O OCO DO
FETICHISMO
''Crash'' demonstra a incapacidade de transcendência da arte
atual
No
começo é uma história sobre o tédio mortal, ou seja, sobre o
cotidiano capitalista, que é tanto mortal quanto tedioso.
Deserto algum poderia ser mais monocórdio que a paisagem
retalhada pelas abstrações econômicas oferecidas à vista do
produtor de filmes James Ballard (James Spader) e sua mulher
Catherine (Deborah Unger) da sacada de seu apartamento. Como
resta claro, ambos moram defronte a um entroncamento viário. E
tão desalentador quanto o espetáculo no exterior das janelas é
a vida sexual dos protagonistas, que, segundo tudo indica,
simboliza a monotonia de toda a sua existência. As atividades de
James e Catherine na cama são aproximadamente tão fidedignas
quanto os discursos dominicais de um político. Façam suas
apostas de quem adormecerá primeiro: os atores ou os
espectadores? Talvez este fôra o objetivo do diretor, talvez
não. No segundo caso, estaríamos a lidar com o embaraçoso fato
de uma pornochanchada na qual se nota que os atores são mal
pagos. Dúvidas sobre os propósitos e o ''significado'' da
representação constituem um fenômeno típico da arte
pós-moderna, que não se quer mais como arte, muito embora não
supere a cisão da sociedade burguesa em esferas de vida
incompatíveis. O consumidor há de participar, porém não
criativamente, mas do mesmo modo que os usuários de
supermercados, caixas-eletrônicos e pedágios automáticos têm
de assumir as funções dos empregados. Pense você mesmo qual
seja o significado, não importa a que resultado você chegue,
isso não faz a menor diferença! Crie algo inteligente com o
material que lhe é impingido e faça de conta que ele seja
importante! O juízo definitivo será dado pelas pesquisas de
opinião e pelos números da bilheteria, pois hoje não há mais
um padrão de medida intersubjetivo.
Seja como for, o júri do Festival de Cannes agraciou ''Crash''
com o seu prêmio especial, e os ''Cahiers du Cinéma'' falaram
de uma ''obra-prima''. Uma obra-prima ou simulacro de uma
obra-prima? Para o pensamento pós-moderno, como se sabe, isso
não faz diferença alguma. Numa obra-prima cinematográfica, as
imagens têm de arrebatar o espectador e pôr-lhe a descoberto o
próprio âmago. Nesse mundo do ''faz de conta'', basta que o
espectador simule o seu arrebatamento porque assim o quer, como
se de fato tivesse assistido a uma obra-prima. Os atores, por sua
vez, fazem de conta que representam algo cujo conteúdo toca o
âmago do espectador _se é que ele tenha âmago. Talvez tudo
isso só venha explicitar a impossibilidade lógica da arte num
mundo capitalista que se tornou idêntico a si mesmo e liquidou
qualquer vestígio do ''não-idêntico''. Ou que faz de conta que
seja assim. A involuntariedade é alçada à forma de
representação: um filme como ''Crash'' é talvez tão
involuntariamente cômico quanto trágico.
David Cronenberg escolheu um tema que, quando muito, adapta-se a
essa ambivalência: o automóvel ou a relação do homem com o
automóvel. Seu filme remonta a um romance publicado em 1973 pelo
do escritor inglês J.G. Ballard, que emprestou seu próprio nome
ao herói da história. Exatamente em 1973 chegava ao fim o
grande boom do pós-guerra. A destruição do meio ambiente
graças ao transporte automobilístico veio às claras. E 1973
foi também o ano da estrondosa alta do petróleo no mercado
mundial, quando os países árabes da Opep promoveram um embargo
contra o Ocidente. Nessa época, passou a vigorar na Alemanha a
interdição do tráfego de automóveis aos domingos e as ruas
subitamente vazias soavam como um mau agouro para as indústrias
fordistas. O presságio de uma catástrofe pairava no ar e a
mentalidade da juventude era anticapitalista.
Após mais de 20 anos, a atmosfera catastrófica perdeu alento,
como se percebe no filme de Cronenberg. O tráfego a fluir
uniformemente, como se pela eternidade, serve de pano de fundo
aos acontecimentos, mas sem qualquer efeito de estranhamento
mágico, que expressaria o não-idêntico do capitalismo
automobilístico. Como não há mais nenhum padrão de crítica,
o aspecto inquietante do mundo real caiu na banalidade. O
automóvel, a principal máquina de consumo capitalista, já se
livrou da crítica e sobreviveu à crise de seu valor de uso. A
catástrofe espreita por toda parte, mas só a encara nos olhos
quem é por ela inapelavelmente atingido. A consciência humana
sucumbe, a cada minuto, às exigências de uma racionalidade
econômica autônoma que sarcasticamente difunde pelo mundo seu
produto nocivo e majestoso, o automóvel. Não admira então que
o acontecimento que irrompe no monótono mundo de James Ballard
seja um acidente de trânsito. Por culpa sua, um homem é morto.
