A RUÍNA
IMINENTE DE UM AMEAÇADOR TIGRE ASIÁTICO
Modelo econômico adotado pela Coréia do Sul demonstra sinais
de falência
Em
outubro de 1996, um sonho parecia tornar-se realidade: a
República da Coréia do Sul, como segundo país asiático depois
do Japão, foi integrada à Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômicos (OCDE) e, em consequência, ao clube
exclusivo dos predominantes Estados industriais do mundo. Em
geral, tomou-se tal fato como prova da ascensão irrefreável do
sudeste asiático na hierarquia do mercado mundial. Com o
ingresso da Coréia do Sul, escreveram muitos comentadores,
abriu-se definitivamente a porta aos "tigres"
asiáticos, e a OCDE no século 21 será dominada pela Ásia.
Menos de seis meses mais tarde, o verniz do modelo bem-sucedido
há pouco festejado já começava a descascar: a Coréia do Sul
amargou em janeiro de 1997 as maiores greves e abalos sociais de
sua história. À primeira vista, poderia parecer que o movimento
grevista era somente uma consequência natural do sucesso
sul-coreano nos mercados mundiais. Os operários nos
países-tigres, diz-se hoje, querem simplesmente reivindicar a
sua fatia no enorme bolo. Precisamente porque a Coréia do Sul
"teve êxito" e alcançou os Estados industriais do
Ocidente, agora chega ao fim a própria lenda das "sóbrias
e industriosas abelhas asiáticas".
Os padrões ocidentais de consumo teriam pretensamente o acesso
facilitado, e o nível de vida da população, em conformidade ao
status atingido no mercado mundial, seria ajustado para cima.
Também o regime autoritário do país e das empresas não seria
mais oportuno. A OCDE já dirigia críticas à proibição
francamente arcaica de sindicatos livres na Coréia do Sul e
exigia a "normalização" das relações jurídicas
para permitir "debates civilizados" entre empresas e
sindicatos. O governo da Coréia do Sul teria de manter a
promessa feita quando de seu ingresso na OCDE e garantir a
liberdade de associação sindical e de acordos salariais, como
é de bom-tom a um membro digno da OCDE.
Esse enfoque da situação presente na Coréia do Sul, no
entanto, é apenas meia verdade. O movimento grevista não é uma
reação atrasada dos trabalhadores ao sucesso, porém justamente
o inverso: é uma reação antecipada ao malogro da incipiente
industrialização voltada às exportações. Na verdade, os
padrões de consumo na Coréia do Sul há muito se elevaram. O
nível salarial fora já nos anos 80 alçado de patamar, e, a
partir de 1990, os salários aumentaram em mais de 10% ao ano,
mesmo sem greves nem manifestações. Os protestos raivosos que
surpreenderam o mundo não são ofensivos, mas defensivos. Eles
se dirigem contra a revogação de conquistas sociais, que devem
ser imoladas no altar da globalização. Pois o modelo dos
Estados-tigres já alcança os seus limites, e as greves são o
prenúncio da crise.
Em 1996, os ganhos das firmas sul-coreanas caíram em 50%, pois,
a despeito do aumento qualitativo (embora com taxas de
crescimento mais baixas), o saldo das exportações encolheu em
termos absolutos. O déficit da balança comercial explodiu a
quase US$ 30 bilhões. Para um país como a Coréia do Sul, isso
é uma catástrofe. O governo e as grandes empresas dizem
resolver o problema com cortes nos encargos sociais. Eis por que
foi quebrada a promessa à OCDE de uma normalização
democrática e sociopolítica. As novas leis trabalhistas do
presidente Kim Young Sam e seu governo não apenas mantêm de pé
a proibição de sindicatos livres erguida pela ditadura como
também possibilitam aos empresários uma alteração unilateral
das jornadas de trabalho, uma redução dos salários e
sobretudo, pela primeira vez, as demissões em massa. Desse modo,
também na Coréia do Sul a tão celebrada "família
empresarial" paternalista torna-se sinônimo de bobagem.
