A ARGENTINA COMO MODELO DE PERDEDOR
Quantas crises consegue ainda suportar o sistema financeiro global?
Muitas
vezes quase se pode concluir que a história só anda mesmo em círculos, sem
sair do lugar. A Argentina, por exemplo, com seu aparentemente inabalável
peronismo, surge de tempos em tempos nas manchetes da imprensa mundial: ora sob
a luz sombria de ditadura e crimes políticos, ora como novelão envolvendo o
casal presidencial e sendo chamado de "Guerra das Rosas" ou ainda como
exemplo de esperança econômica e então de novo como fantasma da crise. Desta
vez, é claro que a situação é muito mais séria do que nunca. A dramática
falência do Estado, que assegura ao país atenção global, assinala talvez uma
nova configuração nas crises financeiras, que já desde os anos 80 acontecem
numa sequência com intervalos cada vez mais curtos.
Até agora todo desastre sempre pôde ser contido por meio das ações concertadas do FMI, dos governos e do sistema bancário transnacional. A crise argentina, no entanto, é de tal maneira grave que fica difícil acreditar que mais uma vez se possa lançar a âncora salvadora. Justamente por isso é que estão fazendo como se se tratasse de um grande caso excepcional. De repente a imprensa econômica mundial (sobretudo a ocidental, claro) se dá conta de que a Argentina fez tudo errado. São os mesmos comentaristas que ainda há poucos anos, com a mesma certeza, também sabiam que a Argentina estava fazendo tudo certo. Só agora é que descobrem umas falhas apenas subjetivas. Não estamos diante de um fracasso do sistema, dizem, e sim de déficits puramente morais e culturais. E, naturalmente, também no caso da Argentina se encontra um intelectual local como testemunha forjada, na figura do hoje muito citado escritor Marcos Aguinis, presença constante na imprensa, que diagnostica uma específica "doença da Argentina”. É bem isso que o mundo quer ouvir. Mas esses argentinos! Agora quem admite isso é mesmo um de seus pensadores!
E
em que será que consiste a exótica doença que se limita com exclusividade àquele
Estado? Ouça e pasme: a Argentina, segundo descobriu Aguinis, sofreria de uma
"cultura de corrupção", ninguém estaria respeitando as leis, o
sistema de ensino estaria em decadência, e a população, ao invés de pôr mãos
à obra para atacar efetivamente os problemas, estaria demonstrando uma inclinação
para o fatalismo. Os sábios da economia deste mundo assentem de modo
significativo com a cabeça e completam o diagnóstico: programada de modo
culturalmente equivocado, a Argentina seria a própria culpada pelos
sobrelevados déficits orçamentários e principalmente por uma política
financeira sem solidez. Agora sabemos enfim o que difere a Argentina de todo o
resto do mundo.
É
para rir. Qualquer criança sabe que essa "doença da Argentina" é
mais ou menos tão rara pelo mundo afora quanto o resfriado, o rato e o dólar.
Por todos os cinco continentes soa a mesma queixa desafinada, idêntica à
formulada por Aguinis para a Argentina. É a moda intelectual que se alastra, de
uma interpretação "culturalista" de todos os fenômenos sociais. Na
Alemanha, por exemplo, depois de muitos escândalos financeiros recentes, também
se fala de um "Zeitgeist (espírito do tempo) da corrupção". Como
qualquer um engana o fisco sem o menor escrúpulo e aproveita qualquer
oportunidade para tirar vantagens ilegais, os críticos da cultura mais
conservadores já há um bom tempo vêm acusando a nova mentalidade alemã de
estar minimizando tais contravenções, considerando-as "delitos
menores". E depois que o chamado Pisa (Programa Internacional de Avaliação
de Alunos) documentou num estudo que, em termos mundiais, estudantes alemães
estão ocupando os últimos lugares, a gritaria sobre a crise do sistema de
ensino vem crescendo. Então a Alemanha é a Argentina? O que realmente importa
na queixa sobre déficits exagerados do Estado, das Províncias e municípios:
em que país essa queixa não seria um bom e velho tema do debate público?
A alegada "doença da Argentina" é na verdade uma doença mundial, e menos uma doença do que um mero sintoma. Por isso, não serve para explicar absolutamente nada. A Argentina não é um caso especial, mas apenas o caso mais recente de uma crise mundial crescente. O cerne do problema consiste, desde o início dos anos 80, no fato de que, no processo da terceira revolução industrial, a economia real e os mercados financeiros sacados não podem mais ser cobertos. É sabido que nesse tempo se formaram duas bolhas financeiras globais: de um lado, foram inflados especulativamente os valores das ações; de outro, ocorreu um exorbitante endividamento de empresas privadas e entidades estatais por meio de créditos e empréstimos. Ambos os processos se afetam mutuamente: uns emprestam aos outros o dinheiro que eles não têm na forma real, mas especulativa; os outros financiam com isso o consumo privado, o estatal e empresas não-rentáveis, enquanto pagam dívidas sucessivamente "renegociadas" com dinheiro que eles igualmente não têm na forma real.