Cronenberg não quer ou não se vê capaz de representar como
tragédia moral o fato de seu herói permanecer totalmente
indiferente à culpa que lhe pesa nas costas. O enredo, se é que
se pode chamá-lo assim, passa por cima do fato, assim como a
sociedade de consumo capitalista em geral passa por cima da morte
no trânsito, que é incorporada como risco calculável da
mobilidade individual. Em vez de um drama íntimo sobre a culpa e
a expiação, aflora o sentimento de um estímulo externo: o
erotismo do acidente de trânsito. Ballard associa-se a um grupo
de fetichistas do desastre, no qual introduz sua própria mulher.
Este fetichismo passa então a ser descascado camada por camada,
até desvendar-lhe o centro, que é oco.
O tema ''sexo no carro'', tão velho e tão cediço quanto o tema
''sexo no escritório'', redunda também em Cronenberg em uma
nova demonstração visual do fato de que o carro é tecnicamente
um espaço um tanto impróprio para o exercício das atividades
sexuais. O espernear convulsivo por trás do volante e a
tentativa de, com pernas escarranchadas, despir uma calcinha
trazem à memória as práticas de um curso de primeiros
socorros. Que James se exercite precisamente com a viúva do
homem por ele vitimado, a médica Helen Remington (Holly Hunter),
também não torna o fato mais excitante. E quando Deborah Unger,
como Catherine, usando sempre a mesma e ingênua expressão
facial, abre sua blusa para mais uma vez pôr à mostra o mesmo
sutiã branco (ou casualmente um solitário mamilo), nem a
peculiaridade de tal procedimento ser realizado num lava-rápido
ganha em força explosiva. Quer entre James e Vaughan (Elias
Koteas), o chefe dos fetichistas, seja simulando um ato
homossexual no cabriolé, quer a enfastiada viúva esgueire-se
pelo cemitério de carros para um furtivo tête-à-tête
lésbico, a sensação de uma verdade jamais vista não consegue
impor-se. É de se prever que também o vínculo entre o diluído
erotismo automotivo e os desastres se revele um fracasso. A mania
dos fetichistas, Vaughan à frente, de reconstituir os célebres
acidentes automobilísticos da história poderia ser mais
refinado. Ora, quando o desastre letal de James Dean é encenado
com minuciosa fidelidade, a pretensa metafísica de uma tal
ação prova ser um rotineiro hobby pequeno-burguês, em tudo
semelhante a trenzinhos de ferro ou a uma coleção de tampinhas
de cerveja. Isso é tão erótico quanto compridas anáguas de
lã. O acidente de trânsito também deixa de ser o que era
antes. O jogo com a perseguição entre veículos e com a
fricção rangente de pára-choque contra pára-choque quer
provavelmente simbolizar o sexo anal e sua desvairada selvageria,
mas acaba por mostrar apenas a miséria da fantasia das classes
médias. Certo é que a idéia de experimentar a verdadeira
excitação sexual somente no momento do ''crash'' e de seus
efeitos lembra as fantasias de um Marquês de Sade, que inventou
para alguns de seus personagens situações tão intricadas
quanto absurdas, exclusivamente nas quais lhes era dado provar
sua energia sexual. Assim é que um nobre degenerado só logra a
ereção quando, antes, haja urinado na última caneca de leite
de uma velha paupérrima, prostrada no leito de morte. Mas onde
arranjar tantas velhas paupérrimas e moribundas, providas de uma
última caneca de leite? Quanto aos heróis pós-modernos do
filme ''Crash'', o estímulo sexual não estaria garantido nem
mesmo se fosse cumprida a condição de que o inferno se abrisse
diante deles em toda sua suntuosidade. Vaughan relembra um pouco,
aliás, um arquétipo da modernidade, o cientista maluco, algo
como dr. Mabuse e seu séquito. Mas lhe falta não só o
autêntico substrato cinematográfico, como também a
profundidade do mal. As encenações de Vaughan não são mais
demoníacas do que uma missa diabólica no salão de festas de um
edifício. O mesmo vale para os apetrechos do fetichismo, o
erotismo das cicatrizes e a tatuagem de um volante no peito. Tudo
é mesquinho e superficial, sem mistério e sem outro significado
além do sentido imediato. O mal é mais burro que um beócio.
