A Internet via celular virou uma espécie de pôquer do
capital financeiro, com o qual o autismo do cassino-capitalismo
parece ter atingido a autocombustão voluptuosa
O milagre fantasioso das
telecomunicações
Robert Kurz
Cada ano uma nova época, cada trimestre um novo milagre
econômico, cada semana uma nova terminologia. O turbocapitalismo
parece superar a si mesmo, de tão veloz que é e de tão
impossível. O mais novo rebento da nova economia
chama-se UMTS (sigla em inglês para Sistema Universal de
Telecomunicação Móvel). Em outras palavras: a Internet pelo
celular para gente em trânsito; sem fio e com 2 milhões de
bites por segundo, cerca de 200 vezes mais rápido que as
ligações hoje correntes por celular. Trata-se, assim dizem os
otimistas oficiais de plantão, de um negócio do futuro de
primeira grandeza. Esse otimismo tem seu alicerce no boom dos
atuais celulares, que entre os jovens já virou faz tempo um
símbolo de status. A fantasia prolifera. Com o novo standard do
UMTS e da Internet móvel, teríamos finalmente o tão almejado
advento de um novo e sólido consumo de massas que propiciaria
uma margem de valorização à indústria e aos serviços de
telecomunicação numa escala insuspeitada dessa vez, supõe-se,
efetivamente suficiente para um grande surto econômico
autônomo. Só na Alemanha, o Ministério da Economia e a
indústria eletrônica prometem 700 mil novos empregos já nos
próximos cinco anos. O celular on line como deus ex machina? O
prognóstico otimista, aliás como inúmeras expectativas e
promessas semelhantes nos últimos anos, poderia desde logo ser
desmistificado como quimera. Segundo as primeiras pesquisas,
menos de 25% dos atuais usuários de celulares pensam em mudar
para o UMTS, sobretudo se pesar no bolso. A mania do celular,
atiçada artificialmente pelo marketing, pelos consultores de
empresas e pelos governos, não pode crescer para sempre; há
muito ela incorreu na crítica cultural e vem esmorecendo. Já
por causa da ressonância provavelmente minguada dos
consumidores, o UMTS poderia se tornar um fiasco econômico
semelhante ao da TV a cabo, cujos protagonistas (como o czar da
mídia alemã, Leo Kirch) estão fazendo das tripas coração, à
beira da grande bancarrota. Mas não é só. As condições
técnicas também são deficientes. Parece piada, mas é fato:
não falta somente a infra-estrutura completa para o UMTS, mas
também a própria tecnologia ainda não está madura o bastante.
Segundo reportagens, os aparelhos finais só existem no papel. No
Japão, os primeiros aparelhos "talvez" cheguem ao
mercado em 2001. À parte as deficiências tecnológicas e
infra-estruturais, ronda ainda um outro perigo: há indícios de
que a carga suplementar de raios eletromagnéticos a que
ambiciona o UMTS será de tal monta que poderá causar danos à
saúde.
Danos à saúde
O lobby das telecomunicações tenta fazer pouco dessas
advertências como sendo "pânico infundado de doidivanas e
sectaristas". Mas, ainda assim, já existe uma
"Resolução de Salzburgo", assinada por renomados
cientistas, que exige limites mais baixos do que os praticados
até agora pela União Européia. Já no passado a Comissão da
UE chamara a atenção para o fato de definir os limites de todas
as cargas possíveis menos por critérios medicinais do que
econômicos, o que redundou em toda uma série de escândalos (a
epidemia conhecida como "vaca louca" foi somente o
exemplo mais marcante). Mas, porém, o professor Heyo Eckel,
longe de ser um sectarista ecológico, senão um membro do
honorário Conselho de Medicina alemão, fez notar que, em
experimentos com animais, a radiação eletromagnética pode
causar danos à saúde mesmo abaixo dos limites praticados hoje.
