A capitulação final dos ambientalistas

Robert Kurz

Quanto mais o brilho do neoliberalismo empalidece e a estrela da nem bem criada nova economia já torna a baixar no horizonte, tanto mais se faz presente a necessidade de uma alternativa social qualitativamente nova. Mas as discussões a respeito parecem girar em falso. Tal como na indústria cultural, também na crítica social estamos cada vez mais às voltas com uma reciclagem de idéias há muito esgotadas, que se apresentam sempre em combinações e constelações cambiantes. Isso também vale para a discussão sobre o papel da ciência e tecnologia modernas num movimento de emancipação social. Há 150 anos repete-se uma polarização entre os fetichistas da técnica industrial socialista, de um lado, que sonham com um comunismo-lazer robotizado, e, de outro, os românticos do socialismo agrário, que se entregam à idéia reacionária de uma frugal vida campestre em interação com a natureza. À primeira vista, Marx pertence claramente à primeira categoria. Como se sabe, para ele o modo de produção capitalista, justamente por suas "conquistas científicas", tinha o status de uma "missão civilizadora", de uma etapa na irresistível evolução da humanidade rumo a graus mais elevados de dominação da natureza. Ciência e técnica modernas, meios de transporte e comunicação, modos de produção industrial e infra-estrutura de toda espécie, tal como foram produzidos pelo capitalismo, aparecem assim como os indispensáveis pressupostos materiais e estruturais de uma sociedade futura, livre do capitalismo. Nesse ponto, contudo, a argumentação de Marx está longe de ser incontestável. De início, ele foi capaz de reconhecer as consequências deletérias do capitalismo agrário e industrial para os fundamentos naturais da vida, por exemplo, quando escreve em "O Capital": "E cada progresso da agricultura capitalista não é só um progresso na arte de espoliar o trabalhador, mas também na arte de espoliar o solo, cada progresso no aumento de sua fertilidade dentro de um dado prazo é também um progresso na ruína das fontes perenes dessa fertilidade. Quanto mais um país, como, por exemplo, os Estados Unidos, tem como base de seu desenvolvimento a grande indústria, tanto mais rápido será tal processo de destruição. Assim, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo produtivo social na medida em que solapa ao mesmo tempo as fontes de toda riqueza -a terra e o trabalhador". Mas esse comentário, em franca contradição com todas as idéias de um "desenvolvimento das forças produtivas" aproblemático e diretamente assimilável ao "socialismo", permaneceu errático. Além disso, mesmo onde Marx descreve o reverso negativo das conquistas tecnológicas a ciência permanece totalmente externa a esse processo destrutivo -ela é somente "empregada erroneamente" pelo capitalismo. Marx, portanto, não formulou um nexo sistemático entre sua crítica da economia política e a lógica das ciências modernas.

