Robert Kurz

OS MUJAHEDINS DO VALOR

Bombas em defesa do FETICHE da mercadoria: A Esquerda iluminista na derradeira fase da razão burguesa

Se ainda fosse necessário produzir a prova de que o final do século XX coincide com o fim da História da Modernização, para tal seria suficiente atentarmos à galopante decadência intelectual da Esquerda. A consciência crítica desespera diante o empreendimento da crítica, visto desde sempre ter constituído uma parte integrante do mesmo mundo do moderno sistema de produção de mercadorias que agora vai começando a desintegrar-se sucessivamente. Já não resta um novo ciclo do desenvolvimento capitalista que uma vez mais pudesse merecer a designação de "progressivo". Este quadro parece sugerir como única saída a de obviar à ameaça da destruição dos princípios fundamentais subjacentes aos negócios comuns abraçando incondicionalmente o capitalismo. A cada nova reviravolta dos desenvolvimentos e acontecimentos catastróficos assistimos a mais uma debandada do que resta da Esquerda para se unir às hostes dos guardiões do sistema.

Num coro de miséria e lamentações como não foi visto em décadas em que as bombas ocidentais choveram sobre partes consideráveis do planeta, desde os bárbaros atentados kamikaze contra os EUA é invocada, desde o governo federal alemão vermelho e verde, já fortalecido pela guerra, até às páginas de publicações ainda há pouco conotadas com a extrema Esquerda, uma civilização burguesa de cariz humano que nunca chegou a existir. Repentinamente é considerado uma obscenidade falar-se do terror fundamentalista da economia totalitária. Quem tentar explicar os actos paranóicos de Nova Iorque e de Washington com base no estado do sistema capitalista mundial unificado depara com a acusação de os defender. Os neófitos nas hostes dos defensores do capitalismo acham que a crítica do capitalismo deve, agora, ser remetida temporariamente para um plano secundário e enfiam o capacete de aço da NATO, à semelhança dos seus diversos predecessores. Cada geração tem os seus belicistas.

O padrão fundamental desta interpretação ideológica do mundo, partilhado entre a Esquerda iluminista e a razão democrática oficial e desgastado até ao limiar do insuportável, consiste em repetir até à exaustão a constelação da segunda guerra mundial, à semelhança de um CD encravado. A razão disto acontecer é fácil de explicar. Contrariamente ao que se passou na primeira guerra mundial, em que os estados corsários da anti-civilização burguesa andaram a chacinar-se mutuamente numa concorrência literalmente dilacerante, a luta contra o império sinistro dos nazis constituiu o primeiro e único caso em que uma posição de concorrência no interior do capitalismo teve o efeito colateral prático de deter temporariamente o impulso de morte inerente à socialização do valor. Só nessa situação única é que foi necessário lutar com o capitalismo a fim de salvar a mera possibilidade da emancipação.

A própria razão burguesa não foi capaz de ganhar consciência dessa constelação, nem da respectiva singularidade. Antes, exteriorizou os nazis ideologicamente, transformando-os numa monstruosidade alheia, irracional e não capitalista, a cujo invés "economia de mercado e democracia" se apresentavam como o império do Bem dentro da tradição iluminista. Este padrão foi posteriormente aplicado aos grandes conflitos subsequentes a fim de os legitimar. A História após 1945 foi-se retratando na consciência burguesa como uma farsa cada vez mais insuportável a seguir à tragédia; apenas restava definir o "império do mal", exterior a tudo que seja democrático e racional.

Uma vez que o bloco capitalista de estado já não pode assumir esse papel por falta de existência, na crise mundial que vai tomando forma desde o início dos anos noventa, figuras cada vez mais improváveis têm de fazer de "Hitler" para os fins da legitimação mundial e democrática: primeiro, com Saddam Hussein, um ditador modernizador caído em descrédito, depois, com Milosevic, o potentado de crise típico de uma economia nacional em vias de dissolução e, finalmente, com Osama bin Laden, um expoente mitizado das estruturas tribais e sectárias pós-políticas inerentes à sociedade do valor que através do valor é produzida de uma forma puramente negativa.

Se o pensamento burguês se mostrou incapaz de compreender os nazis como descendentes legítimos do seu próprio modo de raciocinar já na constelação real da segunda guerra mundial, nas suas repetições já meramente ilusórias vê-se obrigado a equiparar coisas incomparáveis de um modo cada vez mais forçado, acabando deste modo por relativizar a dimensão dos crimes cometidos pelo nacional-socialismo.

