A
NOVA CRISE DO DINHEIRO
Um
canto de despedida ao monetarismo
Mesmo
que a maioria dos ideólogos e mandarins da sociedade oficial não o queiram
admitir, a era do monetarismo chega ao fim. Foi uma era breve, quase tão breve
quanto a era do keynesianismo. Por mais antagônicas que sejam essas duas
vertentes da teoria e da política econômicas, elas se relacionam a um problema
comum, que ambas são incapazes de resolver. E, a cada crise geral do dinheiro,
é anunciada a falência da respectiva doutrina econômica dominante.
Nos
anos 70, foi a inflação que cavou o túmulo do keynesianismo. Como se sabe,
inflação significa um aumento geral dos preços, que remonta a uma depreciação
da moeda e não a um acréscimo da demanda real. Nos Estados Unidos, por
exemplo, os bens de consumo encareceram 45% de 1970 a 1974. E a Grã-Bretanha,
em agosto de 1975, encontrava-se à beira da hiperinflação: num único ano, os
preços haviam subido 27%. Se nos países ocidentais a inflação manteve-se
apenas a custo sob controle, nos países da periferia capitalista a situação
foi ainda pior durante os anos 80: hiperinflações entre 100% e 1.000%
disseminaram-se como uma epidemia contagiosa.
Nessa
época, a doutrina monetarista, contrária ao keynesianismo, ganhou dignidade
acadêmica e político-econômica. Milton Friedman, o ideólogo-chefe do
monetarismo, apresentou um diagnóstico bastante simples para a crise contemporânea
da moeda: "O problema da inflação é um fenômeno monetário que surge
quando a quantidade de moeda cresce mais rápido do que a produção. A
principal causa para tanto está no inchaço do aparato governamental e no
decorrente aumento das despesas estatais. Sempre que as despesas do Estado não
podem mais ser cobertas pelos impostos, o governo recorre ao imposto
dissimulado, aumentando a quantidade de moeda, ou seja, buscando refúgio na
inflação".
De
fato, a desvalorização monetária sempre teve origem na conduta financeira do
Estado. O Estado, afinal, é o verdadeiro criador e avalista da moeda: a ninguém
mais se permite cunhar moedas ou imprimir cédulas, e é o Banco Central que
controla a emissão de títulos no sistema bancário. Milton Friedman está
certo, sem dúvida, quando relaciona o problema da inflação à emissão
estatal de moeda insuflada artificialmente. Não é preciso lá muita arte para
descobrir essa correlação. Coisa diversa é a terapia exigida pela doutrina
monetária de Friedman. Essa terapia é tão simples quanto o diagnóstico: o
Estado deve ajustar a quantidade de moeda emitida à real quantidade de bens. É
por isso que o consumo estatal teria de ser reduzido drasticamente e a economia
teria de ser deixada, de novo, ao livre jogo das forças do mercado. A
"viragem" neoliberal do início dos anos 80, a política de privatização
e desregulamentação, nasce e morre, portanto, com a concepção monetarista de
um manejo restritivo da quantidade de moeda.
Mas,
quando a quantidade de moeda deve ser limitada pela "real quantidade de
bens", surge uma pequena questão: o que, afinal, é essa "real
quantidade de bens"? São os bens e serviços que podem ser gerados com as
forças produtivas humanas, técnicas e científicas? Mas este, justamente,
nunca é o caso numa economia capitalista de mercado. "Real" aqui não
é a quantidade de bens que corresponde aos recursos materiais, mas somente a
quantidade de bens cuja produção satisfaz o critério da chamada
rentabilidade. O nível de rentabilidade, por sua vez, é determinado pela média
do lucro social (hoje global). Isso significa que mesmo bens produzidos com
lucro tornam-se "não-rentáveis" quando esse lucro se situa abaixo do
nível de rentabilidade. É por isso que a economia de mercado produz sempre
abaixo de sua "real" capacidade técnica, mesmo quando há uma demanda
social urgente pelos produtos.
O
absurdo a que isso pode levar é demonstrado involuntariamente por dois
economistas norte-americanos, Clifford Gaddy e Barry Ickes, da Brookings
Institution de Washington, quando constatam com toda ingenuidade, ao comentar a
crise russa: "Muitas empresas têm produção ativa na Rússia, mas são tão
ineficientes que destroem o valor, em vez de criá-lo". Não poderia ser
dito de forma mais clara que o "valor" econômico e a "eficiência"
do capital que nele se exprime não têm absolutamente nada a ver com as
necessidades da vida humana: bens reais e funcionais, que, apesar da necessidade
urgente, não são produzidos no nível global de rentabilidade, valem
"menos do que nada" para o capital. A física da moeda é idêntica,
portanto, à metafísica do capital: de forma análoga à "realidade"
capitalista dos bens que "podem" ser produzidos, a moeda também só
tem valor econômico quando representa a rentabilidade abstrata dos bens e serviços
produzidos.
