A
ECONOMIA POLÍTICA DA SIMULAÇÃO
A
realidade da aparência e a aparência da realidade no fim da modernidade
Em
que medida a realidade é real? Essa pergunta do construtivismo (Paul
Watzlawick) parece impor-se cada vez mais à consciência social. A dúvida
quanto à realidade da existência subjetiva há muito tornou-se popular na ficção
científica, a exemplo dos romances do norte-americano Philip K. Dick e do polonês
Stanislaw Lem. Será que jazemos clinicamente mortos numa câmara refrigerada e
nosso cérebro é manipulado por meio de estímulos eletrônicos que nos simulam
a vida e a experiência? Ou será então que estamos sob o efeito de drogas que
nos figuram um mundo repleto de vida, quando na verdade jazemos encolhidos num
canto fétido qualquer? A inquietante sensação de que a realidade pode ser
interrompida a qualquer momento, como se alguém retirasse o plugue da tomada,
penetrou abertamente até mesmo na consciência cotidiana.
A
revolução microeletrônica e a nova mídia fortaleceram uma tendência social
que apaga as fronteiras entre a existência e a aparência, entre a realidade e
a simulação. O que é significado e o que é significante? Ainda é possível
traçar essa diferença? Talvez a guerra do Golfo, como supõem alguns teóricos
da mídia, tenha ocorrido apenas nas telas de televisão. Há quem pondere a
realização de jogos de futebol em estádios vazios, tornando-os assim puros
eventos televisivos. A própria política transformou-se há muito num teatro da
simulação. Estrelas pornôs, ídolos esportivos e atores de cinema dividem as
cadeiras do congresso e do governo com criminosos renomados. Não é mais a
propaganda da competência objetiva que determina as eleições nas democracias,
mas o personality show de máscaras sorridentes.
A
perfeita evasão da realidade concreta em busca do refúgio na "realidade
virtual'' parece emergir no horizonte do tecnicamente possível. De fato,
existem pessoas que quase desaparecem por trás de seus computadores. A mídia
cresce não apenas quantitativamente, mas assume também qualitativamente o
poder sobre a consciência humana. Quanto menos os homens se comunicam, maior é
o espaço ocupado pelas telas de televisão. Do cinema tridimensional ao
preservativo de corpo inteiro representado pela mídia, as fantasias do cybersex
prometem a máquina definitiva da auto-satisfação. A finitude do mundo
concreto, que impõe limites ao crescimento sem entraves da economia e do
consumo, deve ser superada pelos espaços virtuais. Paralelamente a isso, a alma
vai sendo aos poucos transmitida à máquina. Elevadores assassinos e insurreições
de robôs são fantasmagorias que povoam a literatura fantástica. O homem fez
de si mesmo algo supérfluo e agora não passa de um produto simulado pela mídia.
Nos
anos 80, a consciência simuladora alastrou-se pelo âmbito profissional e
atingiu a estrutura da sociedade. Os yuppies, eles próprios um produto da mídia,
começaram a simular os critérios capitalistas de eficiência e sucesso em vez
cumpri-los efetivamente. Quanto maiores os investimentos em tecnologia avançada
e quanto maior a racionalização da produção e dos serviços, tanto menor é
o rendimento do sistema. É como se a bagunça do socialismo tivesse contaminado
o capitalismo. Todos fingem profissionalismo, produzem porcarias e dizem de modo
habitual: "Pedimos encarecidamente sua compreensão''. É quase chique não
ser capaz de concentrar-se em mais nada: "Todos são artistas'' (Joseph
Beuys); pintores incapazes de pintar; cantores incapazes de cantar e escritores
incapazes de escrever. "Todos têm seus cinco minutos de fama'' (Andy
Warhol). O respeito pela própria individualidade restringe-se ao vestuário.
Jovens de ambos os sexos, imersos na simulação, consideram a si mesmos como
cabides ambulantes: você é o que você veste.
Não
foi apenas a revolução tecnológica da nova mídia que ensejou, no final do século
20, uma lastimável cultura da "falsa autenticidade'' ou da "autêntica
falsidade''. Numa sociedade em que a economia é a base de tudo, a consciência
simuladora também deve ter um fundamento econômico. Mas em que consiste a
"economia política da simulação''? Para responder a essa pergunta,
devemos saber exatamente aquilo que na economia capitalista não pode mais
figurar como "real'' e por isso deve ser simulado. O problema parece estar
na relação entre o trabalho isto é, o trabalho pago para a produção
de mercadorias e o dinheiro. "Trabalho'', nesse sentido, significa
o consumo de energia humana abstrata. O processo econômico moderno pode ser
definido como a inesgotável transformação desse trabalho em dinheiro: a
energia humana que se manifesta em sociedade constitui a substância do
dinheiro. Todo dinheiro que não espelha um trabalho precedente é dinheiro sem
substância e por isso simulado.
