O fim do capitalismo está definido pela chamada terceira revolução industrial - a revolução tecnológica, eletrônica.
O sociólogo e ensaísta alemão
Robert Kurz, autor de Colapso da Modernização e Livro Negro do
Capitalismo, expõe algumas das teses da Teoria Crítica Radical
e chama de ilusório o crescimento sustentado pelo capital
especulativo. Para ele, trata-se de uma bolha cujo estouro
levará à derrocada final do capitalismo.
As previsões esperadas em torno do crescimento do capitalismo na
última década revelaram-se ilusórias. Foi um crescimento
sustentado unicamente pela contínua especulação. Uma bolha
que, somente através da admissão de que esta bolha é de fato
uma bolha, já é um fator suficiente para que ela possa
estourar. E o estouro está próximo, abalando a sociedade
capitalista até o seu fundamento. A lógica desse colapso é
narrada pelo sociólogo e ensaísta alemão Robert Kurz. Há
quase dez anos, Kurz publicou Colapso da Modernização,
no qual fez alguns prognósticos sobre o estado de coisas que
levará o capitalismo ao seu fim. Para ele, grande parte dos
prognósticos ou ocorreram (como a esperança ilusória no
crescimento dos países do Sudeste asiático) ou estão em curso
(como o processo de declínio do sistema que, segundo ele,
começou com a bolha financeira do ``capitalismo de cassino'').
Em entrevista exclusiva ao O POVO, Robert Kurz fala
desse processo, da repercussão da Teoria Crítica Radical e de
suas fragilidades. (Rodrigo de Almeida)
O POVO - A Teoria Crítica Radical dirige sua crítica
tanto ao capitalismo quanto ao que o Grupo Krisis chama de
marxismo tradicional. A tirar pela reação em Fortaleza de suas
palestras, os marxistas tradicionais estão tendo uma reação
mais violenta à teoria do que os próprios capitalistas. Qual a
sua avaliação sobre isso?
Robert Kurz - (ri) Isso não se passa somente em
Fortaleza, mas em toda parte onde a Teoria Crítica Radical está
sendo discutida. Porque as instituições capitalistas não se
sentem ameaçadas por uma teoria. Os marxismos tradicionais,
quando dizemos que cometeram equívocos, que seu momento
histórico foi diferente, sentem-se agredidos, ameaçados em sua
identidade.
OP - Em Colapso da Modernização o senhor traça algumas
prognósticos para o capitalismo. Alguns desses prognósticos,
segundo o livro, seriam concretizados num prazo de dez anos. Pela
data do livro, 1991, algumas das teses já deveriam estar
acontecendo. O senhor revê hoje alguma posição apresentada no
livro? Mais: depois de anunciado por diversas vezes
anteriormente, a idéia do fim do capitalismo é defendida
amplamente pelo Grupo Krisis. O que o leva a crer que, desta vez,
o capitalismo será de fato enterrado?
Kurz - Eu não vejo razão porque rever alguns
prognósticos. Muitos deles estão em curso. Na verdade, todos.
Após a queda do Muro de Berlim, não foi possível integrar
positivamente ao mercado os países do Leste da Europa. Muitos
liberais pensavam que, nos anos 90, iria se abrir um mercado
muito grande no Leste europeu. E isso não aconteceu. Em segundo
lugar, os países que serviriam como uma esperança ao
capitalismo - os tigres asiáticos - viveram grandes crises
econômicas, o que demonstrou que as esperanças que se tinha em
torno do crescimento dos países do Sudeste - a ``Era do
Pacífico'' - eram muito exageradas. Os liberais imaginavam anos
pacíficos na região, o que não ocorreu. Isso prova que os
conteúdos materiais esperados e fantasiados para um novo boom
centenário da economia real não puderam ser demonstrados a
contento.
OP - Mas os países centrais do capitalismo até agora não
passaram por grandes crises financeiras.
Kurz - Não, mas cresceu bastante a especulação
financeira, sobretudo nos últimos anos, formando um novo
mercado. Surgiu o Nasdaq, ao lado do velho conhecido Dow Jones,
índice da Bolsa de Nova Iorque, reunindo companhias de
tecnologia e Internet. Num piscar de olhos, o Nasdaq desbancou
seu irmão bem mais velho. Muitas vezes são empresas com um
punhado de funcionários que capitalizam uma riqueza fabulosa em
operações dúbias. Isso fez com que, em muitos países e
regiões do mundo, o sistema produtor de mercadorias entrasse em
colapso, com a capitalização através das bolsas do
``capitalismo de cassino''. Trata-se de um crescimento ilusório,
sustentado unicamente pela contínua ascensão do curso das
ações tanto no centro especulativo dos Estados Unidos quanto no
Sudeste asiático, na Europa e na América Latina. Mas a
admissão de que essa bolha é de fato uma bolha seria um fator
suficiente para que ela estourasse.
OP - Será o estouro dessa bomba que significará a
derrocada final do capitalismo?
Kurz - Essa bolha não poderá durar, e quando
estourar abalará a sociedade capitalista até o seu fundamento.
Mas é um episódio dentro de um processo de crises que vai durar
por muito mais tempo. O fim do capitalismo está definido pela
chamada terceira revolução industrial - a revolução
tecnológica, eletrônica. Uma grande quantidade de força de
trabalho é expulsada da produção industrial, que não consegue
reabsorver. Não há um processo de compensação, mas um
processo de expulsão contínua. A acumulação de capital não
é outra coisa que a transformação do trabalho em valor, do
trabalho em dinheiro. Por isso, a expulsão da força de trabalho
nessa quantidade, nessas dimensões, não encontra limites. Eis a
causa de, hoje em dia, as condições da economia real serem cada
vez menores às condições do capital fictício, da
especulação.
