Roswitha Scholz

LÓGICA DA IDENTIDADE E CRÍTICA DO CAPITALISMO

Notas sobre as reacções da esquerda aos ataques terroristas em Nova Iorque e Washington

1.

O terror nos E.U.A. e a subsequente guerra de bombardeamentos contra o Afeganistão levaram à confusão e a polarizações na esquerda crítica do valor (e não só). A uma posição como a representada pela "Bahamas" e pela maioria da "Jungle World" que, perante o pano de fundo histórico dos nazis e do Holocausto, se colocam ambas incondicionalmente ao lado dos valores ocidentais e da civilização ocidental, indo até à exigência extrema de um bombardeamento exaustivo dos países islâmicos (declaração da Bahamas), a essa posição fazem frente entre outras as abordagens que procuram uma explicação com base na crítica do valor das estruturas objectivas do desenvolvimento capitalista contemporâneo, ou seja, das causas sociais (mundiais) destes bárbaros atentados terroristas. Salta à vista o perigo público constituído pela posição exacerbada da Bahamas.

No que segue pretendo demonstrar que, neste caso, tanto é preciso fazer jus aos mecanismos e às estruturas gerais e abstractas sobrejacentes (ou seja, estabelecer analiticamente do ponto de vista social as actuais causas do terrorismo), como visar com a crítica da ideologia a história especificamente alemã e, consequentemente, também as reacções por aqui havidas aos ataques terroristas, sem confundir nem equiparar um plano com o outro. Os dois planos têm de ser, por um lado, separados e, por outro, examinados na sua intermediação.

Isto diz respeito, em particular, à natureza anti-semita dos atentados. Vale aqui, em minha opinião, ligar as abordagens de Moishe Postone, da "Dialéctica do Iluminismo" e da "crítica do valor fundamental" no que respeita à situação actual. Com Postone, parto do princípio de que os judeus têm sido identificados com o lado destrutivo do capitalismo e da civilização moderna já desde o século XIX, uma ideia que finalmente culminou no Holocausto. Nesta medida, há que dar razão à posição da “Krisis”, quando esta se esforça por distinguir as diferentes fases do capitalismo e, portanto, também as diversas formas de anti-semitismo, ou seja, quando insiste na lógica do desenvolvimento capitalista. Esta posição parece-me ser a mais capaz de analisar o actual cenário social mundial de globalização adequadamente, ou seja, como processo de decadência do capitalismo. No entanto, advogo que as diferentes qualidades sociais sejam tidas em conta no seu devir histórico (incluindo os mais recentes desenvolvimentos e eventos na sua dimensão histórica), de uma forma bem mais vincada do que tem acontecido até agora na elaboração teórica da "Krisis", especialmente no que se refere à Alemanha.

Se as determinações pertinentes devem partir sempre do princípio da adopção de uma "Dialéctica do Iluminismo", devem também ser realizadas por meio de uma crítica da lógica da identidade, tal como ela se pode encontrar em Horkheimer e Adorno. Neste contexto, convém recordar que Horkheimer e Adorno estabeleceram, eles próprios, uma ligação entre o extermínio dos judeus no nacional-socialismo e a lógica da identidade dominante no capitalismo, segundo a qual o geral pontifica sobre o particular e a ordem deve ser imposta de cima para baixo, ou seja, também as diferenças e distinções devem ser apagadas. Esta forma de pensar levou à liquidação dos diferentes no nacional-socialismo.

Para Adorno e Horkheimer, no entanto, é apenas a troca de mercadorias que determina esta forma de pensar e é a partir dela que o dissemelhante é reduzido ao mesmo denominador. Pelo contrário, no que diz respeito à forma básica subjacente à sociedade, é de partir, com a “Krisis” e com Postone, do valor como relação (ou, no meu entendimento, da dissociação-valor, questão que não posso aqui aprofundar), e não apenas da troca de mercadorias. É uma lacuna da posição da “Krisis” que ela, até agora, tenha escondido largamente a crítica da lógica da identidade, que vem de par com a crítica do valor, e ainda mantenha a tendência para meter indiscriminadamente tudo no mesmo saco do valor. Isto envolve o perigo de nessa medida falhar a crítica a fazer do sujeito, mesmo reconhecendo criticamente o valor como princípio negativo, na medida em que na determinação negativa da forma de sujeito se mantém um velho dualismo sujeito-objecto.

Inteiramente na lógica da identidade, ainda que noutro sentido, procede a posição da "Bahamas", na medida em que nem sequer admite uma diferenciação na lógica do desenvolvimento. Ela parte básica e ahistoricamente dum capitalismo sempre igual e, no fundo, coloca uma determinada constelação histórica da primeira metade do século XX como padrão de pensamento sobre qualquer novo desenvolvimento.

