DINHEIRO E ANTI-SEMITISMO

 

A loucura estrutural na modernidade produtora de mercadorias

 

Robert Kurz

 

1. O fetichismo do dinheiro * 2. A miséria da concorrência * 3. A naturalização do social * 4. A obrigação de trabalhar e a obsessão do desempenho * 5. Capital «criador» e capital «rapinante» * 6. Auschwitz – a revolução alemã * 7. Crise do trabalho e capitalismo de casino

 

1. O fetichismo do dinheiro

O dinheiro é o fluido omnipresente da modernidade, o lubrificante geral da sociedade, a forma abrangente de reprodução: «Money makes the world go round». O dinheiro é também a forma universal da riqueza, pois com dinheiro pode-se (supostamente) comprar tudo; ele abre o acesso aparentemente ilimitado dos que têm capacidade de pagamento às possibilidades do mundo e é por isso também o objecto universal do desejo. Por todas estas razões, o dinheiro é elogiado pelos ideólogos da economia moderna como a invenção mais inteligente e benéfica da humanidade.

Mas, ao mesmo tempo, o dinheiro é também a forma de um terror universal e, como reverso negativo da riqueza, a fórmula de uma pobreza monstruosa, que já não surge das condições naturais, mas é produzida artificialmente pela sociedade. O dinheiro aparece como um poder sinistro, porque é uma «coisa abstracta», indiferente a todos os conteúdos sensíveis, ao ser humano e à natureza, aos sentimentos e aos laços pessoais. O dinheiro pode representar tudo e nada, abrange todas as coisas do mundo e, no entanto, é completamente vazio, uma espécie de nirvana económico. Nesta abstracção social do dinheiro esconde-se um enorme potencial destrutivo, assim que ele se impõe realmente contra o mundo sensível: «Fazer valer abstracções na realidade significa destruir a realidade» (Hegel). No dinheiro, as relações sociais e materiais invertem-se simultaneamente de forma paradoxal: na sua relação social recíproca, os seres humanos não se representam a si mesmos, mas sim quantidades da pseudomatéria social abstracta (ouro, moedas, notas, impulsos contabilísticos).

Marx chamou a essa relação absurda o «fetichismo» da produção de mercadorias. O dinheiro só surge através de uma divisão social de funções, na qual a actividade para a reprodução da vida no «processo de metabolismo com a natureza» (Marx) não é organizada conscientemente em comum, mas ocorre como produção privada separada para mercados anónimos. A produção só se torna social posteriormente, através de actos de troca, cujo meio cego é o dinheiro (a «mercadoria universal»). O dinheiro representa o comum abstracto de produtos qualitativamente diferentes, o seu chamado valor, que por sua vez mais não representa do que o dispêndio da quantidade de energia humana socialmente necessária para a sua produção. Socialmente é necessário abstrair da forma concreta desse dispêndio, porque ele só pode referir-se à equivalência abstracta das mercadorias. Orientado desde o início para essa generalidade abstracta do valor e da sua forma de manifestação, o dinheiro, o lado abstracto da actividade é determinado como o chamado «trabalho» (dispêndio de energia humana simplesmente), o que inclui uma «indiferença universal» dos produtores em relação ao conteúdo da sua produção. O importante é «ganhar dinheiro».

Naturalmente que o lado destrutivo do dinheiro e da sua «abstracção real» (Sohn-Rethel) não ficam ocultos para a sociedade e seus indivíduos. Desde cedo, essa contradição suscitou a tentativa de distinguir ideologicamente o dinheiro «bom» e o dinheiro «mau». O momento destrutivo e abstracto deveria ser separado e projectado num poder negativo e externo, como as comunidades judaicas foram definidas desde o final da Idade Média (na sequência da reserva religiosa contra os «assassinos de Cristo»). O anti-semitismo pretende, portanto, manter a forma do dinheiro e definir a sua estranha e irracional falta de conteúdo como uma suposta «característica judaica», transformando assim «os judeus» em bodes expiatórios. É a reacção imanente irracional à irracionalidade do fetichismo das mercadorias e do dinheiro.

