O homem reduzido
Ciências e economia se unem hoje contra a reflexão crítica sobre a sociedade
Quando o físico e romancista
britânico Charles P. Snow avançou em 1959 sua tese das
"duas culturas", com ela não somente conquistou um eco
universal, mas cunhou também um topos da discussão cultural e
sociopolítica. As "duas culturas" são a oposição
entre os mundos da ciência humana e da literatura, de um lado,
e, de outro, os da técnica e da ciência natural, mundos estes
que, desde o século 19, se apartam cada vez mais. A
controvérsia que se instaurou a respeito, todavia, permaneceu um
tanto superficial. Isso porque o problema decisivo, a radicação
das duas "culturas" antagônicas numa determinada ordem
social histórica, quase não foi posto em litígio.
O debate sobre a tese de Snow referiu-se mais à relação das
ciências naturais com a literatura e a filologia, e menos à
relação das ciências naturais com a teoria social. Snow, é
verdade, ao complementar seu estudo em 1963, admitiu que talvez
se pudesse ainda falar de uma "terceira cultura", mas
isso não passou de um comentário marginal.
O discurso sobre as "duas culturas" toldou, nesse
sentido, o verdadeiro problema, ao concentrar-se não numa luta
por posições entre as ciências naturais e as ciências
humanas, mas na relação polar entre as ciências naturais e os
procedimentos artístico-literários. Essa oposição pôde
assumir o aspecto de uma desavença familiar dentro da
intelligentsia burguesa, na qual a ciência natural, uma espécie
de irmã mais velha ajuizada, levava a melhor sobre os
representantes da "intelligentsia estética", a quem se
podia facilmente tachar de "analfabetos da ciência".
No fundo, o debate sobre as "duas culturas" já
pressupõe que "a" ciência seja a ciência natural. A
possível batalha pelo primado entre a teoria social e as
ciências naturais foi decidida a favor das últimas, antes mesmo
que pudesse ter início. A questão da "terceira
cultura" foi em grande parte ofuscada. Como mostrou a
"querela do positivismo" na sociologia alemã -travada
também nos anos 60 entre os minoritários da "teoria
crítica" de Adorno e Horkheimer, de um lado, e, de outro, a
ciência humana oficial-, o "mainstream" das ciências
sociais há muito se pôs do lado dos fundamentos e métodos
ditados pelas ciências naturais.
Ao emancipar-se desse positivismo das ciências naturais e
converter-se em crítica radical da sociedade ou implicar essa
última, no fundo a teoria social deixa de ser uma
"disciplina" acadêmica. Isso se deve, claro, ao
caráter institucional do próprio modelo científico, que por
sua forma é "ritualizado" à moda burguesa e não
possui vocação de crítica radical, sendo antes parte
integrante da ordem vigente com sua falsa pretensão de
objetividade.
Se no declínio da ordem pré-moderna foram sobretudo as novas
ciências naturais que, modificando a concepção de mundo,
causaram escândalo e acabaram perseguidas pelas autoridades,
durante a história de modernização capitalista foi a teoria
social, por sua vez, que passou a ser objeto potencial de
perseguição, fosse diretamente pelo Estado e pela polícia,
fosse mais sutilmente pelos critérios restritivos (tanto de
conteúdo quanto de método) da "reputação
científica". Por isso, inovações relevantes da crítica
social na modernidade, semelhantes -na forma- à criativa
"boemia" artística, não raro surgiram fora ou à
margem da ciência oficial, a exemplo de Rousseau no século 18,
Marx no século 19 e a "Teoria Crítica" ou mesmo os
situacionistas franceses (Guy Debord) no século 20.
O neomarxismo acadêmico dos anos 70, boa parte dele estéril,
só pôde dissimular por alguns momentos -fenômeno da moda que
era- o fato de a teoria crítica da sociedade no fundo
representar pouco mais que uma "gata borralheira" da
academia, como já se evidenciara no debate mais ou menos
paralelo sobre as "duas culturas". Hoje a crítica
radical da sociedade desapareceu quase totalmente da ciência
acadêmica. Como último resquício de um pensamento social
irredutível ao paradigma das ciências naturais restou apenas a
chamada "ética", uma "doutrina do
comportamento" de todo acrítica, individualista e
institucional em relação ao capitalismo, a qual se insinua como
modesta oficina de reparos para colisões sociais. A
"empresa ética" que grassa hoje é o retrato da teoria
social acadêmica após sua capitulação incondicional.