É compreensível que os trabalhadores sul-coreanos reajam com
raiva e desespero a essa mudança drástica. Ainda há pouco eles
se mostravam orgulhosos de que o mundo lhes admirasse o país e
depositavam confiança no governo, que lhes prometia a longo
termo o crescente bem-estar. Ora, já nos anos passados a
ascensão econômica pagara o preço da devastação ecológica,
com o ar empestado, rios poluídos e florestas desmatadas. Os
habitantes da capital, Seul, se acostumaram a viajar nos finais
de semana às montanhas, munidos de galões, porque só ali ainda
se encontra água potável. Mas, mesmo assim, as pessoas
deixaram-se seduzir pela perspectiva de que a cultura da pobreza
e o seu cortejo de bicicletas e carros de boi logo faria parte do
passado. Vários operários dos quadros de elite de empresas
sul-coreanas voltadas ao mercado mundial puderam pela primeira
vez comprar carros, geladeiras e televisores _coisa que
permanecia um objetivo longínquo para o restante da população.
E agora o milagre há de ter fim sem nem sequer ter começado? A
irritação do povo e a simpatia pelos grevistas é tão grande
que até mesmo monges e freiras budistas tomam parte nas
manifestações.
Os anseios dos manifestantes estão longe de pôr em questão o
modo de vida capitalista. Eles não querem mais que o cumprimento
da promessa de normalidade democrática, empregos na economia de
mercado, motorização geral e bem-estar poe meio de uma torrente
de bens de consumo industriais. Porém com isso eles rumam a um
beco histórico sem saída, pois agora revela-se que os modelos
asiáticos de desenvolvimento não podem imitar os Estados
industriais do Ocidente e muito menos suplantá-los. Os novatos
asiáticos não assumem o lugar de Estados Unidos e Europa como
locomotiva do mercado mundial, mas somente despencam na mesma
crise após um brevíssimo vôo estratosférico. Alguns teóricos
do desenvolvimento industrial compararam precipitadamente nos
últimos anos a ascensão da Coréia do Sul e demais
países-tigres com a industrialização européia no século 19.
Ora, essa comparação é falsa. A estrutura industrial dos
países europeus não somente estava centrada nas nações, como
também tinha diante de si um horizonte temporal de
desenvolvimento de mais de 150 anos. A industrialização da
Coréia do Sul, por sua vez, ergueu-se desde o início sobre pés
de barro, porque ela já constava como parte integrante da
globalização a um nível elevado de desenvolvimento do mercado
mundial. As manobras estatais, na esteira do modelo japonês,
podiam num primeiro momento simular um desenvolvimento econômico
nacional por meio das indústrias de exportação, mas uma tal
alternativa agora é inundada mais rápido do que o esperado pela
torrente da globalização. Como a moldura do planejamento
estatal obedecia ao projeto da industrialização voltada às
exportações, a conjuntura favoreceu unilateralmente as grandes
empresas norteadas pelo mercado mundial, como Daewoo, Goldstar,
Samsung, Hyundai etc. Estas "chaebol", como são
chamadas as empresas mistas chefiadas por clãs familiares na
Coréia do Sul, não tinham desde o início qualquer interesse
numa estrutura interna equilibrada da economia sul-coreana. Tanto
os militares quanto os chefes das empresas conheciam apenas um
objetivo: ter sucesso o mais rápido possível no mercado
mundial. Eis por que eles apostaram todas as fichas numa única
vantagem, a saber, salários baixos e condições miseráveis de
trabalho.