Karl
Marx é considerado hoje em dia como o grande perdedor da teoria da história.
Mas, para além de antigos conflitos e interpretações, sua teoria sobre o
capitalismo ainda tem muito a dizer. O terceiro volume de "O Capital'' é
surpreendentemente moderno, pois nele encontramos os fundamentos teóricos para
a atual "economia política da simulação''. O conceito básico nesse
contexto é o de capital fictício. Marx distingue duas formas ou dois pilares
desse capital fictício: o crédito governamental e a especulação. Em ambos os
casos, não há qualquer transformação real de trabalho produtivo em dinheiro,
mas simula-se o crescimento do dinheiro.
O
crédito governamental é um paradoxo econômico. De fato, no sistema da
economia de mercado o crédito serve apenas para financiar a produção para o
mercado. As despesas do Estado não representam, contudo, nenhuma produção,
mas somente consumo social. Por isso, a única fonte das finanças
governamentais verdadeiramente sensata e condizente com o sistema é a taxação
de lucros e salários: o Estado retira o excedente monetário das receitas do
mercado a fim de financiar o consumo social. Quando, por sua vez, o Estado
financia a si próprio por meio de créditos, torna-se obrigado ao pagamento de
juros. Normalmente, porém, o Estado não desenvolve nenhuma atividade produtiva
para o mercado e, por isso, é absolutamente incapaz de obter fundos para o
pagamento de juros. O paradoxo está no fato de que, sob a forma de crédito
governamental, uma atividade econômica é tratada simuladamente como produção,
embora seja na verdade consumo social. O Estado só consegue resolver
insatisfatoriamente essa contradição lógica ao empenhar suas receitas futuras
com o lançamento de impostos. Em outras palavras, a sociedade capitaliza o
trabalho futuro. O consumo social do presente, imprescindível para o sistema,
ocorre à custa do futuro; o Estado moderno torna-se um vampiro que suga seu próprio
porvir. Por que então os Estados concordaram com esse financiamento cada vez
mais insensato?
A
razão para tanto não está nem nas "reivindicações sociais exageradas''
nem nas "falsas idéias socialistas'', como afirmam os ideólogos do
neoliberalismo. Foi o próprio desenvolvimento do capitalismo que levou ao
crescimento improdutivo, em termos capitalistas, do consumo estatal. Quanto mais
o sistema de mercado impôs-se historicamente e quanto mais a concorrência forçou
o emprego da ciência e da tecnologia, tanto maiores foram os "custos
operacionais'' improdutivos da economia de mercado, evidenciados na forma do
consumo estatal. Entre eles, os custos com o exército ocupam um lugar de
destaque. Já na Primeira Guerra Mundial, a maquinaria industrializada da morte
só pôde ser financiada por meio de vultosos investimentos estatais. Esse
crescimento dos custos para o consumo social improdutivo prolonga-se até hoje,
inclusive nas tarefas civis do Estado. Se este quisesse hoje financiar por meio
de impostos todos os custos que se tornaram necessários para sua atividade,
fatalmente arruinaria a economia de mercado e destruiria com isso seu próprio
fundamento. Pode-se dizer, ironicamente, que os "custos operacionais'' da
sociedade numa economia de mercado tornaram-se tão altos que ela, segundo seus
próprios critérios, já não é mais rentável historicamente.
Para encobrir tal situação, o sistema capitalista tem de recorrer à simulação monetária e, por meio do crescente capital fictício do crédito governamental, sangrar seu imaginário futuro capitalista. Esse procedimento simulador mostrou-se viável enquanto a economia de mercado deu provas de confiança e assegurou seu crescimento com um verdadeiro consumo de energia humana, sob a forma de trabalho. Até o segundo terço do século 20, o crédito estatal cresceu em conjunto com o trabalho produtivo nas indústrias, o que possibilitou ao Estado recolher mais impostos reais e custear seus créditos cada vez maiores. As novas indústrias "fordistas'', assim denominadas em homenagem ao empresário norte-americano Henry Ford, com sua produção em massa de automóveis, aparelhos domésticos, objetos eletrônicos etc, possibilitaram, somente na Alemanha do pós-guerra, a criação de 10 milhões de novos empregos.
Mas o encanto desse "milagre econômico'' foi quebrado pela revolução microeletrônica do final dos anos 70. A mesma tecnologia que produziu a nova mídia substituiu em grande escala o trabalho humano pelo de robôs e pela racionalização (lean production). É claro que com isso o trabalho produtivo, no sentido capitalista do termo, não desapareceu completamente, mas o crescimento posterior da moeda deixou de corresponder de modo suficiente ao crescimento do trabalho. Depois do Estado, portanto, a própria economia de mercado ingressou no estágio da simulação. Ao lado do capital fictício do crédito governamental surgiu o capital fictício da especulação comercial. Uma vez que a expansão do trabalho produtivo deixou de ser rentável ou tornou-se muito onerosa, os lucros passaram a fluir cada vez mais para a especulação com ações, imóveis, divisas cambiais, contratos a termo etc.