 

2. A miséria da concorrência

No entanto, este fetichismo só se torna uma relação geral e abrangente através da transformação moderna do dinheiro em capital produtivo: o dinheiro é reacoplado a si mesmo para se «valorizar» (para fazer dois de um) – e assim se tornar o «sujeito automático» (Marx) de um novo modo de produção. «O meio é a mensagem» (McLuhan); o meio de troca transforma-se num fim-em-si, que gradualmente se apodera de toda a reprodução.

Na interdependência entre «trabalho abstracto» e «valorização do valor» surge um novo tipo de «socialização negativa», em que a actividade social é individualizada e tornada absolutamente dependente das leis autónomas do movimento da «coisa abstracta», às quais todos os membros da sociedade têm de se submeter como «indivíduos isolados». As pessoas entram assim numa relação recíproca de concorrência total, na qual as forças produtivas se desenvolvem com uma dinâmica nunca antes vista, mas de uma forma compulsiva, paradoxal e destrutiva, que se descarrega em crises e catástrofes.

E é apenas lógico que este paradoxo social dinamizado, cuja estrutura não é muito diferente da loucura clínica (embora numa forma social objectivada), produza uma mistura explosiva de medo e desejo. A libertação deste delírio estrutural só poderia consistir na substituição do fetichismo do «trabalho», do valor e do dinheiro por uma nova estrutura de auto-entendimento social consciente, na qual todos os seres humanos participassem (por exemplo, sob a forma de um sistema de conselhos ou comités) e decidissem em conjunto sobre o uso sensato dos seus recursos e forças produtivas. No entanto, a humanidade ainda não conseguiu chegar a essa práxis de razão social e material-sensível, para lá da modernidade produtora de mercadorias, depois de as leis coercivas do «trabalho» e do dinheiro terem sido interiorizadas num processo de vários séculos de opressão, violência, «educação» e «diligência» abstracta (industrialização) e, de certa forma, transformadas em tabu: quem critica directamente a estrutura fundamental fetichista e a quer abolir é considerado louco.

Na história da imposição deste sistema produtor de mercadorias, surgiram por isso várias ideias e formas de reacção imanentes, para supostamente acabar com as contradições e crises do fetichismo moderno no seu próprio terreno (sem transformação real). Contra a racionalidade do liberalismo, que (ainda hoje) propaga a corrida cega da concorrência e, ao fazê-lo, aceita a exclusão de massas crescentes de pessoas, posicionou-se a racionalidade do socialismo de Estado, de Bismarck a Lenine e de Keynes a Castro, para ultrapassar os efeitos críticos da concorrência em diferentes sistemas, mais ou menos extensos, de regulação estatal (deficit spending, Estado social, Estado como empresário geral etc.), sem no entanto abolir a produção de mercadorias, o mercado e a forma monetária. Mas estas tentativas de socialismo de Estado, em todas as suas variações, tiveram de fracassar repetidamente (e hoje definitivamente), porque o Estado é apenas o outro polo da generalidade abstracta fetichista e continua afinal dependente das leis cegas do dinheiro capitalizado. Sob o manto da regulação estatal, a concorrência continua a fermentar e irrompe com ainda mais violência (tanto na economia interna como nas relações externas).

Como o socialismo de Estado, baseado no sistema produtor de mercadorias não abolido, é muito fraco para poder ultrapassar a irracionalidade da estrutura fetichista e do sistema de concorrência a ela associado, surgiram simultaneamente, desde o século XIX, várias correntes político-sociais de uma irracional «continuação da concorrência por outros meios», no centro ideológico das quais se encontra o anti-semitismo: a projecção das características abstractas e destrutivas da forma monetária sobre «os judeus» continua na sua definição como o «exterior» estranho da concorrência. O medo universal na «guerra de todos contra todos» (Hobbes) gera o desejo de um «nós» claro, que apesar da concorrência está fora da concorrência, imaginado na forma de um meta-sujeito contra «os outros» como um sistema de inclusões e exclusões sociais, em que “o judaico” figura como o Outro e o Estranho universal, que reúne em si todas as qualidades negativas do dinheiro e da concorrência.

O anti-semitismo absorveu repetidamente elementos tanto do liberalismo como do socialismo de Estado para se formar socialmente (historicamente na forma do fascismo e do nacional-socialismo). Isso revela tanto as diferenças como as afinidades e sobreposições entre liberalismo, socialismo de Estado e anti-semitismo, que expressam de maneiras diferentes a mesma irracionalidade racional ou o mesmo racionalismo irracional no terreno comum do moderno sistema fetichista.

