A ESTÉTICA DA MODERNIZAÇÃO
Da
cisão à integração negativa da arte
A cisão entre vida e arte é
um antigo tema da modernidade. Todos os artistas que querem dar verdade à
expressão - e que se desgastam existencialmente nas suas criações - acabam
sempre sofrendo essa separação. Que ela exiba a beleza ou a estética do feio,
que exerça a crítica radical ou busque a descoberta da riqueza de formas da
natureza, que tenha orientação realista ou fantástica: a arte ficará sempre
separada da sociedade por uma parede que pode ser de vidro transparente, mas é
intransponível. Seus artefatos ou nunca foram observados antes ou então são
mundialmente celebrados já desde o nascimento como objetos mortos e
museológicos. O artista surge como uma figura da tragédia antiga: assim como a
água e as frutas escapavam sempre de Tântalo, da mesma forma escapa-lhe a vida;
assim como o Rei Midas tinha de ficar faminto, porque tudo se tornava ouro a
seu toque, o artista também vive faminto como ser social, porque o seu toque
transforma tudo em pura exposição. E como Sísifo, ele rola a sua pedra em vão –
sua obra permanece sem mediação com o mundo.
Todas as tentativas da arte
para quebrar o seu gueto de vidro têm sido inúteis. Artes plásticas montadas
industrialmente, tal como as pinturas nas paredes dos escritórios, são sempre
corpos estranhos. Leituras literárias em igrejas ou escolas nunca conseguem
ultrapassar o seu caráter de obrigatoriedade. Quando os dadaístas tomaram a
dúvida como meio de provocação, colocando canos enferrujados e mictórios nos
salões sagrados da arte para escarnecer da burguesia, essa proposta foi tomada
com feroz seriedade como objeto estético e catalogado como as esculturas de
Michelângelo ou quadros de Picasso. A definição tautológica é: arte é tudo
aquilo que a sociedade a priori percebe em um reservatório separado
denominado "arte" e que nessa condição pode ser assim colecionada,
sem considerar o seu conteúdo, tal como selos ou escaravelhos espetados. Pouco
importa o que a própria arte pretenda e como o apresenta: tudo perde o corte e
se torna inofensivo. Para as elites capitalistas o artista não é mais o bobo da
corte, mas sim – e no melhor dos casos – um fornecedor especial, como o mercador
de vinhos ou o confeiteiro. Alguém, em suma, de quem não se compraria um carro
usado e que não se quer como genro. Tal é, em todo caso, o seu estatuto na
modernidade clássica.
A sociedade moderna costuma
encarar seu próprio modo de existência e as suas categorias como
supra-históricas e humanas
Mas as civilizações antigas
não tinham "arte" nem "cultura" tal como as entendemos
hoje. Isso quer dizer que a estrutura moderna – feita de esferas separadas e
independentes entre si, também determinadas pela nossa linguagem e pelo nosso
pensamento – é totalmente estranha às sociedades antigas. Embora elas também
tivessem deficiências humanas, problemas e relações de dominação social, a sua
existência não estava decomposta em áreas funcionais separadas. A moderna
teoria dos sistemas trata isso como uma falta de "diferenciação", com
o que se insinua um indicador de primitivismo: quanto mais integrada a
sociedade, também mais primitiva; e quanto mais "diferenciada" tanto
mais "desenvolvida" é a sociedade e tanto maior o número de
oportunidades que ela oferece – assim afirma o sistema de pensamento burguês
tardio. Como sempre desde o Iluminismo, a modernidade capitalista aparece como
o coroamento da história, embora haja algo de deplorável em ver nela a mais
alta e insuperável aquisição da evolução social, em que o homem funcionalmente
reduzido se apresenta apenas como o ponto de interseccão entre as estruturas
sistêmicas.
