A estupidez dos vencedores

Robert Kurz

A historiadora Barbara Tuchman escreveu um conhecido livro sobre a estupidez dos governantes. Talvez seja verdade que o poder torna as pessoas estúpidas e que muito poder as deixa estupidíssimas. Os mais estúpidos seriam, então, provavelmente, os grandes vencedores, logo que triunfaram absolutamente e que sua inteligência já não pode estimular-se em um pólo oposto. Quem quer permanecer inteligente, mesmo como vencedor, teria que reconhecer, portanto, a verdade do ex-adversário, modificá-la e, por assim dizer, absorvê-la, para não acabar sendo seu próprio inimigo e destruir-se a si mesmo.

Neste sentido, o capitalismo é provavelmente o grande vencedor mais estúpido que a história já conheceu. O Ocidente não refletiu com autocrítica a respeito de sua vitória sobre o socialismo do Leste e do Sul. Em vez disso, tentou declarar como modelo de sua hegemonia a ideologia do mercado total, que nunca foi real em sua própria história, fazendo-a o remédio para todos os males e tentando exportá-la a todo custo para as regiões da crise global.

O que foi que aconteceu? No início dos anos 80, baixas taxas de crescimento e recessões, um novo desemprego de grandes massas e excessivas dívidas públicas no próprio Oeste levaram à ruptura do paradigma político-econômico. A mudança da doutrina keynesiana para a monetarista foi, portanto, originalmente, uma tentativa do Oeste de enfrentar sua própria "crise em nível elevado". Em meados dos anos 80, tornou-se então aguda a latente "crise em nível baixo" na União Soviética, em sua periferia e em muitos países do Terceiro Mundo. Também ali tentou-se achar uma nova orientação, mediante "mais economia de mercado".

No final dos anos 80, vimos não apenas o fim definitivo de quase todos os sistemas socialistas, mas, também, em muitas partes do mundo, uma onda de guerras civis, formas de uma "economia saqueadora", e o domínio crescente de gangues criminosas. Sob a impressão do colapso da União Soviética, continuou ao mesmo tempo o triunfo do neoliberalismo económico.

Observando o panorama dos últimos 15 anos, podemos constatar duas coisas: primeiro, temos a ver com uma crise global que atravessa os sistemas e talvez tenha seu centro secreto no Oeste, e, segundo, com cada novo surto desta crise, foi aumentada a dose do remédio neoliberal. Temos todo o direito de indagar o efeito deste remédio. Se é verdade que, em última instância, não decidem as ideologias, mas somente os meros fatos, então é chegado o momento de se fazer um primeiro resumo. Onde estão os êxitos do neoliberalismo?

Nem um único dos fenômenos que, no começo dos anos 80, conduziram, nos países ocidentais, à mudança para o monetarismo, acabou sendo eliminado. Ao contrário, pioraram todos os fatores da crise daquela época. Nos EUA, o presidente Reagan tomou posse com a promessa de reduzir a zero o déficit público, mas já no seu primeiro mandato estabeleceu um recorde mundial de endividamento para financiar seu aventuroso armamento militar. O déficit no orçamento anual dos EUA, que em 1980 era de US$ 60 bilhões, subiu na época da política econômica neoliberal para uma média de US$ 200 bilhões (1994: US$ 203,4 bilhões). Também na Europa, a nova doutrina falhou neste ponto: apesar da redução das despesas para fins sociais, o déficit público da Alemanha quadruplicou-se desde 1980.

As reais taxas de crescimento do mundo ocidental não foram mais altas na era neoliberal, mas, sim, mais baixas: os auges da conjuntura foram diminuindo em cada ciclo, lembrando a respiração de um moribundo. Mal havia o Ocidente vencido o socialismo, ele próprio caiu, no início dos anos 90, na mais profunda recessão desde a Segunda Guerra Mundial. Nestes 15 anos, a pobreza nos EUA aumentou de forma tão dramática, que chegou a atingir até grande parte da classe média branca. Tornou-se extremo o abismo entre as altas e as baixas rendas: muitos empregos são tão mal pagos, que os "empregados" nem podem alugar uma moradia e precisam passar as noites em parques ou galerias de metrô desativadas. Na Europa, duplicou-se, neste mesmo período, a taxa de desemprego: na primavera de 1995, era de 11% e, em alguns países, bem mais alta (Espanha: 23%). Desde 1980, surgiram favelas em todos os centros ocidentais, como no Terceiro Mundo.