O assunto é para ser levado tão a sério que a Organização
Mundial da Saúde encomendou um estudo abrangente para investigar
o risco de câncer em usuários habituais de celulares. O
neurologista norte-americano Christopher Newman, que padece de um
tumor cerebral e atribui sua enfermidade à radiação da
telefonia móvel, por via das dúvidas já instaurou processo,
segundo o hábito nacional, contra a Motorola e outras empresas
do ramo, pleiteando a bagatela de US$ 800 milhões de
indenização. Que tais investidas, cujo modelo são os processos
contra a indústria de cigarros, tenham iguais chances de
sucesso, revela-se na reação de pânico: a Motorola, a Nokia e
outros fabricantes de celulares anunciam que, a partir de 2001,
pretendem prover seus produtos de tarjetas indicando a carga de
radiação. Um anúncio não lá dos melhores, já se vê. Feitas
as contas, pode-se dizer: jamais um "negócio do
futuro", anunciado de boca cheia, foi mais incerto. E, mesmo
se o UMTS abrir um novo segmento no ramo das telecomunicações,
com certeza não atingirá uma magnitude e uma dinâmica tais
capazes de pesar em termos macroeconômicos. E muito menos no
tocante ao "emprego", pois as atuais empresas da
Internet móvel, com seu alto grau de racionalização,
continuarão a prescindir de braços, enquanto os fornecedores da
rede, embora a curto prazo tenham de fazer frente à grande
demanda e com isso à sobrecarga de sua capacidade, não
enfrentarão um tal acúmulo de encomendas (pela sua própria
natureza, temporário) com a criação de novos postos de
trabalho, mas antes, segundo nos ensina a experiência, com horas
extras do pessoal já disponível. No fim, é aquela velha
história: tudo como dantes no quartel de Abrantes. Porém há
uma diferença em relação a todas as promessas anteriores da
indústria "high-tech": os custos prévios, dessa vez,
ultrapassaram todos os parâmetros. O UMTS, em brevíssimo tempo,
virou uma espécie de pôquer do capital financeiro, com o qual o
autismo do cassino-capitalismo parece ter atingido o estágio da
autocombustão voluptuosa. Muito antes de um único celular on
line ter entrado em funcionamento, anuncia-se uma inaudita
inflação dos custos já na concessão estatal das licenças
para o novo sistema da telefonia móvel. Nos anos 90, depois de
terem sido saneados a curto prazo os combalidos cofres estatais
pela venda a preço de banana da "prata da casa", isto
é, pelo produto da privatização de empresas estatais,
instalações de infra-estrutura etc., esse método aos poucos
começa a se esgotar por falta de volume. E, como os cartéis
globalizados continuam a pagar pouco ou nenhum imposto, um
número cada vez maior de Estados recorre a novos meios de
financiamento para sanear as suas contas a curto prazo e evitar
novos rombos bilionários: majoram-se as licenças, por exemplo,
para as empresas do UMTS que derem maior lanço.
Embriaguez de pregão
Os leilões, até agora, superaram todas as expectativas. Depois
que os cartéis da telecomunicação desembolsaram, com a
majoração das licenças para a Reino Unido, a cifra de US$ 35
bilhões em abril de 2000, também os concorrentes alemães, numa
verdadeira "embriaguez de pregão" no leilão de agosto
de 2000 na Alemanha, acabaram recolhendo aos cofres US$ 50
bilhões. E até meados de 2001 estão previstos, entre outros,
leilões na Itália, na Áustria, na Bélgica, na Dinamarca, na
França, em Portugal e na Suécia. No âmbito global, ainda
restam ser concedidas mais de 80 licenças para o UMTS.
Pode-se imaginar o ônus das empresas envolvidas nesse jogo de
pôquer de proporções astronômicas. A licença, afinal, não
passa de um pedaço de papel, um reles certificado jurídico com
que o Estado transforma, a curto prazo, mais um quinhão de sua
"soberania" territorial em valor monetário.
Consultores de empresas calcularam que, dos seis
"vencedores" do leilão alemão do UMTS (Deutsche
Telekom, Vodafone, a holandesa KPN, British Telecom, France
Télécom e a espanhola Telefónica), cada qual tem de atingir
uma parcela de mercado de 30% a 40% para recuperar somente os
custos da licença majorada. Que somados dão entre 180% e 240%,
uma empreitada suicida, na qual boa parte dos concorrentes terá
forçosamente de ficar pelo caminho. Mas, com a majoração das
licenças, a inflação de custos só começou. Os investimentos
reais, estes sim verdadeiramente bilionários em tecnologia,
infra-estrutura e redes de transmissão, ainda não entraram nos
cálculos. Como num espaço de tempo relativamente curto todas as
empresas de telefonia móvel terão de concorrer pelos produtos
escassos dos fornecedores da rede, a procura superando em muito a
oferta, os últimos ganharão um enorme poder de fogo, elevando
largamente seus preços. E ainda mais cara seria a
infra-estrutura. Só na Alemanha, mais de 100 mil torres de
transmissão adicionais teriam de ser erguidas, para as quais já
hoje os locais adequados são exíguos. Nas cidades, quase não
há mais lugar vago nos telhados dos prédios. Por isso as
empresas de telefonia móvel teriam de se afastar para as
moradias de subúrbio, para nesses telhados montarem seus
aparelhos de transmissão. Mas, com isso, os aluguéis para a
instalação das antenas subiriam. Com o aluguel estimado de US$
500 mensais por torre de transmissão, os custos seriam da ordem
de US$ 600 milhões por ano e somente para o aluguel das antenas
de transmissão!
