Roswitha Scholz

 

 

A IMPORTÂNCIA DE ADORNO PARA O FEMINISMO HOJE

 

Retrospectiva e perspectiva de uma recepção contraditória

 

 

 

Neste artigo Roswitha Scholz mostra que na teoria feminista se manteve a capacidade de chegar a uma crítica da forma do patriarcado capitalista até à segunda metade da década de oitenta. Em vez disso passou-se para padrões de pensamento formais e sociologistas. Scholz esclarece aqui a importância de Adorno para a crítica da dissociação-valor, ainda que ele parta apenas da troca e não do valor (mais-valia) como princípio social fundamental, e muito menos eleve a relação hierárquica de género na configuração da dissociação-valor à posição de conceptualidade basilar da sociedade, tratando-a de modo meramente descritivo e como tal a criticando. Scholz também assume de Adorno para a crítica da dissociação-valor a rejeição de um pensamento restringido à lógica da identidade, o que significa além do mais que esta crítica tem de ter em conta as diferentes disparidades sociais. Enquanto isto pertence ao cerne da crítica da dissociação-valor, a partir das contradições da lógica da troca ou do valor só se consegue obter uma crítica da lógica da identidade quando muito à força. Assim, a crítica da dissociação-valor impulsiona para lá de si mesmo não só a Adorno, mas também a ela própria. Ela tem de pôr-se a si mesma em questão para fazer jus à sua essência íntima. Assim se põe em causa o iluminismo. Embora também a crítica da dissociação-valor em certo sentido assente ela própria no iluminismo, ela não exclui uma crítica radical do mesmo. Na crítica da dissociação-valor decide-se designadamente ir ao mesmo tempo radicalmente para lá do pensamento iluminista, mesmo até para lá da dialéctica negativa de Adorno, para manter em aberto a possibilidade – em primeiro lugar de modo apenas conceptual e abstracto – de futuras formas de pensar e de viver não capitalistas nem patriarcais. (Resumo na Revista EXIT! nº 10)

 

 

 

História da referência a Adorno no feminismo desde os anos setenta * Crítica da dissociação-valor e "Dialéctica do Iluminismo" * Crítica radical do iluminismo e teoria da dissociação-valor

 

 

Adorno não foi recebido de forma consequente, ou seja, sistemática e continuada pela elaboração teórica feminista nas últimas décadas, pelo contrário, foi recebido de forma díspar e ecléctica. Por isso vou começar por abordar a história da referência do feminismo a Adorno na Alemanha. Depois indicarei a ligação entre a crítica da dissociação-valor e as passagens correspondentes na Dialética do Iluminismo. Particularmente na terceira parte será finalmente discutida a necessidade da crítica do iluminismo no sentido da teoria da dissociação-valor. Trata-se aqui da crítica categorial das formas sociais modernas que foram afirmadas pelo iluminismo. Tal crítica do iluminismo entende-se para lá do recurso vitalista irracional à vida, à comunidade e a abstracções ideológicas semelhantes que constituem apenas o reverso da razão iluminista androcentricamente universalista. A possibilidade de tal crítica “com Adorno para além de Adorno” na realidade já existiu no interior da elaboração teórica feminista até à segunda metade da década de oitenta. No entanto essa mesma possibilidade, onde se recorria a Adorno, foi desperdiçada a favor de uma sociologia presa à forma vazia, no sentido do entendimento académico burguês da teoria – essa a minha tese.

 

Gostaria ainda de começar por dizer que o presente texto não refere nem recapitula em detalhe a teoria social de Adorno nem a teoria da dissociação-valor. O texto é, portanto, cheio de pressupostos. Quem exige um entendimento imediato, sem pressupostos, ou até um “relacionamento com a práxis” directo, no sentido de instruções para a acção, veio bater à porta errada. Aqui é preciso ter em consideração justamente que uma abordagem dialéctica como a da teoria da dissociação-valor não pode ser simplesmente reduzida a uma “sentença”, como disse uma vez Adorno referindo-se a Hegel (ver Adorno, 1993, p. 31). Acresce que a crítica da dissociação-valor e com ela a sua referência a Adorno já foram tratadas sob diversos aspectos em vários ensaios e livros anteriores, aos quais aqui recorro em parte. Outras determinações de pressupostos teóricos, por exemplo do estruturalismo de Althusser, serão referidas brevemente quando tal for necessário ao contexto da discussão.