 

3. A naturalização do social

O automovimento cego e solto da «coisa abstracta», tornado social total na forma do capital, levou os ideólogos desse sistema, desde o início, não apenas a equiparar a «segunda natureza» da socialização fetichista (privada da vontade humana na sua determinação da forma) à «primeira natureza», mas a identificá-las directamente. Já os clássicos do liberalismo e da «economia política» consideravam naturalmente as leis cegas do dinheiro e do mercado como leis naturais. A «máquina do mundo» física do universo mecânico de Newton encontrou o seu equivalente na igualmente mecânica «máquina do mundo» económica, ou adorável «bela máquina» (Adam Smith) do capital. A metafísica do dinheiro tornou-se a física do mercado universal. Enquanto que, no contexto da sua crítica ao fetichismo, Marx ainda considera negativa esta pseudofísica das categorias de um sistema produtor de mercadorias e formula a sua apresentação como crítica radical, o socialismo de Estado (mesmo na sua variante «marxista») recaiu no positivismo das «leis» fetichistas que, «independentes da vontade humana», parecem ser pressupostas como quase naturais.

Mas esta naturalização pseudofísica do social continuou, pouco depois, numa biologização do desenvolvimento social e das características sociais. A descoberta de Darwin sobre a evolução biológica, que marcou uma época, foi de imediato socialmente curto-circuitada (também pelo próprio Darwin) e transferida para a história humana, como um pseudobiológico «processo de selecção» e de «survival of the fittest». Este «darwinismo social» dirigia-se contra os deficientes e as chamadas «vidas sem valor», que deveriam ser sufocadas na origem através de uma rigorosa «higiene racial» (controlo estatal da hereditariedade etc.). Nesse sentido o darwinismo social também penetrou profundamente no movimento operário marxista e foi defendido abertamente pelos seus principais ideólogos (por exemplo, Karl Kautsky).

O mesmo sociobiologismo, com o slogan da «luta pela vida», também marcou a interpretação da concorrência generalizada e o sistema de inclusão e exclusão social daí resultante. Enquanto o liberalismo defendia um processo de selecção social-darwinista individual segundo critérios capitalistas, desenvolveu-se simultaneamente um racismo biológico abrangente, que transformou ideologicamente a síndrome da concorrência, marcada pelo medo, numa luta entre raças «superiores» e «inferiores», e inventou o mito da «raça ariana» (Graf Gobineau).

O anti-semitismo foi rapidamente integrado nesta visão biológica e racista do mundo. Enquanto os chamados povos de cor (africanos, asiáticos etc.) eram definidos como raças «inferiores» ou «sub-humanos», «os judeus» figuravam, inversamente, como a «raça superior do mal» e como o grande adversário fantasmático dos «arianos». Assim como o anti-semitismo já havia projectado a negatividade estrutural da «dominação do dinheiro» e da concorrência sobre um ser «judaico», assim «os judeus» se tornaram agora simplesmente os «outros» biológicos por natureza, aos quais o mal da socialização negativa e abstracta está inerente não apenas histórica ou culturalmente, mas directamente na sua existência física, biológica e «de sangue», ou seja, corporal. O anti-semitismo completou assim a naturalização do social, presente em toda a ideologia afirmativa do moderno sistema produtor de mercadorias, levando-a à sua consequência extrema.

 

4. A obrigação de trabalhar e a obsessão do desempenho

A base e, em certo sentido, o fogo interior, a força motriz da incansável «valorização do valor» é o «trabalho» abstracto, ou seja, o dispêndio igualmente incansável de energia humana, com indiferença não apenas em relação ao conteúdo concreto do dispêndio (em princípio, o capital e seus produtores não se importam se estão produzindo tortas de chocolate ou minas antitanque), mas também em relação às consequências, «riscos» e efeitos colaterais da racionalidade (económica) a ele associada. Os fins humanos conscientes não se traduzem em actividades igualmente conscientes e organizadas em comunidade, mas, pelo contrário, os fins humanos dependem do fim-em-si em processo do valor e do «trabalho» como sua forma de movimento abstractificada. Apesar desse absurdo, o conceito abstracto de «trabalho» foi notabilizado como um nobre objectivo ético desde o início da era moderna. Enquanto em todos os modos de produção pré-modernos a subsunção das pessoas à abstracção de uma actividade determinada por outros era considerada negativa e inferior, o «trabalho» ascendeu na «ética protestante» ao objectivo paradoxalmente positivo da auto-realização humana sob o olhar de Deus. Isso anunciou a secularização da religião na forma da submissão à «máquina do mundo» capitalista.