Até mesmo o espetáculo de um engavetamento na estrada fracassa
como representação do apocalipse. Jean-Luc Godard, em seu filme
''Weekend'' (1968), ainda foi capaz de criar uma visão aflitiva
da crise do capitalismo automobilístico ao pôr condensadamente
em tela o realismo mágico dos desastres fumegantes. David
Cronenberg, 27 anos mais tarde, é incapaz de manter a peteca no
ar. Como realismo, é improvável que um fetichista curioso,
empunhando sua máquina fotográfica, insinue-se sem maior
embaraço por entre os bombeiros que retiram as vítimas presas
às ferragens. E, de outro lado, não se trata também de um
fantasma mágico do pavor numa sociedade fetichista, já que para
tanto as imagens são de escasso realismo. Cronenberg criou um
apocalipse de araque, no qual se vê o cenário vacilar e se sabe
muito bem que, findo o espetáculo, será hora da cervejinha.
Resta afinal pouco claro, embora siga a ordem da contingência do
fenômeno pós-moderno, saber a que veio o personagem Vaughan. O
hobby da encenação de desastres históricos não guarda
vínculo algum com o banal erotismo automobilístico ou com um
vago propósito, que Vaughan cita de passagem como a
''remodelação do corpo humano pela tecnologia moderna'', sem
jamais tocar no assunto novamente. O tema da máquina humana é
como se sabe um topos da era moderna desde que, em 1748, Julien
Offroy de Lamettrie definiu o homem como máquina e deu fórmula
à imagem mecânica do mundo na sociedade capitalista ascendente.
E por trás desse conceito esconde-se o tão banal fetichismo da
moeda e da forma-mercadoria totalizada, que inverte a relação
entre homem e objeto, desperta as coisas mortas para uma vida
fantasmagórica e converte os homens em autômatos da máquina
socioeconômica. Nesse mundo às avessas, a máquina é
inteligente e o homem, burro; a carroceria laqueada dos
automóveis é erótica, e o corpo humano, um pedaço de
carroceria laqueada. Não admira, pois, que a literatura moderna
abunde em vistosas mulheres-autômatos, edifícios inteligentes,
cadeiras de rodas malévolas, robôs apaixonados e ferramentas
que escapam ao controle. O homem que se fez insensível poderia
agora reencontrar sua alma perdida nos produtos da economia
independizada; e o conto de fadas sobre o levante dos robôs há
de trazer à memória a revolta emancipatória, para a qual o
homem deixou passar o momento histórico. Mas tal aspiração
pode seguir também o sentido inverso: o homem haveria finalmente
de assumir-se como um robô de juntas azeitadas, sem afetos nem
sentimentos perturbadores. Nesse caso, é apenas consequente que
também a sexualidade seja projetada nas máquinas e surja o
desejo de transformar-se num automóvel sexual, talvez com um
pára-choque à maneira de genitália. Em ''Crash'', essa
metamorfose é desenvolvida somente de relance, por meio do
símbolo da placa de aço na perna das vítimas feridas.
Sobretudo Gabrielle (Rosanna Arquette), a parceira de Vaughan
cujo corpo repleto de cicatrizes só se mantém de pé com ajuda
de uma couraça de metal e couro, aproximou-se um pouco, ao menos
externamente, das figurações do cyborg de um Stanislav Lem.
Talvez se pudesse fazer desse erotismo de couraça uma cena de
pastelão, mas Cronenberg é muito pouco irônico para tanto. Aos
protagonistas não resta mais que a aspiração pela própria
morte num desastre, a qual poria termo à busca em vão pelo
frêmito erótico. Mas mesmo este tema decai em mera banalidade.
Na cena final, Catherine jaz levemente ferida ao lado de seu
carro capotado e nos brinda mais uma vez com suas alvas roupas de
baixo. Espera-se que finalmente o nome de fábrica da lingerie
comece a piscar na tela. Ao invés disso, James Spader, ajoelhado
ao lado de sua mulher, sussurra: ''Talvez da próxima vez''. Pois
é, David Cronenberg, talvez da próxima vez. Em ''Crash'', com
toda boa vontade, não se entrevê nenhum momento transcendente.
Os personagens são tão pouco dignos de crédito quanto a
realidade. Seria este então um filme sobre o fetichismo da
modernidade ou um filme fetichista? Ou quem sabe até uma
reflexão malsucedida sobre o fetichismo? Talvez se trate,
contudo, da arte de mostrar por que uma consciência do mundo
fetichista, cristalizada num vazio crítico absoluto, já é
incapaz de representar segundo os moldes artísticos. ''Crash''
seria então, pelo menos de forma indireta, uma obra-prima.
Façamos de conta que seja assim.
Publicado em 26/01/97 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.
Robert
Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, publicou no Brasil,
entre outros, ''O Colapso da Modernização'' e ''A Volta do
Potenkim'' (Paz e Terra) e é co-editor da revista ''Krisis''.
Tradução de José Marcos Macedo