2.

O terror nos Estados Unidos foi claramente de motivação anti-semita. As teses de Postone provam aqui a sua verdade de forma simbolicamente resumida. Os ataques tiveram como objectivo, a partir de uma ideologia regressiva, a destruição do geral-universalista-abstracto na relação de capital. Para os fundamentalistas islâmicos trata-se, como eles repetidamente reiteram, de fazer a luta contra os judeus e os cristãos, contra o Ocidente. Mesmo que não proclamem qualquer relação afirmativa com o "trabalho", eles insistem na religião como o "concreto" cultural aparente.

No entanto, uma referência abstractamente positiva ao capitalismo na presente situação da parte da esquerda radical é falaciosa. E também testemunha de uma falsa imediatidade. Assim se esquece que o próprio anti-semitismo é um produto acabado do capitalismo. Quanto mais se generalizou a forma da mercadoria e, através dela, também os valores universalistas ocidentais, tanto mais os judeus foram identificados com tudo isso de uma forma personalizadora. Apenas com o capitalismo surgiu uma forma de pensamento continuadamente fetichista da mercadoria e, consequentemente, uma relação positiva e ideologizada com o "concreto" e com o "trabalho", sem que se visse que esta primordialidade aparente já é ela própria sempre produto da abstracção real na forma da mercadoria. Os judeus foram vistos já quase como os causadores, mas em todo o caso como os verdadeiros beneficiários do capitalismo, cujos poderes destrutivos lhes seriam indiferentes. Este estereótipo anti-semita é parte integrante da cultura ocidental; o discurso em muitos aspectos bastante pertinente da cultura judaico-cristã obscurece esse facto.

Por conseguinte, é importante conceber o capitalismo como processo histórico e, neste contexto, determinar também o anti-semitismo historicamente, considerando as continuidades. Assim se distingue, por exemplo, o anti-semistismo fordista eliminador dos nazis do anti-semitismo na era da globalização, sendo que o anti-semitismo agora dominante na Alemanha é um anti-semitismo secundário (não apesar, mas por causa de Auschwitz). Precisamente tendo em conta o facto de, desde o século XIX, no processo de sedimentação da lógica da identidade, os judeus terem sido simplesmente identificados com as manifestações destrutivas do capitalismo, há que distinguir as diferentes fases históricas. Por isso, no caso dos ataques terroristas nos E.U.A. não se trata simplesmente de uma aniquilação dos judeus accionada à escala de um plano fabril, sistemática, como no nacional-socialismo, mas precisamente da militância de actos terroristas suicidas, por muito pós-modernamente sofisticados que tenham sido e como tais tenham feito simultaneamente um manguito à húbris da alta tecnologia.

A diferenciação histórica implica, não em último lugar, que hoje não podemos colocar-nos à banal maneira positivista do lado dos "valores ocidentais" universais e abstractos contra um anti-semitismo no fundo pensado ahistoricamente, mas que, pelo contrário, temos de renunciar a este pensamento da imediatidade, para proceder ainda mais aprofundadamente ao nível do geral e abstracto sobrejacente na teoria e na análise críticas. Isto significa fazer valer uma perspectiva crítica da totalidade (negativa), mais precisamente na sua dimensão histórica, ou seja, hoje em dia, na perspectiva do processo de globalização. Nessa medida, trata-se de agudizar ainda mais os “desaforos da abstracção”, partindo de Moishe Postone. Depois, há que insistir neste ponto ainda mais face às posições anti-imperialistas que também gostariam de salvar de um modo banal e positivista o particular oprimido numa nação, numa cultura etc., pensadas desde sempre afirmativamente. O lema "civilização é genocídio" é completamente absurdo, porque "os povos" foram construídos apenas com o surgimento da nação e desde então têm vindo a constituir-se a si próprios em actos compulsivos rituais.

Não se admite, portanto, uma análise ilusória por acto reflexo, nem as correspondentes conclusões de curto alcance. É precisamente a partir da perspectiva de uma análise sobrejacente, no plano do geral e abstracto, na concreção histórica simultânea, que não se pode tomar partido pelos E.U.A. nem porventura por Bin Laden. É importante lembrar neste caso que é possível uma pessoa, como por exemplo Stoiber, bater-se decididamente do lado do universalismo das nações ocidentais cristãs e, ao mesmo tempo, fazer orgulhosamente pandilha com radicais de direita dos média democraticamente eleitos, como Berlusconi, bem como com anti-semitas e racistas da extracção de Haider. O contexto dos atentados terroristas nos Estados Unidos tem de ser esclarecido a um nível adequado de abstracção, à escala mundial e no patamar histórico da globalização pós-moderna, sem por isso desculpar seja o que for. Isso significa, também, não se deixar seduzir de uma maneira superficial pelo repugnante estilo belicista de Rambo e de latifundiário pós-moderno das elites funcionais dos E.U.A., tal como ele se apresenta todas a noites nos média.