 

 

História da referência a Adorno no feminismo desde os anos setenta

 

No feminismo de língua alemã apenas na segunda metade de década de oitenta se começou a recorrer mais a Adorno. Antes disso, no chamado debate sobre o trabalho doméstico, no padrão de entendimento económico nos estreitos limites do marxismo tradicional, o essencial estava na questão de saber se o trabalho doméstico cria valor, o que acabou por ter de ser negado. A relação assimétrica entre os sexos no capitalismo não pôde ser explicada e criticada analogamente à força de trabalho produtora de mais-valia. A mudança de direcção para Adorno/Horkheimer, particularmente para a Dialética do Iluminismo, deverá ter sido devida sobretudo à circunstância de então se ter tomado cada vez mais consciência da problemática ambiental e ecológica. Com os chamados novos movimentos sociais movimento ecológico, movimento das mulheres, movimento alternativo, movimento pela paz, movimento psico o problema do domínio da natureza e da alienação em sentido amplo, “a colonização do mundo da vida” na formulação de Habermas, entrou no foco da crítica social, que deu que falar particularmente nas relações amplamente desenvolvidas no Estado social garantindo direitos de participação do “povo trabalhador”. No entanto, a crítica simplificadora da técnica e da sociedade também trouxe consigo, em partes do movimento das mulheres, o propagar de uma nova feminilidade. Mulheres e natureza (frequentemente equiparadas) deveriam de algum modo ser emancipadas, a fim de reencontrar uma relação com a natureza supostamente original. Regressou alegremente uma falsa imediatidade. Sobretudo depois de Chernobyl, irrompeu uma nova maternalidade-feminilidade (mães contra a energia nuclear etc.).

 

Contra esta ideologização, em parte biologista, ergueu-se a resistência das feministas orientadas pela teoria crítica, que só então começaram a constituir-se como posição no verdadeiro sentido. Nessa época surgiram muitos trabalhos e colectâneas que tinham por tema racionalidade, domínio da natureza, sensibilidade e feminilidade, pretendendo no entanto opor-se àquelas tendências toscas de uma nova feminilidade na sua imediatidade falsamente naturalista e virando-se em protesto contra elas. Seria de mencionar aqui, por exemplo, Heidemarie Bennent, com a sua investigação histórico-filosófica (de resto excelente) sobre a dissociação do feminino na filosofia, onde ela recorreu à Dialética do Iluminismo e assim argumentou, com Horkheimer e Adorno, que nós somos descendentes do iluminismo para o bem e para o mal e que uma rejeição global do mesmo desembocaria na barbárie (Bennent, 1985).

 

Até bem dentro da década de noventa surgiram colecções de textos com títulos como Rationalität und sinnliche Vernunft [Racionalidade e razão sensível] (Kulke 1988), Zwielicht der Vernunft [O crepúsculo da razão] (Kulke/Scheiche 1992), Vermittelte Weiblichkeit [Feminilidade arranjada] (Scheich 1996), Zum Problem identitätslogischer Konstruktionen von “Natur” und “Geschlecht” [Sobre o problema das construções da “natureza” e do “sexo” na lógica da identidade] (Gransee 1999). Estas referências devem ser entendidas como meramente exemplificativas, sem pretenderem constituir um panorama exaustivo. Acresce, de resto, que já na década de setenta Silvia Bovenschen, por exemplo, tinha procurado destacar o significado da caça às bruxas no sentido da Dialética do Iluminismo, à maneira feminista e de um modo que não se ficava pela falsa imediatidade (Bovenschen 1977). Não pode deixar de ser mencionado também o seu trabalho sobre a “feminilidade imaginada”, em que esta é posta a descoberto com os meios da teoria crítica, ainda antes de todas as fantasias e modelos de feminismo à moda do pós-estruturalismo, negando-se as ideias de uma “cultura feminista” no movimento das mulheres como estando elas mesmas presas a tais fantasias tradicionais (Bovenschen 1979).

 

Neste contexto, no entanto, desde a década  de oitenta também Horkheimer e Adorno ficaram sob a mira da crítica: eram acusados de se manterem eles mesmos presos aos estereótipos tradicionais de género e respectivos dualismos, na Dialética do Iluminismo bem como noutros trabalhos. Consequentemente importava procurar caminhos para fugir à armadilha da “dupla sexualidade”. Já aqui se revelava uma tendência que abria o flanco ao desconstrutivismo. Criticava-se a Horkheimer e a Adorno não verem as mulheres como “resistentes”; nessa época em geral falava-se muito do facto de as mulheres não serem apenas vítimas, mas também resistentes, bem como cúmplices, testemunhas e “também-sujeitos”, aos quais teria de ser prestada atenção igualmente neste sentido. Ainda tendo por fundo a teoria crítica, pretendia-se agora viabilizar uma nova elaboração teórica feminista que renunciasse aos estereótipos de género, mas ainda assim tivesse em conta as estruturas sociais para o mal-estar dos géneros.

 

No início da recepção de Adorno ainda havia perfeitamente ideias sobre o contexto da forma social da modernidade, no sentido da crítica do fetiche. Assim escreve Ursula Beer, tendo por fundo a teoria crítica: “O que falhou foi a prova teórica do desejo de que o trabalho doméstico pudesse constituir-se como 'criador de valor'. O trabalho doméstico não o é no sentido de valor monetário ou valor de troca, como objecto de análise da forma do valor. A questão levantada por Becker-Schmidt e suas colaboradoras da 'determinação da forma' da família (noutras circunstâncias tematizada também por Ilona Ostner nos anos setenta – 1978) também por isso me parecia abrir categorialmente novas possibilidades, no entanto dentro de uma diferente colocação da questão, qual seja a da importância do trabalho gratuito no conjunto da sociedade. Na discussão anglo-americana, onde o debate sobre o trabalho doméstico teve mais força, a questão da determinação da forma da família nunca foi posta assim” (Beer 1987, p. 191).

