Elefantes brancos
A mania de manipular tudo e o
anseio de dominar um mundo de objectos são inerentes tanto ao
totalitarismo económico do mercado quanto ao totalitarismo
político do Estado
No antigo reino de Sião, quando um cortesão caía em desgraça,
o monarca lhe presenteava com um elefante branco; os enormes
custos para manter esse raro animal significavam a ruína certa
para quem o recebia de presente.
Hoje, são os ambiciosos projetos técnicos e econômicos de
rentabilidade duvidosa (no jargão dos economistas e teóricos do
desenvolvimento) que são apelidados simbolicamente de elefantes
brancos. O historiador alemão Dirk van Laak publicou em 1999 um
estudo no qual descreve a história desses megaprojetos nos
século 19 e 20.
A maioria deles fracassou ou se revelou de antemão inviável.
Van Laak inclui entre eles o colonialismo europeu e a idéia de
uma exploração econômica do espaço terrestre e dos planetas
vizinhos do Sistema Solar, a idéia de uma sociedade guiada pela
tecnocracia da "engenharia social" e o plano do
engenheiro alemão Hermann Sörgel, conhecido nos anos 30 pelo
nome de "Atlantropa", de separar o Mediterrâneo do
Atlântico com uma represa junto do estreito de Gibraltar.
Sejam de natureza política, econômica ou técnica, o traço
comum de tais projetos é sua mania de grandeza. É o velho sonho
de dominação: sociedades inteiras são como material plástico
à intervenção de uma divindade externa; imensos exércitos
operários são mobilizados para uma ação comum, de fundo
econômico e tecnológico. Extensas regiões, continentes
inteiros são transformados em benefício de planos ambiciosos,
rios têm seus cursos retificados, nascem mares artificiais ou
então secam reservas naturais de águas doce e salgada. E,
quando a força para tanto não basta, o menos que se faz é
erigir edifícios monumentais, sobre-humanos.
Efeitos avassaladores Poucas dessas obras resultam num
relativo proveito social, sobretudo sistemas de transporte para
vastas extensões, como por exemplo a ferrovia Transiberiana ou a
Panamericana. A maioria dos projetos monumentais é absurda,
muitos são interrompidos, todos são deficitários. Os efeitos
sobre a paisagem e a natureza costumam ser avassaladores, pois o
planejamento, autocrático, ignora as considerações
ecológicas. Sempre foram, até hoje, os potentados dos países
mais miseráveis que quiseram se eternizar para a posteridade com
uma espécie de mania faraônica. Estádios majestosos, cuja
capacidade não pode nem sequer ser preenchida, ou aeroportos ao
estilo de metrópoles, para os quais o país é pequeno demais,
testemunham a megalomania dos ditadores.
Como todos sabem, também os nazistas e o fascismo italiano
tinham predileção por formas faraônicas. E não é sem
justiça que se atribui ao capitalismo de Estado da União
Soviética haver deixado para trás uma pilha de corpos de
elefantes brancos -ruínas do planejamento burocrático, das
quais os antigos Estados da república socialista, literalmente
arruinados, estão repletos.
Há quem esteja inclinado a tomar esses fenômenos como típicos
produtos do passado, da economia estatal e do totalitarismo
político, os quais não teriam mais lugar na época neoliberal
da desregulamentação, das reformas de mercado e da
democratização global. Mas o caso é justamente o contrário. A
queda pelo gigantismo é um traço do capitalismo em geral,
inclusive do liberal-democrático.
A mania de manipular tudo, que rebaixa homem e natureza a simples
materiais, e o anseio de dominar um mundo de objetos são
inerentes tanto ao totalitarismo econômico do mercado quanto ao
totalitarismo político do Estado. Os próprios magnatas e
mandarins da concorrência de mercado criam tendências
faraônicas. Particularmente nos Estados Unidos, as obras
colossais de reis do dinheiro têm uma longa tradição. Só para
citar um exemplo, o ricaço Donald Trump fez erigir uma réplica,
em tamanho real, do conjunto de templos indianos Taj Mahal.
Mas o amor do capitalismo por projetos monumentais não se
restringe a tais caprichos pessoais de miliardários. Não é à
toa que Keynes ilustra ironicamente sua teoria de uma política
econômica anticíclica do "deficit spending" dizendo
que ao Estado cumpre erguer pirâmides para criar
"empregos". Embora a política keynesiana das
intervenções estatais tenha sido oficialmente sepultada e
substituída pelo consenso neoliberal, é curioso notar que nada
mudou nesse sentido.