As disciplinas históricas e sociológicas são segregadas tanto
em termos de método quanto de conteúdo, são quase
"perfumaria". O triunfo da ciência natural sobre o
pensamento crítico da sociedade e sua entronização como
"a" ciência não é obra do acaso. Isso porque a
ciência natural moderna e a ordem social capitalista dominante
têm uma origem histórica comum. A ciência natural foi de certo
modo a "ciência caseira" do capitalismo ascendente,
foi ela que forneceu um paradigma para uma
"objetividade" sem sujeito. A ela pôde atrelar-se a
apologética economia política, que representava de certa forma
o "cavalo de Tróia" do pensamento das ciências
naturais na teoria social. Desde o princípio, ciência natural e
economia uniram-se contra o pensamento de crítica social, para
afinal expulsá-lo de vez do panteão da ciência moderna.
O triunfo da ciência natural e da economia pseudocientífica
sobre a crítica social revela-se em dois pontos comuns e
essenciais de seus "métodos": funcionalismo, de um
lado, e reducionismo, de outro. Funcionalismo significa não se
perguntar pelo fundo, mas somente pela forma, pelo modo de
"funcionar", ao passo que a essência, o
"sentido", o verdadeiro âmago do objeto é pressuposto
sem reflexão e permanece à parte do interesse científico, um
caso para a "infrutífera metafísica", para a
religião, para a "opinião" meramente subjetiva.
Na "ciência", os objetos dissolvem-se em suas
funções. Na práxis social, trata-se daquela "razão
instrumental" criticada por Horkheimer e Adorno, que dá
margem a manipulações segundo o fim tautológico cegamente
pressuposto da valorização do capital, em que tanto a ciência
natural e a técnica quanto a economia teórica acham-se banidas.
Reducionismo significa, ao menos segundo a intenção, que
objetos e formas de ordem superior sejam reduzidos a meras
"combinações" de objetos e formas de ordem inferior.
Economia e ciência natural concordam em grande parte que
espírito, cultura e sociedade possam remontar a elementos
biológicos ou mesmo econômicos (funções), e esses, por sua
vez, a elementos físicos. A consciência humana, o pensar e as
formas de interação social a eles conexas devem ser reduzidos a
processos neurobiológicos no cérebro.
A famigerada "fórmula universal" buscada pelos
físicos seria o coroamento desse reducionismo. Que só poderia
ser, no entanto, uma fórmula vazia, pois a consciência resulta
tão pouco da descrição de processos neurobiológicos quanto o
conteúdo de um livro, digamos, sobre os descalabros intelectuais
da ciência natural e da economia resulta da descrição da
técnica de impressão gráfica, da estrutura molecular do papel
utilizado ou dos pigmentos das letras impressas. A consciência
supõe "significado" de conteúdo, e isso é
"fundo", não "forma", que jamais é
idêntico à execução de funções neurobiológicas. Com
relação ao "significado" e ao conteúdo, a pesquisa
científica neurológica só pode expor-se ao ridículo.
Algo semelhante ao reducionismo das ciências naturais afeta o
pensamento econômico. Desde as hoje ressuscitadas "leis
populacionais" de um Malthus, passando pela doutrina
sociodarwinista do "survival of the fittest"
(sobrevivência do mais apto), até a suposta predisposição
"genética" à pobreza, ele biologiza a sociedade para
então novamente dissolver esse reino animal de seres humanos em
categorias pseudofísicas, tais como um mecanismo
"natural" de preço, um "desemprego natural"
(Friedman) etc.
Tanto para a natureza quanto para a sociedade, o enlace desse
funcionalismo reducionista com esse reducionismo funcional
desenvolve potenciais destrutivos. É por isso que a ciência
natural e a economia, apesar de seu patente sucesso na
manipulação do homem e da natureza, acabou por não trazer
melhora nenhuma às condições de vida. A economia não se cansa
de produzir novos surtos de pobreza e crises, a ciência natural,
novos "artefatos de destruição". Mas esse infeliz
resultado não remonta a um "abuso" contingente, a uma
simples "utilização" equivocada da
"cientificidade" legítima, antes está radicado nos
próprios procedimentos, nos axiomas e no sistema de categorias
da ciência natural e da economia. Não estamos às voltas aqui
com uma objetividade absoluta e a-histórica, senão com um mundo
filtrado pelas formas do moderno sistema produtor de mercadorias,
que se fazem passar por um a priori absoluto não apenas no
pensamento econômico, mas também no científico.
