradições. Em suma: a “orientação para o poder central” do aparelho de Estado é desde logo ela própria uma consequência da produção de mercadorias (no Leste como no Ocidente) e, por conseguinte, não é expressão de uma centralização social real, mas exactamente o contrário; em segundo lugar, porém, a centralização real deste aparelho em relação aos indivíduos-cidadãos abstractos é tanto uma função do valor que se concretiza em dinheiro como a centralização ao nível da empresa em relação aos trabalhadores. Perante isto a derivação feita pelos críticos das forças produtivas permanece desajeitada e sem conceito.
De facto a “centralização” social material-tecnológica não poderia ser um mal em si mesma se os indivíduos sociais pudessem subsumi-la a si próprios em vez de serem subsumidos a ela. Usando o exemplo do sistema de comunicação “centralizado” de “grande jornal diário” (jornal BILD, por exemplo), gostaria apenas de explicar brevemente quão pouco a subsunção dos indivíduos a um tal “poder central” é directamente condicionada pelo seu puro “tamanho” e “função centralizadora”. O facto de um sistema em rede tão grande permitir a comunicação quotidiana de Flensburg a Rosenheim a um certo nível seria uma grande vantagem de um ponto de vista puramente material, se se tratasse apenas de trocar informações sobre acontecimentos, opiniões etc., de realizar um debate geral sobre problemas comuns etc. Mas como sabemos esse sistema de comunicação não é utilizado para esse efeito. Porquê? Porque é que se torna uma “via de sentido único” comunicativa, através da qual só se difundem distorções sensacionais da realidade e desinformação? A referência há muito usada à propriedade privada formal não ajuda enquanto esta propriedade privada for entendida apenas formalmente. Como todas as outras instituições sociais, o sistema de comunicação de “grande jornal diário” está integrado na reprodução autónoma do valor, com base na qual não pode haver debate humano directo nem compreensão das questões comuns. Uma vez que não são as pessoas em si mas as coisas mortas que são socializadas, não só o sistema de comunicação está organizado como uma unidade de valorização do valor em termos de forma, mas os conteúdos da comunicação transportados também têm a marca das várias figuras fetichizadas da vida social, que por sua vez representam corporações separadas. Tanto em termos de forma como de conteúdo, o sistema de comunicação é portanto externo, alheio, separado e em si mesmo abstracto para o indivíduo na sua dupla qualidade de funcionário abstracto do dinheiro e de cidadão abstracto, tal como todas as outras formas de interacção humana. O indivíduo não experimenta o sistema de comunicação dos jornais como um momento directo da sua própria socialidade, na qual tem uma participação viva, mas como um produto de consumo morto, que como tal possui uma objectualidade de valor e tem um preço expresso em dinheiro como todas as outras mercadorias. Só nesta via do acto abstracto de troca é que se encontra a verdadeira ligação do indivíduo ao sistema de comunicação. O que vem depois é o acto indiferente de consumo, no qual o produto morto e expulso do sistema de comunicação também pode ter apenas a função de papel de embrulho. O sistema jornalístico não pode aparecer no processo de vida interior do indivíduo abstracto a não ser como um produto de consumo morto e alheio; nem ele teria tempo para isso. Uma vez que o tempo de vida do trabalhador assalariado está subordinado ao processo de dispêndio de trabalho abstracto, ele não tem nem a competência relacionada com o conteúdo nem o acesso formal ao processamento de informação que seriam necessários para poder discutir assuntos gerais. Em vez disso existem “especialistas”, políticos, cientistas, artistas etc., enquanto o próprio sistema de comunicação é por sua vez mantido em funcionamento por outros especialistas. O recreio e o Hyde Park Corner da comunicação que são as cartas ao editor (ou a famigerada comunicação telefónica na rádio dos idiotas, que também sugere uma participação comunicativa) são então suficientes para a tagarelice irrelevante da massa de incompetentes. Em última análise, para o consumidor do sistema jornalístico a função do produto não é comunicar a sua própria socialidade, mas sim moldá-lo como produtor e consumidor da economia do valor: as sensações e a desinformação garrida servem para o distrair e estimular, de modo que a terrível desolação e o terrível vazio do seu processo de reprodução se tornem mais suportáveis, e a publicidade inundante sirva para canalizar o seu poder de compra.
Tal como acontece com o Estado e os sistemas de comunicação, o mesmo se passa com todos os outros “grandes” contextos de redes sociais, que têm de aparecer cada vez mais ameaçadores na sua forma fetichizada como momentos da reprodução do valor. É uma impertinência de Ullrich atribuir a Marx a ideia ingénua de que o Estado se tornará supérfluo por si mesmo, à medida que as forças produtivas aumentam. Para Marx, todavia, há pelo meio a “pequena questão” de uma revolução contra a economia do valor. Enquanto as pessoas não se virem livres da forma de socialização através da abstracção do valor, todas as fases do desenvolvimento das forças produtivas se tornarão automaticamente outras tantas fases de inflação da generalidade abstracta do aparelho de Estado e de um crescente esvaziamento e nulidade do indivíduo em relação aos “poderes centrais” mortos da sua própria socialidade. Uma vez que Ullrich e Thaa relegaram a lógica do dinheiro para um “domínio” secundário que não é considerado essencial, permanecem também totalmente incapazes de compreender a razão social da “orientação para o poder central”.
“Pequeno” versus “grande”, “descentralizado” versus “centralizado” – a extrema indigência desta concepção da sociedade já indica que apenas uma abstracção foi trocada por outra e que o terreno da produção de mercadorias não foi abandonado. Uma reprodução verdadeiramente orientada para o valor de uso fará com que a questão dos contextos “pequeno” ou “grande”, “centralizado” ou “descentralizado” dependa com grande evidência do CONTEÚDO MATERIAL e do seu alcance significativo em rede, ou seja, ponderando necessidades qualitativas e inter-relações materiais. Claro que é uma loucura flagrante se, por exemplo, a produção de rabanetes estiver economicamente “centralizada” e integrada em redes de distribuição continentais com enormes rotas de transporte, enquanto milhões de pessoas nas grandes cidades não têm sequer um pequeno pedaço de jardim para cultivar os seus próprios rabanetes e comê-los frescos sem qualquer problema. Deste modo não só têm de lidar com uma ninharia como o consumo de rabanetes através da relação abstracta valor-dinheiro, como também lhes é roubado o prazer proporcionado pelo cultivo de plantas e jardins. O facto de a total “monetarização do mundo” produzir flores tão insanas de “centralização” não pode ser tomado como razão séria para se querer agora também “descentralizar” ou abolir a produção de locomotivas, conduzir os sistemas de comunicação social de volta à estreiteza provinciana etc., apenas para satisfazer um princípio oposto de abstracção!
O apego histérico à subjectividade abstracta da mercadoria ou do valor face às incompreendidas tendências de socialização resultantes do desenvolvimento das forças produtivas tornou-se desde há muito uma característica permanente da ideologia burguesa. Em certa medida os dirigentes das empresas e os ideólogos da classe média também se batem pela “descentralização” e pela “desnacionalização”, como fizeram recentemente os monetaristas no mundo anglo-saxónico e os neoliberais económicos do tipo do conde Lambsdorff na Alemanha. Chegam mesmo a atacar o financiamento estatal da ciência. Existe também uma tradição no movimento operário, por exemplo, sob a forma de anarquistas, sindicalistas e movimentos cooperativos (kibutz em Israel), em que a crítica abstracta do Estado é combinada com a propaganda da “pequena” produção descentralizada de mercadorias, para escapar aos males incompreendidos da lógica capitalista de socialização. Ullrich também invoca abertamente esta linha de tradição: “Mas há também a história de OUTRO (ênfase de Ullrich) movimento operário: o movimento cooperativo, os anarquistas, os sindicalistas e os socialistas utópicos etc. Para estes movimentos estavam muito mais em primeiro plano o indivíduo, os interesses imediatos das pessoas, um modo de vida que pudesse ser controlado e desejado pelas próprias pessoas em redes sociais mais pequenas. A grande indústria E (ênfase de Ullrich) o movimento operário orientado para a grande indústria suprimiram e destruíram estas alternativas” (WN, 19).
De facto a corrente dominante do antigo movimento operário, que também era portadora da recepção redutora e fetichista do marxismo, conduziu à integração no Estado democrático-capitalista, à integração na relação de capital “fordista” e, por outro lado, à máquina estatal de uma industrialização atrasada da economia do valor na União Soviética. Este velho movimento operário tinha eliminado como “pequeno-burguesas” as tradicionais linhas de propaganda da descentralização e da produção cooperativa de mercadorias anti-estatal, mas apenas para propagandear uma produção social de mercadorias e um trabalho assalariado mais ou menos regulado pelo Estado, que se esperava “livre de crises”. A ideia de abolir o fetiche da mercadoria e com ele o próprio trabalho assalariado permaneceu sempre completamente alheia a este movimento, e por isso se foi desvanecendo cada vez mais no século XX, acabando por desaparecer por completo, mesmo da elaboração teórica. Mas um movimento operário e um “marxismo” que não vão além de tentar fazer render a sua própria força de trabalho humana como mercadoria, assim se limitando a reproduzir todas as figuras fetichistas centrais do processo de vida burguês simplesmente modificadas com os correspondentes novos níveis de contradição, não podem libertar-se da sombra pequeno-burguesa de uma saída “diferente” da miséria capitalista de socialização. Tal como o conde Lambsdorff e os monetaristas vêem todas as intervenções da generalidade abstracta do Estado no processo de reprodução social como uma violação da produção “real, verdadeira, correcta” de mercadorias e dos seus princípios, também os ideólogos cooperativos, os sindicalistas etc. e hoje os críticos das forças produtivas vêem a auto-entrega do movimento operário ao Estado e à indústria fordista como uma “traição” aos princípios da produção de mercadorias em pequena escala, “humana”, descentralizada, anti-estatal e cooperativa, sem a “grande indústria” que rouba aos povos a “propriedade” dos seus meios de produção. Na realidade, porém, trata-se apenas de diferentes formas de estar preso na abstracção do valor, que se complementam constantemente e se condicionam mutuamente como pseudo-alternativas em contextos formais variáveis. Para os sujeitos abstractos da economia do valor, os “interesses imediatos”, como lhes chama Ullrich, estão sempre presos às condições pressupostas da cega socialidade negativa e às suas antinomias, e por isso são sempre interesses monetários abstractos, independentemente de estarem relacionados com o Estado social e o trabalho assalariado regulamentado ou com a produção de mercadorias descentralizada e em pequena escala. Enquanto este círculo vicioso do pensamento da economia do valor não for quebrado, os programas e as “utopias” socialistas terão de sofrer constantemente o triste destino de apenas poderem oscilar entre as ilusões fordistas do Estado social e a criação de projectos neo-pequeno-burgueses. Hoje em dia não só os programas da social-democracia, mas também os dos Verdes e de várias seitas socialistas ou “comunistas” são marcados por este facto. Não admira portanto que, perante a crise do fordismo e do Estado social, as velhas ideologias cooperativas comecem a florescer de novo e as publicações correspondentes comecem a proliferar, não só na órbita dos Verdes e do movimento alternativo, mas também nas franjas da social-democracia. As velhas ideias não são trocadas por novas, mas por outras ainda mais antigas, que apenas aparentemente foram ultrapassadas no início do século XX e que são revisitadas, apesar de serem ainda mais ilusórias e estúpidas no actual nível microelectrónico de socialização do capital do que eram no século XIX.
Ullrich mostra mais uma vez com uma clareza surpreendente até que ponto a derivação dos males da socialização da “dimensão” dos contextos de reprodução se baseia num conceito truncado e jurídico-formal de “propriedade” do capital, do qual a dimensão da rede baseada na cientificização é depois separada como um complexo de causas independente. Como exemplo ilustrativo de um processo de reificação alegadamente não-capitalista, baseado apenas em redes de grande escala, cita a “Neue Heimat”, que até há pouco tempo era propriedade dos sindicatos: “... O crescimento de grandezas abstractas de fluxo ou de variáveis-chave é um mecanismo tão essencialmente institucionalizado na sociedade do nosso modo de produção que nem os domínios de produção que não estão nas mãos de ‘capitalistas privados’ podem escapar a esta atracção. Há exemplos suficientes deste facto nas sociedades capitalistas. Na República Federal da Alemanha, um exemplo frequentemente criticado é a empresa de produção de habitação ‘Neue Heimat’, ‘propriedade dos trabalhadores’(!), que também orienta a sua produção para taxas de crescimento de unidades habitacionais abstractas que estão largamente desligadas de interesses habitacionais qualitativos e emancipados. Neste caso poder-se-ia supor que é precisamente aqui – uma vez que não é impedida pela influência directa de ‘interesses capitalistas privados’ – que haveria uma oportunidade de expandir a variável de crescimento abstracto também para dimensões qualitativas de necessidade. Mas este exemplo recorda-nos que ... a ‘posse’ ou propriedade é apenas uma variável entre outras que é cada vez menos importante para a avaliação de processos reificados a um nível elevado de complexidade de objectivação. Para além do facto de estar incorporada na lógica básica socialmente institucionalizada do capital, uma análise mais atenta do exemplo da 'Neue Heimat' revelaria também que outros mecanismos são responsáveis pela orientação externa abstracta quantitativa desta organização de produção 'não-capitalista': tendências de reificação dos grandes processos objectivados independentes da lógica do capital ...” (TuH, 256).
A cegueira de uma ideologia fetichista do valor dificilmente poderia ser mais flagrante. Pelo facto de ter sido comprada com dinheiro do sindicato, a unidade de valorização capitalista “Neue Heimat” representa para Ullrich uma unidade de reprodução “propriedade dos trabalhadores”. O conceito de “propriedade” está aqui, ainda mais claramente do que noutros contextos, completamente desligado de qualquer conteúdo social factual e coagulou-se num total fetiche do direito puramente externo. E de facto se o conceito de capital não representa uma relação social factual, mas apenas uma relação puramente formal, então todos os momentos factuais e pessoais reais desta relação têm de aparecer como nada mais do que “esferas” ou “domínios” separados que estão apenas externamente relacionados uns com os outros. Depois, como ponto culminante desta mistificação, a relação social abstracta da economia do valor pode até ser contrastada com a sua própria “grandeza” como um mecanismo externo e separado e uma conexão causal!
A abstracção real do dinheiro permanece aqui fora do alcance da crítica porque já não aparece como uma singularidade histórica, mas como um facto ontológico inegável da vida humana que é comum a todos os modos de produção e que tem de ser considerado tão louco questionar como, por exemplo, a exigência de abolir o ar respirável. Isto revela a tenacidade blindada do indivíduo abstracto, que só se conhece a si mesmo como sujeito monetário e tem de sentir cada ruptura da armadura monetária da socialização abstracta como um ataque à sua identidade de sujeito. Mas se o valor e o dinheiro são realidades absolutas, a-históricas e ontológicas, então o máximo que se pode fazer é trazer o dinheiro de volta para casa, da independência do processo de valorização capitalista e das garras diabólicas da produção cientificizada em grande escala para o parque de diversões da produção de mercadorias em pequena escala. Aí, no quadro de proporções “humanas” de “pequenos” contextos em rede, poderia voltar a desempenhar o papel que a Ullrich “realmente” convém, nomeadamente o de ser um mero “meio de troca”: “Anteriormente era típico da sociedade de troca desenvolvida que houvesse um produto no início e no fim do processo de troca. Alguém fabricava um produto e vendia-o para poder comprar outro produto. Esta troca era mediada pelo dinheiro, mas o objectivo final do processo de troca continuava a ser o VALOR DE USO (ênfase de Ullrich) da mercadoria. Para a economia capitalista, pelo contrário, é típico que este ciclo de mercadoria – dinheiro – mercadoria (M-D-M) se transforme em dinheiro – mercadoria – dinheiro (D-M-D). No início e no fim está o dinheiro, o VALOR DE TROCA (ênfase de Ullrich) da mercadoria, e o único objectivo do processo é aumentar este valor monetário” (WN, 28).