A
essência da economia especulativa é obter um aumento fictício do valor sem
respaldo em nenhum trabalho produtivo, contando apenas com a negociação de títulos
de propriedade. No caso das ações, isso significa que o próprio rendimento,
por meio dos dividendos, adquiriu um valor acessório; o mais importante passou
a ser o aumento dos índices da Bolsa acima de qualquer crescimento dos lucros
obtidos no mercado real. A década de 80 viu nascer assim um capitalismo de
casino de dimensões globais, que dura até hoje. É claro que houve também em
épocas anteriores fases dominadas pela especulação, porém estas não só
terminaram regularmente com um crash
financeiro após um breve período de tempo, mas também sempre foram sucedidas
por um novo impulso na expansão do trabalho produtivo. Hoje em dia, entretanto,
ocorre exatamente o oposto. A era do capitalismo de casino estende-se de modo tão
pouco natural porque, graças à racionalização, o trabalho economicamente
produtivo continua a derreter como neve ao sol.
O
novo lugar-comum definido pelo jobless growth significa que o crescimento
do dinheiro tornou-se sem substância e é unicamente simulado por meio de créditos
e de maneira especulativa. Não apenas o Estado, mas também o mercado, acha-se
agora obrigado a sangrar seu futuro imaginário e empenhar seus fictícios
lucros futuros. A economia e os empreendimentos privados têm a mesma parcela de
culpa que a administração estatal. Somente nos Estados Unidos, a dívida do
Estado chega a cerca de US$ 6,5 trilhões, na forma de empréstimos estatais e títulos
da dívida pública; as dívidas privadas, por sua vez, atingem US$ 10 trilhões,
na forma de hipotecas, juros de empréstimos, crédito ao consumidor etc. Os
custos dessa dívida absurda não estão mais lastreados no trabalho produtivo,
mas em grande parte no aumento especulativo dos ativos financeiros. As grandes
empresas auferem lucros monumentais não mais pelo sucesso no mercado real, mas
pelas manobras engenhosas de seu setor financeiro no mercado especulativo do
capital fictício.
Os chamados derivados financeiros, originalmente um instrumento de proteção contra o risco nas negociações com o exterior, sofreu paradoxalmente uma drástica transformação num mercado especulativo que hoje alcança, no âmbito global, o volume aproximado de US$ 50 trilhões. O capitalismo simula a si próprio. O capital fictício do crédito governamental e o capital fictício da especulação comercial estão inextricavelmente entrelaçados, as dívidas de um setor são "pagas'' com as dívidas do outro, e o crescimento simulado alimenta a própria simulação. O índice Dow Jones, o termômetro da Bolsa de Nova York, que atinge atualmente 4.700 pontos, contribuiria somente com cerca de 1.000 pontos numa avaliação realista.
Num
balanço real, sem valores fictícios, todos os países do mundo seriam
testemunhas do colapso de seus empreendimentos mais vultosos. Partidos políticos,
províncias, administrações comunais e instituições culturais aplicam seu
dinheiro no mercado financeiro, o que os torna dependentes da criação simulada
de moeda. O desmoronamento desse edifício global parece inevitável. A
desvalorização da moeda sem substância pode ocorrer com a inflação ou a
deflação; no futuro, é possível que a inflação e a deflação corram até
mesmo paralelamente em diversos setores. Inúmeros indícios nos revelam a iminência
do choque de uma desvalorização mundial. Vários países do Terceiro Mundo e
do Leste europeu já passam por ciclos de hiperinflação, cujas porcentagens
variam entre 100 (Turquia) e 1 milhão (ex-Iugoslávia). Isso jamais ocorreu em
tempos de paz. No Ocidente, as falências se multiplicam nos empreendimentos
industriais e imobiliários. Um número cada vez maior de bancos, caixas econômicas
e companhias de seguro tropeçam no fracasso, a exemplo do Banco Baring de
Londres, impelido à ruína pelas mãos de um corretor de 29 anos de idade. A
crise do sistema monetário mundial também indica que a criação de dinheiro
sem substância chegou a seu limite.
Uma
coisa é certa: os modernos homens do dinheiro, de todas as classes sociais, não
querem admitir que, a prazo, uma economia totalmente do dinheiro é uma
impossibilidade lógica e prática. A despeito disso, a estranha "cultura
da simulação'' nos permite supor que a realidade capitalista tornou-se irreal.
Talvez o indício mais forte do fim dessa realidade da aparência seja o fato de
certos homens não se levarem mais a sério e nem mesmo saberem se realmente
ainda existem.
Original