O etno-nacionalismo e o fanatismo religioso nas regiões queimadas pelo mercado mundial em termos de economia política não são o mesmo que a mundividência anti-semítica e a doutrina racial dos nazis; sociedades arruinadas e em vias de desintegração da periferia não constituem o mesmo fundamento como a sociedade uniformizada de uma potência do centro capitalista que aspira à hegemonia mundial e tem capacidade para a alcançar; e as aventuras militares de regimes degenerados de uma "modernização a posteriori" falhada ou mesmo os atentados suicidas por parte de seitas religiosas e outras aberrações relativamente aos fetiches em vigor à escala global não têm a mesma qualidade como o ataque geral à humanidade perpetrado pela Alemanha nazi, uma potência industrial mundial armada até aos dentes.

Na mesma medida em que os Hitleres suplentes que se vão revezando em sucessão rápida são localizados em regiões cada vez mais remotas do Sul e Leste global, a construção ideológica vai-se tornando cada vez menos convincente. O imperialismo democrático unido, securitário e exclusionista, no contexto da crise mundial amadurecida não consegue repetir a façanha de reter o impulso de morte inerente aos sujeitos envolvidos na relação do valor mais uma vez no âmbito desta relação e exteriorizá-lo, tal como aconteceu quando se tratou de derrotar os nazis. A maturidade da auto-contradição capitalista evidencia-se igualmente no facto do desejo de destruição e de auto-destruição, que é um produto da concorrência global de crise, se disseminar da mesma forma molecular como a economia industrial globalizada. Por isso é inútil a tentativa do centro capitalista de circunscrever as zonas do horror, produzidas por ele próprio, "à barbárie lá fora no terceiro mundo" mantendo-se a si próprio livre das mesmas.

Os homens que perpetraram os atentados suicidas de Nova Iorque e Washington foram cosmopolitas negativos e existências híbridas pós-modernas que teriam sido capazes de fazer carreira nos EUA. A sua mentalidade não se distingue significativamente da do autor do atentado de Oklahoma City ou da desse suíço pacato que há dias abateu um inteiro parlamento de Cantão. A partir de agora teremos de nos questionar se o viajante inconspícuo que enverga a indumentária unitária global de Boss ou da Adidas não andará porventura a passear a mala com a bomba nuclear portátil. Estas manifestações do impulso de morte que provêm do interior da sociedade mundial negativa universal já não podem ser identificadas como um contrapoder exterior, nem podem ser reprimidas com concentrações de dispositivos navais e chuvas de bombas.

Visto que o pensamento da Esquerda iluminista permaneceu tão preso no ‘loop’ temporal da constelação da segunda guerra mundial desbobinada de novo por vezes sem conta como a ideologia oficial do capitalismo, a tentativa teórica proposta na "Dialéctica do Esclarecimento" nunca pôde ser levada até ao fim. Adorno e Horkheimer, embora na sua justificação da crítica radical em muitos aspectos ainda não tivessem conseguido superar o modo de pensar do Esclarecimento, mesmo assim tiveram a força teórica suficiente para compreenderem os nazis como um resultado desse mesmo Esclarecimento, em vez de os encararem como um "império do mal" exterior. Ao mesmo tempo, demonstraram que o desenvolvimento das estruturas sociais, tanto no capitalismo de estado de estilo soviético como igualmente nos países nucleares do Ocidente, continha elementos da mesma tendência que, na Alemanha, tinha conduzido aos nazis. Uma vez que, devido ao seu enquadramento temporal, ainda partilhavam a redução marxista da crítica da economia política, própria dos movimentos laborais, falavam de uma "anulação negativa do capitalismo" em vez de um patamar evolutivo e de uma manifestação do próprio capitalismo.

Os netos da teoria crítica no seio da Esquerda radical não desenvolveram a concepção teórica da "Dialéctica do Esclarecimento", antes a tornaram mais superficial. Ao mesmo tempo que cultivaram uma ortodoxia idólatra de Adorno, os adeptos desvirtuaram o conceito de uma suposta "anulação negativa do capitalismo" aplicando esta fórmula, ao contrário de Horkheimer e Adorno, exclusivamente à Alemanha nazi. Assim tornou-se possível que reivindicassem para si a questão da emancipação da relação do valor de um modo abstracto e perfeitamente indefinido para, na realidade, a porem de lado e se orientarem para uma luta eternamente repetida, lado a lado com o capitalismo (ocidental) e contra o capitalismo (alemão) supostamente "negativamente anulado".