Tanto o liberalismo como o socialismo de Estado (marxista) revelaram-se herdeiros desta «ética protestante». Com o desenvolvimento progressivo do sistema produtor de mercadorias, o «trabalho» abstracto e as «virtudes secundárias» igualmente abstractas a ele associadas (diligência, disciplina, pontualidade etc.) foram propagadas de acordo com o fim-em-si da «coisa abstracta», e a definição de «bem-estar» foi tornada dependente delas, sem levar em consideração o sentido social e o bem-estar real dos indivíduos. A obrigação de trabalhar e a obsessão do desempenho em «construções piramidais» cada vez mais absurdas, em nome do dinheiro que se tornou um fim-em-si, fizeram com que as possibilidades positivas do desenvolvimento das forças produtivas fossem repetidamente desperdiçadas.

Em vez de atacar essa relação fetichista juntamente com o seu conceito abstracto de actividade, o movimento operário histórico só conseguiu chegar a uma crítica imanente ao sistema e assumiu como seu o ponto de vista do «trabalho». Embora fosse em si uma abstracção e, como tal, realmente determinado pelo fim-em-si abstracto do dinheiro, o «trabalho» (especialmente a actividade produtiva imediata) aparecia como «concreto» e significativo em oposição ao mundo abstracto da forma monetária. «Capital» e «trabalho» não foram, portanto, entendidos como as duas faces da mesma moeda, mas como opostos externos. Em vez de uma crítica da forma fetichista da sociedade, surgiu a crítica do «não trabalho» ou do «trabalho improdutivo», do «rendimento sem trabalho», do «parasitismo», dos «avessos ao trabalho», dos «aproveitadores» etc. Ironicamente, o liberalismo desenvolveu critérios muito semelhantes, embora com outros actores (aqui, os próprios trabalhadores assalariados rebeldes e que lutavam pela redução da jornada de trabalho eram considerados uma «corja preguiçosa»).

Ainda que August Bebel tenha chamado a ideologia anti-semita de «anticapitalismo dos idiotas», o anti-semitismo conseguiu ligar-se tanto à basilar «ética protestante» e à obsessão liberal pelo desempenho, como à conexa crítica redutora do capitalismo feita pelo movimento operário marxista. Não foi por acaso que «O trabalho liberta» estava escrito sobre o portão de Auschwitz. A positivação do «trabalho» e a estigmatização do «não trabalho», da «ociosidade» etc. tinham apenas de receber uma conotação biologista com os respectivos atributos para que se encaixassem na visão anti-semita do mundo. Assim se repetia a atribuição naturalizante do negativo: os africanos, os eslavos etc. eram definidos como os «inferiores avessos ao trabalho», enquanto «os judeus» eram definidos como os «negativamente superiores avessos ao trabalho» e como o verdadeiro contrapolo do princípio «ariano» do «trabalho honesto».

Como supostos suportes do dinheiro «maligno» e da abstracção real social em geral, «os judeus» foram identificados não apenas com a imagem de inimigo da «ociosidade parasitária» sofisticada, mas também com as abstracções da razão reflexiva. Não foi por acaso que Marx chamou à lógica «dinheiro do espírito». E assim como na casa do enforcado não se pode falar da corda, na sociedade produtora de mercadorias baseada em abstracções reais não se pode, através da reflexão, chamar inadvertidamente pelo seu próprio nome a forma fetichista abstracta. Embora seja precisamente o banal senso comum das pessoas «ganhadoras de dinheiro» que pensa de forma abstracta até à estupidez, como já Hegel demonstrou, o «pensador abstracto», na sua forma reflexiva e portanto de algum modo perigosa, é mal visto desde que a consciência social se tornou cada vez mais positivista com a imposição crescente do «ganhar dinheiro» total. Tanto o pragmatismo liberal como o vulgar marxismo do movimento operário desenvolveram, portanto, juntamente com o sentimento contra as respectivas definições de «não trabalho» e «improdutividade», um grau correspondente de hostilidade ao intelectual, que o anti-semitismo absorveu à sua maneira: O «flâneur judeu» «improdutivo» e ocioso ou o «elegante bon vivant judeu» tornou-se quase sinónimo da figura do «intelectual judeu subversivo», no qual a força negativa da abstracção se volta reflexivamente contra o «bom» princípio do «trabalho».

