Democratas e cleptocratas
Quanto mais, nos anos 80 e 90, a cultura era economicizada, mais a economia era culturalizada no pensamento ideológico
O fim do "milagre
econômico" ocidental do pós-guerra, o declínio do
capitalismo de Estado oriental, o colapso do regime de
desenvolvimento nacional no Sul, o naufrágio da economia-modelo
japonesa e o desastre dos tigres asiáticos são marcos do
moderno sistema produtor de mercadorias numa crise mundial
inusitada tanto em termos qualitativos como quantitativos.
Quanto mais avança a crise, mais necessidade há de uma
justificativa apologética. Razões sempre novas têm de ser
inventadas para explicar por que o sistema mundial vigente,
suposto ótimo e ponto culminante da história humana, não pode
de modo algum ser culpado pela miséria. Como o totalitarismo
econômico não pode ser chamado pelo nome, o discurso oficial
concebe a duras penas causas diversas, por mais despropositadas
que sejam, para poder citar a dissolução da sociedade em geral
sem ter de deslegitimar a ordem sacrossanta.
Na última década, operou-se uma nítida mudança no modelo
explicativo. No início dos anos 90, o mundo ainda se achava sob
o influxo da Guerra Fria e do conflito sistêmico entre
capitalismo de Estado e capitalismo concorrencial, vigente desde
meados do século 20. Nessas longas décadas, a polêmica entre
as vertentes estatais e mercadológicas foi decisiva. Nas
universidades ocidentais, as ciências políticas e a conjuntura
político-econômica ganharam primazia até meados dos anos 80.
Com isso, o colapso do capitalismo de Estado ao final dessa
década foi apreendido sobretudo em categorias
político-econômicas.
De repente todos viraram ardorosos defensores do mercado, até
mesmo a maioria dos antigos neomarxistas. Ébrio de triunfo, o
neoliberalismo anunciou a doutrina redentora das "reformas
de mercado": redução do Estado, desregulamentação,
privatização, livre comércio, concorrência solta. Essa
interpretação não fazia jus à realidade, porque fechava os
olhos para o fato de que Estado e mercado representam apenas os
dois pólos da socialização capitalista e não podem ser
jogados um contra o outro. Era como se o Estado fosse uma
espécie de corpo estranho no mecanismo capitalista, em vez de
reconhecê-lo como o reverso lógico do mercado.
A oposição entre mercado e Estado não é aquela entre
capitalismo e não-capitalismo, e sim uma oposição no interior
do próprio capitalismo. Em seu desvario, o triunfalismo
mercadológico pôde compreender a vertente econômica do Estado
somente como caricatura ideológica, em vez de concebê-la em seu
condicionamento histórico. Nessa visão míope, a propriedade e
a intervenção estatais não passavam de "erros e
equívocos" que conduziriam necessariamente ao fracasso. Mas
isso era confundir causa e efeito.
Vista em conjunto, a história do século 20 revela que não foi
a economia de Estado que provocou a crise; ela própria foi uma
resposta para a crise. Desde o fim da Primeira Guerra Mundial, a
queda do desenvolvimento no interior do capitalismo global,
impossível de ser superada mediante a concorrência de mercado,
fez nascer no Leste e no Sul a idéia e a práxis do Estado como
uma "empresa nacional" tal como o intervencionismo
keynesiano ocidental foi uma reação à experiência
catastrófica da crise econômica mundial.
Não é uma determinada orientação político-econômica interna
ao sistema que acarreta a crise, mas sim a lógica que funda o
próprio sistema. Por isso o capitalismo de Estado e o
keynesianismo não puderam sujeitar a crise e, em última
análise, o "subdesenvolvimento", sendo rejeitados
pelos critérios do sistema. Mas precisamente por isso a guinada
rumo ao mercado e à concorrência não traria consolo algum. Na
maioria dos países, as "reformas mercadológicas"
antes agravaram a crise do que a superaram.
Em vez de admitir a paralisia do moderno sistema mundial produtor
de mercadorias, os ideólogos e mandarins científicos, no curso
dos anos 90, preferiram simplesmente ignorar os problemas
incontornáveis da política econômica e se afastar para outro
campo, a fim de despertar a ilusão de uma explicação e
perspectiva conformistas. Esse novo rumo do
"mainstream" intelectual, que de lá para cá foi
assimilado mundialmente pela política e pela mídia, foi sendo
formado de diversos aspectos e motivos que concorreram para um
novo modelo de interpretação.