O que Ullrich aqui invoca, evidentemente, nunca existiu como formação social autónoma; a simples produção de mercadorias, que “acaba em valor de uso”, não representa mais do que uma forma não desenvolvida da economia do valor, limitada aos “nichos” de uma produção agrícola feudal etc. que não é de modo nenhum “tipo mercadoria”, em que o produto excedente não é apropriado através da abstracção do valor, mas naturalmente com base em relações de dependência pessoal. E mesmo nestes “nichos” de modos de produção pré-capitalistas o dinheiro já se desenvolve como um fim em si (por exemplo, sob a forma de formação de tesouros, capital mercantil e o particularmente idílico capital usurário), mesmo que ainda não no próprio processo de produção imediato. Como muitos autores antes dele, Ullrich confunde o momento analítico da análise da forma do valor de Marx, o “simples” contexto de mediação M-D-M, com um modo de produção ou uma formação social reais do passado. Os produtores artesanais de mercadorias, que ele e a maioria dos críticos das forças produtivas repetidamente tiraram da cartola como modelo, existiram na realidade apenas como uma minoria em extinção, que era imensamente privilegiada em comparação com a massa de produtores directos e não contribuía decisivamente para o processo real de reprodução social. Por outro lado, a generalização da economia do valor, que começou muito antes da revolução industrial e que já tinha uma longa história no início do século XIX, também foi acompanhada pelo aparecimento de várias formas de trabalho assalariado. Mas enquanto a teoria de Marx elabora a lógica interna do desenvolvimento da relação valor-dinheiro como socialização negativa com base no processo histórico real, a história da economia do valor aparece em Ullrich, que obscureceu e encobriu a lógica do dinheiro, simplesmente como um desenvolvimento arbitrário e equivocado, que poderia ter tomado um rumo completamente diferente se tivesse tido a “visão correcta”. Para ele, como para qualquer idealista amador, o verdadeiro processo social é apenas “este infeliz curso da história...” (WN, 20), que ele quer agora mexer e remexer com o senso comum do sujeito abstracto da mercadoria indizivelmente bem-intencionado.
Enquanto Thaa é reservado no que diz respeito às consequências práticas da crítica das forças produtivas, Ullrich não conhece limites a este respeito. Com a inimpressionabilidade do eclético, começa alegremente a pintar o quadro de uma situação social que seria “desejável” e aceitável para o sujeito abstracto do dinheiro. A arbitrariedade leviana em relação a todas as “condições” objectivas, que não caracteriza a realidade mas antes a ideologia da subjectividade abstracta, é contrariada pelo facto de o dinheiro estar sempre incluído como condição no país dos sonhos “da utopia real”, isto é, na “troca” de indivíduos abstractos que como condição natural só deve ser levada à sua “verdadeira” medida. Deveria então ser uma “sociedade de comunas associadas e relativamente autónomas”, “na qual existem novamente ‘proporções correctas’ e uma ‘troca individual’, onde em pequenas redes a troca de força de trabalho humana(!) não é calculada através de uma burocracia, onde os ciclos de produtos, energia, transporte são pequenos e claros...” (WN, 134). O crítico das forças produtivas não pode pensar para além da “troca de força de trabalho humana”; uma forma de socialização que não seja a socialização indirecta através de uma esfera de circulação separada não é humanamente possível para a sua subjectividade abstracta. A crença ingénua na regulabilidade de uma economia do valor, que a crítica das forças produtivas partilha com os seus meio-irmãos real-socialistas e esquerdistas, emerge assim na obra de Ullrich como o projecto social eclético de um “sistema misto”, isto é, “um sistema misto em que não prevalece apenas UM (ênfase por Ullrich) princípio” (WN, 129). Porque “do facto de as relações de mercado conduzirem, entre outras coisas, à exploração dos mais fracos, não se pode deduzir sem imaginação que tudo deve agora ser regulado por um plano...” (WN, 128). É tudo tão fácil: “O fluxo da maior parte dos produtos semiacabados é provavelmente mais bem regulado por um mercado comunal com dinheiro como meio de troca... A tudo isto se poderia sobrepor um mercado nacional e mundial para um pequeno número de produtos especializados em termos de quantidade e valor” (WN, 128). É assim que se apresentam hoje as “verdadeiras utopias” de uma esquerda que se propôs – quantas vezes? – “ir para além de Marx”, e que no entanto não passa de um irremediável atraso em relação a esta teoria bem carecida de desenvolvimento. O retorno reaccionário das forças produtivas ao nível de uma historicamente fictícia “simples produção de mercadorias” tem então logicamente de negar também o nível alcançado de socialização mundial para regressar a formas de reprodução puramente nacionais ou regionais: “Acima de tudo a dependência das exportações deve ser quebrada...” (WN, 133). Pode assim fazer-se uma síntese da “utopia” de Ullrich, que em termos de conteúdo económico não vai muito além do programa de Ahlen da CDU de 1946: “É preciso apoiar tudo o que enfraquece as centrais, os monopólios radicais e as grandes redes...” (WN, 129).
Este “modelo” é reformista no pior sentido da palavra. Não só a ideia de uma “pequena” rede através da forma monetária é carne da carne da abstracção do valor, por isso permanecendo presa no horizonte da ideologia burguesa; as abstracções económicas de Ullrich poderiam ser subscritas por praticamente qualquer ordinária associação de classe média ou mente de talhante. Aliás o próprio Ullrich afirma explicitamente que se trata de um projecto dentro da forma de sociedade realmente existente, incluindo os seus males descritos e criticados: “Apesar dos muitos obstáculos já são possíveis pequenas redes, que também estão a surgir juntamente com diversas formas preliminares em comunidades residenciais, em iniciativas de cidadãos ou no movimento das mulheres. Não pressupõem uma mudança da sociedade como um todo, mas são possíveis como ilhas, como bolsas na velha sociedade, que podem gradualmente ter repercussões na sociedade, como já se reconhece em vestígios na Holanda, por exemplo” (WN, 127).
Porque não! O pior, claro, é que uma tal perspectiva sociopolítica pode certamente ser instrumentalizada no processo de crise capitalista para estabilizar a “dominação” existente. As “empresas alternativas” na sua maioria há muito que se tornaram dependentes do “dinheiro do Estado” (e neste aspecto representam apenas uma variante das ilusões da esquerda keynesiana) ou estão endividadas junto dos bancos; só através da “auto-exploração”, do trabalho excessivo e da submissão da própria vida à “empresa”, para além do padrão alcançado do trabalho assalariado, é que tais projectos “insulares” podem vegetar durante algum tempo. A sua principal função nos últimos anos tem sido a despolitização galopante de uma parte da (ex-)esquerda e o desenvolvimento de uma consciência neo-pequeno-burguesa de carácter quase clássico que corresponde à “nova” existência social. A prática já demonstrou o contrário do que Ullrich espera: em muito pouco tempo a “velha sociedade” “reagiu” aos diferentes projectos alternativos e eliminou-os ou obrigou-os a um cálculo económico e a uma adaptação “normais”. Como se sabe o “debate sobre a profissionalização” já está encerrado, e “profissional” significa no contexto da produção de mercadorias em rede a capitulação incondicional à abstracção do valor e portanto do dinheiro, a subjugação das necessidades qualitativas à lógica do trabalho abstracto próprio ou assalariado. A “razoabilidade” da pequena produção de mercadorias, abstraindo do seu aprisionamento na teia monetária do Estado e dos bancos, consiste no máximo, em comparação com o benfazejo anonimato das “grandes redes”, no facto de reduzir a hediondez da relação monetária abstracta a um nível de relações simultaneamente pessoais, tornando-a assim ainda mais repulsiva e imunda.
b) Moral miserável: a “redução da dimensão do fazer”
Seria difícil negar a necessidade de “moral” na vida prática. Nem tudo o que é reconhecido como “correcto” pode ser facilmente traduzido na prática social; e, para ultrapassar os obstáculos sociais que também influenciam o próprio pensar e agir na prática (medo, força do hábito, o interesse particular imediato do indivíduo abstracto etc.), sem dúvida que tem de ser também mobilizado um impulso “moral”. Mas o impulso do “deve” e do “tem de” não pode ir buscar o seu CONTEÚDO directamente a si próprio, nem provém de uma revelação do Além ou de um sistema “inato” de categorias. Por isso se torna problemático quando a “moral” é elevada a um estatuto de conhecimento social que não lhe pertence; isso acontece sempre que é necessário preencher buracos na teoria. Uma esquerda que não consegue pensar para lá da abstracção do valor e que permanece presa no fetiche da mercadoria tem assim de recuar constantemente para trás do materialismo histórico, recorrendo ao improviso de uma qualquer variante do “imperativo categórico” de Kant. A crítica das forças produtivas é a menos capaz de escapar a este destino.
Se o “sujeito automático” do valor foi ideologicamente eliminado como base condicional geral de todos os actos humanos de interesse, e o conceito de contexto de socialização se desintegra numa série de incoerentes lógicas de “domínio” de “subsistemas” sociais, então a questão da MOTIVAÇÃO para estas acções também tem de ser colocada de um modo completamente abstracto. Pretende-se que o fundamento primordial da “dominação” seja a relação abstracta com a natureza, que as ciências naturais e a tecnologia representem um subsistema social autónomo fora da lógica das mercadorias e independente dela. O cadáver está diante de nós, o assassino é conhecido, mas qual foi o motivo? Uma vez que a perspicácia detectivesca da crítica das forças produtivas tem inevitavelmente de falhar neste ponto, nada mais resta do que ir buscar a muleta da moral ao escasso arsenal de métodos do positivismo. O que já não pode ser explicado teoricamente tem de ser preenchido com moral; a própria moral se torna uma pseudo-explicação para os factos que ficaram sem conceito.
A física atómica é naturalmente um exemplo grato. Ullrich apenas menciona brevemente o “produto do conhecimento”, nomeadamente “um ‘exame [Einsicht]’ mais profundo sobre a estrutura da matéria” (TuH, 232). O apostrofar da palavra “exame” já sinaliza que ao interesse humano pelo conhecimento é aqui fundamentalmente atribuído um sentido pejorativo; afinal este interesse pelo conhecimento está relacionado com a “dominação da natureza” e o desenvolvimento das forças produtivas. Além disso é revelador o modo como Ullrich trata a forma social do processo do conhecimento científico: “Este produto do conhecimento satisfaz exclusivamente os interesses de um pequeno grupo da comunidade científica. Nem sequer são feitas tentativas de comunicar estas descobertas também a uma parte da população que paga a investigação” (TuH, 232).
Porquê apenas a uma “parte” da população? E porque é que esta “comunicação” não é feita? Porque é que a ciência se torna o interesse particular de uma corporação segregada? E porque é que esta investigação tem de ser paga em dinheiro através do Estado pela “população”, que continua ela própria a ser cientificamente incompetente? Ullrich não consegue responder a nenhuma destas questões porque não tem noção da divisão social do trabalho da abstracção do valor. A segregação corporativa da ciência, imposta pela socialização negativa do valor, deve assim ser explicada directamente a partir de si mesma, como contexto motivacional de um “tipo especial de pessoas”. Na realidade talvez seja mais verdadeiro para a física nuclear do que para qualquer outra ciência o facto de a segregação corporativa e a simultânea subjugação à lógica geral do dinheiro a terem forçado ao caminho da produção aniquiladora, independentemente da consciência dos seus portadores científicos. Em todas as economias do valor a ciência é também obrigada a integrar-se no processo de valorização. Uma vez que por um lado é absolutamente necessária para a competitividade no mercado mundial, mas por outro lado não é directamente produtiva no sentido da produção de valor, a ciência e até mesmo as ciências naturais são promovidas, mas simultaneamente sujeitas a duras restrições sempre que tal se afigura possível. Também a ciência só pode reproduzir-se através do dinheiro, mas o interesse pelo dinheiro está longe de ser idêntico ao interesse pelo conhecimento. Isto aplica-se ao cientista individual e ao seu interesse em si, mas aplica-se ainda mais à relação entre a ciência e a socialização capitalista. A investigação fundamental, em particular, enfrenta aqui um dilema, a investigação física como qualquer outra. No sentido de um interesse comercial específico, a investigação que tem algo de “lúdico” e que permanece completamente opaca e vaga no que respeita à aplicabilidade tecnológica rentável dos seus resultados é difícil de compreender. Nas economias soviéticas este obstáculo é ainda mais acentuado, uma vez que os estímulos económicos para as inovações tecnológicas a curto e médio prazo são eliminados no âmbito do “mercado planificado” e a concorrência é muito mais fácil de gerir nestas condições através da deterioração da qualidade, da finta formal às especificações do planeamento etc. Por isso a reprodução da economia do valor e o seu interesse limitado ao dinheiro têm necessariamente de encarar com cepticismo sobretudo a investigação fundamental. Esta contradição é actualmente evidente na Alemanha, por exemplo, na investigação espacial. Agora que a vantagem dos EUA sobre a Europa neste domínio diminuiu, parece haver aqui uma grande oportunidade para a competitividade europeia e em especial alemã. Mas há muitas hesitações e nada acontecerá sem programas governamentais. Isto porque a investigação fundamental no espaço está demasiado afastada da lógica empresarial: “A indústria alemã é no mínimo céptica em relação às experiências científicas no espaço... As oportunidades são reconhecidas, mas não se acredita numa relação custo-benefício justificável. A disponibilidade da indústria alemã para participar em futuros programas é por conseguinte hesitante” (W. Osel, in: Handelsblatt de 6.3.87).
É pois evidente que a investigação fundamental, que é a mais afastada da concretização imediatamente rentável, continua a depender em grande medida da generalidade abstracta do Estado numa economia do valor. Por um lado o Estado é menos directamente dependente de requisitos puramente económicos, mas por outro lado não é menos estranho e externo ao interesse puramente científico no conhecimento. Como aparelho corporativo separado, que representa a economia nacional abstracta do valor externa e internamente como uma generalidade abstracta, tem de se entender em grande medida como o executor da ultima ratio de toda a sociedade de classes: a violência. A sua maior disponibilidade para financiar a investigação fundamental é por isso em grande parte estruturada directa e indirectamente por interesses militares; esta ligação é particularmente evidente em Estados com uma economia parasitária de potência mundial, como a Alemanha fascista ou os EUA de hoje. Este contexto global caracteriza naturalmente também a consciência dos próprios cientistas, para os quais o interesse científico no conhecimento, o interesse subjectivo no dinheiro e a integração existente no complexo militar-industrial ou na investigação militar estatal estão inconscientemente ligados, para formar um contexto único e aparentemente imutável de condições. À superfície da consciência fetichista do valor, as contradições deste contexto aparecem então como o problema moral subjectivo do indivíduo científico abstracto, que só pode reagir com recusa e portanto eliminação do trabalho científico ou com cinismo. Com base na sua fonte, Wagner (F. Wagner, Die Wissenschaft und die gefährdete Welt. Eine Wissenschaftssoziologie der Atomphysik [A ciência e o mundo em perigo. Uma sociologia da ciência da física nuclear], Munique 1964), Ullrich refere a “estreiteza de espírito” de “pais da bomba atómica” como Teller e Oppenheimer e cita Enrico Fermi, cheio de desgosto moral, que terá dito: “Deixem-me em paz com os vossos remorsos, isto é uma física tão bonita!” (TuH,234s.). Este bon mot malicioso exprime não só um cinismo sem fundo, mas também a impotência. E porque é que o físico nuclear Fermi tem mais consciência das contradições e das consequências destrutivas da economia do valor do que o sociólogo Ullrich? Em vez de nos sensibilizar para a situação das ciências e sobretudo da investigação fundamental, que em última análise deriva das contradições da abstracção do valor (o que é sempre o primeiro passo para a abolição de um estado de coisas tão intolerável quanto desde logo incompreensível), a redução de Ullrich em termos de teoria dos sistemas separa a ciência do seu contexto causal social, para que possa atacar ainda mais desinibidamente os indivíduos científicos abstractos quase como “sujeitos moralmente degenerados”.
É claro que Ullrich também sabe que o seu deslize para a mera moralização não só poderia provocar a acusação de farisaísmo, como também cai fora da “cientificidade” no entendimento positivista. Por isso tem de apresentar uma justificação “científica” adicional para a anormalidade moral dos físicos nucleares. E não lhe ocorre nada mais estúpido do que psiquiatrizar o seu “instinto científico”, assumido como um tipo de comportamento que se desvia da “normalidade”! Como é sabido, uma das conquistas da Nova Esquerda e do movimento estudantil na sua “crítica da ciência burguesa” foi ter exposto a completa ignorância dos contextos sociais no método positivista da psiquiatria, e ter mostrado como as consequências da socialização capitalista no indivíduo são “tratadas” como sendo seu defeito subjectivo desligado do contexto social constitucional. A psiquiatrização de comportamentos políticos e sociais desviantes, na União Soviética e não só, foi também objecto desta crítica. Ullrich, movido pela lógica interna da sua aconceptual redução da relação de valor à teoria do sistemas, é agora forçado a uma definição psiquiátrica muito semelhante da “pulsão científica” da comunidade científica. Com derivações vagas da subjectividade científica que lembram as categorias psicanalíticas, ele aproxima-se desta psiquiatrização e afirma “que para a comunidade científica existe uma base motivacional relacionada com a situação e uma contenção da consciência que talvez só possa ser encontrada de forma análoga numa situação do jogo infantil de esquecimento do mundo, com a única diferença de que o jogo do esquecimento do mundo dos cientistas que permaneceram infantis pode ser um jogo destrutivo com o mundo” (TuH, 229).