"Coisa secundária"
Mas isso não se devia somente às injunções intelectuais de sua época, na qual as ciências naturais viraram uma espécie de religião, mas também ao grau de desenvolvimento relativamente baixo da tecnologia capitalista do período. Nas próprias palavras de Marx, o capital só submetera o mundo "formalmente", mas ainda não "realmente" (materialmente). As primeiras máquinas industriais, tal qual eram, pareciam utilizáveis também num outro contexto, socialmente mais razoável. E quanto ao que era industrialmente produzido, ainda se tratava dos mesmos e inocentes "valores de uso": trigo, têxteis, objetos de primeira necessidade. A própria natureza da terra ainda parecia ser a mesma que sempre fora. Por isso os primeiros traços da destruição, embora tenham sido perfeitamente notados, foram meio reprimidos, meio tratados como "coisa secundária". Nesse sentido, o antigo movimento operário, com seus partidos "marxistas", pretendia empregar e continuar fomentando as "maravilhas da tecnologia capitalista", por ele consideradas conquistas neutras e positivas, transferindo-as (supostamente para o bem de todos) às mãos do Estado socialista. A alusão de Marx à "ruína da fertilidade" desapareceu pelo alçapão. A crítica do nexo natural moderno e sua tecnologia destrutiva permaneceu por mais de um século entregue a reacionários e a marginalizados românticos da modernidade. Somente nos últimos 30 anos a consciência social passou a se importar mais, como não podia deixar de ser, com as consequências negativas do vínculo tecnológico entre homens e natureza. Se na época do "milagre econômico" após a Segunda Guerra Mundial ainda se pôde exaltar a cultura fordista das máquinas a combustão, a partir dos anos 70 os processos destrutivos de todos os fundamentos naturais da vida fizeram-se presentes com assombrosa rapidez, numa escala planetária. Hoje em dia, após mais de 150 anos de desenvolvimento industrial capitalista, desapareceu definitivamente toda suposta inocência do conteúdo tecnológico capitalista: o capital incorporou o "valor de uso" e, de certo modo, também a natureza, estando prestes a aniquilar para sempre esse corpo. Um mundo recoberto de entroncamentos viários seria tão impensável a Marx quanto um mar do Norte atomicamente contaminado ou a monstruosidade de um tomate com genes de peixe. Mas assim é a nossa realidade atual. Quanto às catástrofes naturais de causas tecnológicas, a crítica das ciências naturais e da "alta tecnologia" quase virou moda nos anos 80. Mas essa crítica foi superficial. Como o antigo movimento operário permanecera completamente cego aos potenciais destrutivos da ciência moderna e adotara o equivocado otimismo tecnológico do espírito capitalista, acreditou-se que a crítica de Marx tornara-se imprestável para uma análise do capitalismo na crise ecológica. O novo movimento "verde", com a sua mistura de ideologia conservadora e de esquerda, valeu-se dos reacionários românticos e dos utopistas agrários para sua crítica ecológica do capitalismo. Mas com isso os "verdes" só fizeram repetir a antiga polarização da crítica social. Substituíram as limitações do movimento operário "marxista" por uma simples limitação inversa. Enquanto este queria fomentar sem limites o "desenvolvimento das forças produtivas" para além do capitalismo, os ideólogos "verdes" queriam contê-lo, "congelá-lo" e reduzi-lo a uma escala social menor (regional ou local). Em ambos os casos, o aglomerado técnico-científico era entendido como um objeto supostamente autônomo, totalmente independente de sua forma social, ora com sinal positivo, ora negativo. Assim, os objetivos socioeconômicos eram, num caso, uma simples hipersocialização capitalista (capitalismo de Estado) e, no outro, uma simples hipossocialização capitalista (microcapitalismo comunitário) ou mesmo uma dessocialização (ideologia da economia de subsistência). Nos dois casos, o nexo entre economia e tecnologia científica permaneceu fora do alcance da crítica.