Para poder criticar, no interesse da emancipação humana, esse
nexo categórico entre a ciência natural e a economia de
produção mercantil, temos de evitar diversas armadilhas. Não
é uma alternativa, por exemplo, criticar o pensamento físico
mecanicista desde Descartes em nome de um "organicismo"
biológico, tal como tentou a chamada filosofia da vida na virada
do século passado.
Isso não seria mais que jogar o reducionismo biológico contra o
físico (com as reacionárias consequências sociopolíticas de
praxe), em vez de formular propriamente uma crítica do
reducionismo científico. O escândalo do paradigma científico
é duplo: em última análise, ele não é capaz de distinguir
nem entre objetos mortos e vivos, nem entre biologia e sociedade.
Ambos os aspectos desse processo duplo de redução científica
devem ser criticados para superar o nefasto discurso
econômico-científico.
Também não é uma alternativa buscar refúgio num cosmos
religioso da pré-modernidade reproduzido sinteticamente. Uma
ordem simbólica desse tipo, com uma cosmovisão coerente, faz
parte irrevogável da história; toda tentativa de reavivá-lo
só pode redundar num obscurantismo ainda mais irracional. A
embromação da indústria esotérica, comercializada a extremos,
não supera o reducionismo (e funcionalismo)
econômico-científico, antes só o complementa.
Não raro, são os próprios cientistas e economistas que cultuam
seu "deus pessoal" ou lêem sua sorte nas cartas. O
objetivo não pode ser um recuo reacionário a formas de
reflexão anteriores à ciência moderna, mas somente um avanço
para além delas. Ora, a forma dessa crítica é necessariamente
a teoria social, cuja esfera de aplicação devia ser estendida
às ciências naturais, ou melhor, às raízes históricas comuns
do capitalismo, da ciência natural e da economia teórica.
Não se trata simplesmente de negar os conhecimentos científicos
atuais ou aceitar "lado a lado", sem reflexão,
práticas culturais divergentes, tais como a magia das danças da
chuva e a meteorologia moderna, como sugeriu Paul Feyerabend,
antigo teórico positivista da ciência, após o colapso de sua
imagem científica do mundo. Um caso ainda pior é o do físico
norte-americano Fritjof Capra, que traça paralelos superficiais
entre a mística do Extremo Oriente e a física moderna,
reunindo-as num moralismo raso.
A tarefa é muito mais complicada. Cumpre
"historicizar" a ciência natural e submetê-la a uma
auto-reflexão social: ela não é uma relação imediata
"do" ser humano com a natureza "objetiva",
antes vem sempre filtrada pelo caráter social dos sujeitos que
percebem e pesquisam. A ciência natural, claro, não é uma
ciência da sociedade, e isso pelo próprio âmbito de seu
objeto, mas é, sim, uma ciência social, devendo ser apreendida,
nesse sentido, como fenômeno de uma certa "subjetividade
histórica" -e seus axiomas, categorias e procedimentos,
decifrados como formas sociais de percepção.
Esta, portanto, é a grande questão: em que consiste, do prisma
da teoria do conhecimento e da práxis social, de uma
"visão de mundo", o nexo formal comum e historicamente
limitado entre capitalismo e ciência natural, nexo este que cabe
ser superado? A tarefa consistiria, nesse sentido, em vincular a
crítica à pseudo-objetividade das categorias econômicas
modernas a uma crítica correspondente à forma socialmente
mediada das ciências naturais, a fim de "enxergá-las"
de alto a baixo com as lentes da crítica social, pulverizando a
interpretação sociotecnológica ou sociobiológica e
evidenciando seu âmbito de aplicação limitado. Há muito tempo
a própria física chegou a seus limites, que simplesmente não
são reconhecidos como limites histórico-sociais. Talvez o
previsível fiasco da "fórmula universal" seja a gota
d'água para que a ciência natural comece a tomar consciência
crítica de sua forma social negativa.
Para desvendar o caráter irracional da moderna racionalidade
econômica e científica, os teóricos da sociedade teriam, é
claro, de superar seu "analfabetismo" científico, e os
cientistas, seu "analfabetismo" social. Uma tal
perspectiva exige também uma crítica social do modelo
científico.O sistema dos "especialistas bitolados",
inflexível como é, não produzirá mais novos conhecimentos que
abalarão o mundo.
Folha de São Paulo, 03 de Novembro 1999
Tradução de José Marcos Macedo
Original Alemão - http://www.exit-online.org/