Também no resto do mundo, os chamados "modelos com êxito" do neoliberalismo, considerados mais de perto, revelam-se como pura enganação. Certamente, os mercados crescentes da Ásia baseiam-se numa estratégia de industrialização para a exportação, mas seu êxito não pode ser registrado na conta do neoliberalismo, pois até hoje eles desenvolveram-se, em oposição à doutrina monetarista, somente com forte apoio do Estado e sob o controle deste. Mas, também fora disto, não é tudo ouro o que brilha na Ásia.

O Japão, chamado de país dos milagres, percebe desde 1992, o mais tardar, os "limites do crescimento", do mesmo modo que o Ocidente. Apesar de o governo japonês lançar um programa de emergência e de estímulo após o outro, os setores centrais da economia estão numa calmaria e vão diminuindo as exportações e a produção industrial. No começo de 1995, o desemprego alcançou o nível mais alto dos últimos 42 anos, somente a metade dos acadêmicos recém-formados encontram um emprego. Hoje em dia, existem favelas em todas as cidades maiores, e vai crescendo sem cessar o número dos, sem-teto (no Japão chamados de "homens-caixa", porque moram em caixas de papelão). A expansão japonesa tinha que chegar a um fim, porque neste meio tempo perdera sua força o "efeito da base", historicamente apenas mobilizável durante pouco tempo. É uma lógica elementar que uma base, tanto absoluta quanto relativamente baixa, no "momento de partida ", de uma expansão econômica, possibilite inicialmente altas taxas de crescimento, que vão porém decrescendo rapidamente, porque aumenta exponencialmente o custo dos investimentos, enquanto diminuem relativamente os resultados.

Um crescimento ilimitado, tal como o reclama a lei do capitalismo, é praticamente impossível. Por isso, é um absurdo que, hoje em dia, alguns otimistas profissionais, adeptos da economia de mercado, calculem até para o século XXI as taxas de crescimento dos "pequenos tigres" do sudeste da Ásia, que na primeira metade dos anos 90 encontravam-se entre 6,1% (Taiwan) e 9,0% (Singapura). Também a União Soviética, nos anos 30, e o Brasil, nos anos 70, tiveram seu crescimento, o que, como é sabido, não foi em nenhum destes dois casos uma garantia para um êxito duradouro.

De fato, o volume absoluto do crescimento asiático atual é muito pequeno para poder puxar, como locomotiva, a economia global de mercado estagnada. Em 1994, a produção automobilística total da Coreia do Sul, aumentada em 13%, em comparação ao ano anterior, perfazia, com suas 2,3 milhões de unidades, apenas dois terços da produção da Volkswagen (3,3 milhões de unidades), um único grupo de empresas automobilísticas da Europa. Os "newcomers" asiáticos vão até alcançar muito mais rápido do que o Japão os limites do "efeito da base", porque a intensidade de capital das estruturas competitivas está muito mais alta em meados dos anos 90 do que estava em meados dos anos 70. A ascensão asiática baseia-se, sobretudo, em uma destruição desconsiderada do meio ambiente e na sobrecarga da infra-estrutura esgotada. Na opinião do Banco Asiático de Desenvolvimento, o milagre econômico do Extremo Oriente desmoronará se ninguém cuidar das deficiências gigantescas da infra-estrutura. Mas isto exigiria, somente nos próximos cinco anos, um investimento de mais de US$ 1.000 bilhões, uma quantia que excede em muito a capacidade de rendimento da industrialização para a exportação até agora realizada. Em Taiwan, já secaram 70% das reservas de água, e a "água potável" está começando a arruinar até as máquinas; mas um saneamento dos danos causados ao meio ambiente custaria o quíntuplo das reservas em divisas de Taiwan.

O mesmo aplica-se aos horríveis discípulos exemplares do neoliberalismo na América Latina. Os sucessos tão elogiados do México, do Chile e da Argentina, possuem muito menos substância do que a ascensão na Ásia. No início de 1995, o milagre econômico mexicano esvaiu-se em fumaça. Como também em outros países latino-americanos, um câmbio artificialmente elevado, em relação ao dólar, havia criado a impressão de estabilidade. A redução do déficit público e da inflação somente foi possível pelo preço de um déficit na balança de importação e exportação de bens e serviços, com o qual se atiçou o fogo de palha de um boom de consumo. Quando já não podia ser garantida a conversibilidade em dólares da massa crescente de tesobonds (obrigações do tesouro estatais indexadas em dólares), pela saída de reservas monetárias, o castelo de cartas desmoronou. Em poucas semanas, a produção entrou no vermelho, centenas de milhares de empregos deixaram de existir, e voltou a inflação supostamente superada.

