Capitalismo nas estrelas
Até quando o "faz-de-conta" dos mercados financeiros, conduzidos por Wall Street, continuará em alta?
Há quase duas décadas o mundo
capitalista convive com um fenômeno denominado "New conomy":
em vez da produção real de bens e serviços, são os mercados
financeiros que determinam a sorte da economia mundial. Mas há
tempos se dissipou o temor de que essa absurda inversão das
relações entre mercadoria e dinheiro pudesse conduzir a uma
nova crise econômica mundial.
Desde a primeira moratória mexicana no início dos anos 80,
sucedeu-se toda uma série de crises financeiras regionais, cada
uma delas, porém, capaz de ser contida. O México, pelo menos
era a impressão, poderia ficar na pindaíba quantas vezes
quisesse. Sempre haveria um novo pacote de ajuda do FMI e dos
bancos credores: US$ 20 bilhões, US$ 60 bilhões, uma mixaria!
Da crise de endividamento de todo o Terceiro Mundo nos anos 80,
ainda o bicho-papão dos analistas, há muito ninguém mais ouve
falar. Algo mudou? Resolver, não se resolveu nada. E será que
é preciso? Quem se importa, afinal, se nesse meio tempo passaram
a circular ao redor do globo US$ 2 ou 3 trilhões em forma de
títulos da dívida da periferia capitalista?
O mesmo quadro repete-se no Leste Europeu. De fato, a chamada
"transformação para a economia de mercado" dos
antigos países socialistas foi por água abaixo. Em termos de
economia real, pelo menos, a privatização das empresas estatais
foi em grande parte um fiasco -mas que diabos significa economia
real? Mesmo onde há muito não germina mais uma semente,
dívidas assustadoras transformam-se miraculosamente em ativos da
especulação transnacional.
Faz anos que as finanças russas estão quebradas, sem que se
possa entrever nenhum tipo de consequência. Os empréstimos do
FMI são remetidos religiosamente e, com eles, o clã bizantino
de Ieltsin aproveita para comprar presentes de Natal na
Califórnia ou na costa oriental. A cada mês a Rússia despeja
novamente nos mercados financeiros transnacionais cerca de US$ 1
bilhão, sem que esse dinheiro tenha passado sequer uma vez por
investimentos reais.
Também não parece mais criar problema a crise asiática, que em
1997-98 abalou o mundo. A catástrofe da economia real, que
arruinou vários milhões de almas, parece não ter feito mal ao
mercado financeiro, no qual o otimismo corre novamente solto e os
índices das ações, de Seul a Manila, pairam em alturas
etéreas, como se crise não houvesse existido. Mesmo na
Indonésia, país política e economicamente devastado, a Bolsa
recuperou-se bem, para espanto geral.
Atrás dessa fachada restaurada se oculta um volume monstruoso de
créditos podres, que jamais poderão ser saldados. Só a
falência do cartel sul-coreano da Daewoo arrasta consigo uma
montanha de dívidas avaliada entre US$ 50 bilhões e US$ 100
bilhões. Mas quem se importa? A festa continua, essas dívidas
não saldadas também circulam como papéis de especulação. E
na América Latina a coisa não é diversa: enquanto a fachada
dos mercados financeiros (sobretudo o mercado de ações)
permanecer de pé, tudo pode continuar como antes, como se em
princípio tudo estivesse em ordem.
O mesmo vale para o endividamento excessivo, inviável, de
bancos, empreendimentos industriais e setores inteiros no Japão,
na América do Norte e na Europa ocidental. O que ontem rendeu
manchetes sensacionalistas, hoje é folheado na imprensa
econômica com um bocejo de tédio. Certo, pelo menos o sistema
de poupança norte-americano entrou em colapso. Foram US$ 500
bilhões em perdas ou US$ 800 bilhões ou muito mais? Pouco
importa, nada aconteceu.
Na França, o Estado teve de socorrer alguns grandes bancos em
apuros; os bilhões desperdiçados foram encobertos, como se se
tratasse de um erro de cálculo negligenciável nas contas
públicas. Na Alemanha, Schneider, o "rei dos
imóveis", desaparecido há anos, deu um desfalque que
orçou pelos bilhões -e de seu paradeiro hoje ninguém mais
fala. E no Japão os créditos podres continuam a
"estacionar" em duvidosas sociedades de captação, sob
os auspícios da administração estatal. Mesmo assim alguns
fundos especulativos insistem em eleger Tóquio para seus
negócios, na esperança crédula de uma nova alta da Bolsa
local.
Some-se a isso o volume global dos créditos ao consumidor
ameaçados de insolvência. Nos numerosos países em crise,
grande parte da classe média arruinada nunca mais logrará
quitar a dívida a prazo de seus carros, apartamentos,
mobiliário, viagens, tratamentos médicos, escola para os filhos
etc., que há muito ou já foram consumidos ou se acham
penhorados por ordem judicial. Mas, mesmo nos centros ocidentais,
intumesce ano após ano o volume da crise privada de
endividamento.