Primeiro, estamos às voltas com uma mudança básica da moda
intelectual e acadêmica nas ciências sociais e humanas. Desde a
segunda metade dos anos 80, observa-se o triunfo francês das
chamadas teorias pós-modernas e pós-estruturalistas de
filósofos, como Lyotard, Derrida, Baudrillard, Foucault e
outros.
Apesar de todas as diferenças e antagonismos nos detalhes,
reconhece-se um traço comum a essas teorias: o paradigma da
economia política foi substituído pelo paradigma do
culturalismo. Não é à toa que essa guinada intelectual se
prende à guinada social e político-econômica do
neoliberalismo. A sociedade não é mais concebida como produto
da economia política, mas como produto do "discurso
cultural".
Movimentos sociais, intervenções sociais e mudanças não são
atribuídas à estrutura "nuclear", mas sim, de forma
"performativa", ao "discurso" em sentido
amplo, ao hábito cultural, ao design social e à
auto-representação simbólica. Assim, a economia política como
tal não é mais objeto da reflexão e muito menos da crítica.
As categorias e processos político-econômicos compõem o calmo
ruído de fundo do "discurso". Quanto mais, na
realidade dos anos 80 e 90, a cultura era economicizada, mais,
por sua vez, a economia era culturalizada no pensamento
ideológico. Nesse movimento paradoxal, fica claro que estamos
às voltas com um processo de recalque coletivo.
O economicismo, inócuo dentro das fronteiras do sistema, foi
portanto substituído por um simples culturalismo, um tanto
deficitário como pano de fundo tácito do sistema. De um lado,
na superficialidade e na rápida mudança da corrente
culturalista se expressa a singularidade do consumo de
mercadorias e o credo neoliberal da concorrência universal; de
outro, essa corrente é a mais talhada para se livrar dos
problemas irresolutos da economia política.
Para grande parte da inteligência de esquerda, o culturalismo
pós-moderno ofereceu um alívio intelectual: podia-se nadar a
favor do espírito do tempo e, não obstante, fazer pose de
"críticos radicais" num plano simbólico e
performativo. Para os próprios ideólogos do mercado total, o
alívio intelectual graças ao pensamento pós-moderno foi talvez
ainda maior: depois de quererem curar o mercado cristalino das
mazelas do Estado, agora eles encobrem o pronto fracasso do
mercado com justificativas "extra-econômicas",
lançando mão de interpretações culturalistas.
Nesse propósito, o culturalismo pós-moderno se prende a uma
determinada vertente dentro da teoria político-econômica que,
desde o início do século 20, atende pelo nome de
"institucionalismo" ou "economia
institucional" e que há tempos foi relegada à sombra.
Originalmente, essa teoria fundada por Thorstein Veblen tinha-se
por uma crítica pragmática ao economicismo da economia
política clássica: o ser humano não deveria ser entendido
unicamente como "homo oeconomicus", mas antes, num
sentido abrangente, como ser social -e por isso lhe parecia
necessário unir a teoria econômica a outras ciências sociais.
O trato econômico e suas instituições deveriam ser
investigados em reciprocidade com outras formas de organização,
motivos e modelos de ação sociais (direito, tradições,
ideologias, religiões, normas, formas de vida e conduta etc.).
Por mais correta que fosse, a princípio, essa crítica ao
economicismo unidimensional, ela se revelou rasa demais por não
desenvolver nenhum conceito crítico do sistema como um todo,
alinhando apenas superficialmente as diferentes formas de ação
e suas respectivas instituições. Por isso o institucionalismo
de Veblen, concebido como aparato crítico, acabou suscetível a
uma positiva instrumentalização.
Essa guinada apologética ficou a cargo da chamada "nova
economia institucional" após a Segunda Guerra Mundial,
representada sobretudo pelo neoliberal linha-dura James M.
Buchanan, que por ela recebeu o Prêmio Nobel em 1986, bem a
tempo para empregar o institucionalismo (de penteado novo) como
arma de grosso calibre na miséria de justificativas dos anos 90.