A despeito da guinada ideológica, o número de ruínas surgidas
no capitalismo de Estado não diminuiu, antes cresceu, sob a
égide neoliberal. Há claras razões estruturais para o fato de
que, sob a livre concorrência, sejam criados e procriados mais e
mais elefantes brancos.
Onde o interesse capitalista se faz anunciar como uma sensação
de fome e sede, a ideologia cala, tal como a moral e a religião.
E é todo um feixe de interesses que impele por si só o
monumentalismo deficitário. Como bem viu Keynes, é o interesse
sociopolítico no "emprego" capitalista que conduz
forçosamente a essas tendências. E é, como se sabe, o
desenvolvimento do próprio capital produtivo que libera
contigentes cada vez maiores de desempregados em escala mundial e
gera crises sociais.
Oficialmente a ideologia neoliberal diz superar tais crises não
pelos investimentos estatais, mas pelo livre jogo das forças de
mercado, reduzindo os custos da mão-de-obra, ou seja, cortando
os salários, principalmente os do setor de serviços. Mas e se,
em razão da mesma crise de que o desemprego de massas é
resultado, houver muito poucos que ganhem bem o suficiente para
poder "empregar" os desempregados como domésticos,
jardineiros, faxineiros, empacotadores etc. a salários de fome?
É aí que tornam a surgir as obras faraônicas estatais ou
subvencionadas pelo Estado, com propósitos ora mais, ora menos
absurdos.
Os diversos projetos faraônicos, com seus salários pagos pelo
Estado, não só preenchem os mesmos objetivos econômicos de
redução de custos da mão-de-obra do setor de serviços do
mercado mas também oferecem a vantagem de organizar
burocraticamente e disciplinar militarmente um material humano
"inútil" segundo critérios capitalistas, ou seja,
potencialmente perigoso.
É parte do ultraliberalismo dos Estados Unidos que delitos
menores como furtos de alimento para consumo e dirigir sem
carteira de habilitação sejam punidos com anos ou décadas de
prisão. Tal como na União Soviética stalinista, hoje nos EUA
se encontram cerca de 2 milhões de pessoas em penitenciárias,
onde muitas vezes são humilhadas com requintes de sadismo,
saboreiam comidas emboloradas e se arrastam com correias nos
pés, igual a trabalhadores forçados, para a construção de
estradas ou projetos semelhantes de consumo estatal. Que é isso
senão uma forma particular de construção de pirâmides
capitalistas? Segundo achados recentes da egiptologia, os faraós
teriam tratado muito melhor seus escravos do que, hoje, os EUA
tratam seus cidadãos delinquentes.
Papel decisivo Mas há também um outro interesse,
diretamente econômico, nas pirâmides ou nos elefantes brancos.
Em geral, esses projetos de "hybris" capitalista são
potencialmente catastróficos -e portanto absurdos segundo a
cartilha da economia burguesa.
Seu uso, se é que algum dia são levados a cabo, quase nunca se
prende a uma produção rentável. Isso não vale, porém, para
as empresas envolvidas na construção. Para estas a coisa muda
de figura: o elefante branco vira a vaca leiteira do lucro. Tanto
faz para tais empresas de onde vem o dinheiro para o respectivo
projeto faraônico e qual será o resultado. O importante é
encher os próprios cofres. Sobretudo em tempos bicudos, sempre
é motivo de gratidão uma encomenda estatal, reze a pessoa ou
não pela cartilha do neoliberalismo.
Não admira, pois, que mesmo numa era de pretenso liberalismo de
mercado os elefantes brancos gozem de encabulado prestígio. Na
política de desenvolvimento, eles continuam a cumprir um papel
decisivo, sempre sustentados pelo Banco Mundial. Protótipo de
tais programas é a construção de enormes represas, que deixa
como saldo a inundação de vastas regiões. No Brasil, é a
represa de Itaipu, no rio Paraná, que é tida por projeto
faraônico; na Argentina, a represa Yacyreta, que é vista como
"monumento da corrupção". Um dos projetos centrais
subsidiados pelo Banco Mundial é a represa Sardar Sarovar, na
Índia, "a maior de um imenso programa de construção que
inclui 30 represas de grande porte, 135 de porte médio e 3.000
de pequeno porte bem como obras de canalização no total de 80
mil quilômetros. O plano prevê o deslocamento de 14 milhões
(!) de indianos" (Van Laak).