 

Depois, no fim dos anos oitenta, Beer trocou repentinamente a referência a Adorno pela referência a Althusser, partindo da crítica à fixação de Adorno na troca de mercadorias: “Adorno vê o princípio constituinte do contexto da sociedade capitalista não nas produções materiais, fundadas na relação entre  trabalho assalariado e capital, mas na troca, na esfera da circulação. As lógicas específicas de desenvolvimento que não são as lógicas da troca de mercadorias não podem ser tidas em consideração com esta concepção. Esta constatação apresenta alta relevância para os estudos de género, pois a desigualdade económica na relação de género assenta numa tendencial exclusão das mulheres da troca de mercadorias, no sentido da valorização da sua força de trabalho na forma do valor. Também as produções (re-)generativas não podem ser subsumidas no conceito de troca, acentuando o postulado do materialismo feminista, em contrapartida, o carácter produtivo material da actividade de dar à luz das mulheres” (Beer 1990, p. 79). A partir desta crítica segue-se então a referência a Althusser: “Seria de pensar se a ideia de Althusser de relações de posição e de função não poderia ser também agarrada em ligação com o ´modo de povoamento' e na sua interdependência com o 'modo económico'… A tese de uma determinação em última instância pela economia, que segundo a interpretação althusseriana de Marx tem em consideração a independência ou relativa autonomia dos chamados fenómenos da superstrutura, pode ser talvez traduzida num conceito reformulado de base: … no sentido de que a 'estrutura dominante' do modo económico e de povoamento, na sua unidade e diferença, exerce ampla influência na estruturação da ordem de toda a sociedade” (Beer 1990, p. 102).

 

Ora pode efectivamente constatar-se em Adorno um vulgar reducionismo à troca. A relação de fetiche capitalista, o contexto apriorístico de “trabalho abstracto” e “sujeito automático” da valorização, só insuficientemente é agarrado no conceito de troca críptico e contraditório de Adorno. Mas, ao contrário do marxismo tradicional, a sua teoria, apesar da redução à troca, ainda acede à crítica da forma do valor e do seu carácter fetichista. Ora, em Beer, a crítica a Adorno toma uma direcção completamente errada. A fixação na troca, em termos de ideologia da circulação, não é resolvida criticamente no sentido de uma nova determinação da relação de “trabalho abstracto” e relação de género, mas sim afastada completamente da determinação da forma social. O entendimento tradicional de “trabalho assalariado e capital”, estruturalistamente reformulado com Althusser, não reconhece que não é a relação de classe que constitui imediatamente a razão última de um “princípio constituinte do contexto”, sendo pelo contrário a lógica da valorização e a sua dissociação sexual que é “constituída” pelo fetiche do capital sobrejacente às classes. Uma crítica da forma, no sentido de crítica do fetiche, que tivesse conseguido evidenciar o carácter androcêntrico das categorias capitalistas fundamentais, com isso estaria a afastar-se do pano de fundo de um postulado de “materialismo” feminista, que tem um entendimento da produção nos termos do materialismo ou feminismo vulgar construído sobre a “capacidade de dar à luz” e assim ao mesmo tempo volta a abrir as portas a hipóteses antopológicas biologísticas.

 

Por outro lado, evidencia-se aqui em Beer, com a referência a Althusser como estação intermédia (“sobredeterminação” por factores “culturais”, entre outros, da economia do capital, tradicionalmente entendida “em última instância” na sociologia das classes), a transição teórica para um feminismo da cultura, que deveria tornar-se hegemónico desde os anos noventa na figura do desconstrutivismo. Assim desaparece em grande parte do foco da reflexão teórica a relação de capital como tal, com as suas categorias fundamentais, também e justamente no feminismo virado desconstrutivista, que perde o aguilhão crítico. Apenas mais recentemente, sob a pressão da crise, foram feitos esforços – a meu ver problemáticos, de curto alcance – para juntar crítica do capitalismo e desconstrução no chamado feminismo queer; obviamente por maioria de razão fora de qualquer tipo de reflexão sobre o contexto da forma capitalista basilar no sentido em que aqui falamos.

 

O recurso crítico sobretudo à Dialética do Iluminismo, o mais tardar desde os anos noventa, tornou-se afinal numa superficial racionalidade de género, o que também trouxe consigo o abandono definitivo do problema da forma no sentido do conteúdo e das categorias, a que nos anos oitenta inicialmente ainda tinha sido prestada atenção até certo ponto. Já desde os anos oitenta que se pretendia que o sexo fosse determinado como categoria social estrutural, de modo meramente sociologista, em analogia com a classe, ainda que inicialmente continuando também acoplado centralmente a um conceito de forma. Daí resultou, sobretudo nos anos noventa, aquela sociologia (feminista) presa à forma vazia mencionada no início, em que desempenhou um papel importante a transição para a “relacionalidade” como verdadeiro princípio do conhecimento, no fundo um ponto de vista de lógica formal.

