O declínio da última
moeda hegemónica
Pois é justamente o aspecto simbólico da nova situação pós-11 de setembro que ameaça pôr em questão uma função decisiva, do ponto de vista econômico mundial, dos Estados Unidos: o papel do dólar
Robert Kurz
O pensamento positivista dominante na política, na economia e no
mundo científico não conhece, em princípio, nada a não ser
fatos desconexos, que mantêm uns com os outros somente uma
relação aparente, mecânica, de causa e efeito. Assim, na
discussão que se prolonga na imprensa econômica sobre os
ataques terroristas de Nova York e Washington, na maioria das
vezes, lançam-se questões um tanto superficiais quanto aos
imediatos "efeitos sobre a economia mundial". Claro que
já se trata aí de uma redução do problema, poupando-se as
dimensões moral, política e cultural.
Mas também do ponto de vista econômico esse questionamento é
de curto alcance. Os danos materiais, se são em si volumosos,
por outro lado, vistos em comparação com o PIB (Produto Interno
Bruto) dos EUA, praticamente perdem sua relevância. Mesmo os
efeitos negativos indiretos, como por exemplo sobre o tráfego
aéreo e o turismo, não são de importância decisiva. A maioria
das companhias aéreas já vinha, muito tempo antes, voando sobre
grandes prejuízos, e todo o setor estava, de qualquer forma,
pronto para o desmonte da capacidade excessiva.
Mais plausível seria apontar as consequências psicológicas e,
com isso, o tão falado comportamento dos consumidores. Talvez
-é o que se diz- os ataques terroristas possam refrear o desejo
do cidadão americano pelo consumo financiado por crédito,
desencadeando uma "poupança por medo" e assim abalar a
conjuntura econômica norte-americana.
Fundo do poço É bem verdade que não se deve subestimar
o poder simbólico que uma catástrofe dessas produz. No entanto
o efeito que a acompanha diz respeito mais ao nível
político-cultural que ao econômico. Justamente nos EUA seria
bem provável que o próprio fim do mundo não impedisse os
consumidores de mercadorias de antes a fazer uma corrida às
compras. As ciências econômicas oficiais, em todo caso, não é
de hoje que vêm desgastando e supervalorizando a
"psicologia" dos atores econômicos. Se os consumidores
compram ou não, isso depende afinal bem menos de desejo ou falta
de desejo do que, isso sim, de terem ou não dinheiro, de
conseguirem ou não crédito para suas compras.
Nesse sentido, os EUA já haviam atingido o fundo do poço antes
de 11 de setembro. O endividamento sem precedentes da economia
doméstica tinha de, necessariamente, levar um dia a um abrupto
fim do boom de consumo. Desse modo, o efeito psicológico que se
segue aos ataques terroristas talvez acelere a tendência de
queda nos gastos com consumo, mas não é a causa desta. É claro
que os consumidores americanos também não podem poupar por medo
do futuro um dinheiro que já nem têm mais. Por isso, pode-se
esperar que o consumo, independentemente da reação psicológica
ao terror, continue se retraindo de maneira drástica, sem que a
poupança nacional (nos EUA momentaneamente atingindo níveis
negativos) suba numa escala correspondente.
Há no entanto também uma argumentação inversa e igualmente
superficial que faz previsões de um indesejado efeito positivo
da ação terrorista sobre a economia dos EUA. Os ataques teriam
sido, em certa medida, por mais perverso que isso possa parecer,
a "salvação das aflições" de uma conjuntura
econômica de bolha financeira em colapso.
São essencialmente três fatores que se impõem, nesse caso.
Primeiro, alega-se que a onda de sentimentos patrióticos que
inunda os EUA deva instigar o desejo de compra dos consumidores
justamente por teimosia e sentimento de honra (é a "ida
patriótica às compras"). Esse argumento se limita como o
inverso da "poupança por medo" ao nível psicológico
e por isso é igualmente inconsistente, porque quer diluir o
estado objetivo da economia norte-americana em meros
"estados de espírito".
Em segundo lugar, alguns comentaristas anseiam por uma espécie
de conjuntura de guerra segundo o modelo da Segunda Guerra
Mundial ou do boom coreano dos anos 50. Mas hoje não se trata
mais mesmo de clássicas guerras desse gênero, como o próprio
presidente americano Georg W. Bush teve de constatar após a
catástrofe causada pelo terror, mas sim de guerras policiais de
um novo tipo, em nível global, das quais não se pode esperar
nenhuma grande mobilização econômica. Nem a guerra do Golfo
contra o Iraque no início dos anos 90 nem o envio de tropas à
ex-Iugoslávia vieram acompanhados de uma conjuntura de guerra
por meio de bens armamentistas e mobilização militar. Menos
ainda será o caso disso na caçada aos terroristas ou numa
campanha policial internacional pelo Afeganistão.