Uma vez que a “pulsão científica” é aqui descrita como uma espécie de bloqueio numa situação infantil, é naturalmente fácil deduzir como antítese uma consciência não-científica de uma “personalidade madura”, que está completamente absorvida na mera reprodução da sua vida e não desenvolve qualquer interesse mais profundo pelo conhecimento. O que nos leva de novo aos famosos agricultores, artesãos etc. como pequenos produtores de mercadorias. Ullrich já deixou claro que na realidade tem em mente esta miserável contra-imagem, quando deriva seriamente a “estreiteza de espírito” da consciência do cientista não das abstracções e separações da economia do valor, mas da liberdade socialmente proporcionada de não se preocupar com a reprodução material quotidiana: “Uma reprodução da vida não assegurada não permite a concentração de interesses num domínio isolado das necessidades imediatas da vida. Mas se as necessidades da vida tiverem sido ‘saciadas’ por um pagamento suficientemente elevado, fica livre uma ‘margem’ para a concentração de interesses num domínio mais distante da vida. Através da satisfação ‘evidente’ das necessidades ‘normais’ da vida, o conhecimento e a consciência deixam de ser necessários para este domínio. O interesse, o conhecimento e a consciência podem ser restringidos à ‘situação de jogo’ do trabalho científico” (TuH, 227).
Para além do facto de o contexto de relacionamento lógico-histórico da economia do valor ser apresentado como um mero “pagamento elevado”, com a típica superficialidade positivista do vulgar sociologismo académico mediano, o que transparece aqui mais uma vez é a maneira como o crítico das forças produtivas é animado pela vontade de resolver as contradições ao contrário: ele troca assim a forçosa estreiteza do sujeito científico abstracto na estrutura da abstracção do valor apenas pela estreiteza ainda mais brutal do sujeito pré-científico e pré-industrial de um nível de socialização muito inferior. Que perspectiva tão baixa e desprezível, que humanismo tão bonsai, quando nada mais surge do que o lema bíblico de “comer o pão com o suor do rosto”! Quando a cientificidade e o seu interesse abstracto pelo conhecimento são exorcizados, quando a consciência é empurrada de volta para o curral da mera reprodução da vida e da absorção no eterno trabalho árduo, então, de acordo com esta dicção, as “tretas infantis” da “pulsão científica” também podem ser arrancadas do chão. O ser humano adulto normal revela-se assim de facto o produtor de mercadorias não científico e pré-científico; não é por acaso que Ullrich se opõe sempre que pode ao “desprezo pelo modo de vida rural e artesanal” (WN, 15). A “idiotice da vida rural” (Marx) seria evidentemente uma barreira bastante segura contra qualquer “pulsão do conhecimento” que se estendesse para além de uma perspectiva de estábulo.
A partir desta contra-imagem regressiva, a “obsessão” dos cientistas, que emana do seu interesse pelo conhecimento no âmbito da sua subjectividade abstracta específica, deixa de ser uma mera metáfora no sentido moderno e volta a ser tomada à letra num sentido quase medieval. Se Ullrich já tinha reconhecido nos magos pré-históricos o condenável desejo de “dominar o conhecimento” contra a natureza, os cientistas naturais modernos têm agora de ser novamente condenados com a excomunhão que anteriormente tinha levado à queima de bruxas e feiticeiros. Seguindo a sua fonte, Wagner, Ullrich combina a psiquiatrização dos sujeitos científicos com a sua mistificação como “possuídos, mágicos, iludidos” (TuH, 234), por mais incrível que isto possa parecer à primeira vista. O crítico das forças produtivas detém-se apenas brevemente nas dúvidas científicas sobre a sua abordagem mais que peculiar, para depois continuar a mistificação e a psiquiatrização de forma ainda mais desenfreada: “É provavelmente supérfluo sublinhar que ‘pulsão’ e ‘obsessão’ são categorias inadequadas ... No entanto se tentarmos primeiro classificar os processos ao nível dos fenómenos, os termos “pulsão” e “obsessão” impõem-se literalmente na descrição do comportamento dos membros da comunidade científica. Apesar de todas as minhas reservas, gostaria portanto de apontar uma analogia com o comportamento patologicamente compulsivo neste contexto. O exemplo que mais uma vez se sugere aqui, na comparação com o comportamento dos físicos nucleares, é a 'prazerosa' e 'excitante aventura' de atear fogo dos pirómanos” (TuH, 235).
Basta parar neste ponto para resumir a escassa explicação de Ullrich sobre a relação entre os indivíduos científicos e o poder destrutivo da física. Uma vez que não ultrapassa a subjectividade abstracta do dinheiro que medeia todos os processos sociais, incluindo a ciência, o problema da ligação motivacional continua a ser para ele o problema dos INDIVÍDUOS MORALMENTE ABSTRACTOS. Os cientistas não passam neste teste moral; pelo contrário, desenvolvem um impulso patológico para o conhecimento ou estão sujeitos a uma “obsessão” mágica. A base material para o livre desenvolvimento desta obsessão amoral e instintiva é fornecida pelo “alto salário” dos cientistas, ou seja, pela sua isenção das preocupações adultas “normais” de um pequeno produtor de mercadorias completamente enredado na sua mera reprodução.
Se esta “explicação” for transferida do indivíduo para a sociedade no seu conjunto, então, de acordo com esta dicção, pode afirmar-se como fórmula geral que o processo de cientificização sofre de uma “discrepância entre o fazer, a disposição e a consciência, a responsabilidade” (TuH, 230). Não é a contradição completamente ignorada entre a abstracção do valor e o desenvolvimento das forças produtivas, mas o contraste entre “viabilidade técnica” e “responsabilidade moral” que é suposto ser o sinal decisivo da socialidade moderna. Ullrich remete para a filosofia da bomba atómica de Günther Anders, que fala de um “desnível prometeico”, ou seja, de uma incongruência crescente entre o “alcance das faculdades” ou o “volume do fazer e do pensar”, por um lado, e a capacidade de “imaginar” ou “sentir”, por outro (citado em TuH, 189). Numa forma simplificada e vulgarizada, esta tese encontrou o seu lugar na filosofia burguesa da crise, geralmente inflacionada como um contraste entre o “imenso progresso técnico do homem” e a sua simultânea estagnação no “nível moral da Idade da Pedra”, tornando-se praticamente um topos da consciência teórica fetichista do valor. Mas em última análise não passa do lugar-comum de que o “homem” é simplesmente um “animal moral” e deve portanto ser compulsivamente disciplinado.
São quase evidentes as consequências sócio-políticas práticas que Ullrich é obrigado a retirar da sua caracterização psiquiatrizadora moralista das ciências naturais modernas. Relativamente à posição de Anders, afirma: “Se isto for correcto, então uma congruência de faculdades desejada pelo ser humano só seria concebível na redução da dimensão do fazer” (TuH, 189). Ullrich confirma também noutros textos que é precisamente esta a sua conclusão: “Uma vez que a discrepância entre a capacidade de produzir e a capacidade de assumir responsabilidades não pode ser colmatada nem pela expansão individual nem pela institucional, o aparelho técnico de meios tem de ser limitado e reduzido” (in: Techniksoziologie, 203). As pessoas em geral e os cientistas em particular são fracassos morais e, uma vez que a moral e a tecnologia científica só se podem cruzar no indivíduo abstracto, a “redução do aparelho técnico de meios” da sociedade tem de ser, ao mesmo tempo, uma sanção contra os sujeitos científicos abstractos. Ullrich também não se esquiva a esta última consequência: “Para resumir e abreviar ... pode provavelmente dizer-se que, para a constelação actual de uma tecnologia tornada possível pela ciência, a sociedade, no interesse da sua capacidade de viver e sobreviver, deve considerar à partida o ‘impulso de investigação’ da comunidade científica como uma ‘doença’ que tem de ser curada, contida ou pelo menos reduzida a um nível ‘viável’” (TuH, 237).
Vamos então levar para as clínicas psiquiátricas os físicos nucleares e outros investigadores científicos fundamentais demasiado curiosos, que querem mexer na obra de Deus e ofender e pecar contra a senhora “Natureza”? Mas acima de tudo: quem são os juízes? Uma ditadura popular populista sob a direcção de Ullrich e companhia, por exemplo, uma polícia estatal anticonhecimento segundo o modelo de “Fahrenheit 451”, numa sociedade calvinista ou pietista de pequenos produtores de mercadorias que já não querem tolerar qualquer comportamento que se afaste da imagem da sua estreiteza social? A ideia é simultaneamente utópica e absurda no pior sentido possível. Só um ideólogo neo-pequeno-burguês como Ullrich, abandonado por todos os bons espíritos, poderia pensar em colocar o interesse humano pelo conhecimento da natureza sob curadoria e controlo policial, simplesmente porque ele próprio não consegue ultrapassar os fetichismos da mercadoria e do dinheiro no seu pensamento. Com efeito, nada mais se esconde por detrás do surto moral altamente embaraçoso e da condenação psiquiátrica do “instinto científico” do que o desejo altamente tacanho de obrigar as forças produtivas sociais altamente desenvolvidas, incluindo a sua base científica, a voltarem para o colete de forças do valor e do seu princípio abstracto e negativo de socialização. A subjectividade abstracta do dinheiro, que se tornou selvagem e se esquiva às suas próprias consequências sociais, estaria mais disposta a largar toda a ciência moderna como uma batata quente do que a dar o salto para fora da economia do valor. O valor É esta subjectividade abstracta e material, em função da qual apenas o indivíduo humano abstracto pode e quer compreender a sua própria subjectividade. Para Ullrich, é claro, esta seria a melhor maneira de conseguir tudo; a “redução do aparelho técnico de meios” estaria em completa harmonia com o princípio do modo de produção descentralizado e em pequena escala, e o ser humano normal produtor de mercadorias, que nunca olha demasiado fundo para o decote da natureza, poderia sentar-se no seu gordo traseiro de artesão e agricultor para todo o sempre satisfeito consigo próprio.
c) Moral da miséria: a “redução das necessidades”
Se a “dimensão do fazer” deve ser restringida e diminuída, se o “aparelho técnico de meios” deve ser reduzido, então surge naturalmente a questão das NECESSIDADES que são satisfeitas através deste aparelho tecnológico científico. Como é sabido estas necessidades, sobretudo nos países industrialmente desenvolvidos, não são de modo nenhum apenas as da reduzida classe alta, mas também as das famosas “grandes massas”.
Mas surgiu aqui uma certa confusão de termos. Por um lado, é difícil objectar por princípio a um maior desenvolvimento das necessidades e à melhoria das condições gerais de vida, mas, por outro lado, há também razões suficientes para criticar numerosas necessidades surgidas nas economias do valor industrializadas, do ponto de vista de uma “boa vida”. Nas antigas sociedades pré-capitalistas, as pessoas ainda podiam dedicar muito tempo a banquetes, a uma fruição sensível abrangente da comida, da bebida e das culturas associadas etc. – se houvesse alguma coisa para comer ou se se fosse um “senhor”. Nas economias do valor capitalistas, as forças produtivas sociais estão tão desenvolvidas que uma alimentação abundante se tornou uma questão natural, pelo menos para a grande maioria; é claro que isto já não se aplica a uma minoria crescente da “nova pobreza”, sobre a qual falam muito as cozinhas de sopa dos pobres da Chicago da era Reagan, tal como os “restaurantes do coração” para os novos pobres de França, os reformados da Grã-Bretanha da gloriosa Thatcher que morrem de frio nas suas camas, e os desempregados de longa duração da Alemanha Ocidental cujos filhos matam a sede com água da torneira mais ou menos tóxica. Em contraste com todos os modos de produção pré-capitalistas, esta “nova pobreza”, como última conquista do mercado livre, já não tem a sua causa na falta de capacidade de produção, que levava a fomes periódicas mesmo em populações comparativamente pequenas, mas apenas na lógica social da economia do valor, que, apesar de uma relativa abundância de bens de consumo, só reconhece as pessoas como unidades abstractas de dispêndio de “força de trabalho” e empurra rapidamente para o nível de subsistência todos os indivíduos que caem fora deste processo de valorização. O menos mau ainda é a canalização das próprias necessidades no seu conteúdo. A produção “cria” necessidades não só no sentido de que a abundância de novos produtos criados pelo sistema industrial também desperta a necessidade deles, mas também na medida em que o próprio processo de produção molda as pessoas, assim forçando as suas necessidades a um espartilho determinado externamente. Os exemplos não faltam. A necessidade de se intoxicar parece absurda à primeira vista, mas torna-se uma realidade social na medida em que a tensão cada vez mais insana do processo de esgotamento abstracto faz com que uma estimulação permanente através da cafeína, da nicotina etc., à qual o corpo dificilmente reage, se torne um hábito maciço e, inversamente, a subsequente curva de “relaxamento” só possa parecer suportável com álcool ou mesmo embriaguez. Por outro lado, a contrapartida da “nova pobreza” no consumo de luxo cada vez mais elegante até às classes médias abastadas é completamente desprovida de sentido devido à sua desconexão com o potencial produtivo da sociedade; a “necessidade” de se deslocar a Munique num Porsche para beber café ou de transformar os filhos em exibições ambulantes de marcas caras mostra apenas o facto pouco surpreendente de que numa economia de valor a vida, mesmo a dos “ricos”, se perde em coisas mortas, não só no processo de trabalho, mas também no processo de consumo, que tem de obedecer à mesma lógica abstracta.
Não há dúvida portanto que é necessária não só uma crítica da produção, mas também uma crítica do consumo. Esta falharia naturalmente o seu objectivo se não fosse elevada a uma crítica da própria abstracção do valor subjacente. Com efeito uma crítica isolada das necessidades tem de se transformar imediatamente num enfadonho sermão sobre a moral, ou seja, tem de se dirigir ao indivíduo abstracto não percebido como tal com um pedido de alteração das necessidades, sem tocar ao mesmo tempo na base social condicional dessas “falsas” necessidades. Também aqui a moral se torna uma muleta para de algum modo lidar externamente com o não-percebido. Acima de tudo, porém, o moralismo aconceptual corre o risco de deitar fora o bebé com a água do banho e, ao criticar as necessidades “falsas”, auto-destrutivas e barbarizantes, atacar também o NÍVEL DE NECESSIDADES como um todo. Tal como existe uma diferença essencial entre o nível atingido das forças produtivas enquanto potência social e o carácter de objecto dos meios de produção moldado em termos de economia do valor, também existe uma diferença entre a realização genuína do nível social de necessidades e a estrutura de necessidades objectivamente canalizada e moldada em termos de economia do valor.
A crítica da “fast food” não nos deve levar de volta a comer nabos, nem a crítica do transporte motorizado privado nos deve levar de volta aos carros de bois merovíngios. A sanita com autoclismo para todos, as casas de banho ladrilhadas, os duches diários, as refeições quentes diárias, as máquinas de lavar roupa, os livros (seja qual for o seu conteúdo) por menos de uma hora de salário, uma muda de roupa lavada etc.: muito poucos críticos das necessidades têm hoje plena consciência de como as necessidades expressas nestas coisas quotidianas eram absolutamente inatingíveis para a esmagadora maioria da população ao longo da vida em todas as épocas pré-industriais. Marx tinha razão quando falava da “missão civilizadora” do capital, porque só através da formação transitória do valor é que o laço aparentemente inquebrável com a natureza foi verdadeiramente cortado e se criou um nível de necessidades humanas que já não pode ser retirado. Hoje o momento transitório atingiu o seu ponto final; o valor revela as consequências destrutivas da sua real subjectividade. É pois necessário libertar o nível de necessidades atingido dos constrangimentos da abstracção do valor, para uma economia do valor de uso de socialização directa.
Mas os críticos das forças produtivas encontram-se aqui numa situação altamente embaraçosa. Pois naturalmente sabem, pelo menos instintivamente, que a propaganda aberta de uma redução do nível de necessidades é impossível. Por enquanto isto não constitui uma grande dificuldade para os VERDES, enquanto crias políticas directas de um movimento de oposição cego e fetichista do valor. O facto de os seus programas coloridos serem fortemente críticos das forças produtivas não os impede de se apressarem a exigir a preservação do nível de necessidades de maneira popular: como todos os políticos, limitam-se a prometer o céu azul e a prometer eliminar as consequências destrutivas do dinheiro com os meios de dinheiro etc. Mas a situação é um pouco mais incómoda para o TEÓRICO crítico das forças produtivas, porque ele tem de enfrentar a desagradável tarefa de harmonizar a crítica das forças produtivas com o nível de necessidades industriais argumentando logicamente. Infelizmente esta tarefa é impossível. Porque, depois de ter sido apagado o núcleo social real do problema da abstracção do valor e da lógica do trabalho abstracto ou transformado na relação abstracta com a natureza, o resultado é um automovimento lógico da argumentação que não pode parar na questão das necessidades. A crítica das ciências naturais (em vez do dinheiro e do trabalho assalariado) conduz necessariamente à crítica das forças produtivas, daí à propaganda da pequena produção descentralizada de mercadorias e, através da “redução do aparelho técnico de meios”, por fim necessariamente também à “redução das necessidades”, ou seja, à redução do nível de necessidades historicamente alcançado. A pequena produção com pequenos meios acaba por permitir apenas pequenas necessidades, não só num sentido puramente quantitativo mas também qualitativo.