As
exigências dos credores sobre os devedores figuram no sistema dos lançamentos
como saldo positivo: como dinheiro com o qual se pode comprar tudo, embora este
já tenha sido gasto há muito tempo em outras partes. Essas exigências dos
credores, as quais crescem por meio das cobranças de juros, produziram a idéia
ingênua de que haveria, sim, "dinheiro suficiente por aí" no mundo.
Mas a ficção mais cedo ou mais tarde tem que se desfazer. O dinheiro que só
existe na forma de exigências dos credores diante de uma absoluta insolvência
dos devedores se dissolve no ar, do mesmo modo que aquele dinheiro que não
passa de inchaço especulativo dos valores de ações desaparece sem deixar
rasto quando as bolsas se retraem ou sofrem um crash.
A dupla formação mundial de bolhas de dívidas impagáveis, por um lado, e valores fictícios de ações, por outro, deve necessariamente deparar-se com limites. Quanto mais se sufocam sob os pesos dos juros e quanto menos conseguem promover uma economia capitalistamente produtiva com o dinheiro que tomaram emprestado, mais próximos os devedores se vêem do espectro medonho da insolvência. Desde a crise asiática de 1997/98 não passou um ano sem que um dos grandes países devedores da periferia ameaçasse quebrar de vez. Depois dos "tigres asiáticos", do México, da Rússia e da Turquia, agora é a Argentina que está "no ponto". Nos centros do mercado mundial, a crise das dívidas ainda não atingiu o nível dos Estados no seu conjunto; mas um pouco abaixo, em muitos lugares, são as finanças municipais que já entram em colapso. Assim se encontra desagradavelmente a capital alemã, Berlim, sacudida por escândalos financeiros, prestes a falir. Os Estados da periferia e os municípios do centro representam os elos mais fracos do sistema, os que primeiro vão se romper. Nesse sentido, os "casos graves" de Argentina e Berlim são absolutamente comparáveis, ainda que se trate de níveis diferentes. A opinião pública oficial apenas não quer, como de costume, pensar em conjunto aquilo que um só conjunto é.
Existem
diversas razões para explicar por que o crash
argentino, como a mais recente crise das dívidas, é mais difícil de absorver
do que os anteriores. A Argentina na era Menem, afinal, seguiu a ideologia
neoliberal muito mais à risca do que outros países; e por isso recebeu na época
grandes elogios (aliás, também os recebeu pela rígida vinculação do peso ao
dólar, como suposto "remédio milagroso" contra a inflação). O
resultado, no entanto, foi uma desindustrialização do país, que cada vez
menos pôde arrecadar divisas nas exportações para pagar as dívidas. O que
fez subir o volume de dívidas até um nível recorde e tornou hoje praticamente
impossível qualquer renegociação. Isso é, de fato, uma particularidade da
Argentina, mas representa apenas uma diferença de grau em relação a outros países
devedores comparáveis.
As outras razões para a crescente dificuldade de combater a crise, no entanto, não têm nada a ver com a Argentina, e sim com o desenvolvimento geral do capitalismo financeiro global. Nos últimos tempos a fonte da liquidez que parece brotar infinitamente do processo especulativo está esgotada nos centros. Desde a primavera de 2000 os mercados de ações nos EUA e na Europa vão mal das pernas. Enquanto os "novos mercados" já experimentaram o seu crash, as ações de primeira linha balançam bem abaixo de seus históricos picos de cotação do final dos anos 90. Isso significa que a margem de manobra dos "investidores" já se estreitou consideravelmente. Se a liquidez especulativa encolhe, também a possibilidade de contrair novas dívidas ou "renegociar" as pendentes tem de diminuir. As discrepâncias da crise financeira global começam, portanto, a se evidenciar: de um lado, cresce o endividamento global até a beira da falência ou para além desta (caso da Argentina); do outro, vai se dissolvendo no ar o capital monetário especulativo dos mercados de ações do Ocidente.