Custos altos demais
Segundo cálculos da revista alemã "Der Spiegel", os
investimentos no projeto do UMTS (já deflacionados) custam mais
do que a construção de toda a rede ferroviária européia. Essa
dimensão irreal torna de todo improvável que possa nascer daí
um rentável consumo de massas capitalista. Os custos são altos
demais e não podem ser repassados ao consumidor final. Isso
porque a demanda previsivelmente menor que a esperada e a
concorrência encarniçada dos cartéis das telecomunicações
pressionam forçosamente para baixo o preço aos usuários, na
mesma medida em que disparam os preços dos fornecedores da rede,
de modo que, no consumo do UMTS, a situação é exatamente a
inversa que nos investimentos dos fornecedores necessários para
atendê-lo: o poder de oferta é baixo e obriga a uma temerária
escalada de preços. Mesmo as empresas sobreviventes do projeto
UMTS só farão acumular perdas sobre perdas nos próximos 10 a
15 anos, já que a inflação dos custos prévios não poderá
mais ser recuperada nem com a melhor das boas vontades pelo curso
normal dos negócios. Cabe então perguntar, é claro, por que os
cartéis das telecomunicações, a despeito dos previsíveis
resultados, se lançaram nessa aventura, ao arrepio de toda
racionalidade econômica. Resposta óbvia: "Quem não
arrisca não petisca", como quem dissesse: "Não se
preocupe, vá fundo, meta-se até o pescoço". Tal como a
nova economia no geral, também no particular o projeto UMTS
desenvolveu uma dinâmica própria irracional e irrefreável. Nem
bem terminara o leilão na Alemanha, constatou a imprensa
econômica, alastrou-se a choradeira dos empresários
"vencedores", a confissão involuntária de que, em
meio à "embriaguez do pregão", haviam perdido as
estribeiras. Ora, como se sabe, há muito que a economia como um
todo não trata mais de auferir lucros ordinários do tráfico de
mercadorias reais; antes, na figura do "capital
fictício" (Marx), estamos às voltas com um segundo plano
de racionalidade econômica, no qual só a capitalização de
opções reais para um futuro imaginário ainda é interessante.
Mas justamente a bolha de custos do UMTS revela que a
capitalização especulativa da Bolsa começa a ingressar numa
fase crítica. Até agora, as empresas muitas vezes minúsculas
da nova economia podiam "queimar" à vontade o capital
monetário em seus negócios reais totalmente não-rentáveis:
quanto mais, melhor, o que importava era subir o curso das
ações. O excedente (em regra gigantesco) obtido com esses
ganhos na jogatina, quando comparados ao capital invertido (e
queimado) nos negócios reais, era a cifra da racionalidade
interna da nova economia cassino-capitalista. Mas é justamente
essa opção especulativa que não funciona mais no UMTS, porque
os custos prévios "queimados" são altos demais. A
relação entre custos e lucro se inverte no plano especulativo.
Essa evolução há muito já se esboçara nas grandes batalhas
de aquisição: os preços para a obtenção das chamadas
"opções estratégicas" começam a suplantar os
possíveis ganhos especulativos, o UMTS é apenas um exemplo
particularmente drástico desse processo. Aliás, a inflação
dos custos do UMTS fez despencar as ações de cartéis do ramo.
Não se pode tampouco falar, nem a longo prazo, de uma
bem-sucedida capitalização da Bolsa como prêmio para a irreal
opção futura, porque a pressão dos custos elimina tal opção.
É claro que os próprios custos são pagos, por sua vez, com
ganhos especulativos anteriores.
Capital fictício
Nesse sentido, trata-se apenas de simples reacomodação no
interior da bolha especulativa. Para cobrir as licenças
majoradas, o "capital fictício" é reciclado junto ao
Estado; para cobrir os megainvestimentos tecnológicos, é
reciclado (talvez) junto aos fornecedores. Lançando impostos
sobre os ganhos especulativos, principalmente sobre os fundos de
milhares de pequenos investidores, o Estado (sobretudo nos
Estados Unidos) já reciclara para si "capital
fictício" privado e, com isso, mais do que compensara a
evasão fiscal dos cartéis globalizados.
Mas tal reciclagem da capitalização especulativa das Bolsas
traz consequências que, no caso dos leilões do UMTS, poderiam
acarretar uma "débâcle". Pois as empresas envolvidas
estão de costas contra a parede. Na condição de antigas
empresas estatais deficitárias e em boa parte altamente
endividadas, foram elas abandonadas ao deus-nos-acuda do mercado.
As gigantescas aquisições estrangeiras, na esteira da
globalização (por exemplo a compra da Voicestream, nos Estados
Unidos, pela Deutsche Telekom), ampliam o rombo da dívida que
agora se arrisca fender de modo tanto mais ameaçador com a
aventura do UMTS. Como, devido a esses custos e dívidas, também
os ganhos especulativos se esgotam, o empresariado busca se
salvar numa torrente de empréstimos.
Graças ao megaendividamento, associado à queda livre de suas
ações na Bolsa, os cartéis das telecomunicações têm ainda
por cima de pagar juros altíssimos para tais empréstimos. Só
em julho de 2000, a Deutsche Telekom contraiu um empréstimo
empresarial de US$ 13,5 bilhões, o maior de todos os tempos. Um
papel da Telekom com vencimento em 2010 rende 6,5%, enquanto
empréstimos estatais comparáveis, somente 5,2%.
Também nesse sentido o setor das telecomunicações só antecipa
um desenvolvimento universal. A profusão de empréstimos
empresariais da altamente endividada nova economia já conduziu a
uma "inversão estrutural dos juros": papéis de curto
prazo rendem mais juros que os de longo prazo, um indício
histórico insofismável de uma iminente "correção"
seguida de recessão. A esperada bancarrota de alguns cartéis
das telecomunicações poderia ser o estopim.
São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor,
entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Paz e
Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes). Ele
escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.