OP - A concentração de riquezas continuará aumentando?
Kurz - Esse é um outro lado da crise. Quanto mais
se acumula capital, maior é o processo de concentração em
função da existência de companhias cada vez maiores. Na
periferia do capitalismo, em países como o Brasil, há um
processo um pouco diferente. Os países periféricos não têm a
capacidade, não têm o capital necessário para investir em
novas tecnologias de modo amplo. Isso significa que eles caem em
qualquer concorrência mundial.
OP - O senhor e outros representantes da Teoria Crítica
Radical desenvolvem uma crítica ao trabalho, assim como a outra
categorias do capitalismo, como dinheiro, democracia e Estado. As
pessoas têm reagido mal a essa crítica. Como pensar, por
exemplo, uma sociedade sem democracia, sem dinheiro? O que
significa, de fato, essa superação?
Kurz - Significa a perspectiva de criar uma nova
forma de sociabilidade, uma nova forma de organização social
que pode lidar racionalmente com o potencial de riquezas que o
capitalismo criou historicamente. É encontrar uma sociabilidade
que evite que esse potencial se converta em força destrutiva, em
vez de forças produtivas.
OP - Mas como seria essa nova sociabilidade?
Kurz - Uma sociabilidade em que as pessoas
discutam, se comuniquem diretamente sobre suas relações
sociais, econômicas, de produção, todas sem serem dominadas
por um princípio abstrato. Estamos vivendo em uma sociedade que
passa por uma mediação cega. O problema com a democracia vem
daí. A sociedade pode discutir, pode participar, mas a base já
está sempre definida. A base fundamental é um processo cego. As
discussões são travadas, mas são alternativas postas sobre
essa base já estabelecida. Antes de qualquer decisão, como
sujeitos capitalistas que somos, já nos situamos na forma do
capitalismo de concorrência. Essa sociabilidade viria para
superar esse processo destrutivo, catastrófico que estamos
vivendo.
OP - Para tanto, é preciso uma mudança cultural de
bastante intensidade. Como é possível alcançar essa mudança,
quando se tem por exemplo mídias de massa completamente
favoráveis às categorias do capitalismo?
Kurz - Tentou-se, no passado, criar-se uma
contracultura. Seria necessário repensá-la novamente, para
analisar esse sistema criticamente. Também seria a questão de
criar uma mídia alternativa. Há um processo de assimilação
cultural muito profundo. Precisamos reaprender a discutir
livremente esses assuntos. Para isso, creio que seria necessário
criar meios de comunicação para tanto.
OP - Mas qualquer meio se fundamenta necessariamente no
capital. Portanto, se fundamenta na defesa de categorias
capitalistas.
Kurz - Não é necessário superdimensionar esses
meios. Por exemplo, a Internet pode ser uma forma de
comunicação alternativa para fazermos discussões contrárias,
em oposição ao capitalismo. Inclusive para organizar formas de
luta. Não são precisos meios grandes. Há outras
possibilidades.
OP - Não há no pensamento do grupo Krisis uma ênfase
excessiva à economia? Os aspectos culturais não estão sendo
esquecidos, assim como a saída prática para esse enfrentarmos
esse colapso?
Kurz - Esta é, talvez, uma debilidade, uma
fraqueza da Teoria Crítica Radical. Agora, teremos cada vez mais
uma cultura economizada. A economia está cada vez mais dominando
todos os setores da sociedade, incluindo a cultura. Por isso é
importante analisar a forma com que a economia domina esses
setores. Não estamos, assim, reproduzindo categorias
econômicas, mas criticando esse processo real por que passa a
sociedade. Quanto à prática, a teoria não pode esboçar um
programa concreto para oferecer aos movimentos sociais.
OP - Embora satanizado, Karl Marx tem sempre ``renascido''.
Por que tanta fixação? Além disso, porque Marx desperta tanta
paixão cega, formando, para alguns, não uma teoria marxista mas
uma ``teologia marxista''? Não há uma mistificação excessiva
ao pensamento de Marx, comprovada até mesmo pela crítica que
vocês receberam em Fortaleza por pensar uma renovação do
marxismo?
Kurz - Os movimentos de esquerda tomaram somente
uma parte da teoria de Marx. Um aspecto da teoria, que analisa o
processo de modernização capitalista. Enquanto isso, a crítica
às categorias fundamentais do capitalismo foram deixadas de
lado. Há quase uma mistificação, como um pensamento religioso,
deixando de lado aspectos fundamentais de uma teoria. Caso não
se possa esboçar uma crítica radical das categorias
capitalistas será inevitável acabar se engajando na
auto-administração da miséria. Sem isso, a crítica social
vira uma espécie de Buda, com o qual não é necessário ver a
contradição.
OP - Em entrevista recente à revista Carta Capital, o
senhor disse que para listar os crimes do capitalismo ocidental,
nem cem volumes seriam suficientes. Quais foram os crimes do
capitalismo mais importantes, mais severos com a sociedade
capitalista?
Kurz - A palavra crime foi usada de uma forma
metafórica (ri). O mais preciso seria dizer que o capitalismo é
uma sociedade que se desenvolveu em um processo histórico por
meio de catástrofes. Nunca houve, por exemplo, tantas guerras
concentradas num só período como na história da modernização
deste século. E nunca se viu o fato de tantas pessoas terem que
viver na miséria. Sem catástrofes naturais. Somente como
resultado das organizações sociais nas quais está fundado este
sistema.
" O Povo" Fortaleza, 19 de Novembro 2000