 

5. Capital «criador» e capital «rapinante»

A afirmação do «dinheiro bom» contra o «dinheiro mau», o elogio do «concreto» (que, na verdade, é apenas a concretização da própria socialização moderna realmente abstracta) contra o «abstracto» e a apoteose do «trabalho» contra a ociosidade e o «parasitismo» só podem resultar numa coisa, no sistema da economia política: uma crítica truncada do capital que rende juros, identificado com a negatividade de todo o modo de produção. Embora o capital financeiro seja logicamente apenas uma forma derivada do capital produtivo e os juros apenas um componente da criação industrial de mais-valia, neste entendimento superficial apenas os juros que têm de ser pagos pelo dinheiro emprestado ou pelo capital monetário aparecem como «extorsão da mais-valia» e como «rendimento sem trabalho» moralmente injustificado. Do ponto de vista económico, apenas os proprietários de capital monetário, banqueiros etc. são considerados «capitalistas», enquanto os empresários industriais são vistos como uma espécie de «trabalhadores dirigentes» com um salário empresarial ligeiramente mais elevado ou um «prémio de risco».

Tanto os próprios empresários industriais como as pequenas empresas familiares e os artesãos, que dependem de empréstimos bancários e podem a qualquer momento cair na «armadilha da dívida», tendem facilmente a essa visão, do ponto de vista dos seus interesses imanentes. Nesse sentido, é até mesmo concebível uma crítica liberal ao capitalismo financeiro; e, no movimento operário, foi consequentemente a ala quase liberal, na forma de uma parte dos anarquistas, que, a partir de uma posição mais voltada para a pequena empresa ou no sentido de cooperativas produtoras de mercadorias, exigiu a «quebra da servidão dos juros» (Proudhon). O marxismo do movimento operário rejeitou essa posição como pequeno-burguesa; mas a sua própria ideologia socialista de Estado, que não tinha como objectivo a abolição da relação fetichista e do trabalho assalariado nela incluído, mas apenas a nacionalização e a regulamentação burocrática do capital produtivo privado, não estava assim tão longe disso. Na prática da agitação marxista de massas, sobretudo sob o signo de uma «política de alianças» com os diversos «pequenos produtores de mercadorias» trabalhadores, o capitalismo financeiro passou, como que por si só, para o centro das críticas e foi inflado como o vilão geral.

O anti-semitismo pôde facilmente tirar proveito da crítica truncada do capital que rende juros, pois já desde o final da Idade Média «os judeus» eram considerados usurários (por exemplo, de forma agressiva e quase incitadora ao pogrom, por Martinho Lutero). Essa classificação devia-se ao facto de, segundo a Bíblia, os cristãos serem oficialmente proibidos de cobrar juros, enquanto no comércio havia necessidade de crédito. Em muitas cidades as comunidades judaicas eram proibidas de exercer actividades comerciais por motivos de concorrência. Assim alguns cidadãos judeus foram obrigados a dedicar-se ao comércio e ao empréstimo de dinheiro (embora o Antigo Testamento também proibisse a cobrança de juros). O trapeiro e sucateiro judeu tornou-se proverbial, enquanto a existência historicamente consolidada de algumas famílias de banqueiros judeus (entre elas os famosos Rothschilds) pôde ser ligada a um mito odioso do «capital financeiro judaico». O facto de a esmagadora maioria dos judeus ser tudo menos poderosos financeiros não incomodava ninguém.