 

Apenas num modus teórico assim entendido deveriam agora ser reforçadas as estruturas objectivas e uma visão da teoria social que nas destacadas teorias pós-estruturalistas do feminismo (por exemplo, em J. Butler) apenas deficientemente seriam tidas em consideração, teorias cuja concepção como tal, no entanto, apresentava intersecções com Adorno relativamente à crítica da identidade. Não só a elaboração teórica de Beer, da qual de resto nos anos noventa já pouco se ouvia falar, provavelmente por causa da sua orientação (de modo biologisticamente vulgar) materialista (nas concepções pós-estruturalistas o recurso à “capacidade de dar à luz” era rejeitado, com toda a razão), mas também as abordagens das teóricas Becker Schmidt/Knapp, que até hoje recorrem a Adorno, se baseiam pelo menos em parte num fundamento althusseriano não assumido, no sentido da “relativa autonomia dos chamados fenómenos da superstrutura”. A questão da forma do valor, como forma de reprodução do capital, não é aqui de facto completamente suprimida, mas passa muito para segundo plano.

 

Quase fica a impressão de que justamente nos anos noventa pós-socialistas se teria preparado um Adorno intacto e esterilizado, à maneira da sociologia académica, para poder escamotear amplamente a problemática da forma capitalista fundamental. Quando, por exemplo, Becker Schmidt/Knapp esclarecem o significado de “relacional” na sua concepção, torna-se claro que elas se rendem a um entendimento de Adorno deformado pelo althusserianismo: “Por um lado, as relações apresentam os elementos, os relata que entram em relação recíproca como quantidades numa equação. No nosso caso são mulheres e homens que são apreendidos como grupos de género. Por outro, trata-se de contextos no interior dos quais os grupos de género, se não são igualados, caem numa relação recíproca de valorização e desvalorização. As inter-relações entre os grupos de género têm múltiplas intersecções, por exemplo, relações de parentesco, de amor e cooperação ou condições económicas, culturais e políticas que decidem as oportunidades de apropriação e reconhecimento de homens e mulheres. Tais constelações de modo nenhum assentam nos mesmos princípios de ordenamento em todas as sociedades. Na comparação de culturas encontramos relações de igualdade e diferença, de simetria e assimetria, de equiparação e hierarquização, de inclusão e exclusão. Investigações históricas podem pôr a descoberto – no interior de um contexto cultural tradicional – modificações de época para época. Ou seja: a configuração das relações entre os sexos depende da história e da sociedade” (Becker Schmidt/Knapp 2000, p. 39).

 

Em oposição a isso já Adorno sabia que: “Um conceito de sociedade… seria crítico. Ultrapassaria a trivialidade de que tudo está relacionado com tudo. A má abstração de tal frase não só é um fraco produto do pensamento como constitui o cerne mau da sociedade em si: o cerne da troca na sociedade moderna” (Adorno 1995, p. 13). Mesmo se Adorno aqui mais uma vez apenas tematiza conceptualmente a troca e não chega ao contexto de dissociação-valor, ele pretende assim abordar o princípio formal da sociedade capitalista, sediado no plano categorial e não em contextos estruturais secundários da superfície (tudo depende de algum modo de tudo, sem que tenha sido determinado um conceito abrangente do todo). É justamente desta maneira redutora, no entanto, que Becker Schmidt/Knapp entendem por “determinação da forma” apenas “a configuração de um contexto estrutural social que se cristalizou historicamente sob determinadas condições de produção e reprodução” (2000, p. 155).

 

Estas descendentes da teoria crítica não só falham assim o contexto categorial da forma, como nelas quase não resta rasto de uma Dialética do Iluminismo no sentido de pôr em dúvida o iluminismo. Em vez disso, uma crítica ambivalente do iluminismo, num sentido de DIALÉCTICA do iluminismo segundo o qual o iluminismo também poderia ter levado a que se visse através do “contexto de ofuscamento”, é em última instância transportada para um pensamento positivista de lógica formal, que seria insuportável justamente para Adorno e Horkheimer. Racionalidade e irracionalidade não são vistas como as duas faces da mesma moeda de um todo inverdadeiro (nem aqui o lado irracional do movimento das mulheres dos anos oitenta é mediado no sentido da crítica da ideologia), pelo contrário, em vez disso as questões daí resultantes são resolvidas unilateralmente na racionalidade da lógica formal.

 

Tal procedimento marca assim, por exemplo, também as ideias de Knapp sobre interseccionalidade, isto é, sobre o contexto de “raça”, classe e género que tão pouco recorrem ao plano categorial da forma capitalista. Justamente neste sentido escreve de resto Frieder O. Wolf: “Também a recente crítica feminista, ecológica e anti-racista na tradição científica europeia, já não marcada pelo momento da pós-modernidade recentemente decorrido, não se vira mais em primeira linha de maneira romântica (ou seja, inimiga da teoria de modo niilista) em termos de 'crítica da cultura' contra essa 'cientificidade' a ser ultrapassada criticamente, pelo contrário, visa antes, na sua 'não-cientificidade', as distorções metódicas no histórico-empírico e na sua digestão da realidade” (Wolf 2011, p. 362). A crítica do conceito burguês de ciência subsequente a Adorno, bem presente no feminismo até à década de oitenta, é aqui considerada arrumada e ataca-se uma “maneira romântica” ou mesmo “inimiga da teoria” (com isto apenas a “ciência” do conceito de teoria de lógica formal positivista-burguesa seria “digna”). Wolf recomenda-nos aqui mais uma vez expressamente a leitura de Althusser.