Cada vez mais famílias mergulham no desemprego, endividadas até
o pescoço, e, de um dia para o outro, não conseguem mais honrar
seus créditos e hipotecas. Só na Alemanha, até o início de
1999, mais de 1,2 milhão de famílias já se achavam em apuros
financeiros. Quem detém o recorde mundial nesse aspecto são os
Estados Unidos, país onde as dívidas privadas, em meados dos
anos 90, ultrapassavam em seu conjunto as do Estado -um fenômeno
ímpar em todo o mundo. Com um volume de cerca de US$ 12
trilhões de dívida privada, o sistema bancário arrasta consigo
créditos podres ao consumidor numa dimensão que, noutro lugar,
faria a ruína de Estados inteiros.
Hoje em dia o excessivo endividamento de Estados, bancos,
empreendimentos industriais e agentes econômicos deve superar em
muito a soma do produto interno dos países. Cifras exatas sobre
o verdadeiro volume dos créditos podres ninguém as poderá
obter, é claro, pois balanços transparentes e estatísticas
financeiras honestas são praticamente o mesmo que lutadores de
sumô esbeltos ou ciclistas não-dopados na Volta da França. A
tomada de créditos começou já no tempo do boom após a Segunda
Guerra Mundial. Mas então o endividamento universal ainda
guardava uma relação semi-realista com o crescimento futuro da
produção real de mercadorias e serviços.
Quando essa relação começou a se tornar irreal no início dos
anos 80, mesmo teóricos adeptos do capitalismo foram assaltados
por escrúpulos. Em 1984, Ralf Dahrendorf, um mandarim do
liberalismo europeu, já previa no renomado semanário alemão
"Die Zeit" um "capitalismo a crédito" e uma
"economia do faz-de-conta", cuja criação de valor
estaria "rodeada de interrogações".
Dahrendorf sabia que a economia dos megaendividamentos, destacada
do solo da realidade, não era o resultado de um simples erro de
conduta subjetivo dos sujeitos econômicos ou de uma política
econômica "equivocada", mas fruto próprio de um
processo endêmico de seu querido capitalismo. Daí o desamparo
de seu raciocínio, daí seu mal-estar, que ele não esconde ao
escrever: "Só há uma linha tênue entre o bem-estar e a
falência (...). E o futuro é só a época em que se paga pelo
conforto da véspera e da antevéspera (...). Falta o motivo para
dar forma ao futuro, pois tudo o que ele possa trazer de
agradável já passou. O futuro não é mais que um fardo".
No fundo o sistema financeiro global, em virtude do fantástico
endividamento acumulado desde então, já haveria de ter entrado
em colapso. Mas isso não ocorreu, como se sabe, apesar de todas
as crises financeiras parciais desde o crash de 1987. Daí
também não haver mais, de lá para cá, nenhum escrúpulo
teórico. Não é segredo para ninguém que apenas a alta
aparentemente inesgotável do curso das ações irradiou sua luz
dourada sobre todas as crises e colapsos; só dessa maneira foi
possível dar seguimento à cadeia infindável de endividamento,
balanços maquiados e liquidação de créditos podres, que até
hoje livrou da queda a dita "arquitetura" do
capitalismo financeiro global. Não há fogo de artifício
acionário que baste para compensar tamanhas dívidas.
Isso tudo foi discutido à saciedade, de modo que esse tema
talvez soe repetitivo para muitos. Não é descabido, porém,
dois anos após o início da crise asiática e poucos meses antes
da virada do século, pôr a mão na consciência e indagar da
solidez da "New conomy".
Se as diversas advertências de Cassandra foram supérfluas, pode
agora ser definitivamente dado o fim do sinal de alerta? Todas as
crises financeiras futuras não passarão de pequenas depressões
numa eterna curva ascendente?
Uma coisa é clara: a liquidez necessária para manter debaixo do
tapete o imenso endividamento global exige um aumento progressivo
do curso das ações. Se esse processo de criação fictícia de
valor se interromper por muito tempo, é inevitável que
sobrevenha a grande queda. Dessa perspectiva, como se deve
avaliar a situação atual? O índice das Bolsas nos tigres
asiáticos elevou-se um pouco, é verdade, mas parece ter
atingido seu ápice; os picos aferidos no período anterior à
crise são agora inalcançáveis. Mesmo na Europa e no Japão se
observa uma estagnação entre antigos recordistas. Só nos
Estados Unidos continuou desenfreada, no primeiro semestre de
1999, a luta pela quebra de recordes. Ao que tudo leva a crer, o
destino dos mercados financeiros globais só depende agora do
movimento ascendente de Wall Street.
Essa situação extremamente precária corresponde ao sentido da
corrente global de mercadorias: o déficit da balança comercial
norte-americana elevou-se dramaticamente no mesmo período;
segundo os números do primeiro semestre de 1999, é de esperar
um saldo negativo de mais de US$ 300 bilhões. Em outras
palavras, paralelamente ao crescimento dos mercados acionários,
a produção global de mercadorias concentra-se, com força tanto
maior que antes, na exportação para os Estados Unidos.