Desse
modo, reduz-se a competência do sistema financeiro global de barrar crises,
porque a discrepância entre mercados financeiros e economia real se escancara
mais do que nunca. Como consequência (não admitida) da estagnação e recuo da
dinâmica especulativa do Ocidente, o nível de atividade econômica
norte-americana já despencou, e com isso a locomotiva da atividade econômica
mundial parou. De repente, fica manifesto um círculo vicioso: a economia dos
EUA só volta a andar se a bolha dos valores acionários voltar a inflar; os
valores financeiros, por sua vez, só podem subir na escala necessária se a
atividade econômica real der sinal para isso. Isso corresponde a dizer que
violentamente volta a se produzir aquela relação "normal" entre
economia real e capital financeiro que há mais de uma década parecia estar de
cabeça para baixo. O resultado é a contração que se observa tanto na
atividade econômica real quanto nos mercados financeiros.
Essa situação torna perfeitamente compreensível por que foi preciso fazer como se a crise argentina fosse um mero caso isolado e excepcional. Quando da crise asiática, houve ainda, da mesma maneira que no caso da Rússia, uma reação em cadeia e uma evasão geral do capital monetário dos "emerging markets", porque os mercados financeiros ocidentais, com seu permanente movimento para cima, eram um "porto seguro". Só que agora a dinâmica especulativa dos próprios centros capitalistas está extinta. Para onde deve fugir o capital monetário? A liquidez até encolheu com o crash e a estagnação das Bolsas ocidentais, mas ainda há tanto sobrando que se tornam necessários novos campos para aplicações. Assim, no momento os analistas têm de manifestar uma "serenidade" forçada, para isolar o problema da Argentina, enquanto os aplicadores são impelidos a até mesmo elevar seus investimentos no mercado financeiro (tanto em ações como também, e sobretudo, em obrigações) do Brasil, México, Sudeste Asiático etc.
Desse
modo, o capital monetário "quente", que procura aplicação, se
comparado com a crise asiática de 1997/98, flui agora na direção contrária.
Mas a base de economia real dos "emerging markets" piorou
dramaticamente com a contração da atividade econômica dos EUA. A Coréia do
Sul é um bom exemplo do absurdo dessa situação: lá, no ano passado, os
investimentos externos diretos recuaram em quase 25%, enquanto o afluxo para ações
e empréstimos cresceu em escala quase equivalente. A mão esquerda do capital não
sabe o que faz a direita (ou pelo menos assim parece). Desta vez, é certo que a
crise da economia real vai ter muito mais dificuldades para conseguir compensação
no capital financeiro. Se o nível da atividade econômica norte-americana não
decolar de novo a tempo, as exportações do conjunto dos países devedores, na
Ásia, América Latina ou em qualquer outro lugar, vão despencar; a consequência
serão novas crises financeiras e monetárias. Todos eles estão ameaçados a
mais cedo ou mais tarde chegar à insolvência, a exemplo do que acontece na
Argentina que, afinal das contas, não é mesmo nenhum caso excepcional.
O que acontecerá? Uma possibilidade: as dívidas, que se tornaram insustentáveis, serão algum dia necessariamente anuladas (não apenas suspensas por uma moratória), como o legislador Sólon decretou na antiga Atenas. Então os credores serão expropriados e o maravilhoso dinheiro dos empréstimos de repente estará tão pouco disponível "por aí" quanto o dinheiro representado por valores fictícios de ações depois da queda das cotações. Essa expropriação, porém, não ameaça apenas alguns poucos grandes capitalistas financeiros, mas também milhões de pequenos investidores, poupadores, aposentados etc. São grandes parcelas (sobretudo no Ocidente) da população para as quais hoje só resta escolher de que maneira irão para o fundo do poço: se será como devedores ou como credores, porque direta ou indiretamente ambos são a mesma coisa. Diferentemente da Atenas de Sólon, depois de um desendividamento não prosseguiria a vida normal; os fundamentos da ordem social é que seriam postos em questão. Essa é a principal razão por que hoje se pode falar tão pouco de uma anulação das dívidas no sistema mundial capitalista como de corda em casa de enforcado.
Ou
então – e essa é a outra possibilidade – a exigência dos credores é
cumprida sem piedade: nesse caso, para que os custos sejam cobertos, terão de
ser extraídos da população dos países devedores. Essa extração será tanto
mais profunda quanto menores forem as possibilidades de renegociação via
instituições financeiras internacionais. Já nas crises que se sucederam até
hoje na Ásia, no México, na Rússia, Turquia etc., a fachada de normalidade
capitalista-financeira só pôde ser reerguida à custa de milhões de pessoas
que viram sua existência social estagnar. O caso Argentina parece trazer uma
nova configuração dessas amargas consequências: em princípio, grandes
parcelas da população teriam que deixar de comer e beber por alguns meses para
que as exigências dos credores fossem satisfeitas. A situação ameaça
tornar-se incontornável: ou o capital financeiro capitula, ou se inicia uma catástrofe
social como nunca vimos até hoje. A Argentina é um precedente para o
desenvolvimento global dos próximos anos.
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