 

A preterição do sujeito humanista em favor de uma lógica estrutural ocorreu aqui da parte de Althusser bizarramente no fim de contas já sempre em relação com um “ponto de vista de classe”/estrutura de classe que deveria determinar tudo de modo diferente, apesar de toda a “sobredeterminação”, isto é, da ocorrência também de outras contradições. Deste modo, porém, o sujeito humanista volta a ser introduzido pela porta das traseiras, como na verdade já acontecera nas auto-críticas de Althusser desde os anos setenta. A troca que aqui se torna visível entre o “ponto de vista” (sociológico, conduzido pelos interesses imanentes) e a “estrutura” como padrão fundamental encontra-se tradicionalmente já sempre no interior da ciência ou da teoria da ciência burguesa androcêntrica. Por isso mesmo se exige a uma teoria feminista a capacidade de distanciamento em relação a tal constelação, única forma de possibilitar uma ultrapassagem, no sentido de uma crítica do contexto da forma social basilar, tendo por pano de fundo a teoria da dissociação.

 

Horkheimer e Adorno oferecem entretanto, justamente na Dialética do Iluminismo, possibilidades de adesão a uma teoria da dissociação-valor céptica quanto ao iluminismo, para lá das afirmativas lógicas estruturais e idolatrias do sujeito. Para mostrar isso recorro às elaborações no meu texto Die Theorie der geschlechtlichen Abspaltung und die kritische Theorie Adornos /  A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno (Scholz, 2004).

 

Uma determinação fundamental da Dialética do Iluminismo exprime-se mordazmente na seguinte citação proeminente: “A humanidade teve de se submeter a terríveis provações até que se formasse o eu, o carácter idêntico, determinado e viril do homem, e toda infância ainda é de certa forma a repetição disso… Quem quiser vencer a provação não deve prestar ouvidos ao chamamento sedutor do irrecuperável e só o conseguirá se conseguir não ouvi-lo. Disso a civilização sempre cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores têm de olhar em frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que impele à distracção, eles têm que se encarniçar em sublimá-la num esforço suplementar. É assim que se tornam práticos” (Adorno, 1988, p. 50 sg.).

 

 

Crítica da dissociação-valor e "Dialéctica do Iluminismo"

 

Como é sabido, Horkheimer e Adorno remontam aqui até à antiguidade, recorrendo à Odisseia. Ulisses manda que o amarrem ao mastro para poder resistir ao canto das sereias. Considero esta regressão histórica de longo alcance problemática e leio a Dialética do Iluminismo mais no sentido de que ela se refere em primeiro lugar à história da constituição da sociedade capitalista moderna, em que a teoria de Marx está implicitamente associada à psicanálise. Sobre isso escreve Andrea Maihofer, a meu ver com razão: “Fenómenos que aparecem habitualmente independentes entre si, como a produção capitalista de mercadorias, a racionalidade instrumental, o domínio da natureza, a dominação patriarcal burguesa, a subjetividade ‘masculina’ etc., passam a ser vistos num conjunto estreito e integrado de formação e reprodução. Ao contrário do que se supõe frequentemente, isso não é pensado no sentido de um contexto de dedução monocausal simplesmente económica, segundo o qual tudo tem a ver com tudo, já que afinal tudo é a manifestação (funcional) do ‘uno’ da economia ” (Maihofer, 1995, p. 111).

 

O sujeito masculino dissocia os seus impulsos e sentimentos, tem de ser controlado e dominado. Há assim uma dialéctica entre dominação e submissão ou auto-submissão. A relação com a teoria da dissociação-valor é aqui evidente. A dissociação-valor torna-se visível, pelo menos esquematicamente, como princípio formal que atravessa a sociedade como um todo. Horkheimer e Adorno não se limitam aqui a reproduzir estereótipos sexuais, como Maihofer constata em todo o caso com razão, mas reconstroem um discurso sobre o género, cuja constituição expõem criticamente até certo ponto; também têm em consideração implicitamente o plano cultural-simbólico e compreendem o patriarcado capitalista como um modelo de civilização de modo nenhum redutível à economia. A subjectividade masculina e feminina, seja como for que possam ser vistas, são assim apresentadas como fragmentárias em si. No entanto Horkheimer e Adorno não chegam aqui à fundamental penetração e crítica da relação de dissociação-valor como seu núcleo constitutivo. As suas observações sobre a relação de género têm em primeira linha carácter descritivo.