3.

Da perspectiva de uma crítica da lógica da identidade trata-se de ter em conta não apenas a dimensão histórica, mas também as diferenças específicas de países e culturas. Neste contexto, também há que ver em particular como se reagiu aos ataques terroristas nos E.U.A. na Alemanha, com a sua história do nacional-socialismo e do Holocausto. Que motivos subjazem a estas reacções na era da globalização?

Seria um erro continuar a presumir, como a Bahamas, ainda um teutão rural, devorador de porco assado ou de cereais, com a correspondente estrutura psicológica. Em vez disso, estamos agora perante um tipo que eu uma vez, numa generalização ensaística, designei como “yuppie teutónico”. Este yuppie teutónico não deixa de apreciar as conquistas do nível de consumo e de socialização da sociedade capitalista pós-moderna. A Alemanha é uma das nações líderes do mercado mundial. Precisamente como consequência indirecta da Segunda Guerra Mundial e devido à intervenção dos Estados Unidos, foram garantidas à RFA uma prosperidade e uma posição de poder que no fundo constituem uma zombaria das bestialidades cometidas pelo nacional-socialismo. No entanto, devido à derrota na guerra, mantém-se um rancor tabuizado, dificilmente audível, um ressentimento contra os (ex-)ocupantes. Há quem alegue que os surtos de industrialização neste país só foram preparados através da fase transitória nacional-socialista (e, portanto, nesta forma do nacional-socialismo); pois a expansão do Estado social alemão, como pressuposto para os processos de individualização do pós-guerra, foi forçada e institucionalizada apenas pelo nazismo, sendo que qualquer ressentimento social se diluía na "comunidade nacional" alemã. Essa individualização pós-moderna – hoje urgentemente necessária para o sistema capitalista, na sequência da globalização e, mais recentemente, também da crescente exoneração do Estado social relativamente às respectivas prestações – na Alemanha assenta no fundo sobre as montanhas de cadáveres de seis milhões de judeus assassinados.

Esta relação, mesmo não sendo tematizada, reflecte-se em todas as reacções alemãs ao desenvolvimento capitalista mundial. Numa espécie de amor-ódio, formula-se assim um "apoio total", como disse Rita Süßmuth durante a Guerra do Golfo no início dos anos 90 em relação a Israel e o repetem actualmente os políticos alemães em relação aos Estados Unidos. Concordo com Holger Schatz quando ele observa que uma nova consciência nacional na RFA só pode afirmar-se através deste apoio incondicional aos Estados Unidos, e precisamente num tempo em que o tradicional entendimento da nação é corroído pelo processo da globalização. Acontece que o anti-semitismo secundário alemão hoje, apesar de todas as discussões sobre memoriais, dias e discursos comemorativos, se revela precisamente no facto de que, sob a pressão da globalização, continua a ser invocada a permanente "modernização" da sociedade, necessariamente da sociedade tal como ela se tornou e, nesta frenética acentuação do "novo", a consciência das vítimas passa para segundo plano. No fundo, pretende-se não ter mais nada a ver com a histórica culpa alemã, procedendo-se já apenas a abluções rituais.

A situação é assim paradoxal em muitos aspectos e os sentimentos são marcadamente confusos. Por tudo isso, a interpretação simples, que identifica a sociedade dos criminosos alemães com os terroristas islâmicos na base de um ser de pulsão de morte heideggeriano, é mais do que reduzida. A posição da Bahamas dificilmente suporta as contradições e ambivalências e, mesmo quando elas são nomeadas, surge em última instância a imagem de um teutão rural mortinho por se suicidar, permanecendo portanto a análise na lógica da identidade. Inversamente, no entanto, é igualmente problemático que (como parece ser, em parte, o caso na posição da "Krisis") se refira apenas a nova situação histórica e se escondam em grande medida as motivações também historicamente condicionadas.

Se os judeus são considerados, de acordo com os estereótipos tradicionais, como "super-homens hipercivilizados", já na tradição colonial, por exemplo, os "negros" passam por "sub-humanos subdesenvolvidos". Na situação actual na RFA há quem se veja simultaneamente numa posição de super-homem e numa posição sub-humana. Esta é a base para a identificação com os E.U.A., bem como para um chauvinismo do bem-estar com ela relacionado: a partir do temor de que agora o terror da globalização se repercuta nos centros e possivelmente chegue mesmo “até nós”. Daí também resulta a simpatia encenada de maneira kitsch para com as vítimas do terror nos E.U.A. Neste contexto, porém, é extremamente apropriada uma referência aos que estão a morrer de fome no Terceiro Mundo e a outras vítimas da modernização; pois não se trata de uma "compensação", mas de uma crítica a uma maneira de sentir ocidental impregnada pelo chauvinismo do bem-estar.