Os críticos das forças produtivas são correspondentemente hesitantes na sua abordagem da fatal questão das necessidades. Thaa, que permanece sempre vago e oracular nas suas consequências sociopolíticas práticas, aborda sobretudo a questão das necessidades humanas NO ÂMBITO do processo de produção imediato, para o “trabalho com sentido” etc. (abordarei esta questão em pormenor na última secção). No que diz respeito à questão das necessidades de consumo e do nível cultural da vida quotidiana e da sua ligação indissolúvel a um nível alcançado de desenvolvimento das forças produtivas, ele permanece nobremente silencioso ou refugia-se repetidamente nas fórmulas vazias e idealistas típicas da Teoria Crítica, por exemplo, apelando no final do seu livro a “reivindicações de felicidade no sentido mais amplo” e à “riqueza de uma sociedade reconciliada com as pulsões do indivíduo” (HaV,256). Ao mesmo tempo Thaa rejeita definitivamente as tendências “ascéticas” do movimento alternativo e um rigorismo “ecológico” que pretende subjugar as necessidades ainda mais do que o “fetiche da realização” (HaV, 255 s.), reivindicando já na introdução da sua obra um ponto de vista que pode “conduzir às causas da destrutividade das sociedades industriais modernas”, “sem aderir a castelos no ar alternativos ou a tempos idealizados de ontem” (HaV, 8). No entanto Thaa não sabe como conciliar tudo isto e torná-lo praticamente compatível com a crítica das forças produtivas. E, como não está tão interessado nas consequências programáticas de uma política social prática, pode dar-se ao luxo de ser tão oracular. Assim até certo ponto o carácter descomprometido da crítica teórica das forças produtivas pode continuar a acompanhar a arbitrariedade teórica do programa dos Verdes. O dilema só se abre quando a crítica das forças produtivas é pensada até à sua conclusão lógica como programa social.
Como acontece quase sempre, é de novo Otto Ullrich que leva a concretização ao ponto do embaraço. Também ele começa com promessas tranquilizadoras relativamente ao nível de necessidades, quando exige para o seu programa de pequena produção de mercadorias que “a procura volte a determinar a produção, sem ter de assumir em troca a possível escassez e estreiteza de espírito pré-industriais” (WN, 9). A “redução” das forças produtivas deve assim ser compatível com uma “vida boa”; Ullrich afirma que “na nova sociedade, muitas características essenciais do sistema industrial serão REDUZIDAS (ênfase de Ullrich) e será tomada uma direcção qualitativamente nova. Os governantes sem imaginação das corporações, dos poderes centralizados e das grandes máquinas só podem pensar em ‘voltar atrás’: voltar às árvores, voltar à Idade Média ou voltar à natureza. Esse regresso não é de todo o objectivo...” (WN, 113). Não é mesmo? Uma produção de valor de uso libertada da abstracção do valor poderia satisfazer esta exigência, mas a crítica das forças produtivas bloqueou esse caminho. Por isso temos de perguntar para onde vai a “imaginação” de Ullrich, porque uma “vida boa” também pode naturalmente ser definida de maneira muito arbitrária, sobretudo a partir da cadeira de sociólogo do alquimista social crítico das forças produtivas. E Ullrich não nos desilude: apesar de todas as suas promessas, a sua imaginação inicia imediatamente uma marcha atrás sem inspiração, de volta à escassez e à estreiteza de espírito do nível de necessidades pré-industrial.
Encontramos em primeiro lugar os inevitáveis nativos americanos e sábios chineses, familiares a qualquer etnólogo amador e esoterista alternativo, que na “reconciliação com a realidade” neofilosófica da ex-esquerda alemã ocupam agora o lugar dos Winnetou da nossa infância: “Esta convicção da igualdade de toda a vida na terra era particularmente pronunciada nas culturas indígenas da América do Norte ou na China. Estas religiões e ideias, de que hoje só nos podemos rir, eram muito 'orientadas para a realidade' e permitiam às pessoas levar uma vida adequada (!), não autodestrutiva, no mundo natural a que elas próprias pertenciam” (WN, 43).
Tal como muitos dos novos amigos índios e chineses, Ullrich também ignora a ligação entre as ideias místicas naturais etc. acima mencionadas e uma determinada fase da socialidade humana ou forma de socialização, que por sua vez estava inseparavelmente ligada a um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas e por conseguinte ao nível das necessidades. As “ideias” não podem ser arbitrariamente desligadas disso e transferidas para qualquer outro nível de necessidades, para além do facto de as formas sociais dos índios e dos chineses serem afinal fundamentalmente diferentes, e dentro dessas diferenças apresentarem traços constitutivos que nenhuma pessoa moderna poderia ou quereria tolerar. É sempre espantoso como a arbitrariedade positivista consegue, sobretudo no caso da cultura chinesa, separar simplesmente as ideias individuais consideradas “humanas e amigas da natureza” da forma de socialização despótica, sangrenta e cruel do “modo de produção asiático” que nega toda a individualidade. Para o nosso contexto é suficiente salientar que a questão da “adequação” da vida não está sujeita ao julgamento de um modo de pensar arbitrariamente eclético, que recolhe das épocas e culturas da humanidade o que considera “adequado”, mas sim à lógica interna da sua própria socialidade histórica, apenas no interior da qual a questão da “adequação” pode ser discutida. “Adequados” no sentido dos índios e dos chineses são níveis de necessidades que correspondem às suas “ideias”, simplesmente porque reflectem os seus níveis de desenvolvimento das forças produtivas. E estes níveis de necessidades são “escassos” e “tacanhos” por essa mesma razão; na cultura chinesa, enquanto sociedade de classes mais desenvolvida do que a dos índios norte-americanos, havia naturalmente um nível de necessidades completamente diferente e muito mais elevado para as classes dominantes do que para os produtores camponeses directos. Mas Ullrich também ignora sistematicamente este problema, que está indissociavelmente ligado ao desenvolvimento das forças produtivas. Mesmo que ele queira evitá-lo: não é possível regressar às “ideias” das culturas anteriores sem ter de aceitar ao mesmo tempo as suas inferiores forças produtivas, e por conseguinte a sua socialidade de classes, incluindo o nível de necessidades “magro” e socialmente muito desnivelado.
A imaginação de Ullrich leva-nos a passo apressado dos índios e chineses até à vida alegre da Idade Média. Neste passado ele vê não só ideias “adequadas” sobre a relação entre o homem e a natureza, mas também momentos imediatamente realizados de uma “boa vida”. O fundo de tempo livre para todos, transferido para o futuro por utopistas como Marx, já teria sido uma realidade no passado: “Na Idade Média havia 189 feriados, em toda a Europa não se trabalhava mais de metade dos dias do ano” (WN, 58). Mais uma vez Ullrich ignora o nível de necessidades real, e portanto o processo da vida real de uma formação social passada, para extrair um momento abstracto (“muitos feriados”) e glorificar assim um passado comparativamente miserável. A sociedade de agricultores da Idade Média estava condenada à inactividade no sentido da sua reprodução real, não só nos feriados, mas durante todo o inverno. É claro que isto não significava de modo nenhum que o fundo de tempo exteriormente “livre” tivesse algo a ver com uma “boa vida”. Invernos particularmente longos e por isso períodos particularmente longos de inactividade forçada nos campos conduziam rapidamente a fomes devastadoras; muitas pessoas morriam regularmente congeladas nas suas cabanas se não conseguissem arranjar lenha suficiente. Durante este tempo “livre” as pessoas tinham muitas vezes de reparar laboriosamente as suas ferramentas rudimentares e escassas, e no resto do tempo encolhiam-se à volta dos fogões, mais como animais do que como seres humanos altamente desenvolvidos que utilizam um rico fundo de tempo para se dedicarem à arte e à ciência etc. No verão e no outono, os feriados da Igreja eram muitas vezes um positivo infortúnio, por exemplo, quando a colheita tinha de ser recolhida perante a ameaça de tempestade e era necessário obter autorização dos padres e das autoridades eclesiásticas. Os camponeses medievais, enquanto produtores directos, não dispunham de tempo livre PARA SI PRÓPRIOS, mas estavam à mercê tanto do ciclo anual da natureza como dos poderes irracionais da socialidade feudal, num nível de necessidades miserável. E a razão última destas condições sociais é precisamente o estado de desenvolvimento das forças produtivas, que determina o nível de necessidades e as relações sociais. Os 189 feriados não podem ser vistos isoladamente de factos como a agricultura primitiva de corte e queimada, os grupos de caça feudais que arbitrariamente destruíam as colheitas, o costume de cortar orelhas e narizes em caso de delinquência ou de defecar da janela para a rua. Não passa de magia preguiçosa quando Ullrich imagina que pode trazer de volta o tempo abstracto dos “189 feriados”, fazendo recuar o desenvolvimento das forças produtivas, sem ter de trazer de volta o nível de necessidades e as condições sociais correspondentes da Idade Média.
Mas não é tudo, a viagem fantástica ao passado leva-nos ainda mais longe, a condições quase paradisíacas: “A comparação é ainda menos favorável quando as sociedades industriais são comparadas com as culturas ‘primitivas’” (WN, 59). Ullrich baseia-se na afirmação de Mumford de que “durante muito tempo ... a 'produção material' desempenhou apenas um papel muito subordinado no desenvolvimento da humanidade” (WN, 59) e no livro de 1972 “Stone Age Economics”, de Marshall Sahlin, que afirma, a propósito das sociedades primitivas de caçadores-recolectores, que “dorme-se mais per capita por ano do que em qualquer outra forma de sociedade” (WN, 59).
Para as sociedades de caçadores-recolectores, no entanto, é ainda mais verdade do que para os camponeses da Idade Média que o seu tempo de não-trabalho não é de modo nenhum a riqueza de um fundo de tempo para moldar livremente as suas vidas, mas pelo contrário representa apenas a baixa capacidade de um processo de metabolismo com a natureza e portanto uma ausência de necessidades. A manada passou, a barriga encheu-se momentaneamente, os nódulos radiculares da vizinhança foram desenterrados; por isso, não há mais nada a fazer e as pessoas “dormem” mesmo durante o dia, caem numa espécie de sonolência. O horizonte temporal é tremendamente reduzido, como no caso das crianças pequenas, e não se estende para além das próximas horas ou talvez do dia seguinte, e esta gama limitada de pensamento, que ainda não passou pelo “processo da civilização” (Norbert Elias), corresponde à gama igualmente limitada de trabalho produtivo. O facto de tais condições paradisíacas corresponderem a um nível de necessidades extremamente baixo também se torna claro para Ullrich quando ele evoca com ingenuidade bíblica a mais inocente carência à maneira de Diógenes: “As necessidades que devem ser absolutamente satisfeitas para que uma pessoa sobreviva são muito poucas em número e em ‘nível’. Limitam-se à alimentação e à atenção carinhosa de outras pessoas. Até o vestuário e o abrigo variam muito. Mesmo com frio glacial, houve pessoas que viveram sem roupa, por exemplo na Terra do Fogo” (WN, 102).
Chegamos assim ao destino da viagem fantástica, um destino a que no entanto até os sábios do Oriente são capazes de franzir um pouco o sobrolho. Não é por acaso que a imaginação do crítico das forças produtivas fugiu com ele para trás, e não é por acaso que, depois da promessa que fez no início de que não queria regressar à “escassez e à estreiteza de espírito pré-industriais”, acabou por chegar à propaganda da vida modesta e dos habitantes nus da Terra do Fogo. A sobrevivência de “um ser humano” não depende apenas da pura ingestão física de alimentos e de um conceito abstracto de “atenção carinhosa”, mas também do seu estado cultural e portanto do nível de necessidades correspondente a um determinado desenvolvimento das forças produtivas. O almoço da “Idade da Pedra” e a subsequente atenção carinhosa da mamã da Idade da Pedra deixariam provavelmente doente até o mais duro vagabundo duma estação de comboios do século XX. Ullrich trabalha com a pobre abstracção de uma imagem não histórica do homem, porque não consegue acomodar de outro modo as consequências da crítica das forças produtivas. Como é o destino do mau utópico, ele teve de moldar os seus indivíduos reais de forma assim eclética e esticá-los na cama de Procrustes das suas fantasias de necessidade como o faz com o seu modelo de sociedade inventado.
Depois de várias manobras de evasão, Ullrich revela abertamente que uma das consequências práticas da crítica das forças produtivas é a redução drástica do nível geral das necessidades. Este facto já foi sintetizado numa fórmula geral por Sahlin, que é citado por Ullrich em concordância: “Há dois caminhos possíveis para a prosperidade. As necessidades podem ser 'facilmente satisfeitas' a um elevado NÍVEL DE PRODUTIVIDADE – mas também a um baixo NÍVEL DE NECESSIDADES” (citado em WN, 59, ênfase de Ullrich).
De facto, se a “prosperidade” for definida do ponto de vista de Diógenes, então a água, o pão e um barril são suficientes para garantir uma “boa vida”. O único problema é que, com um nível de necessidades tão baixo, o “tempo livre” torna-se inútil e pode na melhor das hipóteses ser utilizado para dormir. O ponto de vista de que o homem não deve perder-se nas coisas é certamente correcto; no entanto ele não se perde porque possui demasiadas coisas devido a forças produtivas “demasiado elevadas”, mas porque, enquanto produtor abstracto de valor, está desligado do potencial produtivo da sua própria socialidade e só pode apropriar-se das coisas como produtos de consumo “mortos”. Ullrich só consegue combater impotentemente a alienação do consumo abstracto a um nível elevado através da redução das necessidades, porque não compreende a lógica da economia do valor. Isto torna-se particularmente claro quando compara abstractamente o fundo de tempo dos indivíduos nas eras pré-industriais com o de hoje: “As pessoas em países com elevada produtividade do trabalho, ou seja, com a capacidade tecnológica de produzir muitos bens em pouco tempo, têm cada vez menos tempo... Com o aumento da produtividade do trabalho, muitas das actividades anteriormente prazerosas são reduzidas ou deslocadas, uma vez que não podem ser intensificadas com uma maior utilização de bens. Como resultado as pessoas estão a tornar-se mais agitadas, mais superficiais e menos sensíveis. O tempo cultural é também um dos perdedores na nova distribuição do tempo. A velha esperança de que as pessoas encontrariam tempo para a filosofia e a arte através do desenvolvimento das forças produtivas não está a ser cumprida, especialmente no caso de uma elevada produtividade material” (WN, 104s.).
É preciso insistir repetidamente junto dos críticos das forças produtivas: O capitalismo e a revolução das forças produtivas que ele provocou foram um avanço tremendo, um impulso civilizacional irreversível que, apesar de todas as crueldades da “acumulação original”, tirou pela primeira vez na história a vida quotidiana real das grandes massas de uma existência quase pecuária, imunda, miserável e desnecessária. Se os críticos das forças produtivas sublinham a vida privilegiada da minoria dos artesãos urbanos e dos grandes agricultores ou as filosofias idealistas das classes dominantes do passado em contraste com a “vida moderna”, a sua absoluta “falta de imaginação” tem de ser ainda mais desagradável na comparação com a vida miserável da grande maioria do “povo pobre” dos produtores imediatos como ela se desenrolava nessas épocas. Mas independentemente disso a “pressão do tempo” e a perda do “tempo cultural” nos países industrializados, tanto do Ocidente como do Leste, não se devem hoje a uma “elevada produtividade do trabalho”, mas sim à total subsunção dos indivíduos ao processo de dispêndio do trabalho abstracto. Esta subsunção estende-se não apenas ao processo de trabalho imediato em si, mas a todo o processo de reprodução, e por conseguinte também ao consumo e às necessidades que lhe estão associadas. O homem que na sua existência social produtiva é reduzido a uma unidade de dispêndio de trabalho abstracto não pode estar em profunda reflexão e cheio de sentimentos depois do trabalho. Ullrich ignora completamente o facto de a elevada produtividade do trabalho criar SOCIALMENTE uma quantidade sem precedentes de tempo “livre” de não-trabalho, não porém sob a forma de um rico desenvolvimento e desdobramento de todos os membros da sociedade, mas sim sob a forma contrária e absurda de “desemprego”, em que as unidades “não utilizadas” de dispêndio de trabalho abstracto são cuspidas para fora do processo de reprodução e tendem a ser “catapultadas” de volta a um nível de necessidades já historicamente ultrapassado. O fundo de tempo gerado pela elevada produtividade do trabalho é transformado pela grelha do valor em destruição de tempo para o indivíduo. De resto Ullrich insinua que a “velha esperança” de um “homem novo” foi em tempos deduzida pelo antigo movimento operário e pelos seus teóricos do puro automatismo do desenvolvimento das forças produtivas. Nunca houve qualquer dúvida de que as RELAÇÕES DE PRODUÇÃO tinham de ser revolucionadas para que as pessoas “encontrassem tempo para a filosofia e para a arte” através de forças produtivas “desenvolvidas”. Não é por aqui que a crítica deve começar, mas pela enorme redução do conceito desta revolução, que deixou completamente intocado o núcleo real da relação abstracta de valor. Para Ullrich, porém, o valor tornou-se uma questão ontológica evidente, mais ainda do que para o antigo movimento operário e seus teóricos, de tal modo que tanto as “falsas” necessidades autodestrutivas como a destruição do tempo lhe parecem, de maneira absurda, resultar directamente da própria “elevada produtividade do trabalho”. O valor que se tornou a forma da totalidade tornou-se invisível precisamente devido à sua total generalidade enquanto forma histórica singular de socialização, não só para a consciência quotidiana, mas também para a consciência teórica, pelo menos para a consciência teórica sociologista de Ullrich e companhia.