Esta construção como a variante de extrema Esquerda da ideologia burguesa geral do pós-guerra ofereceu, para além dos seus protagonistas, pontos de partida a todo um espectro de esquerda, visto que com ela parecia encontrado, mesmo após o fim do marxismo dos movimentos laborais, um nicho intelectual no contexto da socialização do valor. O facto desta abordagem não se coadunar minimamente com a verdade da História posterior a 1945 deve tê-la tornado tanto mais atraente para um pensamento intra-ideológico resistente a qualquer espécie de realidade.

Esta atitude só podia imaginar-se como representando a oposição radical em relação à razão oficial da NATO atribuindo o papel previsto para os nazis de outro modo, nomeadamente de uma forma alucinada com o supostamente ressuscitado imperialismo nacional alemão antigo de um "quarto império" sedento de se tornar uma potência de escala mundial.

Aos doutos analfabetos que povoam a crítica da economia política, tanto escapou o carácter da terceira revolução industrial enquanto aparente limite interior do sistema como o processo da globalização economico-industrial que daí resulta. Assim também não conseguiram aperceber-se de que a luta nacional-imperialista por anexações territoriais se tornara obsoleta. Ao passo que o poderio capitalista, sob os auspícios da Pax Americana e no seio da organização politico-militar da NATO, desde há muito se formou num "imperialismo colectivo ideal" que hoje, juntamente com a sua maquinaria militar de alta tecnologia, se revela incapaz de obrigar pela força os demónios que a sua própria crise mundial soltou sob a forma de guerreiros de Deus, estados patifes e bandidos étnicos a regressarem ao interior das respectivas garrafas, uma teoria crítica desvirtuada fez a RFA perfilar-se como concorrente dos EUA numa luta pelo estatuto de potência mundial em todo o lado, onde o seu exército operava, na realidade, em número de companhia e, de preferência, com ambulâncias.

O debate com a "ideologia alemã", cujo nacionalismo dá especial relevo aos laços de sangue, e com a constituição anti-semita do estado nacional alemão assim, sem qualquer séria referência que analisasse seriamente as condições mundiais alteradas, foi colocado num contexto perfeitamente irreal e, com isso, perdeu o contacto com a realidade. Também as duas guerras de ordenamento mundial dos anos 90 foram percepcionadas pela parte dos espanta-espíritos antigermânicos da era das guerras mundiais exclusivamente pelo prisma da sua construção anacrónica.

Assim, a guerra do Golfo contra o Iraque foi apoiada unicamente pelo facto da RFA não participar nela de forma directa (mas apenas de forma financeira), de onde houve quem retirasse a ilação original de que o governo de Kohl se preparava, sob a liderança ideológica do movimento pacifista, para a repetição de Auschwitz por intermédio do seu testa-de-ferro Saddam Hussein. Assim foi conseguido, com uma segurança digna de um sonâmbulo, que também a crítica do nacionalismo de Esquerda, que efectivamente começou a germinar, do pensamento etnocêntrico e do anti-semitismo inconfessado no seio do movimento pacifista fosse desenquadrada da realidade de um modo grotesco. Esta já se distinguia da versão oficial e democrática do jogo aos Hitleres unicamente por insistir no suposto mentor nacional-imperialista germânico.

Em contrapartida, a participação militar subalterna da RFA na guerra do Kosovo foi o suficiente não só para se voltar, de repente, a brincar aos inimigos de guerra, mas igualmente para fazer do padrinho de mafia capitalista de estado Milosevic um homem de estado defensor da Paz contra o imperialismo germânico e, à semelhança de numerosos neonazis, cantar vivas inspirados pela euforia da cerveja aos Chetniks fascistas. Esta cegueira absoluta levou a que os EUA fossem acusados, com a maior das seriedades, de fazerem a guerra do lado errado. Nem vale a pena debruçarmo-nos mais amiúde sobre as efabulações das diversas teorias da conspiração, cujo ponto culminante acabou por consistir em localizar nos vales inóspitos do Sul dos Balcãs o showdown estratégico entre a "superpotência" etnocêntrica que seria a Alemanha e os pobres e enganados EUA que representariam os ideais iluministas.