Todas as tentativas de organização sindical foram rechaçadas
com meios brutais. Porém um tal estratagema só funcionou
enquanto a exportação se restringiu a produtos da indústria
leve (tecidos, calçados etc.). Com a transição para a
indústria pesada (siderurgia, construção naval) e de alta
tecnologia (indústria eletrônica, automobilística), as
fraquezas desse modelo, após longo período de incubação,
tinham de saltar à luz, o que ocorre hoje sob a ameaça de uma
ruína iminente. Embora o governo sul-coreano e as
"chaebol" tenham concebido formalmente seus planos a
longo prazo, sua orientação estratégica estava na verdade
programada somente para sucessos a curto prazo e uma maciça
expansão quantitativa. A diferença qualitativa entre produtos
de massa mais baratos e produtos high-tech não foi levada em
conta. Este erro de avaliação sedimentou-se numa política
míope de crescimento, cujos êxitos já eram parte do passado e
agora transformavam-se numa reação econômica em cadeia, desta
vez com sinal negativo. As "chaebol" concentraram-se em
poucos ramos, a fim de repetir nas indústrias de alta
tecnologia, por meio das exportações mais baratas, o modelo da
ofensiva de exportação das indústrias leves. Elas descuidaram
da construção de um espectro amplo de indústrias e se tornaram
dependentes de relativamente poucos produtos. A fim de cortar
gastos e avançar rapidamente nos mercados mundiais com grandes
volumes de produtos, renunciou-se nos ramos escolhidos ao
controle da escala produtiva em sua totalidade. Dessa forma,
mesmo em seus supostos ramos de sucesso, a Coréia do Sul sempre
foi dependente da importação de tecnologia japonesa e
ocidental.
A orientação a curto prazo e puramente quantitativa deu ensejo
a uma constante expansão produtiva sem o suficiente aumento da
produtividade. O grande aporte de capital foi acompanhado de um
aporte igualmente elevado de força de trabalho, sem que a
intensidade do capital crescesse em sua essência. Como num
sistema pré-moldado, uma fábrica seguia-se à outra, em linha;
havia excesso de investimento na expansão e escassez de
investimento na racionalização. A Coréia do Sul teria portanto
de concorrer também nas indústrias de alta tecnologia _contra
os antigos países industriais_ quase exclusivamente com
salários defasados e anacrônicos e com respaldo na taxa de
câmbio. Para não onerar a surtida quantitativa das
exportações, o Estado descuidou da construção da
infra-estrutura. Comparado ao aumento do volume de sua
exportação, a Coréia do Sul tem hoje pouquíssimas ruas, além
de aeroportos, portos, ferrovias, redes de comunicação etc.
pessimamente ampliados. O próprio sistema escolar e
universitário e as instituições de formação técnica ficaram
bastante para trás. Simultanemente, o governo em boa parte
largou mão de um desenvolvimento da agricultura: a Coréia do
Sul tornou-se dependente da importação de alimentos. Não
admira que essa ofensiva de fôlego curto logo tivesse de estacar
no mercado mundial. Se nos anos 80, nas asas da
"economia-vodu" de Ronald Reagan e do câmbio
extremamente alto do dólar a ela vinculado, a Coréia do Sul
pôde ainda encobrir suas debilidades internas com o fluxo de
exportação rumo aos Estados Unidos, nos anos 90 o modelo do
crescimento puramente quantitativo não se mostrava mais
sustentável. Com base na estratégia primitiva dos contínuos
investimentos na expansão, logo a força de trabalho tornou-se
escassa e, em virtude do relativo descuido do sistema
profissionalizante, a força de trabalho qualificada beirou a
extinção.
De acordo com a lei da oferta e procura, que nem mesmo uma
ditadura militar pode fazer desaparecer, os salários acabaram
por aumentar sucessivamente, em conformidade à situação. Desse
modo, o mercado interno difundiu-se com vertiginosa rapidez, mas
não para a indústria sul-coreana. Pois por motivo de sua
fixação à ofensiva das exportações, as "chaebol"
haviam-se concentrado em poucos produtos, e portanto não eram
capazes de voltar-se agora satisfatoriamente à expansão do
mercado interno. Em vez disso, o acréscimo no poder de compra
dos operários sul-coreanos reverteu em benefício principalmente
de produtores estrangeiros, que inundaram o crescente mercado
interno. A Coréia do Sul viu-se assim dependente de
importações não apenas nos setores de tecnologia e
alimentação, mas também no de bens de consumo industriais.