Buchanan e outros economistas de sua corrente interpretaram o
problema das instituições extra-econômicas em oposição a
Veblen, bem no espírito do totalitarismo econômico: formas
jurídicas, tradições, regras, visões de mundo não são
consideradas como neutras em sua relação mútua com a economia
capitalista, mas sim de forma normativa, para saber se dão
rédea solta ao "homo oeconomicus" ou não. Em outras
palavras: a consideração de formas de agir extra-econômicas
serve exclusivamente ao propósito de definir pressupostos
institucionais ótimos para a liberdade total do mercado.
Bens escassos
Desses fazem parte, segundo Buchanan, regras constitucionais para
defesa dos indivíduos contra o "setor público", a
segurança jurídica das transações capitalistas e a garantia
do direito de propriedade privada ("property rights")
e, portanto, a possibilidade de os detentores excluírem outras
pessoas da fruição de supostos "bens escassos".
Assim, de acordo com o "novo institucionalismo", o
fracasso nunca é do mercado, mas somente de pressupostos
jurídicos e institucionais falhos. Nos anos 90, com o
culturalismo pós-moderno, nasceu assim o paradigma de uma
"cultura econômica" de maior ou menor elevação.
Virou moda falar de uma "cultura empresarial" ou de uma
"cultura nacional de empreendimento", da "cultura
das ações" ou da "cultura da segurança
jurídica" de um país. E cedo esse amálgama de economia
institucional e culturalismo uniu-se à imagem do novo inimigo
global do Ocidente: no lugar do "reino do mal" do
capitalismo de Estado no Oriente surgiu uma embrulhada difusa de
"Estados patifes", fundamentalistas religiosos,
príncipes do terror, bandidos étnicos, máfia transnacional
etc. O professor norte-americano Samuel Huntington, com seu lema
da "luta das culturas", forneceu o horizonte
interpretativo adequado. Basta ampliar esse contexto à questão
da "cultura" institucional e econômica para afugentar
o penoso problema das crises e colapsos do âmbito da política
econômica -crises e colapsos que se seguiram uns após os
outros, a despeito de todas as "reformas
mercadológicas": a causa, assim dizem, não é o vitorioso
modo de produção capitalista; o verdadeiro problema é que aos
"bárbaros" do Sul e do Leste faltam pressupostos
institucionais, consciência mercadológica, educação
democrática, direitos de propriedade e sobretudo uma
"cultura empreendedora".
Capitalismo confuciano Mesmo no Japão e nos tigres
asiáticos, ainda há pouco celebrados como impressionantes
modelos de um triunfante "capitalismo confuciano",
quer-se agora distinguir, subitamente, "arcaicas"
estruturas de lealdade, autoritarismo contraproducente,
corrupção, cleptocracia, clãs econômicos e nepotismo. A
relação entre causa e efeito é assim posta de ponta-cabeça,
tal como, antes, a relação entre crise e economia de Estado. Na
verdade, não é a corrupção, o domínio das máfias, o
terrorismo etc. que provocam a crise, e muito menos o antigo
pendor pela economia de Estado, mas justamente o contrário: é a
crise socioeconômica, fruto do respectivo fracasso do país no
mercado mundial, que destrói ou nem sequer permite o surgimento
do nexo institucional da "segurança jurídica".
Mas, como a crítica da economia política não se desenvolveu,
sendo antes deixada de lado, a lógica basal do sistema não pode
mais ser apontada como causa. Mesmo antigos críticos e a maioria
das chamadas organizações não-governamentais (ONGs) movem
hoje, lado a lado com o Banco Mundial, campanhas anticorrupção
ridiculamente ineficazes.
Nas próprias regiões em crise, alunos-modelo, educados no credo
intelectual econômico, querem responsabilizar exclusivamente o
"atraso cultural" das pessoas pela miséria. Assim
afirma, por exemplo, a africana Axelle Kabou, sob o clamoroso
aplauso da mídia ocidental, que se deve "desintoxicar a
mentalidade africana" e "acertar os ponteiros
culturais" do continente devastado. É um tanto triste ver
como intelectuais do Sul, "espiritualmente intoxicados"
pelo espírito do tempo, adotam sem reservas o antigo clichê
colonialista reformulado numa embalagem pós-moderna para coagir
precisamente os "supérfluos" cuspidos pelos mercado
mundial a uma "cultura da responsabilidade"
capitalista.
S. Paulo, 22 de Julho 2001
Robert Kurz é sociólogo e
ensaísta alemão, autor de "O Colapso da
Modernização" (ed. Paz e Terra) e "Os Últimos
Combates" (ed. Vozes). Ele escreve mensalmente na seção
"Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.