Por fim (terceiro fator), não se pode falar, no contexto de um
chamado debate "geopolítico", de uma promissora
opção afegã por assegurar as reservas estratégicas de
recursos minerais (sobretudo de petróleo e de gás natural) na
região do mar Cáspio. Essa argumentação, apreciada tanto nos
grupos de estrategistas de tabuleiro como entre os materialistas
vulgares de esquerda, vê nos ataques terroristas o perfeito
ensejo para que os EUA possam, recorrendo à ação militar,
concluir a já anteriormente planejada construção de um
oleoduto a atravessar o Afeganistão, controlado pelo Ocidente.
Porém não é de hoje que se sabe que os estoques de petróleo
do mar Cáspio foram superestimados e além disso há tempos têm
seu acesso aberto.
Se é que essa opção de fato significa algo, ela de modo nenhum
poderá impedir a aguda -e prevista para médio prazo- queda na
economia americana e, com isso, na mundial. Afora isso, a guerra
de caráter duvidoso e provavelmente de longa duração contra o
regime do Taleban é antes um considerável empecilho aos sonhos
de oleoduto; afinal, esses exigem uma pacificação política do
país que, agora mais do que nunca, está adiada para um futuro
bem distante.
Apesar de tudo isso, não se pode descartar a idéia de que os
ataques terroristas e a guerra americana no Afeganistão, como
todos os acontecimentos importantes na altamente estruturada
economia do capital "one world", fazem parte obviamente
de um contexto econômico com os seus efeitos correspondentes.
Estes no entanto são mais sutis, mas por isso provavelmente mais
relevantes do que podem conceber os observadores superficiais.
Crise de dinheiro A fronteira absoluta da conjuntura
global de especulação e déficit com os EUA no centro, em todo
caso, será alcançada mais cedo ou mais tarde, por razões da
lógica econômica imanente. A catástrofe de Nova York e os
acontecimentos no Afeganistão não poderiam entretanto trazer à
luz uma dimensão adicional da crise. Pois é justamente o
aspecto simbólico da nova situação pós-11 de setembro que
ameaça pôr em questão uma função decisiva, do ponto de vista
econômico mundial, dos EUA: o papel do dólar.
Toda crise capitalista é, em potencial, também uma crise do
dinheiro, pois é este que constitui o meio e ao mesmo tempo o
irracional fim em si mesmo do processo de exploração. O
dinheiro, no entanto, nunca é dinheiro em si, mas sempre moeda.
A moeda representa a designação que cada nação dá a seu
dinheiro. Por um lado, a forma dinheiro em si é universal e
expressa o universalismo abstrato, destrutivo do capital. Mas a
forma exterior e real com que o dinheiro se manifesta é
necessariamente nacional -moeda corrente mesmo.
A moeda corrente da liderança econômica e político-militar
assume então o caráter de uma moeda hegemônica que constitui o
principal meio de reserva dos bancos centrais e na qual se
desenvolve a maioria das transações comerciais e financeiras.
Entretanto também essa moeda hegemônica é necessariamente
condicionada por fatores nacionais. É aí que se mostra no plano
econômico um aspecto da contradição interna do capitalismo: a
oposição entre universalismo e nacionalismo. No solo e no
interior das fronteiras de cada moeda nacional, a crise do
dinheiro se manifesta como deflação (desvalorização do
patrimônio pela desvalorização de papéis como ações etc.)
ou como inflação (desvalorização da própria moeda). Esse
estado de coisas se desenvolve para atingir a forma de crise
monetária na relação das diferentes designações nacionais de
moeda entre si. A unidade monetária, deflacionada ou
inflacionada em grande medida, cai em relação a outras;
falando-se em divisas, ela tem, portanto, menos valor. Como a
crise interna da moeda, também essa crise pode assumir formas
dramáticas nas relações exteriores, sobretudo na relação com
a moeda hegemônica.
Como todas as moedas importantes até 1914 se baseavam no
padrão-ouro, a crise do dinheiro não podia se tornar manifesta
nessa época. Se havia na industrialização menores surtos
deflacionários (o crash das ações dos bons tempos da economia
alemã de fins do século 19), por outro lado, porém, não havia
nem inflação nem crises monetárias, já que as moedas eram
expressas de modo uniforme em ouro. O ouro (não amoedado) não
era dinheiro, mas constituía o ponto de referência geral e tudo
o que estava por trás do dinheiro. Por essa razão o papel
desempenhado pela moeda hegemônica (naquele tempo, a libra
esterlina) não era tão importante: o meio de reserva de fato
era, isto sim, o ouro, que também servia como medida para as
transações internacionais.
Mas, com a progressiva evolução das forças produtivas e a
forte ampliação de transações de circulação de mercadorias
e de capitais, o vínculo das moedas nacionais com limitadas
quantias de ouro não pôde mais se sustentar. A economia de
guerra do tempo das guerras mundiais, nesse sentido, abriu o
caminho final do pendente lastro em ouro. Por fim, em 1973 o
presidente Nixon ceifou a convertibilidade do dólar em ouro.
Como nova moeda hegemônica global da "pax americana",
o dólar tornou-se justamente por isso ainda mais importante.