Mas na verdade ele podia saber melhor; na fenomenologia da satisfação das necessidades, ele próprio descreve o mecanismo do valor, cujo conceito no entanto lhe permanece fechado, porque os momentos do “sistema industrial” e do “mercado” que se coagularam em “subsistemas” independentes se desfazem subitamente. A descrição “correcta” que Ullrich faz do estado de coisas torna-se assim um exemplo de falta de conceptualização: “Uma característica fundamental do sistema industrial é que priva as pessoas da possibilidade e da capacidade de satisfazerem as suas necessidades de modo imediato e independente. Para poder satisfazer as necessidades é geralmente necessário adquirir recursos ou recorrer a empresas de serviços. A origem deste facto está no capitalismo, que assegurou o seu acesso à exploração e à dominação deste modo. Um passo decisivo para esta expropriação da satisfação autónoma das necessidades foi o estabelecimento de relações de mercado com carácter monopolista: depois de terem sido destruídas todas as possibilidades de se abastecerem de alimentos e vestuário, as pessoas foram confrontadas com a opção de aceitarem trabalho assalariado ou ficarem desempregadas, ficando assim privadas de todos os meios de garantir a sua subsistência. A relação de mercado deixou de ser apenas uma função suplementar que podia ser utilizada para satisfazer determinados desejos adicionais, mas que poderia facilmente ser dispensada. Agora para viver É PRECISO (ênfase de Ullrich) entrar na relação de mercado. Esta industrialização da satisfação das necessidades afecta cada vez mais todos os domínios da vida” (WN, 103).
A descrição de Ullrich é excelente, mas os conceitos estão errados. De facto, as pessoas já não podem satisfazer as suas necessidades de maneira “independente”. A socialização material através da ciência e da maquinaria foi realizada como HUMANA através da única forma económica conhecida de socialização do VALOR. Mas a lógica do esvaziamento e desapossamento do indivíduo e a subordinação das suas necessidades ao processo independente de acumulação de valor é inerente ao desenvolvimento das forças produtivas sob a forma coerciva da abstracção do valor. Para Ullrich, pelo contrário, o valor aparece como um “meio” neutro que pode ser utilizado subjectivamente pelas pessoas, e por isso a subordinação das necessidades à comercialização total não aparece como a lógica interna do valor, mas como uma arbitrariedade que pode ser abolida dentro do próprio valor, como o “estabelecimento” de “falsas” “relações de mercado com carácter monopolista” que contradizem a “verdadeira” relação “humana” do valor. A “luta antimonopolista” envia os seus cumprimentos, sejam eles genuinamente pequeno-burgueses ou das fantasias estratégicas correspondentes do marxismo vulgar do DKP.
E é precisamente por isso que os críticos das forças produtivas só podem imaginar a reapropriação das necessidades como uma dissolução MATERIAL para trás, como descientificização e portanto dessocialização. O mal correctamente descrito aparece como a “INDUSTRIALIZAÇÃO” da satisfação das necessidades em vez da sua MONETARIZAÇÃO. No entanto a transformação de todas as relações em relações de DINHEIRO, tal como já indicado no Manifesto Comunista, é o cerne económico da expropriação das pessoas de qualquer satisfação “independente” das necessidades. Uma vez que Ullrich identifica de modo completamente aconceptual a subjugação das necessidades à totalidade do mercado com a socialização técnico-material, para ele a “independência” da satisfação das necessidades é também idêntica à sua “imediatidade”, ou seja, à sua não-socialidade. Assim o “ideal” deixa subitamente de ser a famosa produção de bens em “pequena escala” e passa a ser a economia doméstica fechada e auto-suficiente, apenas com relações de mercado excepcionais destinadas a “desejos adicionais”. É claro que Ullrich, na sua eclética reviravolta social, ignora mais uma vez as disposições essenciais de um tal modo de produção. Ao contrário da “pequena produção de mercadorias”, como forma geral de socialização a economia doméstica fechada com relações de mercado excepcionais e marginais é, de facto, logicamente possível e também historicamente real. Infelizmente Ullrich esqueceu-se de acrescentar que a este nível não se trata de modo nenhum de economias idílicas e auto-suficientes que coexistem confortavelmente, mas sim de um senhor feudal blindado e armado que as subjuga e espreme até à exaustão, como provam as numerosas revoltas camponesas em todas as formações sociais correspondentes. E esta relação social pouco idílica não é de modo nenhum arbitrária ou casual, mas sim uma consequência necessária do estado de desenvolvimento das forças produtivas e do (baixo) nível de socialização daí resultante. Mas Ullrich, como eclético arbitrário, imagina que “pequenas” forças produtivas com “pequenas” formas de socialização podem ser “estabelecidas” SEM ter de aceitar uma correspondente classe dominante homicida. Ele dissolve assim a história na soma de arbitrariedades que ela parecia ser para os iluministas e utópicos.
O que a crítica das forças produtivas simplesmente não pode nem quer imaginar é a possibilidade de uma satisfação “independente”, porém não “imediata” mas social das necessidades. Voltar a “prover-se a si próprio” com alimentos e vestuário não só imporia às pessoas a inevitabilidade de relações de dominação “directas” e grosseiras como preço de uma suposta “independência”, mas também faria recuar historicamente o nível das necessidades. Que tipo de roupa é suposto cada um fazer na “auto-suficiência”? O que está historicamente na ordem do dia não é o caminho de regresso à auto-suficiência, mas a desmonetarização da indústria social, que não foi minimamente conseguida no bloco de Leste. Se os indivíduos sociais se tornarem tais PARA SI PRÓPRIOS, em vez de se enfrentarem uns aos outros como mónadas económicas perante a materialidade morta do dinheiro no terreno da socialidade material, podem também reapropriar-se da satisfação das suas próprias necessidades como necessidades sociais. Isto não exclui de modo nenhum os momentos de satisfação “imediata” das necessidades, não porém como um princípio contraditório de abstracção de “auto-suficiência” ou “pequena produção de mercadorias”, mas como uma decisão auto-consciente de acordo com valores de uso qualitativos. Neste contexto gostaria de voltar aos rabanetes e à horta. Numa economia de valor de uso de socialidade directa são possíveis e concebíveis diversas formas de satisfação “imediata” das necessidades de frutas, flores, legumes frescos etc., se as casas, as escolas, as fábricas e outras instituições incluírem JARDINS sem mais delongas, não apenas para fins ornamentais ou educativos etc., mas realmente como um elemento parcial de provisão. Mas numa economia do valor a terra não deixa de ser monetarizada e sujeita a um cálculo particular comercial ou mesmo à especulação monetária. A transformação das grandes cidades em desertos de pedra e betão, o encolhimento sistemático e o desaparecimento da cultura de jardim das cidades não podem ser derivados da industrialização enquanto tal, mas são uma consequência necessária da economificação no valor de todo o espaço vital.
Seja como for, o resultado final é que a consequência lógica da crítica das forças produtivas conduz na verdade “de volta à Idade Média”, e a ênfase de Ullrich em que não se trata de “escassez pré-industrial” continua a ser uma promessa tão vazia como as promessas abstractas e sem sentido de Thaa sobre “reivindicações de felicidade em sentido lato” etc. Na famosa sociedade futura dos críticos das forças produtivas, a “reivindicação da felicidade” requer uma mentalidade de Diógenes, na verdade absolutamente nada reivindicativa, uma atitude servil de auto-satisfação. As pequenas necessidades com pequenas forças produtivas em pequenas unidades e pequenas redes produzem infalivelmente também pessoas mesquinhas e tacanhas; a TACANHEZ total como ideal de vida e de sociedade é, portanto, o resultado de todo o esforço teórico de longo alcance que a crítica das forças produtivas ousa apresentar sem corar! A partir da poltrona do sociólogo académico é então fácil entregar-se a fantasias de uma sociedade agrícola “adequada”, desde que não tenha de levar com uma pá nas mãos calejadas de tanto escrever disparates. Para Ullrich “a única perspectiva sensata é portanto afinal um “modo de produção com mão de obra intensiva(!) em pequenas unidades... Para a tracção de máquinas que poupam trabalho, animais como o cavalo também podem ser integrados de novo utilmente. Através de uma agricultura de mão de obra intensiva(!), biologicamente orientada, uma nova relação do homem 'civilizado' com a natureza poderia também desenvolver-se como uma síntese equilibrada(!) entre atitudes ingénuas-míticas(!!) e atitudes científicas esclarecidas” (WN, 124).
Por outras palavras, de volta à labuta e ao trabalho árduo de sachar, cavar e escavar à mão, de volta à lavoura com um cavalo, de volta à produção “de trabalho intensivo” de Adão e Eva, onde não há “tempo disponível” do indivíduo social, mas apenas tempos impostos pela natureza de necessidade de descanso monótono numa vida de absorção interminável na necessidade quotidiana! Mas é difícil levar a sério uma tal perspectiva. É perfeitamente compreensível que as pessoas voltem então a rezar o terço com mais afinco e a ter medo dos demónios da floresta. No entanto, querer harmonizar este mundo de ideias produzido pelas “pequenas” forças produtivas com uma “atitude científica esclarecida” (de onde viria isso?) é o cúmulo do ecletismo histórico de Ullrich! Uma tal monstruosidade de “equilíbrio” sugere que Ullrich deveria candidatar-se a um lugar de apresentador de televisão na ARD; não pode ser levada a sério de um ponto de vista científico.
É claro que uma utopia tão tacanha da redução total das necessidades serve as necessidades ideológicas de um movimento de oposição neo-reformista empenhado na subjectividade abstracta do dinheiro, em vez de ser levada a sério como uma verdadeira perspectiva social; e é duvidoso que o próprio Ullrich o faça, pois considera expressamente que a abordagem prática da mudança se situa pacificamente no quadro da sociedade (capitalista) existente, e se limita à notória “exequibilidade” nestas condições já não questionadas em termos revolucionários. A propaganda reaccionária da dessocialização da pequena produção de mercadorias, que insiste no dinheiro como “meio” e se insere assim mais ou menos voluntariamente no processo de reprodução da economia do valor, torna-se mesmo uma função directa da administração da crise capitalista contra as necessidades das massas, através da igualmente reaccionária propaganda complementar da redução das necessidades. Se as fundações “empresariais” neo-pequeno-burguesas ainda podem ser entendidas como a despolitização à sua própria custa de uma ex-esquerda que se tornou apática e mole, então a pintura glorificadora de um nível geral de necessidades reduzido situa a sua ideia básica no mundo real actual e revela-se, se eliminarmos as excursões ao passado ou a construção eclética de necessidades fantasmagóricas, uma função da administração da crise capitalista contra as necessidades das massas, como cobertura de flanco para a “viragem” neoconservadora da Alemanha “modelo de exportação”. Na disputa da realpolitik dos Verdes pela posição do “centro” entre o SPD e a CDU, este núcleo de má qualidade da crítica das forças produtivas revela-se lenta mas seguramente no plano prosaico da política quotidiana. A integração nos “constrangimentos práticos” da lógica da socialização da abstracção do valor, seja ao lado da social-democracia ou mesmo em conjunto com os “conservadores do valor” ou os “ecologistas de mercado”, tem inevitavelmente de instrumentalizar as “utopias reais” críticas das forças produtivas como arma contra o nível de necessidades historicamente alcançado pelas massas. Isto já foi provado na prática pelo debate sobre o “rendimento mínimo”, onde a perspectiva da administração da crise, de atirar grandes massas (desempregados, doentes, pensionistas etc.) que caíram fora do processo de valorização como “supérfluas” de volta para um nível de bem-estar miserável, se tornou muito rapidamente visível sob o manto brilhante de um alegado “desacoplar o trabalho do rendimento” em termos de “utopia real”.
d) O resgate do produtor imediato como sua perpetuação
O “recuo” das forças produtivas, a “redução da dimensão do fazer” etc. não só resultam numa recaída para um nível de socialização mais baixo e rudimentar e numa redução das necessidades, mas também assinalam como ideologia (não se trata de outra coisa) uma certa relação com o próprio processo de produção imediato. Isto revela talvez mais claramente a posição social dos críticos das forças produtivas e o reflexo dos seus próprios interesses dentro da reprodução na economia do valor realmente existente, pelo que será tratado separadamente na conclusão. Já no que diz respeito à degradação real e objectiva do trabalhador (assalariado) no processo de trabalho, tal como este se apresenta como um processo de dispêndio de trabalho abstracto, tinham ficado claros na crítica da forças produtivas o escamoteamento da forma salarial e a derivação da degradação directamente do próprio aparelho técnico morto dos meios. Esta ideia reaparece agora também nas consequências práticas e sócio-políticas. Tanto Ullrich como Thaa não querem limitar a questão da satisfação das necessidades ao nível do consumo, mas querem manter o PRÓPRIO CONTEÚDO DO TRABALHO como elemento essencial da necessidade; e nisto há que concordar definitivamente com eles a este nível de abstracção. A única questão é saber o que se concretiza a partir desta problemática tão frutuosa sob as premissas da crítica das forças produtivas.
Já nos primeiros escritos, nos “Manuscritos de Paris”, Marx descrevia de maneira insuperável a destruição do trabalho como necessidade humana fundamental e a sua transformação numa silenciosa compulsão externa: “Ora em que consiste a alienação do trabalho? Primeiro, o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não faz parte da sua natureza, e por conseguinte ele não se afirma no seu trabalho, mas nega-se nele, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve energias físicas e mentais livres, mas mortifica o seu físico e arruína o seu espírito. O trabalhador, portanto, só se sente consigo próprio fora do trabalho e sente-se fora de si no trabalho. Está em casa quando não está a trabalhar e quando está a trabalhar não está em casa. O seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é TRABALHO FORÇADO. Não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer necessidades fora dele. O seu carácter alienado evidencia-se claramente no facto de, não havendo compulsão física ou qualquer outra, se fugir do trabalho como da peste” (Karl Marx, Texte zu Methode und Praxis II, Pariser Manuskripte 1844, Reinbek 1969, 54s.).
Não há dúvida que esta definição básica do trabalho alienado (forçado) se aplica na sua essência ainda mais hoje do que em meados do século XIX, e aplica-se não só no Ocidente mas também na economia do valor de tipo soviético no Leste. A ideia de que o próprio trabalho poderia ser uma necessidade no seu conteúdo e a sua execução uma satisfação de necessidades em si mesma já se tornou completamente estranha às pessoas. No processo da sua integração fordista, o movimento operário tradicional também aceitou inconscientemente o carácter meramente externo do trabalho sob o ditame da abstracção do valor, e orientou a sua luta sobretudo para a melhoria constante da situação do trabalhador “em casa”, onde ele “só se sente consigo próprio fora do trabalho”, como consumidor, pai de família, amador de hobby, fã de um clube e pau-mandado da televisão. O crescente aburguesamento dos movimentos sindicais tradicionais tem certamente as suas raízes mais profundas nesta aceitação fundamental do trabalho assalariado enquanto tal, isto é, do trabalho alienado em que os trabalhadores estão “fora de si” e “não estão em casa”. Em contrapartida, a luta pelas “condições de trabalho” sempre se limitou ao essencial, e no século XX perdeu-se cada vez mais em trivialidades ou foi redireccionada para a fraca ideologia da “humanização do mundo do trabalho”, que difundiu todo o tipo de retórica moral, mas acabou por cobrir a cabeça perante a Medusa do trabalho assalariado e da abstracção do valor como sua base, aceitando o incompreendido “constrangimento material”.