Mas as sociedades
pré-modernas não eram, na realidade, primitivas, mas sim altamente
diferenciadas; o que ocorre é que esse tipo de diferenciaçãoo não corresponde
ao conceito moderno. As sociedades antigas, predominantemente agrárias, não tinham
uma cultura, mas elas eram uma cultura. Isso se expressa na nossa
utilização científica da linguagem, na maior parte das vezes de maneira
irrefletida: nós falamos sem mais da "cultura" do Egito Antigo, da
Mesopotâmia e da Antigüidade, querendo com isso, via de regra, nos referir
tanto aos artefatos especiais e representações artísticas (da escultura,
pintura, literatura etc.) quanto, por outro lado, à respectiva sociedade como
um todo e a sua estrutura social. Quando, entretanto, falamos de "cultura
moderna", queremos nos referir sempre a um aspecto específico de formas de
expressão e nunca ao sistema social como um todo. Assim, "sabemos"
automática e inconscientemente que a "cultura" já foi o todo e não
uma esfera funcionalmente separada para a edificação do museu dominical dos
homens ganhadores de dinheiro.
De fato, o sentido da
palavra latina "cultus", que deu origem ao conceito, está ligado
tanto a "plantação", "agricultura" quanto a "serviço
divino", "sociabilidade", "formação" e até mesmo "vestimenta"
(em certas ocasiões). Essa conceituação multi-estratificada indica o caráter de
integração das antigas sociedades agrárias. Os conteúdos e formas diferenciados
tal qual o "metabolismo com a natureza" (Karl Marx), bem como as
relações sociais e a estética não se separam entre si como
"subsistemas" com "lógica própria", mas eles são sempre a
expressão de um modo de existência cultural único e coerente. Em termos
modernos a descrição desta existência cultural deverá soar confusamente assim:
a produção era estética, a estética era religiosa, a religião era política, a
política era cultural, a cultura era social e assim por diante. Em outras
palavras: os atributos sociais hoje distintos para nós eram embutidos uns nos
outros, cada momento da vida estava de certa modo contido nos outros.
Pode-se talvez tentar falar
de uma constituição religiosa dessas culturas agrárias, pois aparentemente a
religião apresenta-se como o momento de integração mais forte da
"sociedade como cultura". Como se sabe não só todos os tipos de objetos
artesanais, mas também o teatro e as competições esportivas apareciam de alguma
maneira como ações cultuais, isto é, integradas ao culto. Para ser mais
preciso: eles eram ações cultuais de um tipo particular. Mesmo as tarefas
completamente comuns do cotidiano tinham basicamente o caráter cultual; mesmo o
humor e a ironia também estavam cultualmente associados. Todavia, seria um erro
elevar "a religião" a momento sistêmico determinante de tais
sociedades, pois assim já estamos pensando de novo com o nosso conceito
funcional moderno de esferas separadas. Mesmo a religião não era uma religião
no sentido moderno, não era puramente "crença", nem a ocasião
limitada para um pensamento transcendente e muito menos "assunto
privado".
Não podemos portanto pensar
no caráter religioso das culturas antigas simplesmente como uma relação
coercitiva limitadora e irracional. O religioso era também o público, a assim
chamada política, a forma do debate. Não por acaso a palavra latina
"privatus" tem um significado negativo e pejorativo, que fica mais
claro ainda para nós pelo conceito grego antigo correspondente: ali quem não
participa da vida cotidiana e portanto pública é o idiota. Mas se o
religioso é ao mesmo tempo a forma do público e abrange o cotidiano, isso não
quer dizer necessariamente que a limitação dessa sociedade se revela aí, como
pretende a ideologia apologética de auto-legitimação moderna. Também se poderia
dizer, pelo contrário, que uma tal sociedade-cultura teria muito mais vida
pública e debate do que o sistema moderno. Como volteamos e distorcemos os
fatos, não podemos conceber com o nosso auto-entendimento moderno a existência
de uma sociedade culturalmente integrada. Não temos conceitos para isso.
Essa cegueira moderna para
o caráter das relações pré-modernas produziu um outro grande mal-entendido. No
centro daquilo que chamamos "religião", em todas as culturas está
fundamentalmente o problema da perecibilidade humana e da morte como processo,
acontecimento e "fim da vida". Juntamente com a religião a modernidade
baniu também a morte para uma esfera funcional particular, separando-a – como a
arte – da vida. Desse modo, a moderna secularização da sociedade não permite
que se trate a morte de outra forma e que se reflita sobre ela, mas a reprime e
a ignora. O que a religião significava nas sociedades antigas não foi
ultrapassado e superado positivamente, mas meramente reduzido funcionalmente a
resto irracional para o sentido privado dos indivíduos abstratos. Em relação à
perecibilidade corporal a modernidade foi até mesmo além: assim como as pessoas
mais velhas e "imprestáveis" para a reprodução capitalista aparecem
como um simples "fardo velho" para a sua prole, sendo fechadas em
asilos e separadas da vida normal, os mortos também são "eliminados"
como lixo e sucata industrial.
