UMA REVOLTA DO
SILÊNCIO
Os franceses podem ter vivido a última das grandes greves em
massa da história dos sindicatos
Fomos testemunhas da última
grande luta dos sindicatos?
O velho coração da luta de classes voltou a bater com força.
Paris parecia reviver, em dezembro, um Maio de 68. O mito da
grande greve foi ressuscitado. Em nenhum outro país senão na
França a memória das lutas históricas das massas poderia
deflagrar um movimento tão explosivo. Por algum tempo, toda uma
nação industrial foi paralisada, "todas as engrenagens
pararam", e no meio da rotina de um cotidiano obtuso e no
deserto social da concorrência globalizada irromperam
sentimentos quase esquecidos e modelos de ação só verificados
por ocasião de catástrofes naturais: a solidariedade, o
espírito de comunhão, o vínculo organizativo criado de
improviso, a espontaneidade e o entusiasmo da luta contra uma
força muda e fatídica. De fato, o governo de Juppé foi sentido
como uma catástrofe natural, cuja capacidade de comunicação
social não é maior que a de um terremoto _uma qualidade, sem
dúvida, compartilhada pela maioria dos governos atuais no mundo,
que cada vez mais interrompem o discurso social em nome de uma
equivocada "lei natural do mercado".
É fato notório e condizente com as tradições da grande
nação revolucionária que, na França, os espíritos de revolta
se insurjam contra o Estado com mais facilidade do que em outros
países. Se na Alemanha, como diz a piada, os próprios
revolucionários ultra-radicais compram seus bilhetes antes de
tomar de assalto uma estação ferroviária, na França até
mesmo estudantes ginasiais e pais de família extremosos saem às
ruas e entrincheiram-se em barricadas.
E, no entanto, não há o menor fundamento para que alguns
marxistas encanecidos, devotados ao silêncio e surdos ao mundo
nos últimos anos, farejem no ar o indício da velha luta de
classes com base no exemplo francês e acreditem numa reedição
do Maio parisiense de 1968. Apesar de todas as peculiaridades da
história e consciência nacionais, os franceses da nova
constelação global não podem desvencilhar-se dos limites
impostos pela economia e pela política.
Uma revolta desprovida do horizonte histórico das mudanças
sociais e incapaz de fixar um objetivo ofensivo não está
somente condenada ao fracasso, mas também a amargar um profundo
anonimato no curso da história. Este é o caso do dezembro de
Paris, como se pode demonstrar facilmente: a relação entre
conservadores e progressistas, direita e esquerda, governo e
oposição foi posta às avessas. O conceito de reforma social
deixou de ser progressista e foi adotado pelos conservadores;
deixou de significar incremento social e passou a indicar o
regresso ao capitalismo brutalizado de Manchester no século 19.
Após transformar o conceito de reforma social em seu contrário
e infundi-lo com conteúdos anti-sociais, o governo já pode
criticar os sindicatos e as associações sociais com um cinismo
inaudito, tachando-os de "incapazes para a reforma".
Hoje isso acontece não apenas na França, mas em todo o mundo.
As esquerdas vestem a máscara de conservadoras, os sindicatos
fazem greve para preservar velhas regalias e os sentimentos
ressurgentes de solidariedade e entusiasmo prendem-se
curiosamente à esperança "de que tudo deve continuar como
está".
Que tipo de revolta é essa, que só faz por defender o status
quo de uma ordem social decrépita e sem horizonte social? No
grande movimento grevista de dezembro, é claro, a maioria dos
franceses reconheceu sua própria angústia diante da perda do
futuro. Embora não tenha sido de fato uma greve geral, mas uma
luta em favor dos privilégios do funcionalismo público, a
simpatia da população permaneceu ao lado dos grevistas. Sob
esse aspecto, o tiro do governo saiu pela culatra. O efeito de
uma "greve geral indireta" _causada sobretudo pela
greve de todos os meios públicos de transporte e apesar do caos,
do colapso das atividades normais e dos incalculáveis
prejuízos_ não despertou a ira da população contra os
grevistas, mas sim a solidariedade universal.
Os servidores públicos agiram em nome de todos os assalariados
franceses. A solidariedade, apesar de tudo, não foi irrestrita,
e sob um aspecto decisivo chegou mesmo a desmentir a si própria.
