Robert Kurz

O HARAKIRI DOS BANCOS EMISSORES

O Japão e os Estados Unidos perante o dilema do capitalismo financeiro

Bolhas estouradas em nada preocupam os bancos e a calma, afinal de contas, é o primeiro dos deveres cívicos. Assim ao menos pareceu no Japão, pois lá já se vão dez anos do crash financeiro, que quase caiu em esquecimento porque a economia mundial não se mostrou particularmente afetada por ele nos últimos tempos. De 1965 a 1990 o mercado de ações japonês descreveu um movimento ascendente contínuo, por fim cada vez mais rápido, que extrapolou em muito o sucesso real da máquina exportadora nipônica. O índice Nikkei da Bolsa de Tóquio cresceu em não menos que 3.700% a quase 40 mil pontos; e a capitalização especulativa da Bolsa foi ainda superada por um aumento fantástico dos preços imobiliários. O Japão tinha-se por rico. Quando a bolha estourou, em 1990, tanto no tocante às ações quanto aos ativos imobiliários, os mercados financeiro e imobiliário despencaram e nunca mais se recuperaram. O Nikkei foi dividido em dois para depois rolar ladeira abaixo. Como se sabe, o sistema financeiro japonês se assenta desde então numa massa de créditos podres da ordem de US$ 1 trilhão a US$ 2 trilhões.

Na verdade, o resultado das falências dos grandes bancos deveria ser necessariamente o colapso do sistema financeiro e uma severa depressão do Japão com repercussões na economia mundial. Mas como esse resultado pôde ser evitado por tantos anos? Para tanto há sobretudo duas razões.

Primeiro, a cultura paternalista japonesa, impregnada de budismo e xintoísmo, possibilitou uma manipulação coletiva dos mercados financeiros e balanços, tal como seria impensável no capitalismo concorrencial do Ocidente: mediante uma trama de fidelidades e dependências, interesses cruzados, o dedo da máfia (a "yakuza") e conversas informais sob a égide do Estado, boa parte dos créditos podres e prejuízos não realizados foi alocada em sociedades de amortização ou, nos termos do balanço, repartidas de boa-fé entre banco e empresas por meio de compras forjadas. Aos bancos se permitiu baixar as cotas de capital societário e inserir no balanço portfólios de ações não a preço de mercado, mas a preço de compra etc. Embora mesmo assim tenha havido uma onda de quebras, foi possível evitar desse modo o grande crash bancário. Vários milhares de empresas efetivamente falidas, sobretudo no ramo da construção e no imobiliário, mas também no comércio a varejo, foram mantidos em vida vegetativa, e a reboque deles um a dois milhões de postos de trabalho sem base econômica.

Segundo, foi a via de mão única da exportação pelo Pacífico rumo aos Estados Unidos que propiciou ao Japão postergar a crise do sistema. Já a prosperidade anterior fora sustentada por um progressivo excedente de exportação, cuja parte do leão fora absorvida pelos Estados Unidos. A ele não se opôs nem se opõe até hoje nenhum fluxo de mercadorias equilibrado na direção contrária em vez disso, há um crescente endividamento externo norte-americano, sobretudo em relação ao Japão. Com as virtudes redentoras da maré contínua das exportações, a economia japonesa pôde se manter sobre a água e salvar o seu sistema financeiro do colapso.

Mas desde o início foi preciso pagar um preço para evitar a crise financeira, qual seja, não a grande depressão, mas sim a estagnação da conjuntura com tendências deflacionárias cada vez mais acentuadas. Os bancos gemebundos sob o fardo dos créditos podres hesitaram em conceder novos créditos, as empresas endividadas, em arriscar novos investimentos, e os consumidores, em grande parte onerados com hipotecas vencidas e afligidos pela insólita insegurança no emprego, se exercitaram na contenção de consumo um forte freio conjuntural numa fração de 60% do consumo do Produto Interno Bruto (PIB) do Japão.

Entre 1991 e 2000, e com não menos que dez pacotes conjunturais em franca oposição ao consenso econômico neoliberal vigente no mundo, o governo japonês tentou em vão torcer o leme. O único "sucesso" consistiu no fato de o Japão assumir o topo mundial de endividamento do Estado: se o orçamento nacional de 1989-90 serviu de radiante modelo global com somente 20% do PIB em dívidas e alcançando ainda um superávit anual de 2,9% do PIB, de lá para cá ele bateu um recorde negativo com 140% do PIB em dívidas, que montam em 10% a cada ano.

Em paralelo a isso, o Banco do Japão promoveu uma rodada de redução de juros após a outra, para finalmente transitar para uma paradoxal "política de juro zero" na taxa de juro mais importante, o dinheiro diário: os bancos eram capazes de se refinanciar quase a tarifa zero. Na estagnação da economia interna, porém, nada se alterou. Empresas e governo endividados, apesar de condições favoráveis, não contraíram mais créditos para investimentos. Inversamente, a política de juro zero destruiu qualquer estímulo para investir no país. O efeito foi totalmente outro: investidores institucionais e privados tomaram dinheiro a juros extremamente baixos no fito de investir no estrangeiro a juros sensivelmente mais altos. O Japão inundou o mundo inteiro com sua miraculosa liquidez e aqueceu os mercados financeiros globais, enquanto em casa tudo ia por água abaixo.