Uma consequência da mesquinha posição alemã de se manter de fora, que apenas gostaria de esquecer a violência da crise, é o movimento pela paz em constituição. Neste contexto, poderiam os receios chauvinistas pelo nível de vida alcançado e um anti-imperialismo vulgar de recorte anti-americano constituir uma amálgama paradoxal, onde o medo de Bin Laden e o dos E.U.A. seriam aproximadamente do mesmo tamanho, porque se teme que os ataques militares dos E.U.A. provoquem novos actos terror, possivelmente também por cá. Nessa medida, é de criticar e combater arduamente tal movimento de paz, sem com isso (numa atitude de mera crítica aparente do mesmo) fazer coro com a histérica campanha belicista à moda da Bahamas, a qual se limita a aquiescer abstractamente ao geral e abstracto do capitalismo, com a sua invocação quase religiosa do “apoio total” a Israel, maquilhada de crítica do valor e de anti-alemã, alinhando-se em princípio com afirmações do género das de Rita Süßmuth. Poderia, pelo contrário, apoiar-se um movimento pela paz que decididamente se oponha às tendências anti-semitas e reflicta sobre esse problema.

Na realidade, sobretudo Israel é que não ganharia nada com uma cruzada militar contra "os" países islâmicos com uma justificação abstractamente reducionista. Mesmo Sharon dificilmente se empenharia a sério em prol de semelhante atitude que seria suicida para Israel. É difícil atrever-se a considerar tal coisa, mas pensando nisso quase se poderia considerar que a Bahamas, com a sua atitude na aparência absolutamente pró-israelita e a sua denúncia desmedida, na realidade está a desejar a peste a Israel, como seria o caso de uma bomba atómica transportada por um bombista suicida islâmico. Essa seria a consequência óbvia da estratégia da Bahamas, tal como ela se apresenta perante o pano de fundo de uma "culturalização do social" tão altamente problemática.

Neste contexto, parece-me também despropositada a acusação do autor da Bahamas Horst Pankow contra Robert Kurz, de que este, com a sua concepção de capitalismo antes de mais sistémica, que evita as personalizações, já não poderia identificar quaisquer culpados, quer dizer, “o Islão" ou os terroristas islâmicos (enquanto Gerhard Scheit ergueu entretanto absurdamente a censura exactamente oposta, de uma personalização do capitalismo, enquanto falta de tomada de posição a favor dos E.U.A.). Aqui ocorre uma projecção, ou seja, uma equiparação, mais uma vez na lógica da identidade, da Alemanha nazi com os países islâmicos.

Atitudes anti-americanas e anti-semitas poderão de futuro surgir tanto mais, quanto mais fortemente se degradar a situação económica e se reduzir correspondentemente o nível de bem-estar; isto apesar de o movimento antiglobalização, em parte coincidente com o movimento pela paz, se esforçar actualmente por evitar um anti-americanismo nu e cru, em consequência dos ataques terroristas. Mas também é de esperar, simultaneamente, que os racismos de todas as cores cresçam e que uma "barbárie multicultural" (R. Kurz), que a "cultura dominante" (B. Rommelspacher) pretende controlar através de requisitos de segurança reforçados, ganhe ainda mais relevo do que tem tido até à data. Uma esquerda que, como a Bahamas, joga uma contra a outra a luta contra o anti-semitismo e a luta contra o racismo de um modo banalmente pró-ocidental não passa de parte inconsciente desta bárbara constelação.

4.

Uma análise não prisioneira da lógica da identidade não pode deixar de notar que o anti-semitismo nos países árabes e islâmicos tem um carácter diferente do ocorrido no Ocidente e, sobretudo, na Alemanha. Os atentados suicidas em Israel, tal como nos E.U.A., em contraste com a aniquilação sistemática, selectiva e maciça dos judeus pelos nazis, inscrevem-se "apenas" numa tradição belicista, própria das guerras convencionais em geral, embora sob uma nova forma pós-moderna; afinal, no caso dos autores dos atentados, trata-se de vidas híbridas extremamente marcadas pelo Ocidente ao nível técnico da globalização. Também aqui teriam de ser analisadas à lupa a história e a constelação de relacionamento específicas: países árabes – Israel – Estados Unidos e, como pano de fundo, também a Alemanha.

É verdade que desde o início do século XX também no espaço islâmico houve equiparações judeu = dinheiro. No entanto é de supor que, mesmo no fundamentalismo islâmico, não há qualquer biologização ou ontologização em geral de carácter anti-semita, como no nacional-socialismo. Se um crente do mosaísmo se convertesse ao islamismo radical, a sua origem judaica já não teria qualquer importância. Na Bahamas, mas também em Matthias Küntzel, proclama-se permanentemente uma semelhança entre o islamismo e o nazismo que acaba por ir dar à identidade – e a intenção já é mesmo essa.