Façanhas interpretacionais de semelhante tolice, provenientes de pessoas que costumam passar por inteligentes, procedem de uma espécie de erro de categorias: Visto nem sequer terem um conceito da constituição fetichista da sociedade, que se divide invariavelmente entre a objectivização cega e a representação subjectiva e ideológica, confundem a realidade de tradições, disposições e crispações ideológicas que ainda fazem sentir os seus efeitos com a outra realidade, mesmo que esteja relacionada com a anterior, dos processos objectivizados ao nível da estrutura capitalista e do seu "sujeito automático". O estereótipo anti-semita nas cabeças dos adeptos do movimento pacifista alemão é então associado ao desenvolvimento do capitalismo, ao passo que o desenvolvimento do estado do mundo é deduzido, de modo exactamente inverso, de "criações de ideologias" (com o que a própria suposta crítica das ideologias é transformada numa ideologia). Por detrás deste erro de raciocínio oculta-se, no entanto, um determinado reflexo, nomeadamente a retirada em pânico ao terreno da ontologia capitalista e da sua sumamente hipócrita legitimação iluminista, logo que a situação se torne confusa e perigosa.

A perda de relação com a realidade deste pensamento, que amadureceu em simultâneo com a crise mundial, agora, com os acontecimentos do 11 de Setembro de 2001, teve oportunidade de revelar a sua verdadeira natureza. A fantasia em vigor até a essa data já é apenas prosseguida em segundo plano. Segundo esta, como é natural, os terroristas kamikaze islâmicos teriam sido órgãos executivos do imperialismo etnocêntrico alemão na sua batalha dos deuses contra os EUA, de onde se deduz que estes teriam de arrasar com mísseis de cruzeiro Hamburg-Harburg juntamente com a universidade ali situada como o antro do terrorismo germano-islâmico.

Neste lugar, toda essa construção torna-se, no entanto, de tal modo forçada em tudo o que tem de absurdo que rebenta como uma bolha de sabão para, quase no mesmo instante, se ver substituída por outra versão, pouco menos absurda: de repente, "o Islão" é-nos apresentado como o verdadeiro regresso do império dos nazis, o Alcorão é descoberto como a nova variante de "Mein Kampf", o acto de terror suicida é equiparado a Auschwitz, e os alemães anti-semitas vêem-se reduzidos dos únicos autores principais possíveis a cúmplices vacilantes ou mesmo a meros simpatizantes do novo "império do mal" (como se pode depreender das declarações excêntricas da redacção de "Bahamas"). De passagem, os franco-atiradores intelectuais apagam do seu disco rígido ideológico todo o beabá em vigor até à data sobre a singularidade dos nazis e do seu crime contra a humanidade. Levando a dianteira a Enzensberger, que julgou ver em Saddam Hussein a reincarnação de Hitler, conseguiu-se definitivamente despachar a história alemã para o Oriente.

Com isto condiz deixar-se de contemplar as coisas à luz da crítica do capitalismo mas, pelo contrário, do ponto de vista da celebração activa da modernidade capitalista por contraposição a um alucinado estado "pré-moderno" do islamismo que é aproximadamente tão medieval como os profetas da Nova Economia. Num jorro malcheiroso, todo o racismo de homem superior de um Kant ou Hegel levanta-se juntamente com o ódio irracional dos fetichistas pós-modernos do consumo contra o fantasma de uma pobreza de necessidades rural a fim de, no final de contas, projectar a peste genuinamente capitalista e moderna do anti-semitismo num espaço pré-moderno imaginário. Ao passo que, numa oração subordinada, ainda se finge saber do cariz moderno do terror no mundo unificado do capital, ao mesmo tempo os alunos exemplares do terrorismo que comunicam pela internet convertem-se em representantes de "bobos da aldeia" global insurrectos, a cujas cabeças o ídolo da mercadoria ainda tem de ser incutido com recurso a bombardeamentos de alta precisão.