Do
prisma monetarista, o keynesianismo é avaliado pelos seus resultados sobre a
crise inflacionária da moeda e criticado, portanto, como "política
equivocada" de uma expansão unidimensional (no sentido capitalista) da
quantidade de moeda. Mas por que o keynesianismo insistiu nessa concepção,
embora também acredite piamente no critério da rentabilidade? Na verdade, a
expansão keynesiana da quantidade de moeda não foi unicamente subjetiva,
guiada por determinados interesses políticos, mas antes uma reação
desesperada a um trauma estrutural do capitalismo desenvolvido no século 20. A
grande crise econômica mundial de 1929-33 e a longa estagnação que se seguiu
desviaram a atenção teórica e político-econômica para um problema
totalmente diverso. Isso porque, em vez do monstro da inflação, quem ergueu
sua cabeça hedionda foi outro monstro, o da deflação.
Deflação
significa que os preços caem dramaticamente na mesma proporção que sobem na
inflação. Porém a redução deflacionária da demanda não remonta a uma
saturação das necessidades, mas à carência de moeda dos sujeitos privados,
das empresas e do Estado. Essa situação surge quando, na conjuntura desfavorável,
um excedente de pessoas "não-rentáveis" ou desempregadas passa a
obter menos renda ou a não a obter de todo, as receitas do Estado diminuem e as
empresas não recebem mais créditos, pois os bancos se assentam em créditos
podres e não podem mais assumir novos riscos. É preciso, então, paralisar as
engrenagens. Para superar essa crise deflacionária da moeda, o keynesianismo
forçou a demanda estatal ou estatalmente induzida, ao elevar, por meio de várias
medidas, a quantidade de moeda para o gasto no consumo. Portanto, o Estado lançou
na economia um dinheiro que não representava uma produção rentável, mas que,
ao contrário, deveria "redespertá-la". O método keynesiano só teve
sucesso, porém, enquanto a economia global se expandiu no período pós-guerra;
a elevação forçada da quantidade de moeda surtiu na época um efeito positivo
e reforçou a tendência. Mas tão logo o crescimento perdeu fôlego, nos anos
70, o sistema não se deixou mais enganar e puniu a emissão desproporcional de
moeda pelo Estado com a inflação.
O
monetarismo de Friedman, nascido como alternativa ao desastre keynesiano,
ignorou não somente os pressupostos históricos de sua contraparte keynesiana,
mas também as novas condições da terceira revolução industrial. A redução
da demanda causada pelo desemprego em massa (de caráter estrutural, não mais
conjuntural) foi agravada drasticamente pela restrição monetarista da demanda
estatal e da quantidade de moeda. E isso de caso pensado. O consumo deveria cair
para o nível "permitido" de rentabilidade, a fim de banir a inflação.
A par disso havia a esperança de que os mercados, livres da pressão inflacionária
das despesas estatais, estimulariam mais investimentos empresariais e
retornariam a um crescimento espontâneo. O resultado, no entanto, foi o oposto,
pois o aumento vertiginoso da produtividade em razão da microeletrônica,
aliado ao recuo simultâneo da demanda de bens de consumo, levou a um excesso de
capacidade global.
As
consequências dessa evolução, todavia, foram proteladas por certo tempo, no
qual o monetarismo pôde se sentir tão bem-sucedido quanto o keynesianismo nos
anos 60, um sucesso que se fundava, igualmente, em pés de barro. Ao reduzir a
emissão estatal de moeda, não ocorreu o esperado: que quantidades definidas de
moeda se ajustassem à "real" quantidade de bens. Enquanto decrescia a
quantidade de moeda relacionada ao consumo estatal e privado e regulada pelos
bancos centrais, aumentava dramaticamente a quantidade de moeda no sistema de crédito
comercial, favorecido pela desregulamentação dos mercados financeiros. Como um
surto espontâneo de investimentos privados não podia ser produzido com medidas
monetaristas, os sujeitos privados e as empresas endividaram-se de forma
exorbitante. O endividamento estatal, ademais, só diminuiu superficialmente, ou
até mesmo cresceu em muitos países, pois o ônus da crise social era
compensado por medidas de poupança. Mas, com a expansão do crédito, os bancos
adquiriram um potencial autônomo de criação monetária, ao lado dos bancos
centrais. O resultado do monetarismo, portanto, foi exclusivamente prolongar ao
sistema de crédito comercial e aos mercados financeiros transnacionais a expansão
irregular da quantidade de moeda pelo Estado. Sobre essa nova base de emissão
suplementar de moeda, logo tomou forma um surto especulativo que, como se sabe,
deu impulso a uma enorme bolha de aumentos fictícios de valor.