O modelo quantitativo de exportação meteu-se portanto numa
camisa de 11 varas. As "chaebol" perderam a sua
principal vantagem, os salários baixos, sem que pudessem por
outro lado aproveitar correspondentemente a vantagem do crescente
mercado interno. De modo concomitante, a importação de
tecnologia ocidental e japonesa encarecia, ao passo que,
inversamente, os preços dos produtos finais sul-coreanos
baixavam. Isso vale sobretudo para os semicondutores, o aço e os
produtos petroquímicos, que juntos constituem quase 40% das
receitas com exportações. Assim se explica facilmente por que o
déficit anual da balança comercial sul-coreana nos anos 90
subiu de US$ 6 bilhões para US$ 12 bilhões e afinal para US$ 30
bilhões. Como já ocorrera no começo dos anos 80, o modelo de
exportação está à beira do colapso, e a Coréia do Sul
ameaça mais uma vez cair na armadilha do endividamento externo.
As "chaebol" há muito reagiram à situação
modificada e trocaram a perspectiva de uma industrialização
econômico-nacional voltada às exportações (sob os ditames
estatais) por um novo modo de existência transnacional como
"global players". Enquanto a linha de montagem puder
ser agenciada com força de trabalho não qualificada e de baixo
custo, ela será transferida para a China ou o Vietnã. Ao mesmo
tempo, donos de grandes empresas compram estabelecimentos nos
Estados Unidos e na Europa, a fim de não serem barrados por
medidas protecionistas e tirarem proveito da melhor
infra-estrutura européia. Já em 1994 a Daewoo iniciou na
Polônia as obras de uma enorme instalação para produzir jogos
de diversão e aparelhos domésticos. Em 1995, Lee Kun Hee, chefe
da Samsung, vibrou o diapasão: "os produtos para a Europa
devem ser produzidos futuramente na Europa". Desde então, a
Samsung compra firmas européias como bananas. Em 1996 foi
adquirida uma fábrica de chips na cidade britânica de Wynward.
O Grupo LG (Goldstar) também pretende investir US$ 2,6 bilhões
num parque industrial em solo britânico. Num processo paralelo,
as "chaebol", a exemplo das empresas ocidentais e
japonesas, mergulharam de cabeça na especulação financeira
global do "capitalismo-cassino". Em 1994, nada menos
que 58% da receita da Samsung couberam a serviços financeiros e
de informação. Para a economia sul-coreana, a rápida
globalização das "chaebol" significa um agravamento
adicional da tensa situação socioeconômica. O forte refluxo de
capital priva o governo do controle sobre o futuro
desenvolvimento. Com o desvio dos investimentos para o exterior,
as demissões em massa tornaram-se inevitáveis. Não tardará a
que o emprego total, em conformidade à tendência planetária,
seja substituído também na Coréia do Sul por um desemprego
estrutural de crescimento constante. As novas leis trabalhistas
do presidente Kim Young Sam e a intransigência do governo
demonstram que a elite, como sói acontecer, deseja reagir com
"mao de ferro" à crise de crescimento. A miragem do
bem-estar industrial, consenso social e normalidade democrática
desvanece.
O mais novo membro da OCDE, após breve hesitação, parece
transitar da ditadura do desenvolvimento para a ditadura da
crise.
Publicado em 16/02/97 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.
Robert
Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, publicou no Brasil,
entre outros, ''O Colapso da Modernização'' e ''A Volta do
Potenkim'' (Paz e Terra) e é co-editor da revista ''Krisis''.
Tradução de José Marcos Macedo