Os simuladores da teoria crítica revelam-se como mujahedins do valor. Por um lado, agem como se os talibã estivessem neste momento a invadir o Ocidente a partir das montanhas do Afeganistão e a construir um império global do terror semelhante ao dos nazis e, como se as hostes islâmicas com os seus sabres curvos se encontrassem nas imediações das portas de Berlim, somos confrontados com a risível alternativa, segundo a qual teríamos agora, por estas bandas, de tomar urgentemente uma decisão entre a ameaça da entrada em vigor da Charia e o bom velho capitalismo, a qual, para nosso alívio, se resolve invariavelmente em favor deste último. Os terroristas impelidos por alucinações são de repente declarados seus principais "inimigos", ao passo que a leva mais recente de esquerdistas iluministas da NATO já não se sente tão "inimiga do capitalismo".

Por outro lado, assim se revela que é necessário começar por incutir maneiras capitalistas às almas dos pré-modernos mal lavados, os quais, na realidade, o próprio capitalismo atirou aos pés do regime dos talibã, não lhes deixando possibilidades de escolha muito edificantes. Deseja-se enviar os críticos do valor "para o Afeganistão", a ver se vêem quão pouco digno de viver é um mundo sem televisão. Do restante que trate a US-Army. Quem, mais de meio século após a publicação da "Dialéctica do Esclarecimento" ainda não a conseguiu superar, tem de ficar para trás dela.

Ao passo que Adorno e Horkheimer, numa situação que realmente exigia uma farda americana para a razão crítica, apesar de tudo comprovaram que as raízes da loucura mortífera residem na ideologia iluminista, os "bobos da aldeia" secundários do fetiche da mercadoria, não iluminados sobre o Iluminismo querem, na situação de hoje que requer tudo menos uma farda americana para a razão crítica, muito simplesmente salvar com as ilusões burguesas do século XVIII as suas ilusões próprias e, uma vez mais, celebrar os anos de menino daquele Iluminismo que já nem sequer é um cadáver malcheiroso.

No fim da História da Modernização, o progresso e a reacção, o Iluminismo e o contra-Iluminismo coincidem de forma imediata na forma comum e em vias de desmoronamento da socialização do valor. E fica comprovado que "pursuit of happiness" nunca significou outra coisa que a permissão de dar largas ao impulso de autoconservação no seio da concorrência destrutiva do capitalismo, a "forma pura a priori" de Kant nunca designou outra coisa que um programa para a destruição do mundo, e a sua "paz eterna" não quis dizer mais que o silêncio de cemitério de um mundo destruído pelo valor. O sujeito transcendental estuda em Hamburg-Harburg e noutros lados alta tecnologia e o Alcorão ou a "Bahamas"; o seu imperativo categórico é o atentado suicida real ou intelectual.

Com a projecção de um Islão que supostamente nunca chegou à maravilhosa modernidade enquanto reincarnação dos nazis, o revivalismo ideológico da coligação contra Hitler por parte da extrema Esquerda, embora não se tivesse tornado mais inteligente, ficou finalmente congruente com a versão democrática comum. Uma certa diferença já apenas subsiste na intensidade da vontade de passar ao ataque, determinada pelo recalcamento de contradições próprias: a posição da crítica reduzida converteu-se na posição de hardliners und Huntingtons elevados à terceira potência que acusam o Ocidente de uma "política de appeasement" e de ter escrúpulos imperdoáveis perante o "império do mal" que, segundo eles, abrange a totalidade do Islão. Ao continuar-se a acusar os alemães e o seu governo vermelho e verde de uma hesitação supostamente decorrente do seu anti-semitismo, já se deixa entrever que, pelo bombardeamento dos bairros de lata muçulmanos no arco de crises que vai da Indonésia à Mauritânia, eles poderiam eventualmente libertar-se de Auschwitz.

Sem o admitir, a suposta crítica ideológica ficou deste modo bem íntima com o estado actual da "ideologia alemã". É que, na consciência dos cosmopolitas etnocêntricos alemães, o momento do anti-semitismo aberto ou ocultado já há muito que formou uma amálgama contraditória com um racismo anti-árabe. Por um lado, como se sabe, os alemães nunca perdoarão Auschwitz aos judeus (anti-semitismo secundário). Longe de, por causa disso, simpatizar com qualquer islamismo, a consciência automobilística alemã, por outro lado, já por altura da crise do petróleo andou a cultivar a sua raiva "aos xeques"; e agora reconhece em qualquer contemporâneo com um aspecto minimamente oriental um potencial cortador de goelas, sem contudo reparar que ele próprio se encontra à beira de um ataque de nervos. A voz do povo é também contrária a qualquer "appeasement". O melhor será dar-lhes com a bomba nuclear, a ver se os de lá em baixo finalmente deixam de estrebuchar e continuam a fornecer combustível barato para a máquina do mundo capitalista.

