A
EPIDEMIA ASIÁTICA
Do
circuito do deficit do Pacífico à crise dos mercados financeiros globais
Não
faz muito tempo, proclamou-se o "século do Pacífico". O guru da
administração, John Naisbitt, mostrava-se entusiasmado com a Ásia das
"grandes tendências". O peso da economia, dizia-se, será deslocado
da relação entre os Estados Unidos e a Europa no Atlântico para a relação
entre os Estados Unidos e a Ásia no Pacífico. Mas a nova região dos sonhos de
crescimento já se tornou, poucos anos depois, um pesadelo. O boom do
Leste Asiático nunca teve bases sérias. Desde o início ele foi movido pelo
volante de um circuito de deficit transcontinental.
A
industrialização japonesa, voltada unicamente para as exportações, acumula há
mais de uma década vultosos excedentes no comércio com os Estados Unidos. Porém,
os Estados Unidos não pagam nem com as receitas da exportação para outros países
nem com as próprias economias, mas com sua imagem de potência mundial e com títulos
do Tesouro americano, dos quais o Japão é o principal comprador. A conjuntura
interna dos Estados Unidos, aparentemente promissora nos últimos anos, com uma
participação inaudita do setor terciário em mais de 70%, foi também induzida
sobretudo pelo endividamento externo galopante que, nesse meio tempo, se tornou,
de longe, o maior do mundo. Se os Estados Unidos hoje são tidos como modelo de
êxito econômico, então um moribundo, que depende de aparelhos cardíacos e
respiratórios, há de ser tomado como exemplo luminoso de bem-estar corporal.
Embora,
no fundo, o sucesso das exportações nipônicas seja pago à força de empréstimos
excessivos aos próprios Estados Unidos, os japoneses consideram-se ricos. Nos
anos 80, com base nessa riqueza fictícia, soprou-se uma enorme bolha
especulativa nos mercados acionário e imobiliário japoneses. Desde que esta
bolha estourou, no início dos anos 90, o Japão é atormentado por uma massa de
créditos podres, na ordem, talvez, de US$ 1 trilhão. Porém, esse desastre
ainda não foi realizado, mas "parqueou" sorrateiramente em sociedades
para o efeito criadas por eles próprios.
Ao
mesmo tempo, ampliou-se o circuito do deficit do Pacífico, com o ingresso,
primeiro, dos "pequenos tigres" (Hong Kong, Coréia do Sul, Taiwan e
Cingapura) e, depois, dos "tigres de segunda geração" (Tailândia,
Indonésia, Malásia e, por último, Filipinas). Em consonância com o modelo
japonês, a exportação unilateral dos tigres tomou o rumo da "mão única
do Pacífico". Mas essa segunda onda de exportações dependeu
inteiramente, desde o princípio, do Japão. As indústrias exportadoras dos
novatos detinham somente uma parcela ínfima da cadeia produtiva e eram
obrigadas a desembolsar quantias enormes em bens de produção e componentes,
comprados do Japão. Por isso, o déficit comercial e de capital, no que se
refere ao Japão, acumulou-se tanto em termos relativos quanto absolutos.
Surgiu, portanto, um circuito do deficit interasiático entre o Japão e os
tigres. Se os Estados Unidos pagam seu excedente de importação em relação ao
Japão com títulos da dívida, os tigres pagam as suas dívidas para com os
japoneses com o excedente de exportação para os Estados Unidos.
Para
conseguir gerir seu crescente déficit em relação ao Japão, os tigres
ampliam, de forma constante, suas capacidades exportadoras, sem ter uma efetiva
vantagem na produtividade. Eles só puderam prosperar à base de salários
baixos e taxas de câmbio politicamente fixadas. Se as taxas eram baixadas, para
favorecer as exportações, logo elas tinham de ser elevadas de modo artificial
para atrair capital estrangeiro. De fato, enquanto os salários subiam devido à
ampliação mecânica das empresas e ao esgotamento das reservas de mão-de-obra,
segundo a lei da oferta e procura, explodiam também os custos para a crescente
importação de bens de produção e capital. Tornou-se evidente que a
infra-estrutura negligenciada e explorada aos limites consumirá rios de
dinheiro para investimentos suplementares, caso se queira manter o boom
das exportações nos próximos anos.
O
atrelamento ao dólar (ou à outra "moeda forte") e, portanto, a
estabilização de uma taxa de juros elevada não foi especialidade dos tigres.
Os "países emergentes" da América Latina e alguns governos
reformistas do Leste Europeu também utilizaram esse meio, para garantir o fluxo
de capital urgentemente requisitado. Era de se esperar que tais taxas de câmbio
políticas, às quais não correspondia uma substância econômica suficiente,
suscitariam a especulação dos grandes fundos internacionais contra as moedas
amparadas artificialmente. O "agosto negro" de 1997, no qual a maioria
das moedas asiáticas caiu por terra, foi um prenúncio também para a América
Latina e o Leste Europeu. Logicamente, ao colapso das moedas seguiu-se o colapso
das Bolsas. Enquanto os potenciais de exportação falsamente inflados ameaçam
transformar-se em ruínas de investimento, o capital internacional aplicado
sempre a curto prazo retira-se.
Se,
de início, a "gripe asiática" parecia manter-se regionalmente
circunscrita, a intervenção especulativa sobre o dólar de Hong Kong
desencadeou, por sua vez, um crash global das ações que há muito se
cogitava. Não obstante, os políticos e os administradores de fundos se
empenham, na medida de suas forças, em maquiar a situação. Ora, é uma
mentira esfarrapada afirmar que o caso é somente de purificação de alguns
excessos especulativos, ao passo que a economia real estaria em plena forma. Na
verdade, a própria economia aparentemente real há tempos só é impulsionada
pelos aumentos fictícios de valor, e isso em escala mundial. Por isso, o abalo
causado pelo crash de Hong Kong não foi de teor meramente psicológico.
Em todos os países, inclusive na Europa, o volume crítico do endividamento de
pessoas físicas, empresas e Estados há muito foi atingido.
Rompeu-se
o elo mais fraco do capitalismo de casino global, o circuito do deficit interasiático.
Em breve, o Japão, em seu meio asiático, será confrontado com uma segunda
montanha de créditos podres, que não se pode manipular tão facilmente. Com
isso, aproxima-se um fantasma que há anos paira no horizonte: o Japão poderia
ser forçado, em grande escala, a bater em retirada dos empréstimos
norte-americanos, a fim de não cair no abismo junto com seus parceiros asiáticos.
O fim do circuito do deficit interasiático conduzirá, mais cedo ou mais tarde,
ao colapso do grande circuito do deficit do Pacífico.
O
suposto "porto seguro" em que o capital, até hoje, reguardou-se da
quebra das Bolsas estaria, assim, obstruído. Ao capital à deriva restaria
apenas refugiar-se no ouro. De certa forma, isso corresponderia ao colapso
mundial dos mercados financeiros e ao fim da prosperidade ilusória também nos
Estados Unidos. Um tal processo é possível na forma de uma erupção
repentina, mas também pode se dar num espaço de tempo mais longo, em pequenos
surtos, acompanhado de um movimento pendular das moedas cada vez mais espaçado.
Em todo caso, ele parece inevitável. O capitalismo de casino atingiu o seu zênite;
por trás dele, é possível vislumbrar os contornos de uma crise econômica
mundial qualitativamente nova.
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