Se "tudo deve continuar como está", os milhões de
desempregados, desabrigados e "novos-pobres" que
existem também na França permanecerão, em última instância,
excluídos da solidariedade. É claro que não se trata aqui das
exigências sindicais imediatas, mas de saber como um movimento
grevista de tais proporções pode pleitear uma emancipação
social que ultrapasse o conflito direto e inclua também, a longo
prazo, o homem expelido pelo sistema. As greves de Paris,
infelizmente, não tinham em vista tal objetivo. Diante dos
"excluídos", os sindicatos mostram-se tão mudos
quanto o governo de Juppé.
Essa restrição implícita da liberdade, discutida apenas a
contragosto, é ao mesmo tempo o ponto fraco da legitimação dos
sindicatos. Surge assim uma dialética peculiar. No sentido
estrito, os sindicatos jamais representaram outra coisa senão os
interesses de setores isolados e de grupos profissionais. Por
intermédio do socialismo, no entanto, tais interesses imanentes
ganharam uma dimensão de transcendência que lhes conferiu um
grau de universalidade e necessidade histórica.
Somente com base nessa transcendência, que banhava todo conflito
isolado na luz de uma instância superior dotada de objetivos
amplos, os sindicatos foram capazes de abolir momentaneamente a
concorrência entre os assalariados, compensar em parte a
diferença de poder entre sua organização e o governo (ou os
empresários) e obter resultados significativos no interior do
sistema de mercado.
As exigências transcendentes e supostamente
"utópicas" sempre foram uma pedra no sapato das
organizações sindicais. Talvez muitos de seus integrantes
tenham acreditado que, após o colapso dos ideais socialistas e
por meio do assentimento definitivo à economia de mercado, seria
mais fácil agir pragmaticamente e "sem antolhos
ideológicos" para recuperar o terreno perdido. Ocorreu,
porém, justamente o contrário.
Na França, foi o próprio presidente socialista Mitterrand quem
implementou com mãos de ferro uma brutal política de
austeridade de cunho monetarista; Chirac e Juppé apenas seguiram
seus passos. Com a perda da indesejada transcendência
socialista, os sindicatos foram despojados do restante de suas
forças. Seu poder se desintegrou e sua estratégia passou a ser
defensiva. Seus filiados perderam a fé na organização e
começaram a evitá-la.
Paradoxalmente, hoje é o governo que age em nome de uma
exigência universal e com o pathos da necessidade histórica,
cujo verdadeiro caráter é o apelo negativo que subjuga o homem
à legalidade cega de um sistema corrompido. Os sindicatos, por
sua vez, abandonaram tanto a crítica fundamental à economia de
mercado quanto sua própria exigência de universalidade:
tornaram-se, por assim dizer, historicamente mudos. Também sob
esse aspecto as frentes de batalha sofreram uma alteração. A
capacidade de resistência da história parece ter passado às
mãos dos governantes. Mesmo se os sindicatos franceses saiam
vitoriosos do presente conflito, estrategicamente sua linha de
batalha conduz à derrota.
O dezembro parisiense, longe de ser um novo Maio de 68, engrossa
a longa fileira dos combates que, desde os anos 80, têm como
objetivo cobrir a retaguarda dos sindicatos. Muitos desses
conflitos possuem uma feição trágica, como por exemplo a
agonia social dos tradicionais mineiros ingleses em face do
governo de Margaret Thatcher. As derrotas, contudo, são
inevitáveis, pois trata-se da revolta desesperada de uma
categoria já em estertor. Com o que foi talvez a última das
grandes greves em massa da história dos sindicatos, os franceses
(com todo o direito) põem um ponto final naquilo que começaram
há mais de 200 anos.
Os adversários, apesar de tudo, não vislumbram um futuro
promissor para sua vitória atual. A mentira de um conceito falso
e historicamente depreciado de "reforma" vingar-se-á
de seus criadores. Os governos não lutam mais por seus próprios
projetos, pois o controle do futuro foi renunciado em favor do
mercado, entendido como uma "segunda natureza"; os
governos não são os sujeitos do desenvolvimento, mas somente os
últimos administradores do fatalismo social da modernidade. As
pretensas reformas dos Juppés espalhados pelo mundo são tão
pouco "políticas" quanto a previsão do tempo ou a
descrição biológica do comportamento de insetos.