Também no Leste e nos partidos, movimentos e correntes políticos “marxistas” revolucionários a redução consumista se enraizou sob diversas formas e matizes na crítica da vida do trabalhador. A mentira vital da economia soviética de que não se baseia no trabalho assalariado é desmascarada de maneira mais flagrante no facto de o trabalho alienado gritar o seu carácter mesquinho simplesmente imposto, pelo menos tão claramente como no Ocidente, e de os administradores do mercado de trabalho regulamentado apenas tentarem calá-lo com frases moralistas, por um lado, e com compensações de “lazer”, por outro, as quais no entanto nem sequer se aproximam do padrão ocidental. Uma vez que a industrialização atrasada nunca poderá ser o desenvolvimento de um modo de produção socialista já não baseado no cálculo abstracto do valor, sendo pelo contrário a criação social forçada do trabalho assalariado e do mecanismo de acumulação de valor, é precisamente por isso que a questão do “incentivo material” nem sequer é sonhada NO INTERIOR DO PRÓPRIO PROCESSO DE TRABALHO, mas traiçoeiramente sempre NO EXTERIOR, no nível salarial puramente abstracto, baseado no consumo ou nas gratificações conexas como os bónus etc., que com a mesma naturalidade têm de assumir a FORMA DE DINHEIRO. A tese de Marx segundo a qual numa sociedade socialista até à transição para o “comunismo pleno” o trabalho se torna gradualmente a “primeira necessidade da vida” transforma-se assim em todas as economias soviéticas numa mentira vil e hipócrita, que nos textos quase religiosos do partido serve mais para a edificação moral dos funcionários do que para a realidade. Por outro lado, com a mesma falsidade e hipocrisia, todos os prazeres consumistas dos tempos livres, que só diferem dos ocidentais pela sua menor quantidade e qualidade, são transformados na mesma prova de “aproximação” ao “comunismo”. Terá sido talvez precisamente esta total incapacidade de reconciliar as pessoas com o conteúdo do seu trabalho e de restituir a este o seu carácter interior de necessidade que mais fez repudiar o “socialismo real” entre as massas trabalhadoras de todo o mundo e com razão. A resignação perante o TRABALHO FORÇADO social nas economias do valor tornou-se tão forte que mesmo as tendências e partidos supostamente radicais do Ocidente só vêem salvação na compensação consumista, e no seu mundo conceptual o trabalho já não aparece como uma necessidade possível, mas apenas como uma “peste” de que é preciso libertar-se. Sobretudo para os vários grupos e correntes que emergiram da Nova Esquerda, desde os neo-anarquistas, os operaístas, os “autonomistas” etc. até ao “Grupo Marxista”, a definição de comunismo de Marx como a restauração do carácter de necessidade do trabalho ao nível da socialização industrial transformou-se no seu oposto, na falsa utopia de um mero comunismo de consumo dos improdutivos, em que a peste do trabalho é reduzida ao mínimo para o indivíduo, sem nunca deixar de inspirar aversão.
Por isso deve ser visto como um mérito da crítica das forças produtivas e do movimento alternativo verde em sentido lato o facto de ter voltado a colocar a questão do CONTEÚDO do próprio trabalho, por oposição ao mero consumismo compensatório, e ter exigido um “trabalho com sentido”. Infelizmente, porém, como em todas as outras questões, a ideologia crítica das forças produtivas bloqueia qualquer acesso à ideia da abolição do trabalho “sem sentido” ao nível da socialização industrial. Em primeiro lugar esta desesperança decorre naturalmente do facto de não ser o trabalho assalariado que é directamente responsabilizado pela degradação do trabalhador no processo de produção industrial, mas sim a relação abstracta com a natureza e o aparelho técnico morto de meios resultante do processo de cientificização. O que poderia ser mais óbvio do que lutar por uma “dissolução para trás” do conteúdo do próprio trabalho? É verdade que os críticos das forças produtivas não são menos tímidos a este respeito do que na questão do nível de necessidades; assim Ullrich diz cautelosamente sobre o processo de trabalho manual: “Não me ocupo desta forma de actividade produtiva por ver nela um ideal de trabalho industrial a atingir e por o trabalho industrial observável dever ser criticado com base neste modelo. Esta saudade do passado já foi muitas vezes criticada, mesmo por Marx. A estrutura deste trabalho manual tornar-se-á cada vez menos importante com a industrialização crescente” (TuH, 201).
Isto é escrito pelo mesmo autor que não hesita em querer regressar à charrua puxada por cavalos e ao “mito ingénuo”! Tal afirmação defensiva não é de modo nenhum credível, uma vez que toda a sua obra está repleta de “saudades do passado” e ele canta a plenos pulmões durante longos períodos os louvores do processo de trabalho manual. A lógica interna da argumentação crítica das forças produtivas não permite outra coisa. Uma vez que não é possível conceber o indivíduo socializado autoconsciente nem fora nem dentro do processo de trabalho, não resta outra ideia que não seja a de fazer recuar em grande parte a socialização capitalista negativa das coisas mortas. Para o processo de trabalho imediato, isto significa que as competências e as capacidades que se desintegram abstractamente na negativa socialização do valor através da divisão do trabalho e que são transferidas para a maquinaria devem ser RETIRADAS para o indivíduo que trabalha, tendo como modelo o processo de trabalho manual pré-industrial: “Para atingir o objectivo é necessário que se realizem constantemente acções ‘hábeis’. Mãos hábeis, sentidos que registam com precisão e um cérebro experiente e coordenador são as partes mais importantes do circuito funcional do artesão. Assim a forma de conhecimento deste cérebro não está abstractamente ligada a símbolos, nem linguisticamente processada nos passos individuais, mas directamente ligada ao processo, armazenada como 'habilidade' e 'experiência'...” (TuH, 53). E não há dúvida de que Ullrich elogia esta técnica pré-industrial, ainda não “manchada” pelas ciências naturais, e se esforça directa ou indirectamente por “trazê-la de volta”: “Uma actividade bem sucedida não depende do conhecimento simbólico analítico, mas da experiência, da arte e da espontaneidade criativas” (TuH, 54); “A objectivação não é portanto uma perda no objecto, mas uma possibilidade de auto-reconhecimento e de autocriação” (TuH, 58); “A tecnologia pré-industrial era portanto ... 'compreensível' por 'centrada no corpo' ... gerível pelos seus produtores e utilizadores em termos do seu funcionamento e dos seus efeitos” (TuH, 61).
Por fim Ullrich fala também de um “modo de produção artesanal pré-capitalista” (TuH, 114), que corresponde à forma económica da “produção de mercadorias em pequena escala” em termos de conteúdo e estrutura do trabalho, e que nunca existiu historicamente como modo de produção independente. A “arte criativa” dos antigos ofícios, tal como a sua forma económica, a “simples” produção de mercadorias, não passava de um salpico marginal no grande oceano da produção agrícola feudal, que em termos do processo de trabalho concreto não se apresentava de todo como “arte criativa”, mas como um árduo trabalho físico inimaginável hoje em dia. No entanto, como já sabemos, Ullrich aceita de bom grado este trabalho físico para a sua futura sociedade de pequenos circuitos e até o estiliza como uma necessidade humana fundamental. Esta descarada ideia de perpetrador de secretária assombra de facto toda a literatura crítica das forças produtivas. A fonte de Ullrich, Mumford, por exemplo, lamenta que “o trabalho esteja a começar a desaparecer na nossa sociedade devido à automatização e que o conceito de trabalho diário esteja a tornar-se insignificante para o indivíduo(!)...” (Lewis Mumford, Mythos der Maschine [O mito da máquina], Frankfurt 1977, p. 169) e, noutros lugares, celebra a unidade do trabalho intelectual e manual na base da “força muscular”: “A maldição do trabalho foi uma verdadeira aflição para aqueles que ficaram sob a dominação da tecnologia autoritária(!). Mas a ideia de abolir todo o trabalho, de transferir a destreza da mão para uma máquina sem a imaginação da mente – esta ideia era apenas o sonho de um escravo e revelava uma esperança de escravo desesperada mas sem imaginação; porque ignorava o facto de o trabalho, que não se limita à força muscular mas inclui todas as funções da mente, não ser uma maldição mas uma bênção” (ibid., p. 277ss). Pensamentos semelhantes podem ser encontrados em Günther Anders, que também lamenta com toda a seriedade que “ainda hoje o trabalho seja defraudado(!) do esforço de trabalhar, e não apenas do esforço, mas do prazer do esforço, da indispensável voluptas laborandi” (Günther Anders, Die Antiquiertheit des Menschen [A obsolescência do homem] vol. 2, Munique 5/1987, p. 102). Ao mesmo tempo Anders critica “o poder compensatório do desporto”: “Enquanto que, como operários de linha de montagem, nos é roubada a possibilidade de nos identificarmos com a nossa actividade e de vermos à nossa frente o resultado do nosso próprio trabalho, como atletas, como corredores, nadadores, esquiadores, não só somos capazes de estar (com muita alegria) unidos com a nossa acção, mas até somos incapazes de não estar” (ibid., p. 104). Anders reduz aqui a um denominador comum de modo inadmissível e arbitrário dois momentos bastante diferentes, nomeadamente, por um lado, o “esvaziamento de sentido” do trabalho em linha de montagem, que decorre directamente da subordinação do indivíduo ao processo de dispêndio do trabalho abstracto de produção de valor, e, por outro lado, a deslocação do esforço físico do trabalho para o nível lúdico do desporto, que representa absolutamente uma verdadeira conquista civilizacional do capitalismo e faz parte da elevação do nível geral das necessidades. O que desde a Antiguidade estava reservado às classes dominantes, ou seja, o exercício físico fora do trabalho em jogos agonais, tornou-se hoje um padrão de massas e, tal como a possibilidade de uma higiene pessoal geral, é uma das conquistas culturais indispensáveis. O próprio Anders, que foi forçado a trabalhar em fábricas no exílio nos Estados Unidos, deveria saber bem a diferença de “voluptas laborandi” entre uma corrida no bosque ou um jogo de futebol e puxar paletes pesadas ou levantar materiais volumosos etc., e que a tendência para o desaparecimento do esforço físico pesado dos processos de trabalho é um dos grandes progressos da humanidade. A desqualificação da actividade física lúdica fora do trabalho como quase “antinatural” e a propaganda do trabalho físico no processo de trabalho como preço para a alegada reunificação da cabeça com a mão mostram bem até onde a crítica das forças produtivas tem de se aventurar quando aborda a partir das suas bases a questão do conteúdo do trabalho e do trabalho como uma necessidade.
Apesar da promessa de não se entregar a sonhos de um “mundo perfeito de ontem”, também Thaa acaba por não ter outra alternativa senão celebrar a arte do artesanato pré-industrial, sobre cuja forma de se relacionar com a natureza afirma: “No artesanato, por exemplo, exprime-se o facto de o próprio trabalhador continuar a ser o dono da sua actividade, mesmo que já esteja a produzir para o mercado, ou seja, para as necessidades dos outros ... O trabalho não é ainda uma perda de si, mas um ganho de si” (HaV, 124). A razão para isto é clara: a habilidade do artesão ainda contém em si mesma todas as potencialidades de “conhecimento”; estas potencialidades ainda não estão separadas do produtor imediato (na medida em que ele pertence à minoria dos artesãos “habilidosos”!) como a ciência e a sua aplicação tecnológica: “Ele utiliza os meios e continua a ser o sujeito que domina todo o processo ... Assim o trabalho mantém sempre um momento de formação subjectiva, não é apenas alienação, mas também sempre auto-afirmação. Como sujeito o trabalhador não só transcende o processo em relação ao objectivo relacionado com o produto, mas no ofício possui também a possibilidade de reflectir o modo de produção na sua pessoa” (HaV, 140s.).
Como que por si mesmos, os críticos das forças produtivas voltam repetidamente ao artesanato como contra-imagem “positiva”; só aí está tudo “certo”, só aí podem tornar-se “concretos” nas suas alternativas ao trabalho industrial, ignorando o verdadeiro contexto histórico-social das condições ou glorificando mesmo os aspectos menos belos, como a extenuante “labuta”. No entanto o discurso torna-se inespecífico e obscuro a partir do momento em que se dá uma perspectiva do que constitui o carácter de necessidade do trabalho no seu conteúdo, SEM recuar a um nível pré-industrial. Neste contexto podemos esquecer o eclético Ullrich, com os seus arados puxados por cavalos e os seus habitantes da Terra do Fogo nus; mas mesmo Thaa fala apenas vagamente e com um olhar retrospetivo de uma “reapropriação das forças produtivas pelos produtores” (HaV, 151). Mas COMO é que esta “reapropriação” pode ser alcançada sem um simples regresso ao artesanato? “A própria construção técnica teria de ser ‘ressubjectivada’ para ganhar uma dimensão reflexiva na qual seria objectivamente erguida uma relação conscientemente estabelecida pelos produtores entre as necessidades do resultado do produto e as da própria actividade. Só invertendo a inversão entre o trabalho e os trabalhadores é que os produtores podem tornar-se também sujeitos do desenvolvimento social” (HaV, 151s.).
Tudo claro? A pompa da formulação mostra como o crítico das forças produtivas se debate em vão com a definição concreta. De onde é que ela havia de vir? Se a relação abstracta com a natureza é colocada no lugar das relações sociais como razão última, se a própria ciência, no seu conhecimento da natureza e na aplicação tecnológica que dela é possível, foi declarada como o verdadeiro mal fundamental, então a “ressubjectivização” do trabalho só pode significar um desmantelamento geral do aparelho intermédio “cientificizado”, uma consequência lógica que Thaa considera reconhecidamente muito menos palatável do que Ullrich ou Mumford, por exemplo. No entanto, a exigência de “ressubjectivização da construção técnica” permanece vazia contra o pano de fundo da crítica das forças produtivas e, mesmo nesta abstracção vazia, contradiz as premissas ideológicas. Com efeito, se a relação com a natureza e portanto o processo de cientificização “enquanto tal” provocaram a dessubjectivação do trabalho, então também não pode haver “ressubjectivação” no âmbito deste processo de cientificização sem arbitrariedade lógica.
Por mais que numa sociedade socialista do valor de uso as “construções técnicas” possam ser alteradas a partir da compreensão das inter-relações materiais qualitativas, o problema da “ressubjectivação” não é em última análise um problema “técnico”, mas um problema da relação social de base ou da lógica de socialização do valor. Naturalmente que a sua necessária abolição seria também imediatamente idêntica à ABOLIÇÃO DO PRÓPRIO PRODUTOR IMEDIATO. E torna-se imediatamente claro que a reticência conceptual dos críticos da forças produtivas em criticar e abolir a abstracção do valor não é, na verdade, outra coisa senão uma reticência em abolir o produtor imediato! Thaa é muito claro quando critica a “indústria moderna” da seguinte maneira: “O processo de trabalho da indústria moderna não está sujeito a qualquer determinação intencional por parte dos trabalhadores, mas emancipa-se desta por assim dizer através da objectivação que experimenta na sua configuração técnica científica. O ‘progresso’, o seu desenvolvimento continuado, DESLIGA-SE DOS PRODUTORES IMEDIATOS (ênfase R.K.) e torna-se o ‘objecto’ da ciência e da técnica ... Ou seja, a tecnologia científica exclui ... OS PRODUTORES IMEDIATOS COMO SUJEITOS SUPERIORES DO PROCESSO DE PRODUÇÃO” (HaV, 142s., ênfase R.K.).
Temos então diante de nós o verdadeiro crime da ciência: ela põe em questão (sem se dar conta, é claro) o produtor imediato enquanto tal! Pois só na condição de o “produtor imediato” representar uma categoria social ontológica e eterna é que a cientificização da produção pode ser entendida como o infortúnio de uma dessubjectivização irremediável do conteúdo do trabalho. Mas se esta condição não for aceite, então surge uma tarefa histórica fundamentalmente nova, nomeadamente, pela primeira vez na história, a abolição do próprio produtor imediato: este seria o CONTEÚDO SOCIAL da abolição da economia do valor. Ao mesmo tempo esta seria a produção final do INDIVÍDUO SOCIAL concreto, de que se fala em muitas passagens da obra de Marx. Mas como é que se concebe esta abolição? A definição geral da ABOLIÇÃO DA DIVISÃO DO TRABALHO já não pode ser concebida pelos críticos das forças produtivas, alegadamente porque esta abolição se tornou impossível pelo processo de cientificização, mas na realidade porque eles petrificaram conceptualmente o produtor imediato como uma categoria social eterna do ser. No fundo a abolição da divisão do trabalho consiste precisamente em libertar os produtores imediatos da subordinação total ao processo de trabalho imediato e em permitir-lhes participar nas potencialidades sociais da reprodução desacopladas e corporativamente reduzidas, isto é, na ciência e na tecnologia, bem como no planeamento, na administração etc. Por outro lado, é claro que isto significa distribuir por todos os membros da sociedade o trabalho imediato de produção, que até agora pesou sobre uma classe social, ou seja, envolver os cientistas, planeadores, funcionários públicos etc., que até agora estiveram corporativamente segregados, no trabalho de produção, tal como envolver os produtores, que até agora estiveram unilateralmente subordinados ao processo imediato de produção, no trabalho científico-tecnológico, de planeamento etc. Marx viu com razão a possibilidade de uma tal abolição fundamental da divisão do trabalho precisamente através do DESENVOLVIMENTO DAS FORÇAS PRODUTIVAS, que faz com que cada vez mais deixe de ser NECESSÁRIO ocupar uma parte da sociedade exclusivamente com o trabalho imediato de produção.