Depois de ter recalcado a
morte, a modernidade só poderia compreender a antiga integração entre vida e
morte como uma assustadora "relação com a morte". Que os antigos
egípcios conferiam grande valor a seus túmulos e ao embalsamamento de seus
mortos, é comumente interpretado como um sinistro culto à morte, como se os
egípcios não tivessem outra coisa com que se ocupar. Da mesma forma o homem
moderno mostra repugnância pelo hábito da Idade da Pedra de enterrar os restos
mortais junto ao fogo, dentro de casa. Na realidade, todos esses homens deviam
ter uma excepcional disposição para a vida – como, aliás, demonstram por vários
pontos de vista as ciências que estudam a Antigüidade. A óbvia integração da
morte no cotidiano parece-nos estranha, porque o problema da nossa própria
perecibilidade foi "removido" para um lugar invisível na nossa vida
comum. Diversos críticos da cultura fizeram dessa separação entre vida e morte,
tal como a separação entre arte e vida na história da modernização cada vez
mais um tema lancinante, sem, contudo, jamais ter criticado radicalmente a
estrutura social subjacente à coisa.
Em uma "sociedade como
cultura", capaz de integrar também a morte, a "arte" passava a
ser necessariamente um componente da vida diária, e como tal totalmente
impensável como expressão de uma esfera esterilizada e morta "atrás de um
vidro". Mas até por isso, ela não era arte como arte, mas antes um
determinado momento de um contexto social integrado. O "artista" só
poderia, portanto, ser reconhecido como tal pela sua capacidade técnica e não
como representante social "da" arte. O problema das separações
funcionais, que tanto ocupa a modernidade, surgiu junto com a modernidade e
nunca havia sido formulado antes. Seria o caso então de se perguntar também de
onde vem, na realidade, essa "diferenciação " sistêmica.
O processo de modernização
não divide a sociedade de maneira uniforme ou com valores uniformes. Ao
contrário, um determinado aspecto da reprodução humana – a assim chamada
economia – é cindida de todos os demais aspectos e principalmente da
vida. Da mesma forma que acontece com a arte ou com a religião, não se pode
falar, no que diz respeito às civilizações agrárias antigas, de uma economia no
sentido que damos hoje a esta palavra, embora o conceito nos venha dos Antigos.
Mas na Grécia Antiga, como em todas as antigas civilizações pré-modernas, a
"oikonomia", como economia doméstica integrada num contexto cultural,
era um pressuposto material e um meio para as finalidades
cultuais, e assim, sociais ou estéticas. Ao contrário, na modernidade a
economia desenvolveu-se como um absurdo fim em si mesmo e como conteúdo
central da sociedade: o dinheiro tornado capital que retorna a si mesmo, e
assim um "sujeito automático" cego (Karl Marx), estando pressuposto
fantasmagoricamente a todos os objetivos humanos e culturais.
Na medida em que essa
"valorização do valor" (Karl Marx) ou maximização abstrata do ganho
econômico empresarial, enquanto um fim em si em processo, se cinde da vida,
começa a surgir uma "esfera funcional" separada e independente, como
um corpo estranho na sociedade, que passa a ser central e dominadora. É a
partir da existência deste setor cindido e ao mesmo tempo dominador que
aparecem todos os outros aspectos restantes da reprodução social da economia
capitalista como "subsistemas" separados, em que todos tem,
entretanto, sem exceção um mero significado secundário, subordinados ao fim em
si econômico pressuposto.