Além de poder repetir-se por outra parte o fracasso mexicano, os êxitos de exportação dos três tigres de papel latinoamericanos não são de qualidade asiática. No México, existem apenas "indústrias de montagem" norte-americanas e japonesas, sem base industrial própria. A Argentina está saneando seu orçamento público, desbaratando o filé mignon das empresas estatais e deixando morrer de fome seus aposentados. Mas a que fim conduz uma política deste tipo? Como recompensa, entra capital estrangeiro, que, no entanto, serve mais para fins especulativos do que para investimentos reais na indústria. O Chile nem conseguiu montar uma indústria leve de produtos acabados com capacidade de exportação duradoura, como a Coréia do Sul nos anos 70, porque sua indústria têxtil e de couro encontra-se em crise devido à forte concorrência internacional. A exportação não vive de carros, televisores em cores e microchips ou software, senão que continua dependendo em alto grau, apesar da diversificação, da mineração de cobre. Os verdadeiros êxitos da exportação, que pressupõem todos eles uma exploração exaustiva das reservas naturais, reduzem-se a matérias-primas agrárias, madeira e celulose, frutas, farinha de peixe e frutos do mar.

Sobretudo, porém, o milagre neoliberal na América Latina é uma ilusão estatística. Pois as altas taxas de crescimento referem-se a um ponto de partida que foi o resultado da "década perdida" e de uma desindustrialização brutal. Somente podemos falar de "êxitos" quando os dados estatísticos não procedem do período anterior a 1988 ou, no máximo, 1985. Considerando-se um período mais extenso, não há êxito nenhum, senão que apenas estagnação, pois, no melhor dos casos, o crescimento compensou as perdas dos anos 80, e este "efeito da base secundário" esgotar-se-á em pouco tempo. Segundo um relatório do Banco de Desenvolvimento lnteramericano, de novembro de 1994, a América Latina nem conseguiu superar os problemas mais graves e a pobreza continua aumentando.

Maior ainda é a enganação estatística na Europa Oriental. Mesmo nos países de exibição do neoliberalismo, a Polônia, a Hungria e a República Tcheca, as reformas, no sentido da economia de mercado, fizeram recuar em até 40% desde 1989 a produção das indústrias transformadoras. O crescimento aparentemente alto, proclamado desde 1993-94 como "a grande mudança", refere-se evidentemente ao novo ponto de partida, depois de um surto enorme de desindustrialização. Do mesmo modo, poderíamos dizer que um cadáver se encontra a caminho da recuperação, porque continuam crescendo suas unhas. Mais para o Leste, nem crescem mais as unhas das economias nacionais mortas. Na Rússia, onde já quase durante uma década a economia de mercado é idolatrada, a produção industrial diminuiu desde 1989 em mais de 50%. E na Roménia, depois das primeiras reformas, no sentido da economia de mercado, a miséria da população cresceu tanto, que pessoas torturadas pela fome até invadem jardins zoológicos para abater os animais.

Nem precisamos falar da África. Até agora, o balanço global do neoliberalismo e das reformas, no sentido da economia de mercado, revela uma única catástrofe. Alguém disse que o socialismo era uma idéia nobre, porém, não feito para o homem real. A economia de mercado globalizada nem chega a ser uma idéia nobre. Não funciona e não é nem um pouco rentável para a grande maioria. A era neoliberal não demorará tanto tempo quanto a era do socialismo e do keynesianismo. Pois o neoliberalismo nada mais foi que a ideologia de moda conveniente para a estupidez dos vencedores, num momento histórico de susto. Se for aumentada outra vez a dose do remédio neoliberal, somente poderá constar no relatório final: "Cirurgia bem-sucedida, paciente morto". Evidentemente, também não há volta à antiga economia estatal. A humanidade ainda não se deu conta de que, com o fim de uma época, ficaram obsoletos os dois lados do antigo conflito e que ela precisa inventar algo fundamentalmente novo.

Publicado no caderno MAIS! da Folha de S. Paulo, 1996?. Tradução de José Marcos Macedo

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