Seria assim possível imaginar uma sociedade que já não se reproduz cegamente em corporações separadas, apenas abstractamente ligadas através da relação de valor-dinheiro, mas que está directamente organizada socialmente dentro de si mesma e assim controla o seu próprio processo de reprodução com consciência – e isto significa: com a consciência de cada um dos seus membros individuais. Uma tal sociedade estaria organizada desde o nível local e sub-local até ao nível continental em, digamos, “conselhos”, que por um lado organizam o trabalho de produção imediato ao seu nível, e por outro formam numerosos, digamos, “comités” para todos os assuntos sociais, como a ciência, a educação, a arte, a habitação, a horticultura etc. O “tempo de trabalho” de cada indivíduo estaria sempre distribuído por diferentes níveis e funções da reprodução social, de modo que um interesse particular corporativo “cego” no sentido anterior seria tão impossível como o interesse monetário abstracto da mónada económica individual. Na medida em que cada indivíduo está directamente envolvido nas FINALIDADES sociais e nas POTÊNCIAS CIENTÍFICAS do seu trabalho, podendo entendê-las como o seu próprio “projecto”, esse trabalho também se “ressubjectiviza”, recupera o seu conteúdo e torna-se a “primeira necessidade”. Na mesma medida em que o trabalho de produção, o planeamento, a ciência, as actividades culturais etc. se fundem e se interpenetram, a anterior distinção entre “trabalho” e “lazer” torna-se obsoleta, porque o trabalho perde o seu carácter de TRABALHO FORÇADO. E na mesma medida em que os projectos sociais, despojados da reificação e mistificação da economia do valor, se tornam objecto de um debate social directo e de uma tomada de decisão em que cada indivíduo está directamente envolvido através da sua participação em “conselhos” e “comités” etc., a separação mistificadora da socialidade nas esferas mutuamente independentes da “política” e da “economia”, do “público” e do “privado” também tem de dissolver-se. Esta abolição seria evidentemente algo muito diferente da aparente abolição nas economias soviéticas, onde a subjectividade abstracta do valor persiste tanto quanto a cidadania abstracta, e a alegada “abolição da privacidade” não é na realidade outra coisa senão a omnipresença orwelliana do aparelho de Estado da generalidade abstracta corporativamente independente, e a sua tentativa (condenada ao fracasso) de subjugar a privacidade não resolvida dos seus cidadãos por meio da coerção e do controlo até à roupa interior e até às emoções (“estilo de vida proletário” etc.).
É claro que esta nova socialidade directa das pessoas não pode ser alcançada sem preparação; é preciso um processo de dissolução de todas as corporações independentes e de eliminação do desnível de conhecimento e competência etc., que só pode começar através de um corte revolucionário profundo (e presumivelmente violento) com a anterior lógica de socialização. No entanto não há dúvida de que o problema não é “técnico”, mas de relações sociais fundamentais. Não é a tecnologia científica “enquanto tal” que impede os produtores imediatos de aproveitarem o potencial científico-social do seu próprio trabalho, mas sim a subordinação de todo o seu tempo de trabalho ao processo de criação de valor, que é imposta pela economia do valor. Isto já era evidente na degradação do trabalhador ao nível da empresa individual (em relação aos “oficiais e sargentos” do capital etc.), e ainda o é mais ao nível da sociedade como um todo (em relação ao aparelho de Estado, às instituições científicas etc.). O problema é a distribuição do fundo de tempo social disponível, e este problema não é determinado por qualquer “constrangimento material” da tecnologia, mas pela lógica interna do cálculo do valor-dinheiro materialmente autonomizado. Do ponto de vista da lógica do valor “da economia empresarial”, a divisão das actividades sociais não produtivas de valor entre todos os membros da sociedade seria um desperdício tão impossível e profundamente “anti-económico” como, por exemplo, a reintrodução da horticultura nas cidades ou o controlo da produção de acordo com as suas ligações materiais.
Por outro lado, porém, é o próprio mecanismo “económico” da concorrência (que se desenvolve a vários níveis e em várias dimensões) que mina a economia do valor, precisamente através da sua constante promoção da cientificização, pelo menos onde – como no Ocidente – pode desenvolver a sua dinâmica interna, enquanto o mecanismo externo de regulação estatal do “mercado planeado” nas economias soviéticas tende a estagnar o processo de cientificização da reprodução social. Mas, na medida em que a cientificização progride, a sua tendência é precisamente a de eliminar do processo de produção imediato o trabalho vivo (apenas ele produtor de valor). A MESMA lógica de “economia empresarial” que força “para dentro” a subsunção máxima do trabalho vivo na produção imediata (criadora de valor) é, por sua vez, forçada “de fora” pelo mecanismo da concorrência a retirar do processo de produção uma massa cada vez maior desse trabalho vivo imediato e a substituí-lo por máquinas (“automatização”). A lógica da economia empresarial, enquanto expressão da separação económica das unidades de produção na circulação com a simultânea (oposta) socialização material, conduz-se assim ao absurdo. O fundo de tempo social libertado pela cientificização não é utilizado produtivamente para a abolição do produtor imediato, mas aparece na forma contraditória e de crise do “desemprego”. Enquanto o restante trabalho vivo continua a ser submetido ao trabalho abstracto produtor de valor, e mais acentuadamente do que antes, uma massa crescente de pessoas capazes de trabalhar “tem” de ser excluída da reprodução social activa. O resultado final desta evolução só pode ser aquilo a que a primeira geração de “marxistas” chamava, ainda obscuramente e sem um conceito concreto, o “colapso do capitalismo”, embora o horizonte temporal deste processo se estenda muito mais longe do que os teóricos da época pensavam na sua conceptualização redutora, e só gradualmente se concretize na prática hoje em dia ao nível da microeletrónica. Mas infelizmente é hoje mesmo que quase todo o espectro da esquerda, supostamente instruída pela empiria, acabou por enterrar e esquecer a ideia de uma crise fundamental da lógica capitalista de socialização; enquanto a economia do valor se aproxima da sua maior crise de sempre, a esquerda está mais inconsciente e acrítica da abstracção do valor do que nunca na sua história – e a crítica das forças produtivas fornece o melhor exemplo deste deplorável estado de coisas.
Isto é mais evidente no confronto dos críticos das forças produtivas com aquilo a que chamam a “utopia da automatização”. Thaa aborda esta questão no contexto da sua crítica à literatura pertinente da RDA, na qual a “libertação” do trabalho vivo decorre directamente do desenvolvimento puramente tecnológico da “revolução técnico-científica”: “A mudança decisiva que está aqui em causa reside supostamente no facto de o homem sair do processo de produção imediato com a automatização” (HaV, 222). Independentemente do facto de as economias soviéticas, incluindo a RDA, não conseguirem na realidade fazer avançar suficientemente o processo de cientificização contra a inércia estagnada do “mercado planificado” no terreno intocado da abstracção do valor, o “homem” continua em todo o caso sujeito ao processo de dispêndio do trabalho abstracto, e por conseguinte o produtor imediato do processo de formação do valor permanece incontestado. Assim, se as economias soviéticas conseguissem recuperar o atraso tecnológico em termos de automatização, este desenvolvimento teria de se manifestar SOCIALMENTE mais cedo ou mais tarde sob a forma de “desemprego”, tal como no Ocidente. É ridículo querer negar este facto invocando as “garantias constitucionais” do famoso “direito ao trabalho”; as constituições podem ser alteradas, sobretudo se essa alteração aparecer como progresso e “democratização” ao mesmo tempo – mas as leis da economia do valor não podem ser alteradas no seu próprio terreno, só podem ser eliminadas por uma abolição revolucionária do próprio cálculo do valor-dinheiro.
Mas Thaa não pensa em criticar por esse lado. O seu conceito de “saída do processo de produção imediato” permanece tão redutor como o dos autores da RDA sobre a “revolução científico-técnica”, que se refere simplesmente ao desenvolvimento técnico da produção: “A base de uma tal avaliação da automatização é a equiparação do afastamento do homem da actividade de produção imediata, com a transformação da actividade humana num momento que transcende a produção e a domina. No entanto o trabalhador não se torna sujeito do processo de produção ao accionar os dispositivos electrónicos de medição e controlo em vez da máquina mecânica ... O facto de, superficialmente, o ser humano voltar a utilizar a máquina em vez de ser utilizado por ela parece constituir uma analogia com o artesanato, onde a actividade do sujeito trabalhador se sobrepõe e domina o processo global. Mas o ponto decisivo reside no facto de que, na automatização trazida pela ‘revolução técnico-científica’, o trabalhador não se encontra no centro do processo de produção como sujeito, isto é, com todas as suas características e necessidades concretas, mas como executor de uma lógica de desenvolvimento formada por relações objecto-objecto” (HaV, 223s).
É evidente que Thaa, tal como os autores da RDA, não pode imaginar outra coisa senão libertar o trabalhador enquanto trabalhador, enquanto produtor imediato, da sua existência de “apêndice”. Mas isso, e aqui Thaa tem toda a razão, é fundamentalmente impossível numa produção materialmente socializada e cientificizada. O trabalhador não tem de se libertar DENTRO do processo de produção, mas sim saindo dele, apropriando-se dos potenciais científicos e DEIXANDO ASSIM DE SER TRABALHADOR NO SENTIDO DE PRODUTOR IMEDIATO. A argumentação de Thaa continua a ser duvidosa quando aceita que o “funcionamento dos aparelhos electrónicos de medição” etc. “afasta o ser humano da actividade produtiva imediata”, para depois provar, acusadoramente, que esse “afastamento” não faz do trabalhador o sujeito da produção. Isto é evidente, pois as verdadeiras potencialidades sociais da produção científica não se encontram na esfera mais restrita da “produção”, mas sim na própria ciência e no planeamento, na combinação social etc. que na maquinaria se encontram petrificadas, sem relação com o trabalhador subsumido à formação do valor.
A transição das actividades mecânicas nas lacunas do sistema de máquinas para a leitura dos dispositivos de controlo é, na realidade, apenas uma mudança de características da actividade DENTRO DA PRODUÇÃO IMEDIATA, cuja órbita não é deixada de todo. É na melhor das hipóteses uma piada de mau gosto descrever esta mudança como uma “saída” da produção directa, que é então mal interpretada de modo muito grosseiro apenas como “tratamento manual” imediato do produto. Mas um conceito tão restrito de “produção imediata” já não é correcto, mesmo em fases anteriores da mecanização, porque entre a “mão” e o produto se interpõe sempre um agregado de máquinas crescente. A transição para a operação de aparelhos de medição e controlo não liberta de modo nenhum os “trabalhadores”, que permanecem na produção no seu estatuto de produtores imediatos de valor; apenas altera superficialmente a forma concreta do dispêndio de trabalho abstracto. Thaa pretende que este facto evidente constitui um argumento de peso contra a “utopia marxista da automatização”: “A libertação do movimento mecânico através da automatização liberta o trabalho tão pouco como a libertação da transformação imediata da matéria através da maquinaria o fez no século XIX. Em vez disso, a automatização marca um avanço na subsunção real de actividades essencialmente intelectuais, que antes estavam apenas formalmente subordinadas à lógica do valor abstracto, mas que agora, através da sua formalização e matematização, recebem um ‘esqueleto objectivo’ semelhante ao da actividade directamente material através da máquina. Assim também a actividade intelectual pode ser cada vez mais formada em termos reais como trabalho abstracto” (HaV, 224).
É uma impertinência descrever a leitura dos dispositivos de controlo como “actividade essencialmente intelectual”! Não há absolutamente nenhuma actividade humana que não seja ao mesmo tempo “mental”; mesmo quando se empurra um carrinho de mão, o cérebro tem de formar previamente um modelo mental da actividade e controlar o processo em si. Um conceito de intelectualidade que coincida com esta abstracção do “mental” tem de tornar-se completamente sem sentido. Na realidade, porém, a actividade intelectual é uma intelectualidade de ordem superior, que se baseia num enorme aparelho conceptual histórico-cultural já desenvolvido ao longo de milhares de anos e que ultrapassa de longe o mero processamento mental de percepções sensoriais individuais num contexto formal de referência. Mas é precisamente desta intelectualidade real, elaborada no processo da cultura humana, que o produtor imediato enquanto tal está sempre excluído, independentemente de carregar em alavancas e botões ou de ler dispositivos de controlo. O próprio Thaa sabe disso quando diz sobre as “novas” formas de actividade: “Embora o trabalho de produção seja cientificamente estruturado, não adquire o carácter de trabalho científico” (HaV, 225).
Correcto. O trabalhador não pode pois contar com o desenvolvimento tecnológico enquanto tal para a sua libertação, mas deve abolir revolucionariamente a sua relação SOCIAL de base para poder apropriar-se das potencialidades científicas. O desenvolvimento tecnológico sob a forma de valor não gera por si só a libertação do produtor imediato, mas sim afinal uma crise social de reprodução, que mais cedo ou mais tarde obriga a uma acção revolucionária sob pena de ruína. Thaa ignora completamente esta relação quando descreve o papel de parteira da automatização para a emergência de uma nova sociedade como um mero consolo ideológico: “Em vez de lutar por uma revolução na relação dos produtores com o processo de produção, a utopia da automatização perpetua a sua objectivação e consola-nos com a esperança de uma retirada completa da produção imediata num qualquer momento do futuro” (HaV, 225).
Thaa nem sequer se apercebe de que esta “retirada completa” já começou em todos os países ocidentais industrializados, não como uma confortável transformação da existência do produtor, mas como desemprego em massa sempre a crescer e cada vez mais independente do ciclo em todos os países da OCDE. A abordagem “sociológica” obscurece completamente a visão do contexto social global da mediação do valor e do seu desenvolvimento em crise, para se concentrar nas “características da actividade” (em termos de sociologia industrial) do processo de trabalho concreto, onde o verdadeiro carácter do processo revolucionário não é nada visível e aparece quando muito como um reagrupamento superficial. A automatização, na medida em que Marx começa a abordá-la, não aparece como uma utopia pacífica de libertação através da tecnologia (esta é apenas a leitura BURGUESA do “progresso”), mas como um momento da TEORIA DA CRISE. E a “revolução na relação dos produtores COM o processo de produção” não pode assim de modo nenhum ocorrer NO processo de produção, mas apenas numa abolição social global do valor e com ele do produtor imediato. É apenas porque a sua visão sociologicamente estreita não se centra no fundo de tempo da sociedade como um todo, mas apenas na descrição tecnológica do processo de trabalho imediato ditado pela abstracção do valor, que o papel revolucionário da automatização se transforma numa falsa utopia para Thaa. Assim o seu próprio pensamento não passa de uma cópia negativa dos ideólogos superficiais da RDA por ele criticados, que pretendem mentir ao produtor imediato socialmente não superado sobre uma libertação puramente tecnológica.
Ullrich aborda a questão da automatização de forma um pouco diferente de Thaa. Em primeiro lugar constata também uma verdade banal: “O trabalho alienado também é ‘possível’ e está presente na produção automatizada ou altamente mecanizada” (TuH, 283). Tal como em Thaa, a “utopia marxista da automatização” também é olhada de lado: “Mas o topos de que o ‘trabalho libertado’ é imposto por assim dizer pela base tecnológica de uma ‘fábrica automática’ também exerce um certo fascínio sobre muitos autores de orientação marxista” (TuH, 282). A estreiteza sociológica torna-se ainda mais clara do que em Thaa, quando Ullrich relaciona o significado social da automatização apenas com uma consciência individual subjectiva dos produtores, que é directamente determinada pelo processo de trabalho concreto, e conclui que “nesta fase da produção, quando o capitalismo a atinge, as teorias do colapso e as teorias sobre a intensificação da contradição nas situações já não podem representar adequadamente a dinâmica posterior do desenvolvimento” (TuH, 283).
Isto revela toda a superficialidade do sociologismo subjectivista académico “moderno”, cujo horizonte conceptual é incrivelmente reduzido. O olhar positivista de Ullrich, fixado na micro-conexão empírica entre a automatização e a “consciência imediata do trabalhador”, perante as árvores não vê a floresta; o potencial objectivo de crise e colapso resultante do movimento macro da economia do valor e que amadurece “nas costas dos produtores” (Marx) escapa-lhe completamente – e com ele a necessidade e a possibilidade de uma intervenção social global que anule o produtor imediato enquanto tal. Em vez disso, o crítico das forças produtivas mobiliza a sua conhecida celebração do trabalho pré-industrial contra a “utopia da automatização”: “Em todo o caso, a perspectiva de um mundo do trabalho totalmente automatizado não transcenderia de modo nenhum o sistema industrial. Seria também a esperança sem imaginação de um escravo (Mumford) que só conhece o trabalho como uma labuta a abolir e não consegue imaginar que um trabalho que integra a cabeça e as mãos, mesmo sendo também fisicamente exigente(!) na dose certa, é uma fonte indispensável de satisfação” (WN, 127).
