Economia política do terror

O processo de crise global e a questão do poder mundial

Robert Kurz

No mesmo ritmo selvagem das cotações das bolsas de valores, oscilam agora as opiniões acerca dos efeitos que o atentado terrorista nos EE.UU. poderá acarretar à economia mundial. Como lidamos com um sistema de economia real, é claro que o interesse demonstrado por todo e qualquer acontecimento refletirá diretamente no processo de reciclagem capitalista enquanto esfera central de todo pensamento e ação.

Com toda a seriedade, os pensadores econômicos de curta duração e os pragmáticos de um business as usual esperam poder ver, após rápida conclusão das atividades voltadas ao luto, um belo reflorescimento através de investimentos em tecnologia de segurança, na "reconstrução" de Manhattan e em conjuntura armamentista. Deste modo, Osama bin Laden teria salvado a economia mundial e até mereceria ser agraciado com algum prêmio Nobel (que assim finalmente estaria fazendo jus, por completo, à área profissional de seu criador). Por outro lado, os pessimistas da atual conjuntura e os carpideiros dos mercados financeiros em declínio há quinze meses temem que os chocados consumidores americanos, por desespero, comecem a economizar, em vez de se empanturrar de mercadorias do mundo e assim continuar mantendo o moinho planetário em movimento. Caso isso venha a acontecer, a luz da conjuntura mundial será apagada, e o senhor barbudo terá arruinado o lindo capitalismo, diz a providencial lenda.

Ambas as coisas não fazem sentido. Na verdade, o sistema mundial de produção de bens, independentemente de seus loucos à espreita e das façanhas destes, encontra-se numa situação bastante precária. Economia capitalista não significa 90 % de psicologia, mas sim, ao contrário, 90% de processo objetivado.

Sob essa ótica, a acumulação real global há muito esbarrou em seu limite interno absoluto. Devido à superacumulação, forçosamente vieram à tona as bolhas financeiras dos anos 90, em cujo centro reside o endividamento da economia estado-unidense. Agora essa conjuntura de bolha se encontra exaurida, como bem evidenciaram o colapso da chamada new economy e a falência latente dos valores-padrão. Não importa o estado de espírito em que se encontrem os já fortemente endividados consumidores e empresários norte-americanos; o que importa é que não mais poderão gastar nem poupar aquele dinheiro de que já não dispõem.

Mais cedo ou mais tarde deverão aparecer os efeitos de uma depressão global, e os limites do sistema deverão evidenciar-se também na superfície do mercado, o que, é claro, ideólogos e elites administrativas não estão querendo admitir. Com a medida sem precedentes de nada menos de sete reduções de taxas de juros num espaço de oito meses, o Fed, o banco central dos EE.UU., tentou reter a queda das taxas cambiais e assim salvar a conjuntura impulsionada pelo "capital fictício". Não veio o êxito retumbante. Além disso, esse keynesianismo de bolsas de valores só poderia promover uma depressão a longo prazo e sob o preço de uma inflação galopante, o que, no final das contas, tornaria a queda ainda mais espetacular.

Em virtude do grau de maturidade atingido pela crise, pode-se afirmar que quase todo tipo de acontecimento negativo poderá desencadear o grande e temido desastre no âmbito do capitalismo financeiro. Não se deve esquecer que a economia capitalista também consiste em 10% de psicologia.

Sob esse ponto de vista, o atentado camicase, visto em sua dimensão quase metafísica enquanto ato de forte simbologia, mostrou-se bastante adequado para servir não como a causa, mas como o pretexto do crash final. Não se deve esquecer que, nas últimas semanas, devido à crise financeira mundial, a Wall Street teve de permanecer mais de três dias fechada. Mister Greenspan decretou a nona redução sucessiva das taxas de juros como "uma massagem na alma monetária" (v. jornal suíço Neue Zürcher Zeitung), sendo de pronto imitado pelo BCE e por quase todos os grandes bancos centrais. Para se lograr um retorno da tranqüilidade, estimulam-se rituais patrióticos contra a figura de um inimigo invisível, que na prática não chega a ser mais terrível que a decantada "mão invisível" da cega lógica sistêmica, rituais esses que deverão prestar a mesma contribuição que os conhecidos apelos lançados aos pequenos investidores já há muito bombardeados monetariamente, conclamando-os para que ajam com precaução.

Não obstante, o nível das cotações sofreu uma rápida queda em todo o mundo. Dizem que se evitou o pânico. Nessa situação, porém, isso também só significa que 8% de perdas nas cotações em apenas um dia quase já podem ser vistos como êxito. Através de uma possível reaquisição de suas próprias ações, como já se anunciou, multinacionais de nomeada, dentre as quais a Microsoft e a Hewlett Packard, só conseguirão suster as cotações, e isso de maneira provisória, se levarem em conta o preço de mais endividamento. As companhias aéreas, que tiveram um prejuízo de 50% no valor de seus títulos, são as empresas diretamente mais afetadas. Todavia, também essa queda, acompanhada das conseqüentes demissões em massa, já estava programada há meses. Quando as colunas de fumaça da catástrofe tiverem se dissipado, do ponto de vista econômico só se enxergará a mesma tendência de crise de antes, com a diferença de que apresentará alguns graus a mais de agudeza.

