BURACOS
DE RATO PARA ELEFANTES
O
dilema da industrialização para exportação e o caso China
Por
muito tempo, a esperança social nos países do Terceiro Mundo esteve voltada
para o paradigma da "libertação nacional". A dependência das
economias imperiais dos antigos Estados industriais devia ser superada em favor
de uma industrialização nacional autônoma. O meio para tanto foi sempre uma
maior ou menor impermeabilidade ao mercado mundial, a fim de concentrar-se na própria
economia interna. As importações dos países industrialmente avançados deviam
ser substituídas na medida do possível pela produção própria. Essa estratégia,
que como se sabe gozou por um bom tempo de primazia em suas incontáveis versões,
não pôde desenvolver uma alternativa histórica ao capitalismo ocidental, mas
seja como for representou em vários Estados a tentativa de conduzir todo o país
à "modernização" e distribuir a cada qual os frutos do
desenvolvimento.
Em
muitos aspectos formais pode-se comparar tal projeto com o mercantilismo, a
doutrina do absolutismo europeu nos séculos 17 e 18. Mas na teoria
desenvolvimentista do Terceiro Mundo tratava-se apenas de um "mercantilismo
pela metade". A exemplo da política econômica dos velhos príncipes
absolutistas, a importação de mercadorias devia ser limitada e o Estado ser o
responsável pelo planejamento da economia nacional ou mesmo agir ele próprio
como empresário. À diferença do mercantilismo histórico, porém, a exportação
a todo custo não era o objetivo, mas ao contrário a concentração no próprio
desenvolvimento interno.
Essa
diferença pode ser também facilmente explicada. A doutrina mercantilista
apoiava-se na exportação porque não queria, em primeiro lugar, desenvolver o
próprio país como tal, mas antes arrancar aos demais países o máximo de
dinheiro possível, a fim de engrossar os fundos de guerra dos príncipes
salteadores. O exército e a suntuosidade da corte absolutista eram glutões
insaciáveis de moeda. Os regimes desenvolvimentistas do Terceiro Mundo possuíam
igualmente certos traços "absolutistas": eram autoritários, não
raro também propensos à ruinosa ambição militar e à pompa burocrática
irracional. De outro lado, no entanto, eles eram vincados por um momento
socialmente emancipatório que se sedimentou na opção do desenvolvimento
interno. Talvez eles fossem menos afeitos à exportação porque, como retardatários
históricos, não podiam se impor da mesma forma que o absolutismo europeu, que
ainda nada tinha a temer com a concorrência mais poderosa no mercado mundial.
O
modelo político de desenvolvimento do Terceiro Mundo caiu por terra. Já antes
de seu flagrante colapso ele padeceu uma longa agonia. Pois logo ficou patente
que a impermeabilidade ao mercado mundial era absolutamente impossível, caso não
se quisesse deixar de lado o objetivo do próprio desenvolvimento industrial. A
substituição das importações impôs-se apenas a produtos relativamente
simples e pouco numerosos. Muitos componentes necessários para uma produção
industrial abrangente não podiam ser elaborados pelos países do Terceiro
Mundo. Se mesmo assim quisessem desenvolver-se industrialmente, eles tinham
antes de tudo de importar tais componentes do mundo ocidental. O que significava
que tinham de ser obtidas as divisas para isso, através de exportações próprias.
Pouco a pouco, a economia do desenvolvimento viu-se a contragosto obrigada a
curvar-se à exportação ou até a um "mercantilismo total", muitas
vezes à custa do abastecimento interno de bens de consumo e mantimentos básicos.
A pobreza, que se quisera eliminar, batia de novo à porta dos fundos.
Como
a disparidade entre os custos de importação e as receitas de exportação
aumentasse cada vez mais, os regimes resolveram-se pela contração de dívidas
nos mercados financeiros internacionais. Ora, com isso a perspectiva do
desenvolvimento interno viu-se de uma vez por todas denegada. De fato, agora
patenteava-se que já a médio prazo os custos para os créditos resultavam mais
elevados que as rendas dos investimentos financiados com ajuda desses mesmos créditos.
O saldo foi a crise de endividamento do Terceiro Mundo, que desde então não pára
de inchar. Trocando em miúdos, as rendas com a exportação já não podiam
sequer ser utilizadas para o desenvolvimento interno da economia, mas quase
exclusivamente para cobrir as dívidas nos mercados financeiros globais. Isso em
nada mudou até hoje. A maioria dos países do Terceiro Mundo está a ser
sangrada. Os velhos regimes desenvolvimentistas transformaram-se em feitores do
capital monetário transnacional e desse modo perderam todo momento emancipatório.