Isso se aplica de forma direta tanto como indireta: o aumento das
exportações do Japão e da Europa para os tigres asiáticos,
para a América Latina etc. referem-se sobretudo a componentes de
produção e bens de investimento, com os quais, por sua vez,
esses países incrementam suas próprias exportações para os
Estados Unidos. A melhora da conjuntura na Europa, Ásia e talvez
América Latina, prognosticada pelas instituições
internacionais para o ano 2000 e que supostamente se alternaria a
esse perpétuo boom dos Estados Unidos, na verdade depende
totalmente da conjuntura norte-americana -e essa depende, por sua
vez, das injeções dos contínuos aumentos dos índices de Wall
Street.
A pergunta fundamental, portanto, é esta: até que ponto Wall
Street ainda pode aguentar? Até que ponto a bolha ainda pode ser
soprada nos Estados Unidos? É possível avaliar de maneira
aproximada as dimensões com base no célebre índice Dow Jones.
Desde sua criação no ano de 1900, ele precisou de 66 anos para
tangenciar fugazmente o nível dos mil pontos. Durou mais 16 anos
até que, em 1982, esses mil pontos fossem ultrapassados em
definitivo. Desde o início da nova "economia do
faz-de-conta", ele não encontrou mais obstáculos: em 1995,
o Dow Jones já batia os 4.000 pontos -em 13 anos, portanto, ele
quadruplicou o volume alcançado nos 82 anos anteriores. O salto
quantitativo só ocorreu, porém, na segunda metade dos anos 90:
em 1996, o Dow Jones montou a 6.000 pontos; em fevereiro de 1997,
a 7.000; em julho de 1997, a 8.000; em 1998, a 9.000; e em meados
de 1999, pasmem, a 11 mil pontos.
Uma comparação pode esclarecer quanto os valores das ações
norte-americanas se distanciaram da realidade. A megaempresa
Microsoft americana, que emprega só 29 mil funcionários e cuja
receita anual é só de US$ 14,5 bilhões, possui, com seus US$
435 bilhões, um "patrimônio acionário" maior que as
oito maiores empresas alemãs juntas, que empregam 1,3 milhão de
pessoas e cuja receita anual está na casa dos US$ 387 bilhões.
E olhem que as ações alemãs se acham sobrevalorizadas!
O que isso significa? Se partimos do pressuposto de que o
movimento das ações tem por conteúdo expectativas futuras na
economia real, então os Estados Unidos já teriam
"capitalizado" de antemão todo o crescimento do
século 21: a economia atual do planeta só seria sustentada por
intermédio do futuro antecipado dos Estados Unidos. "O
futuro já passou", e isso numa dimensão que, 15 anos
atrás, Ralf Dahrendorf ainda não podia nem sequer imaginar em
seus mais ousados pesadelos. Ou, por outra, não existe mais
futuro, porque sua substância foi consumida para a manutenção
do presente capitalista. A liquidez com que, desde meados dos
anos 90, os Estados Unidos aqueceram a economia mundial não pode
mais manter em vida o conjunto da humanidade no próximo século
sem lhe obstar as funções vitais.
Mesmo nos maiores otimistas de Nova York restou um surdo
mal-estar. Apesar de todo "business as usual", corre o
palpite de que o grande crash é inevitável, ainda que até
agora tenha sido refreado. Ao que parece, não é mais preciso um
choque externo dramático para acarretar a queda de Wall Street.
O próprio peso das enormes dívidas interna e externa
norte-americanas oprimem cada vez mais o curso das ações. Uma
hora ou outra cessa a combustão do foguete e ele volta a
despencar. Ao se atingir o limite superior absoluto, a
transição para a queda passará pelas conhecidas três fases do
alerta (estagnação com pequenos movimentos descendentes), do
medo (grandes correções para baixo) e finalmente do pânico
(queda livre). Hoje nos encontramos numa fase de alerta, que a
todo instante ainda pode ser interrompida por um novo impulso
para cima.
Mas o ar já está bastante rarefeito. Dois indicadores podem
revelar a iminência do perigo: o preço do ouro e a cotação do
dólar, e isso numa proporcionalidade inversa. Quanto mais o
preço do ouro sobe e quanto mais baixa a cotação do dólar
(sobretudo em relação ao iene), mais perto do ápice se acham
os mercados financeiros. A ação concentrada dos bancos centrais
europeus, que deram a conhecer sua cautelosa limitação da
compra de ouro, só é parcialmente responsável pela recente
explosão do preço do metal; o outro responsável é o crescente
receio da queda. E a pressão sobre o dólar não sinaliza uma
reavaliação política no interior do sistema monetário
internacional (porventura em razão do euro), mas indica, antes,
o fim dramático da alta de Wall Street. Talvez a próxima crise
financeira seja mais uma vez contida. Mas no fim Cassandra terá
a última palavra.
F.S.P. 1999
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão;
publicou no Brasil, entre outros, "O Colapso da
Modernização" e "O Retorno do Potemkim" (Paz e
Terra); é co-editor da revista "Krisis"; ele escreve
uma vez por mês na série "Autores" da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.