 

Neste contexto é problemático que o princípio da troca seja considerado em Adorno como o princípio social fundamental da modernidade, e não o valor, o trabalho abstracto (e muito menos a dissociação-valor, como relação social de reprodução). A crítica da Dialética do Iluminismo deveria ter levado neste sentido, reformulada em termos de crítica da dissociação-valor e transferida para uma nova qualidade – e não no sentido da referência a Althusser, o qual, por um lado, reclama “produções materiais” in a feminist way, mas simultaneamente já não quer saber para nada justamente do valor nem das SUAS implicações de totalidade, por muito deficitária que ainda possa ser a reflexão sobre estas feita de forma androcêntrica. Para já não falar dos entendimentos quase puramente sociológico-relacionalistas à la Becker-Schmidt, aos quais é estranha por princípio a crítica fundamental do capitalismo.

 

Para Horkheimer e Adorno tratava-se na Dialética do Iluminismo, perante o nacional-socialismo, da questão de “descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (Adorno, 1998, p. 11). Como filhos do seu tempo,  Horkheimer/Adorno não podiam naturalmente ainda examinar os novos processos de barbarização na sequência do actual processo de decadência do capitalismo. Por isso responde, de facto para além de Adorno, o diagnóstico de um “asselvajamento do patriarcado” na pós-modernidade.

 

Horkheimer/Adorno vêem no entanto com cepticismo a actividade profissional da mulher, já no seu tempo em crescimento, e falam de uma “dissociação do amor” (Adorno, 1998, p. 129). Na perspectiva da crítica da dissociação-valor, contudo, a esfera dissociada da família não constitui qualquer refúgio, qualquer “alteridade” positiva, como ela surge em  Horkheimer/Adorno, mas é ela própria parte integrante imanente do patriarcado produtor de mercadorias.

 

A teoria da dissociação-valor não se tornou de modo nenhum irrelevante com as modificações históricas pós-modernas, como poderia parecer a um olhar superficial que as interpretasse em ligação com a imagem tradicional dos sexos. Aqui ela reivindica para si o juízo de Adorno, por ele formulado nas lições de introdução à sociologia, “de que, por um lado, o essencial é o interesse por leis do movimento da sociedade que expressam como se chegou à situação presente e qual a sua tendência. Além disso, que essas leis se modificam e valem apenas enquanto efectivamente aparecem. Por fim, como um terceiro passo, que a tarefa da sociologia consiste em, ou apreender a partir da essência mesmo essas discrepâncias entre essência e aparência…, ou ter efectivamente a coragem de abrir mão de conceitos de essência ou de leis gerais absolutamente incompatíveis com os fenómenos e também não passíveis de mediação dialéctica” (Adorno 1993, p. 46 sg.).

 

Ora que significa isso do ponto de vista da crítica da dissociação-valor, uma abordagem que Adorno não tinha disponível? Na perspectiva da teoria da dissociação-valor é decisivo insistir numa dialéctica entre essência e aparência no sentido de Adorno e não se deixar levar por factos empiricamente verificáveis, como a individuaização pós-moderna das mulheres agora “duplamente socializadas” (Becker-Schmidt), a um diagnóstico do fim do patriarcado ou a determinações da hierarquia de género apenas na lógica formal. Pelo contrário, é preciso continuar a determinar, na sua refracção histórica, a reprodução constitutiva (e não suplantada) da dissociação-valor sobrejacente como princípio formal da totalidade social. Esta por sua vez abrange de novo igualmente a dimensão material, a sócio-psicológica e a cultural-simbólica na figura do mesmo modo pós-modernamente desenvolvida, e assim também todos os domínios e planos da sociedade (cf. Scholz, 2005, Scholz, 2011). Correspondentemente as recentes modificações empíricas, por exemplo, da relação de género, elas próprias têm de ser entendidas a partir dos mecanismos e estruturas da dissociação-valor.

 

Com isto, sobretudo o desenvolvimento das forças produtivas e a dinâmica do mercado, que também resultam da dissociação-valor como princípio fundamental, minam os seus próprios pressupostos, pois têm por consequência que as mulheres se afastam de uma boa parte do seu papel tradicional e, na sequência dos processos de individualização, tomam consciência da dupla socialização já existente. Assim, por exemplo, na RFA desde os anos cinquenta que cada vez mais mulheres das classes médias se integraram no domínio profissional; graças, entre outras coisas, aos processos de racionalização do trabalho doméstico; há muito que as mulheres estão equiparadas aos homens em termos de habilitações; e pode verificar-se que até mesmo as mães têm actividade profissional; tornou-se possível o planeamento familiar graças aos meios contraceptivos etc. (cf. Beck, 1986). Em resumo, já há muito tempo que se mantém a tendência para a maior integração das mulheres na sociedade oficial (tradicionalmente conotada como masculina). No entanto na situação pós-moderna modificada as mulheres, ao contrário dos homens, continuam a ser como antes responsáveis pelas actividades de care e da lida da casa, ganham em média menos que os homens etc. Chegou-se agora apenas a uma modificação da estrutura da dissociação-valor: a  “dupla socialização” (Becker-Schmidt) adquire uma nova qualidade. As mulheres agora são “duplamente socializadas” já não  apenas objectivamente como antes, mas são-no sob as condições do patriarcado asselvajado com a agudização da crise; agora, mesmo de acordo com o modelo, elas já não estão vinculadas a uma vida de dona de casa e mãe em exclusividade. Mesmo à escala da globalização, elas são assim sobretudo administradoras da crise, seja cada vez mais em posições de poder na economia e na política, seja também no nível de miséria de grupos de auto-ajuda nos bairros de lata, frequentemente suportados por mulheres. As mulheres funcionam assim mais uma vez como “produto de limpeza e desinfecção”, como se pode ver já na tradição patriarcal (as mulheres são os melhores seres humanos) (Thürmer-Rohr, 1987), ainda que também na forma pós-moderna modificada, no sentido de um agora chamado work-life balance, que pode ser analisado deitando a mão às ciências sociais.