Estes atentados suicidas também são novas formas pós-modernas de violência e de barbárie, que não existiram no passado (que eu saiba com a única excepção do Japão) e que hoje se baseiam numa “abnegação”, no sentido de Hannah Arendt, que ultrapassa de longe fenómenos semelhantes do período entre as duas guerras. Nos países árabes este fenómeno não existia até um passado recente. O anseio alemão pelo suicídio no nacional-socialismo era outra coisa; era transmitido mais pelo colectivo e não por processos de individualização. Vidas híbridas, que cometem voluntariamente atentados suicidas com uma ideologia neo-religiosa quase exposta e, portanto, com uma direcção de impacto de fundamentalismo fanático, nessa altura ainda nem sequer eram concebíveis.

5.

Em tais análises dos factos deve ser tido em conta por princípio que é impossível ao teórico social crítico, ao contrário do cientista positivista (da natureza), comportar-se no sentido de um sujeito omnipotente e omnisciente perante o objecto, uma vez que se reconhece sempre como parte da sociedade por ele investigada. Isso também significa que nós, na medida em que crescemos como alemães e pertencemos à "cultura dominante" alemã, devemos ter em conta a qualidade especial do Holocausto no contexto alemão com as suas consequências até ao dia de hoje, incluindo a transferência inter-geracional.

Neste contexto, aliás, é problemático, mesmo que seja acertado num metaplano, considerar o extremismo (alemão) de direita, notoriamente vindo do centro da sociedade, como o "império do mal" pertencente à própria sociedade democrática, tal como o fundamentalismo islâmico à escala mundial. Deste modo, o específico e o particular no contexto da civilização capitalista moderna não é tido em conta, nem a própria participação na "cultura dominante" alemã, uma vez que esta é afogada no geral e abstracto não especificado.

Mas, tal como é verdade que um teórico social nunca pode encontrar-se fora da sociedade e tem de localizar a sua posição em cada caso num contexto histórico e cultural específico, tão pouco pode a crítica radical da sociedade instalar-se comodamente num juízo desse tipo. Precisamente porque a teoria tem sempre um "núcleo temporal" (Horkheimer/Adorno), a sociedade é um processo e, neste contexto, existe uma dialéctica sujeito-objecto, uma dialéctica entre o indivíduo e a sociedade, em que por princípio a sociedade prevalece, precisamente por isso é ilícito um modo de proceder coisificado e estático, que ahistoricamente cimente e ontologize em termos lógicos uma relação sujeito-objecto pensada como permanecendo desde sempre igual a si mesma.

Ora é precisamente uma situação de tipo novo que pode exigir que se pense esta relação entre sujeito e objecto, entre a sociedade e o indivíduo em termos inovadores. Assim, na fase pós-fordista dos últimos anos afigura-se indicado que se defina de novo aquilo que "mantém, no seu íntimo, a coesão" do mundo capitalista e da sociedade, a saber, o valor como "facto fundamental" social (Adorno), ou seja, passar do antigo "marxismo da mais-valia" para a crítica fundamental do valor no sentido da crítica do trabalho. Isto significa que temos a tarefa de evadir-nos do enredamento na objectividade da forma social. Nessa medida somos forçados, apesar do conhecimento deste estar-preso-dentro, a lutar pelo conceito que supere esse estar-dentro, tendo presente o estádio de desenvolvimento histórico alcançado. Este é talvez um distintivo da elaboração da teoria crítica em geral, que de certa forma até já era válido para o antigo movimento operário.

Estar consciente desse enredamento e simultaneamente ter de empreender a tentativa de se evadir dele é, de resto, característico mesmo para posições anti-alemãs que ontologizam a relação burguesa sujeito-objecto, como por exemplo Gerhard Scheit; tudo isso ocorre, no entanto, numa viragem afirmativa, pois ele julga-se "de fora" e de certa maneira "livre de perigo", ao colocar-se sem problemas do lado do universalistamente geral e abstracto, no contexto de uma crítica truncada do capitalismo. Pensando deste modo consequentemente até ao fim, não existiria qualquer saída da ontologia burguesa sujeito-objecto. Estamos enredados, enredados, enredados... teria de ser o refrão até ao infinito.

A ser assim, porém, então pergunta-se como se pode falar criticamente do valor em geral, enquanto "sujeito automático" e estrutura básica objectiva. É que, se permanecermos na ontologia burguesa sujeito-objecto, com isso se absolutiza de modo automático e reducionista um pensar na perspectiva imanente duma tradição no fundo da sociologia da ciência, que tem de contestar qualquer possibilidade de reconhecer uma verdade objectiva.

