Idolatria cresce na era globalizada
O esporte seria o melhor
passatempo do mundo se as pessoas o praticassem somente por
diversão, sem projetá-lo socialmente.
Há 200 anos, porém, a maioria das associações esportivas se
acha na mão de mafiosos, novos-ricos e conservadores, que
tornaram jogos corporais inofensivos numa escola do nacionalismo.
É instigante analisar a história nacionalista, militarista e
anti-semita da Liga Alemã de Futebol -e os efeitos manifestos ou
latentes dessa mentalidade até hoje.
Atualmente, o esporte é sobretudo parte da indústria cultural
capitalista e representa, ao mesmo tempo, um valor simbólico na
concorrência dos nichos econômicos no mercado mundial.
É por isso que, nos tempos da globalização e da crise social,
a identificação irracional com os ídolos nacionais ou
regionais do esporte tornou-se maior.
Os clubes de futebol se transformaram desde os anos 80 em
empresas de projeção internacional, como a Toyota, e alguns
até mesmo lançaram ações na Bolsa.
A facilitação das transferências na União Européia, onde
rege a livre circulação de mão-de-obra, só acelerou o
processo de capitalização dos times. Mesmo assim, fãs ainda se
identificam patrioticamente com astros multinacionais, pois os
clubes constituem para eles lendas nacionais.
As mesmas pessoas podem aclamar um jogador de pele escura quando
marca um golo e, duas horas depois, promover uma caçada racista
nas ruas. Por que os hooligans seriam menos esquizofrênicos que
o resto da sociedade?
Em Roma, o imperador pagava os espectadores, que decidiam o
destino dos gladiadores erguendo ou abaixando o polegar, dando
fecho ao espetáculo circense. Hoje as batalhas na arena
tornaram-se algo secundário, e muitos dos próprios espectadores
portam-se como gladiadores, tendo ainda de pagar o ingresso.
Sua força consiste em poder destituir o treinador, mesmo que
pertençam aos párias da sociedade. Só falta espetar a cabeça
de um treinador malfadado na ponta de uma lança e desfilá-la
pelo estádio.
O verdadeiro ato circense, porém, começa nos bastidores da
mídia, quando se abre espaço para que atletas discorram sobre
segredos de alcova ou idéias filosóficas.
São jogadores que, no Brasil e em muitos países, vêm das
camadas mais pobres da sociedade.
Sempre existiu a possibilidade de ascensão social para
indivíduos. Mesmo na hierarquia eclesiástica feudal, as pessoas
das camadas mais baixas podiam ascender socialmente, embora isso
fosse rara exceção. Do mesmo modo que, naquela época, nem 10%
dos católicos pobres chegavam a bispos, assim também é quase
desprezível, hoje, o número de favelados que se tornam
profissionais.
O vetor da mobilidade social, na maioria dos países, tem
direção contrária: de cima para baixo, da classe média para a
pobreza.
Mas o sonho da carreira profissional pode fazer com que o jovem
pense mais com as pernas que com a cabeça. Os pouquíssimos
esportistas de sucesso passam a integrar, a exemplo dos
políticos ou das estrelas de seriados, o reino da virtualidade,
e não têm mais nada a ver consigo mesmos.
Finalizo com uma charada feminista que se conta na Alemanha: o
que tem oito pernas e 40 de QI? Resposta: quatro homens durante o
programa esportivo na televisão!
F.S.P. 1999
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão;
publicou no Brasil, entre outros, "O Colapso da
Modernização" e "O Retorno do Potemkim" (Paz e
Terra); é co-editor da revista "Krisis"; ele escreve
uma vez por mês na série "Autores" da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.