Desta
necessidade fizeram virtude as instituições internacionais como o Banco
Mundial e o FMI, sob a égide da abertura neoliberal ao mercado global. Elas
prometem uma nova perspectiva, diametralmente oposta à antiga teoria do
desenvolvimento: agora o desenvolvimento não cabe mais à substituição de
importações e à vasta industrialização interna, mas antes a uma
industrialização para exportação. Isso significa que já não se aspira mais
a um complexo industrial amplo e escalonado, que englobe todos os setores
essenciais, desde a indústria de base até a produção de bens de consumo, e
garanta a coesão da economia interna. Em vez disso, cada país há de procurar
seu "nicho de exportação" específico, de acordo com a teoria do
livre-cambismo, e concentrar-se naqueles produtos que podem ser manufaturados
com custos relativamente baixos e para os quais vigoram portanto "vantagens
comparativas" no mercado mundial.
Infelizmente,
essa teoria das "vantagens comparativas" de David Ricardo (1772-1823)
não vingou nem mesmo no passado. Quando muito ela podia funcionar quando se
tratasse de uma troca entre nações que, em primeiro lugar, promovem o grosso
de sua reprodução por meio da economia interna e exportam ou importam
relativamente poucos produtos e que, em segundo lugar, possuem quase o mesmo nível
de desenvolvimento. Ambas as condições aplicam-se menos do que nunca ao mundo
atual. Não estamos perante níveis comparáveis de desenvolvimento nem
economias nacionais coerentes. A globalização do capital já é uma manifestação
da crise histórica que alcançou também os países centrais capitalistas. Eis
por que todavia o desnível do desenvolvimento não diminuiu. A crise tem
portanto de atingir com tanto mais virulência os antigos "países em
desenvolvimento". A rigor, os conceitos "exportação" e
"importação" tornaram-se absurdos. Somente no plano formal trata-se
ainda de uma troca entre economias nacionais independentes.
Por
isso, também a expressão "vantagens comparativas" caiu no absurdo.
De modo algum procede que as nações produzam o grosso para si e importem e
exportem somente os produtos para os quais vigoram "vantagens
comparativas". O novo imediatismo do mercado mundial impõe sucessivamente
o fabrico apenas dos produtos capazes de encontrar seu lugar ao sol a preços
relativamente mais baixos e largar mão de tudo mais. Mesmo para Ricardo isto
seria uma loucura e uma impossibilidade. Cada país só pode ocupar uns poucos
nichos de exportação, ao passo que o resto é inundado e sufocado pela oferta
globalizada. Os países deixam de ser países e tornam-se zonas do mercado
mundial com diferentes densidades. E isto equivale a afirmar que a possibilidade
de existência abre-se somente aos que sejam capazes de tomar posse dos nichos
do mercado mundial. Isso não toca apenas aos trabalhadores, mas também aos
empresários.
Na
verdade, a chamada estratégia de industrialização voltada para a exportação
seletiva não é um conceito econômico, mas simplesmente empresarial. Os ideólogos
do livre-cambismo, a quem já no século 19 coubera a ruína de vários milhões
de pessoas, argumentam agora que a situação não é necessariamente essa. Como
suposta prova, eles invocam os "pequenos tigres" do Sudeste asiático.
Há muitas razões para que também a opção dos "pequenos tigres" não
seja sustentável a longo prazo. Eles não somente vivem dos circuitos globais
de deficit, mas também ameaçam a todo instante recair em novas crises de
endividamento por causa dos custos com infra-estruturas e investimentos na
racionalização. Afora isso, resta saber se o sucesso relativo e historicamente
talvez apenas efêmero dos poucos recém-chegados será extensível a todos.
A
industrialização seletiva voltada para a exportação significa ocupar nichos
no mercado mundial. O termo "nicho" já diz todavia que se trata de um
espaço bastante restrito e apertado. Os "tigres" já têm de ser um
bocado pequenos, se quiserem como país se encaixar nesse espaço. Ou melhor
dizendo: eles têm na verdade de ser ratos, pois apenas ratos cabem num buraco
de rato. Daí a validade do preceito: quanto menor um país e quanto menor sua
população, mais a estratégia empresarial dos nichos de exportação
harmoniza-se com todo o Estado. E vice-versa: quanto maior um país e quanto
maior seu número de habitantes, mais absurda torna-se a opção pelos nichos no
mercado mundial.
Acerca
disso dispõe-se de provas absolutas e relativas. As estrelas do mercado global
no Sudeste asiático, Hong Kong e Cingapura, são minúsculas cidades-estados
com menos de 3 milhões de habitantes. Isso equivale a mais ou menos 1/6 da
população de São Paulo. Estes ratos têm ao menos um posto temporário num
buraco de rato do mercado mundial. Já mais delicado é o caso de países como
Coréia do Sul, Taiwan ou Tailândia, na Ásia, Argentina e Chile, na América
Latina, e Polônia, República Tcheca ou Hungria, no Leste europeu. Estes países,
que têm aproximadamente entre 15 e 50 milhões de habitantes, já possuem mais
o tamanho de gatos que de ratos. Por isso, eles podem alocar no nicho apenas uma
parte de seus homens e mulheres e têm de suportar as feridas da compressão.