 

Em Horkheimer/Adorno a crítica da lógica da identidade está associada à crítica da lógica sexual: “O homem dominador recusa à mulher a honra de individualizá-la. A mulher tomada individualmente é, do ponto de vista social, um exemplar da espécie, um representante do seu sexo e é por isso que ela, na medida em que está inteiramente capturada pela lógica masculina, representa a natureza, o substracto de uma subsunção sem fim na Ideia, de uma submissão sem fim na realidade. A mulher enquanto ser pretensamente natural é produto da história que a desnatura” (Adorno, 1998, p. 132).

 

Para Horkheimer/Adorno a razão instrumental, a lógica da identidade culminou com a liquidação dos “outros” no nacional-socialismo. Eles apresentam aqui a lógica da identidade predominante fundamentalmente em ligação com o domínio da natureza e neste contexto com o princípio da troca. A crítica da dissociação-valor aproveita agora do pensamento de Adorno a própria crítica da lógica da identidade, ou seja, a crítica a um pensamento dedutivo que quer criar a ordem a partir de cima e pretende submeter o particular, o contingente, o diferente, o não inequívoco a uma lógica única. No meu ponto de vista, a forma de pensar da lógica da identidade não corresponde apenas à troca nem, mais precisamente, ao valor. Pois o decisivo não é simplesmente que o terceiro comum, abstraindo das qualidades, seja a força de trabalho na média social, ou o trabalho abstracto, que de certo modo está por trás da forma de equivalência, mas sim que esta, por sua vez, tenha ainda necessidade de excluir e de considerar inferior o que possui conotação feminina, isto é, a actividade doméstica, as coisas sensuais, afectivas, analiticamente intangíveis, diferentes e contraditórias.

 

Contudo, a dissociação do feminino de modo nenhum coincide com o não-idêntico em Adorno; em vez disso, ela representa o reverso obscuro do próprio valor. A dissociação do feminino EM GERAL torna-se uma pré-condição para que o mundo da vida, o cientificamente inapreensível, o contingente sejam desprezados e permaneçam na obscuridade nos domínios de conotação masculina da ciência, da economia e da política na modernidade. O que se tornou representativo foi um pensamento classificatório que não consegue ver a qualidade essencial, “a coisa em si”, e que não possui por isso a capacidade de perceber ou tolerar diferenças, rupturas, ambivalências etc.

 

Mas assim impõe-se a uma correspondente teoria da dissociação-valor não em último lugar que indique os seus próprios limites; este é o mais íntimo mandamento do seu modo de proceder. Neste contexto importa ainda chamar a atenção, bem no sentido de Adorno, para o facto de os indivíduos empíricos também não ficarem completamente absorvidos nas atribuições típicas do sexo, ainda que não lhes consigam escapar; também é preciso ver que a dissociação-valor não tem qualquer carácter transcultural, ainda que na sua dinâmica percorra todo o mundo e seja um processo histórico, isto é, ela vai tendo sucessivas faces diferentes nas fases historicamente diferentes da socialização da dissociação-valor. Na pós-modernidade mais uma vez muda de figura – como mostrei resumidamente – quando as relações tradicionais entre os sexos entram em erosão, o apoio institucional da família e da actividade profissional perde firmeza e se chega ao asselvajamento do patriarcado na sequência dos processos de globalização.

 

Inversamente registo também que os diferentes planos (por exemplo, os planos material, sócio-psicológico e cultural-simbólico) e domínios (público, privado etc.) não só estão irredutivelmente relacionados uns com os outros enquanto reais, mas também devem ser considerados simultaneamente na sua união objectiva, isto é, interna ao plano fundamental da dissociação-valor enquanto totalidade, a partir da qual a sociedade em geral se constitui como essência e como cuja manifestação aqueles domínios, momentos e planos se apresentam “realmente”.

 

O recurso abstracto ao não idêntico, a contradições, ao ambivalente, ao diferente etc. há muito que se tornou ele próprio já afirmativo, desde que aparece de certo modo flutuando livremente nas teorias pós-modernas e pós-estruturalistas, sem referência a um conceito, sem referência a um universal, a uma essência social (negativa e a ser suplantada), referência que ainda existia em Adorno.