Sob a ditadura da economia
feita indepedente, a atividade produtiva é transmutada em "trabalho"
abstrato, um espaço funcional separado e estranho à vida, que passa a ser
regulado só secundariamente e sob a coação também incontrolável dos
"sistemas legais", através da esfera separada e particular da
política. Tal "política", cindida da sociedade culturalmente
integrada, tem de ser assim também desconhecida das civilizações pré-modernas,
tanto quanto a "economia desvinculada" (Karl Polanyi) do fim em si
capitalista e seu respectivo conceito positivo de "trabalho" abstrato,
alheio a um contexto de vida integrado. A política moderna e as respectivas
instituições do Estado e do Direito não podem ser comparadas com as
instituições pré-modernas aparentemente equivalentes, que, como a
"religião", não tinham o caráter de setores funcionais separados. Foi
somente no processo de desintegração social moderna pela "economia
desvinculada" que surgiram a política, o Estado e o direito, no sentido
que lhes atribuímos hoje, como "subsistemas" complementares de segunda
ordem e conseqüentemente, como meros servidores (ministros!) da economia
capitalista tácita e a priori.
Se o conteúdo central e o
objetivo da sociedade se tornam um fim em si mesmo cindido, então a vida
necessariamente se rebaixa a um mero resto. A expressão da vida para além das
cisões sistêmicas e das esferas funcionais complementares do mercado e do
Estado, da economia e da política, da concorrência e do direito, é degradada ao
refugo do "lazer"; e em algum lugar em relação a resto difuso está
não somente a religião, mas também a arte e a cultura colocadas em esferas
particulares. Todas as coisas que um dia foram decisivamente importantes para
os homens, todas as questões existenciais, e assim todas as finalidades e
formas de expressão estética ligadas a essas questões se transformaram nesse
"resto" insignificante e os seus representantes têm que brigar pelas
migalhas caídas da mesa do monstruoso fim-em-si. A situação da arte e da
estética torna-se particularmente absurda. Embora toda aparição de vida em si
contenha sempre um momento estético para o ser humano, o capitalismo negou esse
fato elementar e cindiu a estética em um local separado, como aliás todos os
outros momentos. O "trabalho" não é estético, a política não é
estética, só a estética é estética. Como se a estética das coisas levasse uma
existência própria, abstratificada e fantasmagórica, fora e ao lado das coisas;
exatamente como a sociabilização dos produtos leva uma existência particular
abstratificada ao lado dos produtos na forma abstrata do dinheiro tornado em
fim em si e a lógica formal abstrata, como o "dinheiro do espírito"
(Marx), passa ao lado e torna-se independente da lógica concreta dos contextos
reais.
A prisão de vidro do
artista consiste exatamente nessa cisão estrutural do estético. A arte move-se
desamparada para cá e para lá dentro dessa jaula; ela não é mais a forma
artística de um conteúdo social, e sim uma "formidade" cindida, seja
forma sem conteúdo ou conteúdo como mera forma. A arte deve, portanto,
macaquear o fim em si do capital, que gostaria de se emancipar de todo conteúdo
material na sua forma abstrata e auto-referente (dinheiro), sem poder jamais
realizar tal absurdo. A "arte pela arte" é simplesmente o clímax da
arte como caricatura involuntária do capital, sem poder resolver o dilema de
fundo do sistema capitalista.
Mas se ela tornou-se
através de seu infortúnio um fim em si, desvairado e enamorado de si mesmo, ela
pode, então, na sua separação insuperável, gerar uma hybris social: em
vez de se conceituar como produto de um sistema de cisões e mobilizar a crítica
radical dessa estrutura destrutiva de finalidades em si, a arte inicia sua
própria cisão e a "estetizar" aquilo que dá à luz. Não é somente o
seu próprio dilema que se torna assunto estético, mas toda a gritante
esquizofrenia capitalista. Quando a estrutura capitalista, entretanto, não é
criticada, mas estetizada, os corpos destroçados por granadas, as
mulheres violentadas, as crianças famintas e a obscenidade do poder aparecem
como simples objetos estéticos. A estética cindida não se volta aos conteúdos
sociais, mas apenas os ilumina em uma reflexão cínica. Uma "estetização da
política" no interior do sistema capitalista insuperado não leva à
emancipação, mas diretamente à barbárie. A política esteticamente encenada foi
o segredo do sucesso do fascismo e Hitler foi o protótipo do artista como
político, que não reintegra as esferas separadas, mas apenas estiliza a sua
desintegração numa sangrenta obra de arte total.