É
por isso que na literatura de língua inglesa já se fala há algum tempo numa
"asset inflation", uma inflação ativos financeiros. Ao contrário
da expansão desproporcional da quantidade de moeda induzida pelo Estado, que se
sedimenta perfeitamente em demanda real, a expansão desproporcional da moeda
comercial e especulativa não se manifesta como inflação oficial. Isso, porque
a simulação de rentabilidade por meio do endividamento comercial não surte
efeitos imediatos como no caso de uma ampliação da quantidade de moeda
efetuada pelo banco central; seu efeito é indireto, como antecipação da
expectativa de "rentabilidade futura", que num primeiro momento se
restringe aos balanços. E, de todo modo, a moeda especulativa expande-se apenas
no interior dos mercados financeiros, sem afetar, aparentemente, a economia
real. Foi assim que os governos de pendor monetarista puderam anunciar,
radiantes de alegria, "o fim da inflação" ao longo dos anos 90,
sendo que, na verdade, o processo inflacionário não fizera mais que se retirar
para o reino espiritual dos mercados financeiros.
Contudo
a quantidade de moeda da "asset
inflation" “estacionada” na superestrutura financeira inclui também
uma parte da demanda real, e isso num sentido duplo. De um lado, muitas empresas
seriamente endividadas só são capazes de permanecer no mercado porque produzem
rendas (e com isso demanda real) que dependem indiretamente da expansão da
quantidade de moeda especulativa. De outro, sobretudo nos Estados Unidos, a
valorização especulativa das ações tornou-se uma espécie de "segunda
fonte de renda" para muitas famílias. Essa quantidade de moeda também não
pode ser convertida diretamente em demanda real, pois se todos vendessem suas ações
ou fundos de participação, a Bolsa quebraria. A maioria dos americanos, porém,
faz registrar o ganho com a valorização de suas ações como garantia de créditos
imobiliários e para o consumo, e dessa maneira sangram ainda mais a fonte (daí
a aparente conjuntura favorável, sem um fim à vista, apesar da receita real
decrescente). De modo semelhante foram financiados, no Sudeste Asiático, bens
de luxo e construções suntuosas, como por exemplo em Kuala Lumpur, capital da
Malásia, onde se ergueram, sob os auspícios do megalomaníaco presidente
Mahatir, o maior prédio e o maior estádio do mundo. E daí decorrrem novamente
muitos pequenos rendimentos de prestadores de serviços, artesãos,
trabalhadores da construção etc. com a consequente procura real.
Estendendo
a emissão de moeda para o sistema de crédito comercial e para os mercados
financeiros especulativos, a quantidade de moeda afastou-se muito mais da
quantidade "real" de bens do que sob a égide do keynesianismo; além
disso, ela foi distribuída com uma desigualdade sensivelmente maior, reabrindo
o abismo entre pobres e ricos. Esse processo termina agora com um desastre tão
fragoroso quanto a antiga ampliação estatal da quantidade de moeda, só que em
sentido contrário. A crise monetarista da moeda não se manifesta como explosão
inflacionária, mas como implosão deflacionária: o rápido encarecimento das
mercadorias é substituído pela ruína dos ativos financeiros intumescidos,
pois as bolhas especulativas estouram e as cadeias de crédito são rompidas,
sendo o resultado a falta generalizada de moeda.
Em
poucos meses, o capital financeiro global perdeu uma assombrosa quantidade de
sangue no campo de batalha dos mercados financeiros da Ásia, Rússia e América
Latina. Meses sempre tão pacatos, como os de agosto e setembro, arrastaram para
o turbilhão as Bolsas ocidentais. Os colapsos retumbantes dos grandes hedge
funds mostram que a nova crise da moeda já atingiu o coração do sistema
financeiro ocidental, pulverizando trilhões de dólares de capital financeiro,
ainda que se trate, em boa parte, de perdas até agora não contabilisticamente
realizadas. Como conter essa dinâmica? Hoje se fecha o círculo que o
capitalismo traçou ao longo de 65 anos: depois da crise deflacionária do início
dos anos 30 e da crise inflacionária dos anos 70 e 80, regressamos agora à
depressão mundial deflacionária, num patamar mais elevado de desenvolvimento.
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