Indonésia ou Índia, na Ásia, Brasil, na América Latina, e Rússia, no Leste
europeu, todos países com mais de 120 milhões de habitantes, assemelham-se por
sua vez a elefantes, aos quais a oferta de um lugar no buraco de rato não passa
de derrisão ou cinismo.
Há
porém um país no mundo onde a opção pelo nicho de exportação surte por
assim dizer um efeito aterradoramente monstruoso e obsceno. Este país é a
China. A enorme massa que excede hoje 1.200 milhões de habitantes nem mais
elefante é, mas sim um mamute ou mesmo um dinossauro. O que ocorrerá quando se
oferecer a essa montanha humana um confortável lugar num buraco de rato? Os ideólogos
neoliberais do livre-cambismo são loucos o bastante para fazerem tal oferta com
toda ingenuidade. E, de fato, o governo chinês tentou nos últimos decênios
ceder passo à estratégia da industrialização para exportação.
Nas
províncias do Sul foram erigidas "zonas econômicas privilegiadas"
como Shenzhen, as quais se tornaram atraentes aos investidores estrangeiros em
virtude de regalias tributárias, salários baixos e isenção de impostos
sociais ou ecológicos. Sob condições pré-capitalistas, lá se fabricam
principalmente componentes para empresas globalizadas do Japão, Hong Kong ou países
ocidentais. Os trabalhadores são aquartelados e mantidos como presidiários, as
jornadas de trabalho são extremamente longas e quase não há precauções com
a segurança. Tornou-se rotina o comunicado de graves acidentes e incêndios
catastróficos. Em 1995, um sem-número de jovens trabalhadoras de uma empresa têxtil
foram carbonizadas porque as portas da fábrica estavam cerradas.
A
despeito dessas condições brutais, os setores da industrialização para
exportação podem abarcar, numa estimativa otimista, o máximo de 200 milhões
de pessoas. A longo prazo, simultaneamente, é impossível que a China dite o
ritmo dos mercados mundiais e conduza o grosso de sua reprodução por outros
critérios que não os do setor da exportação. Isso vale sobretudo para todo o
sistema de crédito e monetário assim como para o câmbio. A industrialização
voltada para a exportação só é viável caso a moeda seja convertível. Uma
moeda convertível exige por sua vez que a quantidade de moeda permaneça sob
controle e os créditos só sejam concedidos pelas regras da rentabilidade.
Isso
acarreta graves consequências para a economia interna. Grande parte das mais de
2 milhões de empresas estatais chinesas com 150 milhões de empregados seriam
obrigadas a fechar. Inúmeras microempresas do setor de serviços, que dependem
do poder de compra dos empregados na indústria estatal, teriam igualmente de
entregar os pontos. A própria lavoura de que vive grande parte dos chineses,
considerada improdutiva segundo os critérios globais, estaria fadada à ruína.
A fim de evitar essas consequências, a administração chinesa adotou uma contabilidade
dupla. Não somente diversas cotações da moeda, mas também diversas
formas de levantamento estatístico correm lado a lado. As elevadas taxas de
crescimento que deixaram pasmos todo o mundo constam de elementos absolutamente
heterogêneos. Elas contêm não apenas o crescimento real dos setores de
exportação, mas também o crescimento puramente fictício de grande parte da
economia interna, que depende das injeções estatais da Casa da Moeda. Ao
cotejar a estatística chinesa das exportações com as correspondentes estatísticas
dos parceiros comerciais, ressalta, além disso, que uma parte dos números
consiste de meras "exportações fictícias" que jamais existiram e só
servem para as expresas exportadoras ludibriarem a própria burocracia.
Enquanto
no Ocidente a China é bajulada como o sustentáculo do grande boom do século
21, a situação real há muito tornou-se crítica. Segundo depoimentos da agência
oficial "Xinhua", em 1995 a cifra de desempregados atingiu 230 milhões,
mais de 25% da população ativa. 150 milhões de pessoas vagueiam pelo país em
busca de salário. A inflação faz com que até mesmo os mantimentos básicos
tornem-se exorbitantes para muitos. Mais cedo ou mais tarde a contabilidade
dupla irá por água abaixo. Explicará então o governo chinês a mil milhões
de habitantes que eles são "supérfluos" na economia de mercado? Em
muitos lugarejos, camponeses insurrectos respondem à bala aos policiais e ao Exército.
As províncias costeiras há muito já não transferem ao governo central os
impostos recolhidos. Peritos do Instituto Londrino para Estudos Internacionais
temem a eclosão iminente de uma guerra civil na China. A terra do sonho do
grande boom poderia tornar-se um modelo catastrófico da industrialização para
exportação.