A precária situação da arte
na estrutura capitalista das cisões também tem um lado sexual. Para que a
"economia desvinculada" do fim em si capitalista pudesse se
estabelecer e gerar a moderna separação das esferas era necessário uma condição
prévia elementar: tudo que não cabia nesse sistema de cisões tinha de ser, por
sua vez, cindido primariamente. E assim se fez com todos os momentos da vida
que já foram culturalmente integrados mas que agora são empurrados à mulher
moderna: família, "trabalho doméstico", cuidar das crianças, atenção,
"amor" etc., junto com as características correspondentes que
pertenceriam também a uma suposta receptividade especial estética: a mulher,
como "beleza natural", enfeita a si mesma e ao lar do seu amor. Esse
espaço social, que não pode ser totalmente absorvido pelas estruturas capitalistas,
todavia permaneça necessário à reprodução humana, aparece como uma privacidade
separada de um novo tipo, em contraste à estrutura social total do capital e
das cisões interiores nele contidas. Surge, assim, uma paradoxal "cisão do
sistema total de cisões" (Roswitha Scholz), que forma a sua
"retaguarda escura" e é conotada como "feminino", enquanto
que, inversamente, o sistema oficial como um todo é ocupado e dominado de forma
"masculina".
Esse conhecimento da cisão
de gêneros elementar e primária, gerado pela crítica feminista, remete a uma
estranha relação de gêneros entre o privado e o público, que também afeta a
esfera estética cindida da arte e da cultura. Nas sociedades pré-modernas
culturalmente integradas havia de fato momentos fortemente patriarcalistas, mas
não na forma aguda e "diferenciada" da modernidade. A diferenciação
culturalmente integrada, para qual não temos mais conceitos, também não separa
o "público" e o "privado" no sentido em que o entendemos.
Dito em conceitos modernos, muito do que hoje se considera privado era público
– e vice-versa; e embora o público fosse "masculino", isso era
limitado ou haviam esferas públicas "masculinas" e
"femininas" simultâneas e paralelas no contexto cultural.
As formas paradoxais de
desintegração sobre a base da "economia desvinculada" separaram
duplamente o público e o privado do ponto de vista dos gêneros. Por um lado
existe o espaço íntimo da privacidade, no qual "a mulher", o assim
chamado belo sexo, é responsável pelo calor do ninho, pelo conforto do dono da
casa, pela dedicação amorosa, etc. – e exatamente por isso é considerada
"inferior" e "fraca de espírito". Em contraponto a essa
privacidade inferior, todo o sistema do capitalismo, com a "economia
desvinculada", aparece no topo como a esfera "masculina" do
mundo público burguês e como a sociedade autêntica. Por outro lado, contudo,
ocorre também dentro dessa estrutura "masculina" oficial uma segunda
cisão interna entre a esfera pública e a privada: a atividade para o fim em si
sem sujeito do sistema aparece aqui, de forma absurda, como a privacidade
"masculina" do sujeito de interesse do capitalismo, o "homo
economicus" e o ganhador de dinheiro, enquanto que a também
"masculina" esfera complementar da política é definida como a esfera
pública. A esfera cindida da estética ou arte e cultura representa tão só um
apêndice dessa esfera pública interna dentro do pseudo-universo
"masculino" capitalista.
Por isso, o
"artista" é em princípio um ser masculino dentro da esfera pública
capitalista, mesmo que num lugar particularmente precário. De fato também
existem mulheres artistas, tal como políticas, empresárias, cientistas, etc. –
mas antes de mais nada como exceções que confirmam a regra sociológica; e em
segundo lugar sempre adaptando-se às regras do jogo "masculino", com
o que se comprova que não se trata de condições biológicas, mas de atribuições
sociohistóricas. O artista estruturalmente "masculino", na sua jaula
de vidro da estética cindida, torna-se um ser particularmente esquizofrênico:
de um lado ele é cada vez mais "homem" capitalista e ganhador de
dinheiro, repousando sobre a privacidade burguesa de primeira ordem e
necessitando da "mulher" como ser devotado às tarefas menores na sua
retaguarda como qualquer vendedor de automóveis; por outro lado, representa
dentro da esfera pública burguesa "masculina", na figura da estética,
ele próprio um elemento "feminino" cindido, que não pertence ao
sistema funcional mas que apesar disso é parte da esfera pública capitalista.