Daí que, desde os tempos de Lutero até ao século XX, a crítica errada e alheia à essência do fetichismo moderno da «escravidão dos juros» tenha sido misturada com tons anti-semitas. Aqui a regra geral é: nem todos os críticos do capital que rende juros são (abertamente) anti-semitas, mas todos os anti-semitas são críticos do capital que rende juros. Trata-se, de certo modo, de uma «economia política do anti-semitismo», que se apresenta simultaneamente como uma visão irracional do mundo. Essa ideologia amplamente difundida desde Proudhon, que também se encontrava nos antroposofistas de Rudolf Steiner e nos seguidores do charlatão económico Silvio Gesell (como em todos os movimentos sectários do período pré e pós-guerra), foi sintetizada pelos nacional-socialistas e levada ao extremo. Na contraposição entre capital «criador» e capital «rapinante», a ideologia nazi resumiu todos os momentos da síndrome anti-semita.

Isso incluía também a ideia abstrusa da «conspiração judaica mundial», que desde o final do século XIX pairava como um fantasma: O anonimato e as leis supranacionais do mercado mundial foram demonizadas através de uma analogia entre as relações financeiras transnacionais e a existência «suspeita» de guetos judaicos espalhados pelo mundo, identificados como desleais no sentido nacionalista, a fim de identificar um «causador» diabólico que puxava os cordelinhos nos bastidores para os incompreendidos efeitos sem sujeito das relações de concorrência, fluxos de capital e fluxos de comércio globais (de certa maneira, a mania da «conspiração judaica mundial» é uma caricatura da filosofia iluminista, que também remete a história a sujeitos que agem conscientemente, sem nada suspeitar de estruturas fetichistas).

Da mesma forma, a irracional «economia política do anti-semitismo» explica também as crises capitalistas. O verdadeiro limite interno da acumulação encontra-se no próprio capital produtivo: quando, para uma determinada estrutura industrial, a capacidade de expansão dos mercados se esgota e a racionalização consome mais postos de trabalho do que os que são criados, os lucros realizados em períodos de produção anteriores já não podem ser investidos de forma suficientemente rentável em investimentos produtivos adicionais. Esta situação de «sobreacumulação» (Marx) do capital leva, por um lado, a uma espiral negativa de crises, despedimentos, contracção dos mercados etc. Por outro lado, o capital monetário que não pode mais ser reinvestido rentavelmente flui para os mercados financeiros e, sob a pressão da valorização, gera uma bolha especulativa (a criação de valores fictícios), cujo estouro alimenta ainda mais a crise. A teoria irracional da crise, que se fixa unilateralmente no capital financeiro, simplesmente inverte causa e efeito neste desenrolar da crise: a especulação, que surgiu da própria crise do capital produtivo, aparece inversamente como sua causa, e «os especuladores» são declarados os sujeitos maliciosos da crise. E como o capital financeiro já é definido como «judeu», não é preciso grande dedução para classificar adequadamente a específica figura de crise do «especulador». Foi assim que os nazis interpretaram a crise económica mundial de 1929-33 com um sucesso propagandístico considerável.

 

6. Auschwitz – a revolução alemã

A síndrome anti-semita acompanhou o capitalismo desde o início e sempre esteve presente em todos os países do moderno sistema produtor de mercadorias – mesmo onde não há judeus. É precisamente o «anti-semitismo sem judeus» que prova o carácter dessa ideologia agressiva como visão irracional do mundo, que não surgiu de conflitos empíricos. No entanto, isso não explica por que razão a presença universal do anti-semitismo no mundo moderno só na Alemanha conseguiu intensificar-se até ao crime contra a humanidade que foi o Holocausto. Auschwitz conservará provavelmente para sempre um momento de inexplicabilidade que não é acessível à razão reflexiva. No entanto, é possível apontar razões pelas quais o Reich alemão se tornou o organizador deste horror universal.

Em primeiro lugar, no século XIX, a Alemanha era, entre os grandes países capitalistas, a retardatária histórica, a «nação atrasada». Enquanto na Inglaterra, França e EUA a modernização ainda esteve associada a um ênfase burguesa revolucionária e a esperanças republicanas, na Alemanha ela só começou em meados do século, juntamente com a grande crise de transformação da industrialização. Ideologicamente, a formação do Estado nacional capitalista moderno na Alemanha estava, portanto, menos ligada ao pensamento superficialmente racionalista da Iluminismo, e mais já ao contramovimento romântico irracional, que se manifestou numa mistura contraditória de elementos modernizantes com uma crítica reaccionária e fantasmática da «economia monetária abstracta». Uma consequência disso foi que a nação alemã, em contraste com o conceito ocidental de direito e de Estado, foi legitimada biologicamente por teorias da descendência «etnicistas» e raciais (até hoje, a cidadania da República Federal da Alemanha é definida dessa forma «pela linhagem de sangue»!). Esta base ideológica e até jurídica do Estado nacional alemão favoreceu de maneira especial uma teoria social e de crise irracional, biológica e justamente também anti-semita. As elites alemãs foram quase todas contaminadas por ela, incluindo pessoas de que hoje não se suspeitaria (por exemplo, Thomas Mann).