Num intervalo de poucos anos, os tigres do Sudeste asiático percorreram o mesmo ciclo de crise que o Japão. Desde meados dos anos 80, sustentados pelo surto das exportações, que cruzavam igualmente o Pacífico em mão única rumo aos Estados Unidos, os novos "países das maravilhas" construíram nessas bases uma bolha especulativa com ações e ativos imobiliários, a qual, como se sabe, estourou em 1997-98. E, tal como no Japão, os créditos podres resultantes e prejuízos não realizados foram varridos para debaixo do tapete com o auxílio do paternalismo asiático, enquanto os seguidos excedentes de exportação no comércio com os EUA serviam de compensação. Dois anos mais tarde, foi suspenso o toque de alerta: a crise asiática, assim diziam, fora superada; e o Banco do Japão, vendo às costas o vale conjuntural que percorrera, elevou pela primeira vez em dez anos os juros e anunciou reformas para abrir o mercado.

Tanto maior foi o enjôo quando, paralelamente a uma dramática queda dos mercados de ações nos Estados Unidos, Europa e Japão em 2001, o ministro das Finanças japonês foi obrigado a anunciar de imprevisto e com uma clareza nada diplomática, incomum para as relações asiáticas, que o sistema financeiro de seu país estava à beira de um colapso. Quais mudanças são responsáveis por tão inesperada reviravolta?

O Japão não se recuperou de seu crash dos anos 90 por mais que o tenha reprimido, jamais o dominou de fato. Adiar a crise sistêmica só foi possível sob a condição de que a conjuntura interna voltasse algum dia a dar frutos. Todas as tentativas de levar a efeito esse propósito com injeções de dinheiro estatal malograram. A nova queda do índice Nikkei em mais de 30% desde o início do ano fiscal de 2000-01 queda condicionada por tal fracasso rendeu aos bancos adicionais prejuízos não realizados numa cifra dez vezes maior que os créditos podres. Sendo iminente o balanço anual, teme-se uma fuga em massa de haveres de correntistas receosos. Subitamente cresceu a pressão para finalmente levar a efeito a protelada "limpeza" do setor empresarial e do mercado de trabalho. O otimismo do Banco do Japão revelou-se um erro de cálculo gritante.

E, ao mesmo tempo, o outro motor que obstava a crise japonesa, a máquina exportadora para os Estados Unidos, ameaça enguiçar. Afinal, as bolhas estouradas do Japão e dos tigres asiáticos só puderam ser compensadas ao longo dos anos porque as bolhas ainda eram sopradas com vontade nos Estados Unidos (e, paralelamente, também na Europa). Somente o contínuo afluxo de capital estrangeiro e o aumento igualmente contínuo do curso das ações possibilitaram aos Estados Unidos importar os excedentes do mundo inteiro e amparar as economias necessitadas. Desde março de 2000, porém, os "novos mercados" das ações de alta tecnologia e da internet caíram de 60% a 80%; exatos 12 anos depois, parece ter começado agora o declínio das ações tradicionais.

Otimistas de plantão afirmam em geral que a curva de crise do Japão, em 1990, e dos tigres asiáticos, em 1997-8, não se compara àquela dos Estados Unidos hoje a economia norte-americana seria muito mais resistente. O boom especulativo nos Estados Unidos não se assentou num boom de exportações, e sim num gigantesco déficit comercial a troco de endividamento externo. Nesse sentido, a dimensão da crise norte-americana é muito mais grave. É certo que, à diferença da Ásia, não houve nos Estados Unidos uma bolha adicional no mercado imobiliário, mas em compensação surgiu uma outra bolha, muito maior a da "nova economia". E, se o Japão ainda tinha em 1990 uma cota de poupança de 16%, hoje nos EUA ela é equivalente a zero ou até negativa. Mesmo os tão louvados excedentes do orçamento nacional norte-americano nos dois últimos anos, com 2,3% do PIB, ficam abaixo de seus equivalentes japoneses de então.

Mas sobretudo as empresas e os consumidores estão sensivelmente mais endividados estão mais endividados nos Estados Unidos do que jamais estiveram os asiáticos. Na expectativa de ulteriores aumentos no curso de seus portfólios de ações, o orçamento privado americano, até 2000, praticamente antecipou o consumo de vários anos. E, em acréscimo às dívidas já acumuladas, muitas empresas de internet, na ilusão de uma pronta mudança de tendência, recompraram a crédito suas próprias ações em grande escala desde o início da queda na Bolsa Eletrônica, a Nasdaq, com o propósito de lucrarem com a variação; de lá para cá, a condição delas só piorou. Era previsível que o processo de endividamento privado e empresarial cedo ou tarde excederia o processo de capitalização da Bolsa. O fluxo minguante dos lucros em todos os ramos da economia norte-americana (e hoje também da européia) evidencia que o limite foi alcançado ou mesmo ultrapassado. Não há capitalismo sem lucro. E hoje as próprias vendas em importantes setores começam a despencar (como, por exemplo, na telefonia móvel).