Ainda assim, mesmo no reconhecimento deste contexto, continuamos a ser parte integrante da sociedade que estamos a analisar e não saímos da subjectividade (forma de sujeito). Não nos resta outra alternativa senão, por um lado, pensar a nossa vida como sujeitos em cada caso determinados histórica, cultural, económica e psicossocialmente, e isso significa no contexto aqui tratado reflectir também sobre mecanismos de defesa, que vêm de par com um anti-semitismo hoje virulento em novos moldes; mas, por outro lado, trata-se também de pensar o contexto objectivo de totalidade sobrejacente, em que se encontra inserido o nosso estado de alma [Befindlichkeit] subjectivo. Não podemos deixar de suportar a tensão entre estes dois momentos.

6.

Neste contexto, é necessário estabelecer uma distinção analítica fundamental entre o plano ideológico e os desenvolvimentos objectivos, o que até agora tem sido geralmente negligenciado no contexto da "Krisis” em favor da objectividade. A dimensão ideológica, que inclui sempre excrescências históricas, não se resume a mecanismos e desenvolvimentos objectivos. As manifestações ideológicas podem apresentar um atraso relativamente ao processo objectivo.

Por outro lado, a ideologia no entanto nunca se resume a excrescências históricas e está também sempre acoplada a processos objectivos. Mesmo que a própria Bahamas admita entretanto que a mudança social e as estruturas objectivas também devem ser tidas em conta, estas últimas têm afinal, para ela, um carácter meramente acidental, enquanto o plano ideológico é o decisivo. Falha a mediação entre a dimensão ideológica e a dimensão objectiva. Assim, por exemplo, no que respeita a estruturas afectivas e de consciência, ainda se continua a ver na actual RFA os alemães da Segunda Guerra Mundial militaristas em busca do suicídio e de ideologia rural e, apesar de todo o conhecimento adquirido de que a religião há muito se tornou obsoleta, tem de se efectuar hoje, como antigamente nos tempos do iluminismo, uma crítica clássica da religião nos moldes burgueses e do velho marxismo, paradoxalmente reajustada no sentido de uma "fé em que não se acredita" (na expressão de Uli Krug tendo em vista sobretudo o islamismo).

7.

Por conseguinte, não se podem equiparar sumariamente na lógica da identidade planos e dimensões históricos, culturais e ideológicos distintos, o geral, o especial, o específico e o particular. Nada nos poupa à fadiga dos planos, especialmente na totalidade fragmentada da pós-modernidade. Por outro lado, porém, na reflexão estas diferenciações têm de ser vistas sem falta como ligadas entre si por um laço social mundial, o valor, que ao mesmo tempo se torna frágil na era da globalização, precisamente devido à sua definitiva implantação social mundial.

É assim difícil de ignorar que uma crítica truncada do capitalismo feita pelos adversários da globalização e próxima dos estereótipos anti-semitas corresponde de certa maneira aos ataques terroristas, e que também se pode considerar que estes últimos representam uma escalada da primeira. Estas conexões involuntárias resultam precisamente da globalização que implica que cada país já não seja por si, mas que tenhamos precisamente um one world. A este respeito tem razão Benjamin Barber, quando afirma que o McDonald e a Jihad são mutuamente interdependentes. Isto aplica-se, igualmente, à insistência pós-moderna na identidade e à perspectiva desconstrutivista que se esforça por tornar implausível qualquer noção de identidade. Por exemplo, a política queer e os talibãs têm mais a ver entre si do que gostariam. Também sob esse ponto de vista é totalmente errado pensar que se pode tomar posição apenas pelo lado reaccionário de um fundamentalismo anti-ocidental, ou pelo lado dos valores abstractos universalistas ocidentais, na forma do degustar de uma libertinagem a meu ver meramente superficial, que tem muito a ver com “dessublimação repressiva” e tem pouco a ver com emancipação. Nesta medida, na verdade, a sociedade do prazer e o islamismo também estão bem uma para o outro. Uma posição radicalmente crítica deve demonstrar essa conexão interna, assumir o direito a uma negação radical (justamente não abstracta) da situação mundial e deste modo rejeitar ambas as opções mutuamente condicionadas.

Assim não se pode, de modo algum, numa redução da crítica da ideologia, chamar apenas a atenção para os perigos historicamente efectivos, nomeadamente na Alemanha, de uma crítica do capitalismo compatível com o anti-semitismo feita pelos adversários da globalização, que não concebem o valor como uma relação, sem ao mesmo tempo promover uma análise dos desenvolvimentos estruturais da sociedade mundial e uma crítica às catástrofes sociais da globalização capitalista. Uma posição “quebradora de tabus” no interior da esquerda segundo o modelo da Bahamas, afirmativa da globalização e da civilização capitalistas do ponto de vista de uma crítica social distorcida, representa assim ceterum censeo ela própria uma crítica do capitalismo truncada que procede na lógica da identidade.