Bem ao estilo de Stálin, cuja industrialização à maneira do
Terror ganhou fama pelo deslocamento de enormes grupos
populacionais, os moradores das regiões alagadas são expulsos
de suas terras, suas ações de resistência, sufocadas com
força policial e militar. Também na China a "abertura de
mercado" é acompanhada de tais programas faraônicos.
O mais conhecido é a construção da imponente represa das Três
Gargantas, no Iang-Tsé, de onde milhões de pessoas terão de
ser transferidas e cujos danos ecológicos são imprevisíveis.
Projetos análogos estão em curso na África. Somente depois da
pressão de protestos mundiais o Banco Mundial tem procedido
agora com mais precaução no financiamento de tais programas,
sem que entretanto a linha de sua política tenha mudado
fundamentalmente.
Nos centros industriais do Ocidente, os elefantes brancos
consistem muitas vezes em produtos de alta tecnologia
superdimensionados. Um exemplo é o Transrapid, trem de alta
velocidade desenvolvido na Alemanha, que se revelou um
insaciável devorador de recursos e jamais foi posto em uso de
forma rentável, sem contar que os respectivos trilhos abriram
profundos sulcos na paisagem e já causaram vivos protestos dos
moradores num trecho de testes no norte da Alemanha. Apesar
disso, o Transrapid é uma das fantasias tecnológicas prediletas
dos empresários alemães. Depois que o projeto fracassou na
própria Alemanha por razões de custo, a previsão é que ainda
seja salvo por possíveis encomendas da China e dos Estados
Unidos.
Máquina militar O maior e mais gordo de todos os
elefantes brancos é naturalmente o complexo militar-industrial
do Ocidente, sobretudo dos Estados Unidos, a última potência
mundial. No setor da indústria armamentista, os liberais também
adoram a síndrome econômico-estatal, embora a máquina militar
seja o que há de mais improdutivo em termos econômicos. Esse
consumo armamentista improdutivo cria, é certo, uma montanha de
débitos, onera gerações futuras e, a longo prazo, representa
um fator de risco para o sistema financeiro, mas, a exemplo dos
programas de represas ou do Transrapid, ele equivale a uma
injeção de moeda capaz de avivar o capitalismo financeiro.
A nova economia, que na realidade foi uma economia da bolha,
precisou, como pontapé inicial, do keynesianismo militar da era
Reagan. E não é por acaso que o governo do presidente Bush
retomou o plano armamentista faraônico na figura do sistema de
defesa antimísseis.
Esse projeto não possui somente razões estratégico-militares
mas também uma função econômica: cabe a ele escorar a queda
da nova economia. As chances de sucesso, porém, são mais do que
duvidosas, porque a situação não é tão mais confortável
como nos tempos de Reagan. Mesmo a curto prazo a administração
Bush já interveio à maneira militar-keynesiana. A alta nas
Bolsas no primeiro semestre de 2001 foi induzida por números
auspiciosos na indústria automobilística norte-americana, mas
que não se assentavam num aumento na compra de veículos de
passeio, e sim em encomendas de veículos militares.
Na era de uma economia especulativa, de que somos testemunha há
mais de uma década em escala mundial, os elefantes brancos não
são gerados somente pelos gastos estatais mas também
diretamente pelo impulso econômico do capital financeiro. O
"capital fictício" das bolhas financeiras não pode
ser armazenado eternamente nos mercados financeiros: ele precisa
sempre buscar novas possibilidades de ativos reais.
Mas, como não são possíveis investimentos reais rentáveis, o
capital excedente abre caminhos inusitados. Ao lado de projetos
arquitetônicos suntuosos, cada bolha especulativa na história
econômica moderna trouxe consigo todo tipo de projeto
fantasioso. Só isso explica por que, nos anos 90, o Sudeste
asiático foi entulhado de monstruosos arranha-céus, a maioria
hoje às moscas, ou que os cartéis das telecomunicações, no
calor da hora, pagaram somas inacreditáveis pela tecnologia
incipiente e de sucesso duvidoso da internet móvel.
A economia-bolha neoliberal deixará suas ruínas grotescas tal
como as ditaduras do totalitarismo político. Lá como cá, os
cadáveres dos elefantes brancos atestam a profunda
irracionalidade de um modo de vida e produção que se abandonou
ao fim em si mesmo da "valorização do valor".
S.Paulo, Setembro de 2001
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor
de "O Colapso da Modernização" (ed. Paz e Terra) e
"Os Últimos Combates" (ed. Vozes). Ele escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.