A situação social clama (não apenas na França) por uma
alternativa que supere a dicotomia entre economia de mercado e
socialismo estatal. Se os sindicatos não quiserem representar,
até seu amargo desfecho, o papel de perdedores históricos,
precisarão de um novo ideal transcendente, de uma nova
competência programática e de um novo horizonte de mudanças
sociais, a fim de retomarem a iniciativa histórica. Para isso
terão de modificar a si próprios, acertar o passo com outros
movimentos de fundo social e desenvolver novos conceitos de
ação comunitária, que se resguardem tanto do trabalho
assalariado quanto da dependência de recursos estatais.
No passado socialista, sempre foram os intelectuais que
promoveram os ideais inovadores de sociedade. Também sob esse
aspecto o mundo inverteu-se em seu contrário: se o Maio
parisiense foi em boa parte uma revolta de intelectuais, seu
dezembro revelou-se intelectualmente órfão.
Os intelectuais do Maio de 68 _pessoas como André Glucksmann ou
Bernard-Henri Lévy_ há muito esqueceram a questão social.
Tornaram-se bobos da corte que não fazem outra coisa senão
celebrar em canto o "Eros do Ocidente". A greve de
dezembro os deixou atônitos, a exemplo de Juppé. Agora ficou
definitivamente comprovado que a intelectualidade renega sua
vocação quando não possui um espírito de oposição
histórica.
Só depois de muito hesitar, outros intelectuais franceses
tomaram a palavra e dividiram-se em dois grupos, encabeçados por
dois nomes famosos: Alain Touraine e Pierre Bourdieu. O grupo de
Touraine dá seu apoio à "reforma" de Juppé, ainda
que se queixe dos procedimentos brutais e
"insensíveis" do governo. Touraine mostra-se
preocupado sobretudo com a possibilidade de a França perder seu
poder de fogo ao entrar na "concorrência do mercado
liberal".
Esse pessimismo é justo se tivermos em vista somente o mercado e
não quisermos desenvolver nenhuma alternativa às soluções
dominantes. Com isso, porém, Touraine vê-se obrigado a
sacrificar a questão social no altar do mercado, e suas demais
afirmações sobre o problema deixam de merecer o crédito de
conceitos intelectuais. O grande movimento social de dezembro
surge assim apenas como fator de perturbação diante da fria
"necessidade": que silêncio enfático em relação às
massas, que um dia foram o Deus da intelectualidade!
O grupo de Bourdieu, ao contrário, tenta entrar em acordo com os
grevistas. Mas isso não espontaneamente e por simpatia
intrínseca, mas sim de modo forçado, a contragosto. Depois de
enterradas as esperanças socialistas, só parece restar a esse
tipo de esquerda o ideal de nação como o último baluarte
contra o fluxo destruidor do mercado mundial. Na França, isso
implica um paradoxo todo especial, pois nesse país o
universalismo esclarecido da burguesia revolucionária é ao
mesmo tempo uma tradição do nacionalismo limitado.
O dezembro parisiense tornou repentinamente claro que os
produtores de idéias há anos fazem greve, sem que no entanto
ninguém perceba sua paralização. A mera repetição
intelectual da lógica, como agora é o caso, não constitui uma
idéia e nem sequer um pensamento, mas apenas um reflexo. Desde
1989, a maioria dos intelectuais não produz reflexões
críticas, mas reflexos desprovidos de idéias: suas afirmações
revelam que desaprenderam a história. A França não é a única
a possuir uma sociedade de mudos que não se entende mais
criticamente e reage apenas por instinto aos sinais de luz
abstratos e espectrais emitidos pelo mercado atemporal. Por mais
que os acontecimentos voltem a se repetir, o dezembro parisiense
de 1995 foi a última palavra do antigo movimento social _foi uma
revolta do silêncio.
Publicado em 14/01/96 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.
Robert Kurz é sociólogo e
ensaísta alemão, publicou no Brasil, entre outros, ''O Colapso
da Modernização'' e ''A Volta do Potenkim'' (Paz e Terra) e é
co-editor da revista ''Krisis''.
Tradução de José Marcos Macedo