Se renunciarmos a este procedimento regido pela lógica da identidade, também teremos de ver que nesta era da globalização em lado nenhum o Estado organiza o Holocausto como no nacional-socialismo, mas que os Estados ou Uniões de Estados, por um lado, precisamente por exigências da globalização, procedem contra a escumalha anti-semita assassina, enquanto por outro lado, simultaneamente, cedem e até entregam a função afirmativa do anti-semitismo e da "xenofobia" em geral, por assim dizer num processo de outsourcing, ao "povo" (no modo de dizer tradicional) ou à "sociedade civil" (no modo de dizer pós-moderno).

A este propósito, é completamente despropositada a tese da "guerra das culturas" de Huntington, que desliga o problema da globalização do plano económico material. Uma contraposição de esquerda radical relativamente às falsas alternativas dentro do processo de globalização tem, pelo contrário, de tematizar a dimensão material, e assim também a questão social e (sem abdicar da crítica da ideologia) trazê-las de volta à ribalta. Quando até do lado do governo, num intuito de cosmética verbal, se formula como objectivo "mais justiça à escala mundial", tanto mais o plano social deve ser ocupado pela crítica radical. Neste contexto, não em último lugar, tem a sua importância a abordagem da teoria da crise, a saber, a noção de que hoje se tornou manifesta a destruição da socialização do valor pelo próprio valor. O poder destrutivo do terror corresponde ao facto de o trabalho se tornar obsoleto, aos crashs financeiros etc. Acentuando, a formulação também poderia ser esta: os autores islamistas dos atentados, na sua vida híbrida pós-moderna, com a sua competência tecnológica etc., são o valor; o valor na sua auto-destruição.

8.

Os direitos humanos têm de ser considerados como critério da crítica da civilização. Por muito que seja verdade que os piores crimes foram cometidos em nome dos direitos humanos, também é verdade que os próprios direitos humanos continuam a ser o critério para designar tais crimes como aquilo que são. Caso contrário, não haveria qualquer critério geral para denunciar efectivamente os abusos em geral. O sentimento de que a tortura, o assassinato, o homicídio etc. não se podem justificar, corresponde no fundo a normas de direitos humanos emocionalmente sedimentadas. Não se pode regredir para trás dos direitos humanos, nem se pode excluir a sua crítica como metacrítica; pelo contrário, actualmente, a tensão entre estas duas exigências antagónicas tem de ser suportada.

No entanto, isso também significa que é igualmente impossível, com o gestus de crítica radical, voltar a colocar-se de novo ao lado do iluminismo que caminha sobre cadáveres. O Ocidente e os próprios E.U.A. são bárbaros, diariamente são violadas normas humanas básicas. É o que se vê, e não só nas modernas guerras e discriminações racistas nestas sociedades até hoje; também não basta lançar um olhar às prisões e psiquiatrias nos E.U.A. ou incomodar-se com a pena de morte aí aplicada principalmente aos "negros" para o reconhecer. A mesma barbárie se encontra hoje na Alemanha no quotidiano prisional, na prática da deportação, no tratamento dos que caíram fora. A brutalidade e a mesquinhez endodemocráticas são escamoteadas no patriotismo, tanto oficial como de esquerda, do Ocidente e dos E.U.A.

Assim, o lema da Jungle World "Deus abençoe a liberdade de expressão", emitido contra os críticos da sua propaganda belicista, não passa de ideologia da tolerância burguesa repressiva, com a qual se festeja a brutalidade da potência mundial como fonte dos valores civilizacionais ocidentais. Quase se ouve tocar os chocalhos da vaca leiteira lilás, quando se acredita piamente em frases democratas ocas à maneira da publicidade e se celebra um ritual de liberdade kitsch. Esta ideologia da tolerância coloca-se desde sempre de modo positivista ao lado daquilo que "é o caso" e escamoteia à partida o que se pode conseguir com uma intenção de crítica radical.

O multiculturalismo endodemocrático, aliás, não representa qualquer ataque à tolerância repressiva do universalismo abstracto do iluminismo e dos valores ocidentais, antes pelo contrário, precisamente na era do "colapso da modernização", ele enquadra-se plenamente na sua tradição. Porque agora não é postulada a mera igualdade entre iguais mas, em paradoxal inversão, a igualdade na diferença, no contexto com os "outros" até aqui postos como inferiores. Isto aplica-se igualmente ao conceito de "identidades híbridas" com recepção até aqui amplamente positiva, onde é enaltecido o indivíduo capaz de equilibrar e de traduzir qualquer conteúdo, em contraste com o clássico sujeito unitário do iluminismo. Ironicamente, são precisamente os bombistas suicidas que pertencem a este tipo.