Pois, na relação das muitas moedas nacionais entre si, é
necessária uma medida de comparação de validade geral. Como
essa agora não podia mais ser dada pelo ouro nem em nível geral
nem como base do dólar, o dólar teve de tomar seu lugar:
transformou-se no "ouro" de um frágil sistema
monetário internacional. Mas em que consiste afinal o
"ouro" do dólar? No lugar de uma substância
econômica, surgiu simbolicamente o aparato militar dos EUA, sem
concorrentes, como "salvaguarda" do capital, em nível
global, a qual desde então teve de se constituir em garantia de
segurança da moeda hegemônica.
No processo de crise da terceira revolução industrial, desde os
anos 80, agora a crise global do dinheiro, que havia se insinuado
já nos tempos das guerras mundiais, torna-se, aos surtos,
evidente. A globalização ligada a ela surge como novo e
adicional fator de conflito também no nível da forma dinheiro.
Enquanto a administração econômica das empresas se dispersa
molecularmente e se reagrega transnacionalmente, seguindo a queda
de custos em nível global, o dinheiro continua congelado na
forma nacional da moeda corrente.
As moedas do Terceiro Mundo foram, em sua maioria, periodicamente
inflacionadas; muitos países tiveram de abrir mão da própria
soberania monetária e vincular o dólar à designação de seu
dinheiro; uma série inteira de moedas nacionais perdeu até
mesmo sua função de dinheiro e circula somente como "moeda
da pobreza" entre os excluídos. Com o iene japonês, uma
moeda central foi posta sob choque de deflação.
Não apenas de modo conjuntural mas também monetário, a
economia mundial depende agora unicamente dos EUA. Porém mesmo
essa última coluna de sustentação balança, tanto em termos de
economia interna quanto do ponto de vista simbólico, no que diz
respeito à "salvaguarda" da moeda hegemônica. Na
mesma medida em que as bolhas financeiras estouram, os EUA podem
não mais absorver os excedentes de mercadorias e fluxos de
capital globais. Simultaneamente, porém, também a função
econômica indireta do aparato militar americano se fragiliza.
Em ambas as guerras da ordem mundial nos anos 90, quando no golfo
Pérsico e na ex-Iugoslávia se punha contra exércitos regulares
munidos de tecnologia convencional de segunda categoria, a
superioridade militar havia conseguido se preservar ainda como
polícia mundial e com isso, também, como garantia simbólica
para a função monetária do dólar.
Mas o novo tipo de guerra do século 21, da forma como se
manifesta desde o dia 11 de setembro, ameaça exigir demais do
aparato militar "high-tech" norte-americano; pode
sobrepujá-lo. Pela primeira vez se demonstrou a eminente
vulnerabilidade da última potência mundial, que agora não se
vê mais desafiada por uma força adversária exterior, mas sim
por um inimigo quase inatingível, que faz voltar os próprios
meios dessa potência contra ela mesma. Também nas montanhas do
Afeganistão a delicada guerra eletrônica pode dar em nada.
Assim, a moeda hegemônica se vê pressionada em ambos os
flancos: de um lado, o dólar ameaça, na economia interna, ser
ao mesmo tempo deflacionado (crash do valor das ações) e
inflacionado (crescimento vertiginoso dos volumes de dinheiro por
excessivas reduções nas taxas de juros, mediante alto
endividamento); de outro, torna-se discutível também sua
garantia simbólica pelo "ouro" da funcionalidade de
polícia mundial, porque os processos de crise em âmbito global
começam a escapar à capacidade de controle não apenas
econômica mas também político-militar dos EUA. Qualquer outra
moeda despencaria em seu valor extrínseco relativo. Na falta de
uma outra referência, porém, isso não é possível com a moeda
hegemônica do sistema financeiro global.
Fuga para os bens À última potência mundial corresponde
a última moeda hegemônica. Pois o euro não pode tomar o lugar
do dólar. Nem sua zona de circulação está em condições de
substituir os EUA na absorção dos fluxos de mercadorias e de
capitais nem a União Européia pode assumir o papel dos Estados
Unidos de potência da ordem mundial. Primeiro, ela não possui a
menor capacidade de desenvolver um aparato militar equivalente;
depois, este seria, como o americano, igualmente inútil contra o
novo tipo de guerra.
É só uma questão de tempo até que os mercados financeiros
tenham de reagir, no caso de os Estados Unidos não poderem se
reabilitar. A fuga em relação ao dólar só pode, na falta de
alternativas, terminar em fuga mundial rumo a bens de valor real
e em hiperinflação global. A crise do dólar que temos à vista
surgirá como a maior crise mundial do dinheiro na história. A
nova configuração do terror foi apenas um prelúdio dessa nova
configuração de crise.
São Paulo, 2 de Dezembro 2001
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor
de "Os Últimos Combates" (ed. Vozes) e "O Colapso
da Modernização" (ed. Paz e Terra). Ele escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Marcelo Rondinelli.