O que parece reconduzir-nos ao idílio do artesanato. O pretenso utopismo desta visão tacanha não deve evidentemente ocultar o facto de que a crítica das forças produtivas não critica por princípio nem a produção de mercadorias nem a existência do produtor imediato, pelo que toda a sua abordagem tem assim de permanecer superficialmente reformista. Se já se tinha verificado que a aparentemente utópica produção de mercadorias e de subsistência em pequena escala pretende verdejar pacificamente no meio do capitalismo do betão e dar-lhe impulsos de reforma, o mesmo se verifica agora com a abordagem reformista de Ullrich da revolução pretendida do processo de produção imediato. Ele vê essas possibilidades não só nos projectos de empresas alternativas e de “trabalho autónomo” ou mesmo de “auto-suficiência” etc., mas também numa segunda via na própria produção industrial capitalista. Fiel ao seu empirismo ecléctico, não vê a automatização como um processo global e abrangente que segue uma lógica interna – isso seria uma “coreografia hegeliana” – mas antes como um desenvolvimento que, em alguns “domínios” ou sectores e a alguns níveis, é bastante possível ser detido ou “revertido”, que pode ser canalizado para caminhos desejáveis através de “bom senso”, mas também através dos próprios requisitos técnicos. Esta seria a perspectiva reformista do “trabalho relativamente ‘não alienado’ num sistema reificado”, que poderia resultar numa “obviedade técnica” do trabalho “a um nível intermédio” (TuH, 201). Ullrich exprime esta esperança de um certo nível de “automatização parcial”: “A intervenção ‘autónoma’ é possível e necessária dentro de um certo limite. É por isso que é necessária uma formação que ultrapasse as competências ‘naturalmente’ existentes. Pode, por exemplo, consistir numa formação técnica geral de base e num período de formação complementar de média ou longa duração, ou mesmo numa formação profissional normalizada como trabalhador qualificado com um período de formação curto. Deste modo a separação radical entre trabalho intelectual e trabalho manual é relativamente reduzida. De um modo geral este modelo representa uma redução relativa geral dos efeitos negativos do trabalho industrial segundo o modelo da máquina: a relação entre a capacidade e o desempenho exigido é mais satisfatória, há um conhecimento relativo dos processos técnicos, são possíveis e necessárias formas de cooperação entre os trabalhadores..., o trabalho permite a identificação, não parece ‘alienado’ para os afectados...”. (TuH, 208). Neste “modelo” Ullrich vê mesmo anulados elementos essenciais do TRABALHO FORÇADO social, porque “é necessária a participação de uma pessoa ‘tecnicamente sensível’” e “a motivação através da realização do próprio trabalho não é uma componente secundária” (TuH, 209).
Depois do esforçado trabalho de parto da montanha e da crítica aparentemente radical à ciência e à indústria, o rato aqui parido parece um pouco patético. O que Thaa e Ullrich disseram sobre o trabalho concreto no âmbito da automatização em geral, nomeadamente que ele não significa de modo nenhum a apropriação de potenciais científicos pelos produtores imediatos, aplica-se naturalmente de igual modo ao “modelo” subitamente apresentado de trabalho “relativamente não alienado” no “nível intermédio” da automatização parcial. Mas é evidente que as coisas não são exactamente assim. Para Ullrich, tal como para Thaa, o produtor imediato enquanto trabalhador assalariado representa uma categoria social imutável e quase “natural”, pelo que naturalmente tem de permanecer excluído da ciência efectiva, e basta que lhe sejam lançados alguns pedaços de tacanha “satisfação laboral” no âmbito do seu modo de vida que nunca é fundamentalmente posto em causa. Ullrich também não poupa palavras quando se trata do contexto político das suas ideias: “Por exemplo, as ideias de ‘trabalho humano’ e de ‘local de trabalho humano’, que são desenvolvidas por um Estado liberal-burguês, por uma gestão ‘esclarecida’ e por um sindicato reformista, poderiam encontrar-se neste modelo de trabalho” (TuH, 211).
Isto é pelo menos aberto e honesto; claro que é preciso lembrar que Ullrich ofereceu toda a sua abordagem como um “aditamento ao marxismo” e lançou o anúncio de “verdadeiras utopias” etc., cujo cerne abaixo de cão é agora revelado. Para já não falar do facto de estes sonhos de “satisfação” do trabalho no processo de produção capitalista, sob a égide do poder estatal “liberal” e de uma gestão “esclarecida”, serem também irremediavelmente irrealistas, face às reais perspectivas de crise do mercado mundial.
Naturalmente que isto também mostra como certos aspectos da crítica da forças produtivas, que de resto constitui um pano vermelho para o fetichismo do emprego da consciência sindical no “modelo de exportação” da Alemanha, podem certamente colidir em certos pontos com um tacanho reformismo do trabalho qualificado, completamente fixado no trabalho assalariado. É sabido que os sindicatos tradicionais de todo o mundo oriundos do antigo movimento operário preferem suicidar-se a pôr em causa o trabalho assalariado. Neste contexto o slogan da “humanização do mundo do trabalho” no âmbito da subordinação ao dispêndio de trabalho abstracto no processo de produção imediato não é apenas uma ideologia fraca, mas reflecte simultaneamente a luta mais ou menos tenaz das diferentes castas de trabalhadores qualificados pela sua “qualificação” contra a lógica do processo de automatização. A forma “fantasmagórica” da produção como processo de dispêndio de trabalho abstracto, como “formação de valor”, implica também um desenvolvimento histórico do “tornar-se abstracto” do próprio trabalho concreto, ou seja, a sua transformação em actividades indiferentes, exteriores ao trabalhador e reduzidas, enquanto o momento de concretização no metabolismo com a natureza se transforma em ciência fora do processo de produção imediato e confronta o trabalhador como algo estranho na maquinaria. Mas esta “abstracção” do trabalho imediato de produção como um processo de longa duração, que só hoje atinge um auge decisivo com a microeletrónica e a utilização de robôs industriais flexíveis etc., continuou durante muito tempo a arrastar níveis de qualificação quase manuais, em parte como resquícios, em parte até criando novos no seu próprio contexto. A grande tendência histórica não foi prejudicada no essencial por este facto, mas sobreviveu um núcleo de tacanha “satisfação laboral” de diversas formações e corporações de trabalhadores qualificados e técnicos, que não é assim tão fácil de desfazer e que defende a sua existência no seio do trabalho assalariado, mesmo que continue afinal tão excluído do verdadeiro potencial científico da sociedade como os trabalhadores “não qualificados”. Quando Ullrich chama a atenção, de forma mais ou menos clara, para esta tacanha consciência de qualificação no seio do trabalho assalariado industrial, que pode ser associada aqui e ali a determinados desenvolvimentos tecnológicos parciais, a etapas de transição etc., é natural que ele sinta, nos restos de trabalhadores qualificados e orgulhosos do seu trabalho, um espírito afim que quer cultivar o seu próprio e acolhedor jardim social loteado no terreno da produção de mercadorias, “aditando-o” ao idílio do artesanato e da auto-suficiência na própria indústria.
Mas esta construção reformista do “modelo” carinhosamente pintada no papel tem também o seu reverso altamente fatal e desagradável. Nem todos os aspectos da existência do trabalhador qualificado, erroneamente descrito como “relativamente não alienado”, estão perfeitamente integrados no orgulho do trabalho manual, e nem todos os trabalhadores qualificados podem ser enganados com o tipo de pãezinhos que Ullrich e o reformismo sindical cozinham. Por isso é mais do que uma anedota irónica o facto de, numa das “Conferências Socialistas” do início dos anos 80, quando pessoas como Ullrich fizeram as suas primeiras grandes aparições e a crítica do trabalho produtivo se tornou claramente visível nos debates socialistas de esquerda sobre o “futuro do trabalho”, um torneiro mecânico em carne e osso ter tido de se levantar e dizer aos admiradores académicos das “mãos hábeis” algumas verdades desagradáveis sobre uma doença profissional que dá pelo belo nome de “derruba torneiro mecânico”. Mas a desejada satisfação profissional “a um nível médio” só deve ser “relativamente” não alienada e a “voluptas laborandi” do “trabalho natural” também não deve ser esquecida. Aliás Ullrich nem sequer tem receio de exprimir abertamente o cinismo sem fundo que aqui se manifesta, com toda a inocência da crítica das forças produtivas, como é óbvio: “Uma vez que a maior parte dos sociólogos não tem experiência ‘própria’ com trabalho industrial e muito menos com trabalho físico industrial, e uma vez que, enquanto crianças (educadas) da classe média, enquanto alunos do liceu e académicos, só conseguiram desenvolver uma sensibilidade e uma capacidade reduzidas ou nulas em dimensões técnicas ‘práticas’, é-lhes difícil encontrar um trabalho interessante, satisfatório e produtivo que exija um elevado nível de ‘competência’ num trabalho técnico que lhes é ‘estranho’ e abaixo do nível académico(!). Se houver pouco conhecimento da situação de trabalho específica ou se o julgamento for feito apenas com base em alguns critérios ‘externos’, como a ‘dependência salarial’ e a “monotonia”(!) que estão relacionados com o próprio nível de exigência bastante diferente(!!), podem ocorrer erros de julgamento flagrantes sobre o trabalho industrial...” (TuH, 212).
Assim nem sequer nos é poupado o argumento do punho calejado no ramo da crítica das forças produtivas. Esta passagem do livro de Ullrich assemelha-se à reacção defensiva e distanciada de alguns dirigentes sindicais quando da publicação das primeiras reportagens industriais de Wallraff; segundo eles, a sensibilidade do homem de letras com formação académica, que fazia com que muitos aspectos do processo de trabalho lhe parecessem insuportáveis, simplesmente não existia nos trabalhadores, e por isso estes podiam continuar a sentir-se bem no trabalho assalariado. A única “prova” de tais argumentos cínicos é sempre o facto de os trabalhadores não se revoltarem abertamente; mas este facto apenas mostra que os indivíduos estão indefesos à mercê das suas condições sociais incompreensíveis, e que o antigo movimento operário não conseguiu elaborar um sujeito social colectivo que desenvolvesse um objectivo para além do trabalho assalariado e ao qual os indivíduos pudessem aderir. Mas a intolerabilidade é processada “internamente”, ainda que de forma mais ou menos inconsciente, como um processo progressivo de autodestruição e de envelhecimento prematuro. Mesmo entre os trabalhadores qualificados quase manuais e os trabalhadores das máquinas de diversos matizes, o interesse técnico e o orgulho no trabalho são contrariados por doenças profissionais em massa, cancros e ataques cardíacos, uma elevada mortalidade antes de atingir a idade da reforma ou de viver apenas brevemente a reforma, mas também por inúmeras expressões psicológicas de isolamento e estreiteza de espírito, que reaparecem irreconhecíveis no sistema capilar de relações pessoais do processo de trabalho.
Seria agora necessário chegar a uma conclusão, para elaborar as consequências finais da crítica das forças produtivas precisamente como referência aos seus próprios fundamentos sócio-históricos. Aqui devem ser uma vez mais fundamentalmente contrastadas a posição marxiana genuína e a posição da crítica das forças produtivas.
1. Para Marx o processo de cientificização de toda a reprodução social sob a dominação da abstracção do valor é ao mesmo tempo o inexorável processo de “abstracção” do trabalho concreto, isto é, o seu “esvaziamento de sentido” para o produtor imediato. Ao mesmo tempo, porém, o mesmo processo de cientificização mina a própria forma de socialização abstracta do valor e transforma o fundo social de tempo ganho na forma negativa e oposta do “desemprego”. Historicamente os processos de ajustamento capitalista sucedem-se, de facto, através da capitalização e “monetarização” contínuas do mundo e da criação de novos ramos de produção, mas numa espiral cada vez mais apertada, até se chegar finalmente a um estado de recessão permanente, que leva ao absurdo a continuação da exploração de trabalho assalariado e a torna impossível. O “tempo disponível” DE TODA A SOCIEDADE cresceu então a tal ponto que, sob os ditames da abstracção do valor, “retira da circulação a maioria da população” (Marx) e a economia do valor entra assim em colapso. A compulsão histórica para a abolir implica simultaneamente, como seu conteúdo social, a abolição do próprio produtor imediato que, com a apropriação positiva do tempo disponível socialmente ganho, pode finalmente apropriar-se ele próprio das potências científicas da produção. O sujeito desta revolução só pode ser um sujeito revolucionário que abole à força toda a forma anterior de circulação da sociedade. A única alternativa a isto seria a barbárie aberta e a “queda comum das classes em luta” (Marx), em que estas “classes” por fim já não se enfrentariam de forma quase corporativa, mas apenas se diferenciariam entre os “funcionários” da abstracção do valor que “querem conservar o valor como valor” (Marx), por um lado, e as massas “fora de circulação” ou os restos dos produtores imediatos que permanecem no processo de produção, por outro.
2. Para a crítica das forças produtivas, pelo contrário, o processo de cientificização é em si mesmo um “falso princípio” que deve ser corrigido para trás. O processo de “esvaziamento de sentido” para o produtor imediato deve “poder ser parado” no seio da economia do valor ontologicamente pressuposta, em parte através do estabelecimento de qualificações quase manuais “relativamente não alienadas” no seio do trabalho assalariado industrial, em parte através de “pequenos circuitos” sob a forma de “produção simples de mercadorias” de economia alternativa e através da “auto-suficiência”, em que o anti-industrialismo radical e o idílio do artesanato representam mais um exagerado aumento de ideologia do que um conceito real. A produção negativa de tempo socialmente disponível é completamente ignorada, os “desempregados” são vistos apenas como uma categoria social empírica e, em última análise, entregues ao “cuidado dos pobres” do Estado social, eventualmente sob a forma de um “rendimento mínimo garantido”. A economia do valor e o produtor imediato são pensados como categorias imutáveis e eternas, fora das quais a reprodução social não parece sequer concebível. O sujeito destas mudanças só pode ser um sujeito reformista, por exemplo, pequenos empresários alternativos (yuppies do muesli); Estado liberal, gestão esclarecida, sindicatos reformistas etc. Pressupõe-se o funcionamento básico do mercado mundial; considera-se que uma crise fundamental da economia capitalista foi ultrapassada e parece estar excluída.
Fica um sabor mais do que insípido quando os críticos das forças produtivas se preocupam com a preservação das “mãos hábeis” e querem “recuperar” a “reunificação da cabeça com a mão” no processo de produção; o “resgate” do produtor imediato é assim simultaneamente a sua perpetuação. Isto exprime claramente o interesse corporativo da intelligentsia das ciências sociais, que só quer enriquecer a existência do produtor com “competência” e “satisfação profissional” para o manter “abaixo do nível académico” e não o deixar aproximar-se do seu próprio “diferente nível de aspiração”. A intelligentsia das ciências sociais em sentido lato, que conheceu uma enorme expansão no clima keynesiano dos anos 70, não só está à altura da sua profissão como brigada de reparação social e ideológica da economia do valor, mas também (tal como os trabalhadores qualificados) defende a sua posição colectiva como especificamente corporativo sujeito abstracto da mercadoria-dinheiro, contra as tendências niveladoras do processo de socialização fordista a que é tardiamente sujeita como praticamente a última categoria social.
Deste modo se torna finalmente claro o significado social do “adeus à classe operária”. Esta palavra de ordem não significa uma reavaliação do antigo movimento operário que está a chegar ao fim, nem da sua imanência no trabalho assalariado de tom ainda corporativo, mas pelo contrário significa apenas o recuo da intelligentsia académica de esquerda, do continuum da formação de teorias revolucionárias relacionadas com a sociedade como um todo para a ideologização tacanha de um ponto de vista imanente e corporativo. A proclamação orgulhosa de uma teoria científica, sem recuar perante dificuldades com a polícia por causa dos seus resultados, transformou-se num uivar com os lobos e na captura do pedaço de valor “apropriado”. E quanto mais tacanha e anticientífica, quanto mais ideológica e conformista se tornava a posição, tanto mais moralista e chorosa tinha de ser estilizada como o “ponto de vista humano”, que não era “nem de direita nem de esquerda, mas da frente” etc. A abolição revolucionária da economia do valor, que aqui só pôde ser sugerida, só pode ser o resultado de uma prática social e de um “discurso social” de grande alcance com ela relacionado. Mas hoje a intelectualidade académica de esquerda no seu estado regressivo tem de recusar totalmente este discurso, marginalizando e silenciando todas as abordagens neste sentido ou denunciando-as como uma “recaída no dogmatismo”. A crise em que já não querem acreditar atingi-los-á com a mesma força que a todas as outras corporações sociais, tornando palpavelmente claras a irracionalidade e a falta de fundamento dos seus conceitos reformistas.
BIBLIOGRAFIA
Otto Ullrich, Technik und Herrschaft [Técnica e dominação], Ffm. 1977, citado com a abreviatura TuH;
Otto Ullrich, Weltniveau [Nível mundial], Berlin 1980, citado com a abreviatura WN;
Winfried Thaa, Herrschaft als Versachlichung [Dominação como objectivação], Ffm. 1983, citado com a abreviatura HaV.
Original “DIE HERRSCHAFT DER TOTEN DINGE. Kritische Anmerkungen zur neueren Produktivkraft-Kritik und Entgesellschaftungs-Ideologie”: primeira parte, até ao ponto 3. b), publicada na revista Marxistische Kritik Nr. 2, Jan. 1987, pag. 7-68 (online: https://www.exit-online.org/druck.php?tabelle=autoren&posnr=81) ; segunda parte, do ponto 3. c) até ao fim, publicada na revista Marxistische Kritik Nr. 3, Jun. 1987, pag. 53-113 (online: https://www.exit-online.org/link.php?tabelle=autoren&posnr=82) . Tradução de Boaventura Antunes (11/2024)