9.

É de notar, não em último lugar, que em todo o debate sobre o terrorismo as mulheres mais uma vez se tornam um signo no mundo ocidental. Invocam-se as mulheres oprimidas dos talibãs para fazer propaganda belicista com a desumanidade dos "bárbaros". As mulheres são a moeda com que se especula. O lado belicista ocidental, incluindo os seus apoiantes de esquerda, às vezes até dá a impressão de que as bombas são lançadas sobre o Afeganistão precisamente para libertar as mulheres. Ora as mulheres têm menos direitos entre os aliados dos Estados Unidos da Aliança do Norte e entre os seus amigos da Arábia Saudita do que por exemplo no Irão. Podemos seguramente assumir que a situação das mulheres nos países islâmicos é indiferente ao Ocidente.

Procede-se como se os valores ocidentais já tivessem incluído sempre a libertação das mulheres, como se a sua construção histórica como "Outras", por definição diferentes, não pertencesse essencialmente à constituição dos direitos humanos, como seu reverso negativo. Sugere-se, sobretudo, que as relações hierárquicas de género deixaram de ser um problema hoje no Ocidente e estão fundamentalmente solucionadas, para a partir daí escamotear como a assimetria de género nos tempos pós-modernos se apresenta de forma nova, provocando problemas e dilemas de género de tipo novo. O Ocidente mais uma vez se estiliza indevidamente como modelo para todo o mundo.

Para lá do discurso sobre as oportunidades para as mulheres que surgiriam na esteira da globalização, a verdade é que desta forma por todo mundo uma grande massa de mulheres foi responsabilizada não só primariamente pela reprodução, mas entretanto também igualmente pelo “dinheiro e (sobre)vida" (Irmgard Schulz), sem possibilidade de assegurarem a sua existência e sem serem suplantadas as assimetrias socio-culturais de género. No patriarcado pós-moderno assim meramente asselvajado o homem deixa de funcionar como ganha-pão da família, e porventura até vive à custa das mulheres, tornando-se a relação de género cada vez mais sem compromisso, sem prejuízo de se manter a dominação masculina. Estas são as verdadeiras consequências da "libertação sexual" capitalista ocidental para a maior parte da população mundial no processo de decadência do capitalismo.

De modo tão ilusório como na "questão da mulher", neste contexto o Ocidente também é apresentado como ultra-aberto no que diz respeito ao comportamento sexual, à homossexualidade masculina e feminina etc. A tolerância superficial face aos trans-flexi pretende esconder o facto de que, mais do que permitir diferentes orientações sexuais, o objectivo é impor identidades compulsoriamente flexíveis compatíveis com a globalização e perfeitamente economificadas sem, por isso, suplantar a estrutura fundamental compulsivamente heterossexual. Os Talibãs bárbaros como inimigos das mulheres e adversários dos "perversos" são assim transformados em mera superfície de projecção para poder esconder completamente, na celebração da civilidade burguesa, a relação básica de género inimiga das mulheres e compulsivamente heterossexual que serve de fundamento à sociedade burguesa.

Sobre isso ainda uma nota conclusiva quase metódica: nestas minhas teses falta um recurso sistemático à forma e desenvolvimento da relação de género na civilização normativa do capitalismo ocidental. Evitei isso, em primeiro lugar porque aqui não havia espaço para tal e, em segundo lugar, porque ainda há bastantes homens e também mulheres que, ao tematizar-se a não suplantada assimetria entre os sexos, baixam as persianas, de tal modo que a partir daí o texto seria lido apenas sob a perspectiva de um “aspecto particular”, ou nem sequer isso. Posso apenas, no que respeita ao desenvolvimento desta problemática, apontar para o meu próximo livro a publicar, que tem o título provisório "O mal-estar com as diferenças – Classe, género, ‘raça’ e individualização pós-moderna", em que será desenvolvida a matriz para as teses aqui formuladas. Em ligação com a crítica da lógica da identidade trata-se aí de, no conceito de relação de género (relação de dissociação-valor) como princípio fundamental de socialização, romper não obstante com a ideia de uma contradição principal e outra secundária, ou seja, de não derivar o racismo, o anti-semitismo e o sexismo uns dos outros e de os apresentar simultaneamente como mutuamente interligados através de todas as suas diferenças qualitativas, contextos particulares e constelações específicas.

Publicado em: Streifzüge 3/2001

Original Identitätslogik und Kapitalismuskritik in www.exit-online.org. Publicado no nº 3/2001 da revista Streifzüge, Viena. Tradução de Boaventura Antunes e Lumir Nahodil, 10/2009

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