O "feminino" só
pode aparecer no pseudo-universo masculino na forma de objetualidade artística
separada, estéril e museológica. O artista é assim o homem capitalista que
exibe certos lados femininos singulares, e que eventualmente pode até ser
homossexual – mas somente enquanto pessoa desviada socialmente dentro da
estética narcisisticamente autoreferida a si mesma, assim como rouba da
"mulher" os atributos a ela imputados; e justamente assim torna-se o
super-masculino (Übermann) que até mesmo degrada o "feminino"
incorporado de forma masculina e a "mulher" como modelo, objeto ou
musa, a mero objeto de beleza. Ao mesmo tempo, a sociedade burguesa vê a sua
representação do feminino no masculino como um defeito e a "inferioridade
feminina" lhe pesa, de tal maneira que passa a ser tratado como um
elemento exótico da sociedade pelos seus colegas vendedores de carros e não é
levado totalmente a sério em todos os aspectos.
Mas essa estrutura das
cisões, que constitui a essência da modernidade, hoje já é percebida como
passado histórico. A dinâmica capitalista explodiu a sua própria forma social e
põe-se em processo ainda mais desenfreadamente. A cultura de massas e as novas
mídias parecem "aplainar" a "diferenciação" sistêmica: o
que a crítica há meio século denunciava como "indústria cultural"
(Adorno), hoje é festejado pelos "pós-modernos" como uma reintegração
da arte à vida. A midialização já vale per se como emancipação das
coerções da realidade capitalista; o mundo se explica pelo jogo digital. Por
toda parte já fervilham "oportunidades" que podem ser apreendidas no
sentido da "democratização" midiática. E no divertido e habitual
baile de máscaras dos sexos o admirável mundo novo pós-moderno crê ter superado
a cisão entre os sexos. O travesti já é quase proclamado um novo sujeito revolucionário.
A retórica das
oportunidades do otimismo profissional cultural pós-moderno, mesmo quando
muitas vezes ligada ao radicalismo de esquerda, faz lembrar de modo suspeito a
linguagem orwelliana dos economistas neoliberais. De fato, a arte não reingressa
na sociedade como "cultura de massas democrática"; mas, ao inverso, o
mercado ultrapassa seus limites e renova a sua pretensão à totalidade mais
vigorosamente do que nunca. Após a economia capitalista cindir-se do contexto
cultural de vida e seus restos serem transformados em subsistemas separados, a
sua dinâmica não poderia se deter nesse estado de desintegração. Mesmo que de
início os setores da arte e cultura, do esporte, da religião, do "tempo
livre" etc. pareciam poder afirmar uma certa lógica própria contra o
sistema dominante da "economia desvinculada", doravante eles
tornam-se sucessivamente eles mesmos "economificados".
Esses campos eram
inicialmente dependentes e secundários: se o contexto social é determinado pelo
fim em si cindido do dinheiro, então o padre, o atleta e o artista também têm
de "ganhar dinheiro", seja diretamente como vendedores no mercado,
seja indiretamente pela absorção estatal, com dinheiro vindo dos processos do
mercado. Mas isso foi durante muito tempo somente uma dependência externa.
Enquanto a arte não cedesse em sua própria produção às leis econômicas do
mercado, ela não poderia tornar-se uma mercadoria totalmente capitalista, mas
algo apenas suplementar na circulação. Mas o fim em si capitalista é tão
faminto quanto insaciável, e assim teve de devorar, finalmente, o próprio resto
já mutilado da vida: a arte e a cultura cindidas, tanto quanto o "tempo
livre" miserável e a intimidade familiar limitada.
A arte só regressa à vida
na medida em que a vida já se dissolve na economia. Agora a arte não tem mais
existência própria, nem já é mais enquanto esfera uma estética cindida, mas
torna-se um objeto imediatamente econômico e por isso sua produção já se
realiza sob os pontos de vista do marketing. Em geral todos os objetos
da vida e do mundo deixaram de ter qualquer valor qualitativo próprio no
capitalismo sem limites do final do século XX, mas tão só o seu valor
econômico, que lhes confere vendabilidade.