Em segundo lugar, a Alemanha era conhecida por ser o único dos grandes países capitalistas que não passou por uma revolução burguesa (o episódio ridículo e fracassado de 1848 pode ser esquecido). A modernização e a formação do Estado nacional foram levadas a cabo «de cima», pelo antigo aparelho absolutista liderado pela Prússia, particularmente autoritária e militarista. A história da modernização alemã não foi, portanto, marcada por revoltas e revoluções, mas por uma «obediência cega», como fenómeno de massas interiorizado na família, na escola, na fábrica e no exército. O movimento operário socialista também estava mais impregnado do espírito desta disciplina prussiana do que noutros países.

Com a união da autolegitimação irracional «etnicista»-biologista da «nação alemã» e da tradição autoritária prussiana, surgiu, sob a forma do nacional-socialismo, uma tentativa de «libertar» o mundo capitalista do «trabalho» da violência da abstracção real, com o anti-semitismo como doutrina de Estado; mas não através da resistência social, de revoltas ou de uma revolução, e sim através da aniquilação física dos supostos portadores biológicos do mal «abstracto», do «não trabalho» parasitário, do «intelectualismo subversivo», do capital financeiro «rapinante» e da «especulação» causadora de crises etc. Numa palavra: o «capitalismo alemão» (e o capitalismo em geral) deveria ser transformado, através do gaseamento dos judeus, numa sociedade totalmente «concreta», em que o «trabalho» se tornaria uma generalidade biologicamente pura, sem a lei coerciva da valorização abstracta.

O teórico norte-americano Moishe Postone formulou de forma certeira este monstruoso absurdo do nacional-socialismo: «Auschwitz era uma fábrica de destruição do valor». Lá não se produzia nada, mas eliminava-se em série a abstracção real social da modernidade, sem a superar emancipatoriamente. Não foi apenas o número de milhões de vítimas que tornou o Holocausto uma singularidade histórica, mas a completa ausência de um ponto de vista de interesses definível, como se encontra, de uma forma ou de outra, por trás de todos os outros genocídios e assassinatos em massa da história da modernização. O Holocausto foi um fim-em-si executado com fanatismo (até mesmo recursos importantes para a guerra lhe foram sacrificados) para se livrar do fim-em-si do capital. O capitalismo não ultrapassado deveria transformar-se, com a ajuda das câmaras de gás, numa forma em si mesma não capitalista. Nesse sentido, Auschwitz foi a «revolução alemã» – a única que alguma vez «se conseguiu» neste país. Os alemães, obedientes até à morte, defenderam firmemente esta «revolução» e executaram-na com a precisão de um relógio, disciplinados em todas as virtudes secundárias. Só neste país, com esta história específica, é que a síndrome anti-semita pôde intensificar-se como uma pseudo-revolução «de cima», até à última barbárie imaginável.

 

7. Crise do trabalho e capitalismo de casino

Na história alemã do pós-guerra, a verdadeira essência de Auschwitz nunca foi discutida nem revista, porque isso teria trazido imediatamente à luz a questão fundamental do sistema da modernidade. Não só as elites capitalistas da RFA (que se apresentava como o Estado sucessor oficial do «Terceiro Reich») não tinham interesse nisso, como também para as potências ocidentais, com os EUA à frente, uma revelação das raízes da síndrome anti-semita teria sido apenas um incómodo na nova era da integração capitalista do mercado mundial. Mas também na RDA, que cultivava tradições prussianas infelizes não apenas externamente através da marcha militar da «Exército Popular Nacional», a revisão do anti-semitismo permaneceu extremamente superficial e sem convicção, sendo logo substituída por uma propaganda «anti-sionista» orientada pela política de aliança da União Soviética com os Estados árabes.