Nem tartarugas nem sapos
Por isso as duas posições fracassaram igualmente como crítica social. Não é à toa que o declínio do socialismo, ou melhor, do capitalismo de Estado, foi acompanhado pela capitulação incondicional da crítica "verde" ao capitalismo, cujos protagonistas, nesse meio tempo, perderam totalmente o espírito oposicionista nos Parlamentos dos centros do poder. Se o antigo movimento operário precisou de quase cem anos para tornar ao interior da sociedade de mercado, aos "verdes" bastou menos de uma década. Hoje não querem salvar ao capitalismo nem sequer as tartarugas e os sapos.
Mesmo uma organização ambientalista de alcance mundial como o Greenpeace fecha os olhos para o verdadeiro complexo de causas econômico-científicas da destruição da natureza; age somente como uma espécie de lobby "verde" à margem do sistema, formalmente análogo a uma indústria armamentista, e sempre se apressa a assegurar que as suas modestas propostas são basicamente compatíveis com a ordem dominante da ciência e da economia.
Assim é que o capitalismo vive uma existência póstuma não somente como aglomerado socioeconômico, mas também como aglomerado científico-tecnológico, pois a humanidade perdeu a oportunidade de livrar-se dele. A crítica social "verde" e "marxista" também falhou e com isso tanto a destruição social quanto ecológica podem ter livre curso.
No início do século 21, a sociedade moderna transita abertamente para um estado de barbárie tecnologicamente armado. Para sair dessa situação é preciso reformular radicalmente a crítica social também com relação à economia e às ciências naturais. Foi um erro deixar de lado a crítica da economia política de Marx em vez de desenvolvê-la. Na verdade, o "antigo" marxismo era ecologicamente cego pelo próprio fato de permanecer economicamente preso a categorias capitalistas. Tanto o movimento operário quanto os sistemas de capitalismo de Estado fizeram do "trabalho abstrato" (ou seja, do consumo de energia humana abstrata encerrado nos espaços funcionais das empresas) o seu santuário, embora em Marx ele seja reduzido, na forma celular de mercadoria e dinheiro (tal como nas ciências naturais), a uma única estrutura nuclear de partículas físicas. Assim, natureza e sociedade são tratadas, pela imbricação entre economia e ciência capitalistas, como um sistema construtivo de elementos aparentemente idênticos, combináveis à vontade, com resultados catastróficos para esse nosso mundo real. A ciência moderna é parte integrante das formas sociais, e não um repertório de conhecimentos neutros e "objetivos" delas independentes. Nesse sentido, a teoria de Marx carece hoje de correção não para ser abandonada, mas para ampliar sua crítica até agora ineficaz do "trabalho abstrato" e da correspondente primazia do dinheiro, da "coisa abstrata". Só uma crítica social ampliada pode superar a falsa alternativa entre socialismo industrial tecnologicamente ingênuo e socialismo agrário reacionário. Pois então não precisaria mais simplesmente identificar o "desenvolvimento das forças produtivas" ao capitalismo e perpetuá-lo na forma capitalista da ciência e tecnologia ou ter de remontá-lo conscientemente a um nível mais "primitivo". Cabe superar, junto com o reducionismo econômico destrutivo, o igualmente destrutivo reducionismo físico, ou seja, a concepção natural teórica e prática do capitalismo, mas não o conhecimento natural ou o emprego de máquinas em geral. De um modo ou de outro, as forças produtivas sempre se desenvolveram, mesmo antes do capitalismo, ainda que não com a mesma dinâmica cega. Mesmo sem a específica forma social da ciência natural moderna, a humanidade teria utilizado, supõe-se, a eletricidade, o telefone etc. E, em contrapartida, não paramos de fazer cerveja só porque essa técnica foi descoberta há milhares de anos numa forma social inteiramente diversa, com uma concepção natural totalmente distinta. Uma crítica do "trabalho abstrato", ampliada pela crítica da ciência e tecnologia modernas, tampouco nos obrigará a acreditar de repente que o Sol gira em torno da Terra ou a recusar o emprego de máquinas agrícolas para nos esfalfar com a enxada.

Antigos e novos potenciais
A superação do reducionismo econômico e científico nos obriga, porém, a considerar a natureza concreta e sensível e a "lógica própria" de nossa atividade no mundo. Isso significa, muito simplesmente, que os humanos não podem agir segundo a mesma lógica que animais e plantas, e animais e plantas segundo a mesma lógica que pedras ou metais nem no método do conhecimento nem no método da vida prática.
Nesse sentido, as alternativas sociais "escolherão" antigos e novos potenciais do conhecimento natural segundo seus próprios pontos de vista, e em parte deixarão de lado a herança do capitalismo, em parte a transformarão, em parte a retomarão sem nunca retroceder a um passado qualquer ou mesmo a uma "origem" fantasmagórica.
Tal como Marx, no século 19, considerava perfeitamente possível que a antiga comuna agrária russa pudesse tomar um rumo próprio de desenvolvimento sem antes rastejar sob o jugo do capitalismo, assim também talvez possam hoje, a partir dos processos sociais de decomposição da modernidade, surgir novas formas de reprodução "comunista", mas apenas como "economia natural microeletrônica", não como idílio "dessocializado" de pobreza agrária.

São Paulo, domingo, 03 de Dezembro de 2000

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Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.

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