O que os pós-modernos
adoram farejar como oportunidade emancipatória da arte na cultura de massas
capitalista é na realidade a sua destruição. Se os "alegres
positivistas" da pós-modernidade (no termo de Michel Foucault) querem
remeter hoje essa visão profética de Adorno à vizinhança do pessimismo cultural
conservador, então eles apenas demonstram ter capitulado incondicionalmente
diante do imperativo econômico e não ser menos afirmativos do que os
conservadores aparentemente críticos. Enquanto o pessimismo cultural
conservador critica a destruição da arte pela indústria cultural capitalista só
do ponto de vista do seu próprio passado, tal como ela ainda era uma estética
com fim em si mesma na modernidade clássica, os pós-modernos enganam a si
mesmos sobre o impulso final de dissolução da arte na economia como sua
reapropriação autêntica pela sociedade. E se a crítica cultural conservadora
chora pela família burguesa bem como pelos sujeitos elitistas da antiga
formação cultural burguesa, a pós-modernidade interpreta a miséria midiática
solitária do "sujeito descentrado" como a primavera da emancipação.
Uns aderiram ao passado capitalista, outros ao presente capitalista, e ambos
renunciam a uma nova perspectiva para o futuro anticapitalista.
Neste sentido, homens e
mulheres, artistas e vendedores de carros tornam-se hoje apenas idênticas como
se todos tivessem adotado a mesma identidade vazia do "homo
economicus" e se tornassem agentes sem vontade do "sujeito
automático" não mais deles próprios. A "diferenciação" das
subjetividades setorialmente cindidas pela economia de mercado degringola, até
cada uma delas tornar-se uma espécie de vendedora de carros, não importa o que
façam. A fé ingênua na democracia dos consumidores da indústria cultural
pós-moderna faz papel ridículo diante da ditadura da oferta capitalista. A
indústria cultural não é para ser criticada então por ser cultura de massa, mas
porque ela se consuma na forma alienada da "economia desvinculada". A
sua estética não é a estética dos homens, mas a estética das mercadorias.
Na democracia das
mercadorias os seres homens como homens não têm mais nada a dizer. A estética
das mercadorias não integra os indivíduos desintegrados, mas as mercadorias
como pseudo-objetos fantasmagóricos. Ela não é a forma estética de um conteúdo,
e sim o "design" da abstração econômica. Esse estágio final da
estética moderna pode ser descrito em diversos planos:
- Em primeiro lugar,
trata-se de um estética do particularismo. Contextos e relações são
desconsiderados. Ignora-se que o todo é mais que e algo qualitativamente
diferente da soma das partes. O design é a estética rutilante das
mercadorias abstratas particularizadas para o consumo dos indivíduos abstratos
particularizados, enquanto toda a paisagem, as cidades e o espaço social são
transformados em depósitos de lixo fedorentos.
- Em segundo lugar, esse design
corresponde a uma estética da arbitrariedade. A forma e o conteúdo
deixam de guardar relação entre si, porque o conteúdo é definido como forma.
Para o capital pouco importa que ele valorize-se pela produção de carne de
porco, campos minados ou purgantes. Assim, também para a arte economificada do design
deve tornar-se indiferente o que ela produz, desde que se apresente vendável e
apta à encenação midiática. Isso elimina qualquer padrão de medida. Enquanto
numa integração cultural consciente é sempre preciso desenvolver padrões de
medida, mesmo que se saiba de sua relatividade e da possibilidade de
alterá-los, a estética da mercadoria é a priori destituída de padrão de
medida – o que se adapta ao "sujeito descentrado" pós-moderno, que é
literalmente um "tanto faz". Um mundo sem padrões de medida, que tudo
torna indiferente, só pode no entanto gerar uma coisa: um tédio sem fim.
- Em terceiro lugar, a arte
e a cultura degradada pelo design do mundo das mercadorias exibe-se como
estética da simulação. A idéia bêbeba pós-moderna de uma desrealização
da realidade pela mídia (Jean Baudrillard e seus comparsas) adoraria crer com o
maior prazer na aparência do design, porque ela mesma a produziu. A
simulação das mídias tenta construir um mundo paralelo, virtual e
desmaterializado, no qual o capitalismo não mais enfrenta barreiras naturais e
sociais, e no qual o crescimento da "economia desvinculada" pode
prosseguir sem fim. Os mundos de aparência virtuais da mídia correspondem
economicamente ao capitalismo de cassino dos últimos 15 anos: os mercados
financeiros desvinculados simulam uma acumulação de capital, que há muito tempo
não tem chão econômico firme sob os pés. O capitalismo, por assim dizer,
prossegue sua correria no ar, após ter cruzado as bordas do desfiladeiro. Nesse
ambiente econômico de "capital fictício" (Karl Marx), de
"boom" de ações, endividamento, jogos de azar e sociologia de
"risco" (Ulrich Beck), desenvolveu-se um espírito do tempo que tenta
vencer a insuportabilidade das intransigências do capitalismo com um
"fazer como se...". Na pose simulativa de uma auto-estetização
midiática os indivíduos agem "como se" fossem competentes, bem
sucedidos, belos e visíveis, enquanto as suas relações sociais reais entram em
colapso.