A possibilidade de o atentado camicase ter sido a força motriz de um sismo financeiro já impossível de ser debelado continua bastante atual, só que sob outro aspecto. É que a ação de uma força motriz desse porte não pode ter efeito apenas diretamente sobre os mercados de ações, mas também indiretamente sobre os mercados cambiais. Dentre os paradoxos da globalização, ressalte-se o fato de a fragmentação molecular da economia industrial em estruturas transnacionais (terceirização, exportação de capital em função de racionamento etc.) permanecer atrelada aos nomes das moedas nacionais. A metafísica do dinheiro não pode ser representada de outra maneira que nas formas nacionais de cada moeda, sendo, portanto, praticamente impossível se pensar na existência de uma moeda mundial direta, da mesma maneira que não é possível a existência de um estado global, a menos que um retorno ao padrão do ouro fosse praticável. Só que, no estágio atingido pelas forças produtivas, o sistema mundial não pode mais ser reproduzido monetariamente nesta forma "arcaica". Faz-se necessário, portanto, uma moeda forte, reconhecida internacionalmente e atrelada a uma nação, uma moeda que funcione como meio de transação, comércio e reserva no âmbito do capitalismo financeiro e que possa ser tomada como base para todas as outras moedas. Indubitavelmente, o dólar continua a ser a moeda forte global, uma vez que esse status está intimamente ligado à posição de potência mundial, não sendo superado nem pelo yen nem pelo euro. Pode-se perceber claramente que a crescente globalização está ultrapassando os limites das economias e estados nacionais, sobretudo através do colapso em série das moedas de países periféricos que foram totalmente "dolarizados" ou cuja soberania monetária foi liquidada por meio de um atrelamento passivo à moeda norte-americana. Em função do processo de crise sistêmica atualmente em curso, mas também devido a influências externas, a globalização acaba beirando os limites do sistema, daí resultando que só se possa sustentar enquanto o dólar se mantiver na posição que ocupa.

Da mesma maneira que o restante do mundo, também os EE.UU. estão sendo corroídos pela crise interna de acumulação. Isso se reflete no fato de que a posição por eles ocupada como potência mundial há muito não conta mais com bases econômicas, e sim meramente militares. Contrariando todas as lendas em torno da new economy recém desaparecidas com a fumaça, a produtividade real da economia estado-unidense situa-se abaixo da européia e da japonesa. Prova disso é o seu endividamento externo sem par na história. Em virtude do enorme consumo de poder mundial, o ponto de partida dessa derrocada deu-se com o abandono da conversibilidade do dólar por seu lastro em ouro no governo do presidente Nixon no ano de 1973. Desde essa data, o "ouro" da moeda norte-americana é medido em função da potência militar dos EE.UU. Já no tocante ao sistema monetário internacional, paralelamente ao crítico processo de uma economização da política, vemo-nos diante de uma politização ou quase militarização da economia no nível do sistema monetário mundial. Apenas por esse motivo, o capital monetário do mundo continua a fluir para os EE.UU., possibilitando-os absorver e administrar os bens excedentes do mundo, sobretudo porque a máquina militar da última potência mundial pode atuar como policial internacional, e o país goza da fama de "porto seguro" em um mundo desestabilizado pelas crises.

Pode-se então medir o forte golpe representado pelo ataque camicase contra esse prestígio tão necessário no setor de economia mundial. Já nas primeiras reações o preço do ouro estava subindo, da mesma maneira que o yen e o euro, em relação ao dólar. E isso para desespero dos japoneses que só conseguem se sustentar graças ao frágil junco em que se apóia seu superávit de exportações. Naturalmente, também há muito já havia amadurecido a despencada do dólar. Por conseguinte, agora fica ainda mais forte a pressão para se restabelecer o status quo ante. Em vista desse fato, um golpe militar tem uma dimensão econômica direta e até decisiva.

O que incomoda é o fato de essa situação revelar-se uma faca de dois gumes, representando, com isso, um grande risco. Caso os EE.UU. optem por não bombardear, ficará a acusação de possuírem pouca força ofensiva enquanto policial do mundo, além de terem sido obrigados a engolir duros golpes em sua própria casa. E uma simples extradição de Osama bin Laden sem a demonstração de um golpe militar talvez fosse muito pouco para uma reabilitação. Mas caso optem por bombardear, haverá montes de vítimas civis, inúmeros fugitivos e nova desestabilização. É claro que, para manter a âncora monetária global, cada vítima humana será encarada como algo inevitável. Resta saber, porém, se os mercados financeiros desta vez aceitarão como "vitória" o simples bombardear a uma altura segura.

Em virtude da situação qualitativamente nova representada pelo inimigo, ou seja, a sua não vinculação a um determinado Estado, talvez seja necessário também comprovar a capacidade de um ataque com tropas terrestres, o que, conforme a experiência mostrada pela União Soviética, pode acabar em um grande desastre naquelas montanhas do Afeganistão pouca afeitas a sistemas high-tech. Isso sem se falar no perigo de insuperáveis reações em cadeia de ordem político-militar no crítico arco geográfico islâmico que vai do Paquistão à Mauritânia.

O tiro, portanto, também pode sair pela culatra, e o acionamento retardado do dispositivo do terror como força motriz do crash financeiro já anunciado pode ainda estar por vir. Os atores movidos pela lógica tácita do capital financeiro, uma lógica que não se dispõe a negociar, estão à espreita, esperando uma reação estado-unidense, prontos tanto para fugir em direção ao despenhadeiro mais próximo quanto para respirar aliviados por algum tempo.

Robert Kurz é ensaísta, co-editor da revista Krisis da Alemanha e autor de O Colapso da Modernização (Paz e Terra) e Os últimos combates (Vozes).

Tradução de Tito Lívio Cruz Romão

JORNAL CRÍTICA RADICAL Fortaleza, 08 de outubro de 2001.site: www.criticaradical.hpg.com.br e-mail: criticaradical@uol.com.br

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