Claro que o anti-semitismo também não pôde ser identificado como o núcleo da ideologia nazi porque a crítica truncada ao capitalismo do marxismo do movimento operário não abordava a problemática da abstracção real fetichista, que era tematizada de forma irracional e assassina pela ideologia anti-semita. Os partidos socialistas e comunistas (assim como as correntes anarquistas) nunca foram os principais portadores da síndrome anti-semita, mas sempre tiveram pontos de contacto e relações pouco claras com ela (esse facto constitui a história secreta do socialismo tradicional). A visão do mundo e a interpretação da crise anti-semitas continuaram, portanto, sem ser revistas, tendo ficado «adormecidas» no subconsciente social na época da «reconstrução» e do «milagre económico».

Desde os anos 80, o capitalismo mundial entrou novamente numa época de crise, caracterizada por uma qualidade historicamente nova de automatização, racionalização e globalização do capital, sob o signo da revolução microeletrónica. Pela primeira vez, o «exército industrial de reserva» (Marx) não pode mais ser reabsorvido ciclicamente; o desenvolvimento cíclico transformou-se numa sobreacumulação estrutural do capital, acompanhada por um desemprego estrutural maciço em constante crescimento à escala mundial. Embora tenha sido proclamada a «crise da sociedade do trabalho», questionando assim uma categoria fundamental da modernidade e da sua socialização realmente abstracta, na década de 1980 ainda se acreditava que seria possível escapar facilmente dessa situação. A crítica pseudo-hedonista do «trabalho» permaneceu superficial e alimentou-se dos ecos do «milagre económico»; a esperança de uma expansão do «tempo livre» capitalista com rendimentos elevados e elevados padrões de consumo mostrou que a relação entre «trabalho» e forma monetária não fora compreendida.

Nos anos 90, surge então a grande ressaca. Após o colapso do socialismo de Estado, que foi um momento da nova crise mundial, toda a crítica fundamental ao sistema concorrencial se calou, enquanto, ao mesmo tempo, a relação recalcada entre as categorias capitalistas vem à tona: a crítica superficial e consumista do «trabalho» é substituída pelo clamor por «postos de trabalho» e por um debate frenético sobre a «localização do investimento». Contra a globalização, é precisamente a esquerda que quer refugiar-se no keynesianismo há muito obsoleto, ligado à regulação nacional. Esta nostalgia keynesiana, que vai da social-democracia de direita aos restos do radicalismo de esquerda, não quer admitir o carácter fundamental da crise. A esperança de que «haja dinheiro suficiente» é uma exigência irreal dirigida ao Estado, para que este traga de volta à comunidade nacional os mercados financeiros à solta.

Contra o capitalismo de casino de uma superestrutura especulativa sem precedentes na história, que surgiu da sobreacumulação estrutural do capital, clama-se impotentemente por «investimentos produtivos». No congresso do SPD no início de Dezembro de 1997, o presidente Lafontaine exigiu que se agisse «contra os especuladores». Em toda a Europa (e no mundo inteiro), sindicatos, verdes, socialistas, comunistas etc. tocam a mesma música. Certamente não são (ainda) anti-semitas, mas mobilizam todos, mas mesmo todos os motivos da «economia política do anti-semitismo», em vez de abandonarem o paradigma fraco e caduco do socialismo de Estado e passarem a uma crítica emancipatoriamente abolicionista da abstracção real fetichista.

A nostalgia keynesiana da esquerda torna-se assim a involuntária impulsionadora de uma nova onda anti-semita de interpretação fantasmática da crise, ainda pouco clara na sua forma. Na extrema direita do conservadorismo, no espectro radical de direita, em gangues de skinheads, no exército alemão etc., já florescem abertamente slogans e «incidentes» anti-semitas. Nunca nos últimos 50 anos ficou tão claro como hoje que o anti-semitismo só pode desaparecer juntamente com o capitalismo. Na crise é evocada esta verdade elementar. O «adormecido» desperta, os demónios regressam.

 

 

Original Geld und Antisemetismus. Der strukturelle Wahn in der warenproduzierenden Moderne” in exit-online.org. Originalmente publicado em Streifzüge 1/2002. Incluído na colectânea de textos de Robert Kurz Weltkrise und Ignorance. Kapitalismus in Niedergang, Tiamat, Berlin, 2013. Tradução de Boaventura Antunes (07/2025)

 

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