O particularismo, a
arbitrariedade e a simulação denunciam que a arte destruída pela sua mutação em
estética das mercadorias só pode se integrar negativamente na vida social, e
nem há mais vida aí. O velho problema da separação entre arte e vida não é
resolvido, mas torna-se inexistente, sem objeto (gegenstandslos), pois o
próprio homem social foi desobjetivado (gegenstandslos). Mas também essa
desobjetivação se revela como mera aparência, em que o "sujeito
automático" de certo modo faz ilusões sobre si mesmo na cabeça dos homens.
A realidade capitalista deve ser desefetivada, pois chegou, sem saída, no final
absoluto de seu desenvolvimento, sem que os homens sistemicamente condicionados
queiram admitir essa crise histórica. Mas atrás do puro design da
estética das mercadorias mostra-se inexoravelmente a sua verdadeira existência
negativa. Eles não podem fugir de seu sofrimento real, mesmo quando tentam a
sua própria desefetivação mediática.
A "economia
desvinculada" apenas pode se integrar tautologicamente em si mesma, mas a
sua pretensão de totalização sem atritos tem de fracassar, pois ela torna
verdadeiramente negativa a vida real e sensível, mas não pode absorvê-la em seu
mundo surreal das abstrações independentes, assim como é incapaz de
"desrealizar" ou abolir a morte. O reprimido não volta, já está
sempre lá. Só na superfície do design o sistema de cisões aparece
dissolvido na economização do mundo. Por trás dessa aparência, entretanto, o
mundo real desintegrado torna-se insuportável. Tal como a cisão de gêneros não
desaparece nos travestis, entretanto, o "asselvajamento pós-moderno do
patriarcado" (Roswitha Scholz) também joga primordialmente nas costas das
mulheres o peso da crise social após a decomposição da família burguesa, e do
mesmo modo a miséria estética do mundo funcionalmente orientado também não
desaparece no design da estética das mercadorias, mas apenas surge de
modo mais crasso na desolação do espaço público economificado.
Se a crise real não pode
mais ser reprimida, a desrealização pela mídia consegue "estetizar" a
miséria insuperada e dolorosamente percebida, mesmo quando essa estetização da
crise não assume mais as formas políticas dos anos 30, mas até mesmo aparece na
própria política "economificada". Entretanto, da midialização comercial
e estético-mercantil da pobreza, da violência e do asselvajamento das relações
entre os gêneros abrem-se os sorrisos falsos dos motivos do fascismo. A
estética da desrealização pela mídia e da arbitrariedade sem padrões de medida
é a estética da guerra civil e da barbárie, visto que ela elimina, em última
instância, os freios civilizatórios.
Um retorno
à modernidade clássica é hoje tão pouco possível quanto um retorno às formas
agrárias de sociedade culturalmente integrada. Mas a sobrevivência da
desintegração capitalista é tampouco possível. Também a própria arte só pode
ser superada positivamente quando conscientemente se tornar momento de um novo
movimento social que transcenda o antigo marxismo do movimento operário e ponha
a nu as raízes que têm produzido o sistema de cisões e separações funcionais.
Uma integração cultural da sociedade em novos e mais elevados graus de
desenvolvimento só será possível quando se tiver destruído o fim em si da
economia e superado a cisão de base entre os sexos. O pressuposto de um novo debate
emancipatório é hoje a legítima defesa contra a economificação capitalista do
mundo.
Original
Die Ästhetik der Modernisierung em www.exit-online.org. Tradução de Cláudio
Roberto Duarte.
Deutsch http://www.exit-online.org/link.php?tabelle=autoren&posnr=9