A consciência de "economia de mercado e democracia", antes de mais de classe média e intelectual, pelo contrário, hesita menos por causa dos seus ressentimentos anti-semitas, que são bem presentes, e muito mais por medo de uma escalada incontrolável dos processos de crise. Embora nós próprios, com a orientação radicalmente económica de todas as áreas da vida, já há muito tenhamos passado o limite da paranóia, o que gostaríamos mais seria fazer desaparecer o quadro da loucura galopante da sociedade mundial negativa e reconstituir uma normalidade bem burguesa que já não existe. A realidade cruel deve voltar a transformar-se num "filme" que possamos ver ou não; a existência real de miséria, ódio e do desejo de morte deve continuar a ser um objecto de estudo folclórico para seminários universitários e um assunto para tropas de Paz da NATO, mas evitar embater no mundo em que vivemos como uma bomba voadora. O sistema da valorização do valor, destruidor do mundo e irracional em si próprio, tem de ser mantido a qualquer preço, mas temos compreensão para todas as preocupações e necessidades e "culturas". É a própria falta de discernimento a clamar por "moderação".

O que os iluministas belicistas tardios de esquerda nos fazem ouvir constitui, no entanto, aproximadamente a reacção ideológica mais estúpida e obtusa à barbárie mundial que presentemente configura uma ameaça aguda. Já no passado, eles tinham impedido a reformulação da teoria de crise marxista, tendo de um modo geral malentendido conscientemente a crítica consequente do valor como uma espécie de "especialização economicista" a fim de manterem intacto o seu próprio preconceito teórico sob a forma subjectiva do fetiche da mercadoria e o seu apego irracional à metafísica histórica iluminista que a ele se encontra associada. Qualquer crítica da forma capitalista da riqueza era denunciada e equiparada a uma propaganda à renúncia conservadora ao consumo. Agora, o desmoronamento dramático do padrão burguês do sujeito e da política vem juntar-se a uma crítica que desde sempre apenas o foi a meio vapor e, por isso, carecia de veracidade.

Pouquíssimos de entre aqueles que são levados pela corrente neste plano inclinado de um colapso da identidade terão consciência de que já se demitiram da crítica. Todos os que agora votam em favor da guerra contra os supostos "bárbaros pré-modernos e exteriores ao capitalismo" nunca mais poderão assumir uma atitude genuína contra a política de estrangeiros e de asilo brutalizada do imperialismo democrático securitário e exclusionista.

Para uma crítica radical, o que agora conta é não se deixar converter em belicista pelo seu próprio medo irreflectido. Foi desde o início uma opção acertada a de recusar, nas guerras de ordenamento mundial que se desenrolaram desde o início dos anos 90, qualquer tomada de partido positiva. Mesmo que a possibilidade de uma eficiência no plano social se afigure remota, mesmo assim importa afirmar e desenvolver contra as falsas alternativas deste mundo de "economia de mercado e democracia", que vai sucumbindo às suas contradições interiores, uma posição crítica do valor autónoma.

Uma razão crítica sabe desde há muito tempo que os humilhados e os ofendidos não são as pessoas melhores e que o "sujeito automático" da modernidade não deve ser confundido com os seus representantes pessoais. E sabe melhor ainda que não pode haver um regresso aos tempos anteriores à modernidade produtora de mercadorias, mas apenas a sua transformação para além da respectiva forma destrutiva. É precisamente por sermos produtos da ideologia iluminista que, perante as consequências demolidoras da ideologia iluminista, temos de levar até ao fim a crítica emancipatória da mesma. Por isso: todas as vítimas têm de nos merecer compaixão sem um travo de ressentimento; isto aplica-se tanto à corretora soterrada sob os escombros do World Trade Center como às pessoas anónimas despedaçadas pelas bombas da NATO. E nem a mais pequena concessão a este sistema.

Original MUDSCHAHIDIN DES WERTS em www.exit-online.org. Publicado em Jungle World nº 42/2001, 10/10/2001. Tradução de Lumir Nahodil

http://obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/