No cruzamento crítico de conjuntura e Bolsa no plano estrutural, de um lado, e, de outro, da América do Norte e Ásia no plano das relações de comércio internacional, se delineia claramente a possibilidade de uma escalada. Em geral, no tocante a repercussões econômicas, calcula-se um período de incubação de seis meses a dois anos. Desde o final de 2000 esboçam-se os primeiros estigmas do crash na Nasdaq na conjuntura norte-americana. Esses estigmas, por sua vez, aceleraram o crash e se alastraram para as ações tradicionais. Como saldo do enfraquecimento dos Estados Unidos, decrescem as exportações e investimentos no Japão. Na sequência disso, por sua vez, tal como se receia há tempos, o capital japonês pode se retirar dos EUA e assim apressar o colapso da conjuntura norte-americana etc. A essa escalada dificilmente escaparia a Europa. Não somente diminuiriam as exportações para os Estados Unidos e o Japão, mas também as exportações a todas as economias afetadas pelo colapso japonês e norte-americano tanto na Ásia e na América Latina quanto no interior da própria União Europeia.

Por trás da imprevisibilidade dos fenômenos e das prodigiosas oscilações dos mercados financeiros figura em última análise a depreciação do trabalho e, portanto, a dessubstancialização do dinheiro por obra do moinho implacável da Terceira Revolução Industrial. Com cada crash parcial, a crise sistêmica amadurece e aflora à tona com força cada vez maior, inclusive nos centros. Mas, se importa novamente adiar o desastre global, é preciso a todo custo impulsionar o consumo nos Estados Unidos e no Japão.

Ora, dessa vez isso será mais difícil que no passado. O estouro da bolha norte-americana é muito mais grave que o estouro da bolha asiática. Pois os Estados Unidos não têm outros Estados Unidos para compensar um crash em termos extra-econômicos. Claro que eles poderiam ser tentados a exportar seus problemas. Mas para uma ofensiva de exportação lhes faltam, como notórios campeões da importação, os produtos e a infra-estrutura. Além disso, para poderem exportar, teriam de desvalorizar drasticamente o dólar, o que conduziria a uma corrida pela desvalorização do iene, levando de roldão todas as moedas asiáticas e finalmente também o euro. Esse cenário plenamente realista de uma crise monetária global (a desvalorização do iene já teve início) seria tanto mais devastador para a conjuntura e os mercados financeiros.

Só resta o velho artifício das injeções diretas e indiretas de dinheiro estatal. No intervalo de poucas semanas, o Fed (banco central norte-americano) empreendeu três cortes de juros e anunciou um quarto, o presidente Bush estuda um programa de corte de impostos de dez anos da ordem de US$ 1,6 trilhão por ano, e o Banco do Japão não apenas retomou a política de juro zero, mas também aumentará o abastecimento de moeda e com isso facilitará o refinanciamento dos bancos. Mas é incompreensível por que no Japão passaria a funcionar de repente o que até agora não deu certo, e por que nos Estados Unidos, com os mesmos métodos, as coisas correrão melhor do que no Japão. O corte nos impostos de Bush atinge apenas orçamentos domésticos, cujo consumo já está saturado, ou então o dinheiro desonerado será usado para saldar as dívidas acumuladas. Pela mesma razão, os cortes de juro nos Estados Unidos e Japão não darão em nada, pois o dinheiro mais barato será empregado antes na rolagem das dívidas no setor empresarial e privado do que para investimentos e consumo.

Se quiserem surtir efeito, pois, as injeções de dinheiro terão de ser ministradas em doses sensivelmente maiores. E nisso terá de tomar parte o próprio Banco Central europeu, porque do contrário os fluxos globais de capital serão invertidos, e a crise, potencializada. A par de uma corrida pela desvalorização, é concebível também uma corrida pelo corte de juros. O grande pecado capital contra a teologia econômica monetária já se esboça como uma espécie de keynesianismo de Bolsa, a fim de salvar o capital financeiro e a conjuntura dele dependente mediante uma abertura sincronizada das comportas monetárias nos três grandes blocos econômicos.

O preço para tanto seria o regresso da inflação, que nos Estados Unidos já está em 3,5% ao ano. Poucos meses atrás isso teria alarmado o senhor Alan Greenspan (presidente do Fed) e ensejado uma alta dos juros; hoje a necessidade o impele a uma política diametralmente oposta. A persistir essa tendência, é possível até a concomitância única na história entre depressão e inflação: ou seja, uma deflação dos patrimônios pela quebra das ações, redundando em demissões e falências em massa, enquanto as empresas que restarem no mercado serão obrigadas, em razão de seu descomunal endividamento, a elevar apesar de tudo os seus preços.

Original HARAKIRI DER NOTENBANKEN em www.exit-online.org. Publicado em Jungle World, nº 14, Berlim, 28.03.2001. Publicado na Folha de São Paulo em 22.04.2001 com o título CILADAS DA TEOLOGIA MONETÁRIA e tradução de José Marcos Macedo.  

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