 

Contrariamente às tendências pós-modernas/pós-estruturalistas antifilosóficas, penso que hoje só é possível enfrentar a realidade social mundial com um pensamento especulativo-filosófico – efectivamente actual – no sentido de uma crítica radical das relações de dissociação-valor como estrutura social fundamental.

 

A importância fulcral da dissociação-valor como princípio social formal juntamente com a correspondente relação de género não significa que ela possa ser alcandorada ao estatuto da chamada contradição principal. Em perfeita sintonia com Adorno, a teoria da dissociação-valor, de acordo com as minhas anteriores considerações, não pode designadamente corresponder ela própria à lógica do uno. Na sua crítica da lógica a identidade, pelo contrário, ela permanece fiel a si mesma, e apenas pode manter-se porquanto se relativiza e até se desmente onde isso for necessário. E isto também significa que a crítica da dissociação-valor, ao ter de analisar a coisa actual em si, tem de admitir diferentes formas de discriminação social, de certa maneira teoricamente com iguais direitos (cf. Scholz, 2005).

 

A crítica da dissociação-valor, tendo por fundo a hipótese de um princípio social formal, aproveita assim numa escala muito maior que outros feminismos teóricos ligados a Adorno um procedimento dialéctico ou dialéctico-negativo que de certo modo procede da coisa, do próprio objecto particular da relação de género e tem por objectivo o conteúdo. Ela vai até à dissociação-valor como princípio social formal, na sua universalidade no verdadeiro metaplano, que apesar disso consegue ter em conta ainda na sua própria limitação.

 

 

Crítica radical do iluminismo e teoria da dissociação-valor

 

Onde se devem situar hoje as assimilações correntes sociologicamente limitadas no feminismo, na sequência da teoria crítica, da gender theory e da correspondente referência à racionalidade e ao iluminismo, tendo por fundo a crítica da dissociação-valor assim determinada como princípio social? O reconhecimento da ambivalência do iluminismo, que assoma no feminismo em títulos como “Racionalidade e razão sensível”, “O crepúsculo da razão” etc. teria de desembocar numa teoria da dissociação-valor como princípio social formal, em vez de se “escapar” para os campos estruturalistas e sociológico-estruturais. A insistência feminista na estrutura é aqui ela própria significativamente resolvida de modo apenas imediatamente sociologista, sem reconhecer este ponto de vista como sendo ele mesmo genuinamente burguês-tacanho. A exposição adorniana meramente descritiva do problema do género na Dialéctica do Iluminismo deveria pelo contrário ter sido transferida para o plano categorial. Pensando nisso, uma tal crítica desembocaria através da Dialéctica do Iluminismo numa crítica fundamental do  iluminismo, em vez de fazer afinal a sua afirmação seja lá como for. Entende-se por si que um tal modo de proceder nada tem em comum com o recurso à falsa imediatidade, mesmo se faz valer um momento somático, que é altamente distorcido e no fundo afirmado de modo reaccionário em concepções de uma “nova feminilidade”, mas que tem de ser imposto de outra maneira contra as posições que só admitem o género. Uma tal crítica da dissociação-valor exige pois uma distância crítica e um gosto pela abstracção ainda muito maior do que a exigida por uma elaboração teórica “normal” e considerada sociológica. Assim, ela recorre nolens volens  ao iluminismo, que não só tem de ser esclarecido sobre si mesmo, mas também tem de ser suplantado, o que significa exactamente o contrário de uma queda no reaccionário. Exige-se assim a capacidade de ir para além do que é dado – mesmo do próprio iluminismo – e de ousar de facto avançar para a terra de ninguém, um procedimento que então não tem mesmo nada a ver com a apoteose do iluminismo. Não se pode evitar aguentar esta tensão. Justamente a problemática e temática do sexo – como se pode ver ao logo de toda a sua história – está sempre em perigo de ser mal compreendida de forma concretista e como se fosse imediata.

 

Um modo de proceder dialéctico ou dialéctico negativo tem em primeiro lugar as raízes completamente no iluminismo, mas simultaneamente exige ir além de si mesmo, ter em consideração a sua limitação e assim, com e contra Adorno, pensar contra si mesmo. Isto significa que não se pode de facto renunciar a tal pensamento dialéctico, mas ele não pode ser perpetuado para sempre e eternizado no sentido de uma afirmação fundamentalmente iluminista. O necessário recurso à dialéctica negativa, no sentido da crítica radical da situação dada, consiste em última instância em suplantar-se a si mesmo. Nós simplesmente não sabemos como poderão parecer os modos de pensar numa sociedade não patriarcal nem na forma da mercadoria. Caso em que também aqui é preciso fazer valer a dimensão processual – ela própria dialecticamente mediada – da dissociação-valor como princípio social fundamental. Uma dialéctica negativa neste sentido é, portanto, “verdadeira” em relação à crítica da situação actual. Mas é preciso insistir, com Guy Debord, que “num mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso” (cit. em Grigat, 2008, p. 194).

 

Não se trata aqui de modo nenhum apenas de suplantar esta posição em termos de teoria do conhecimento, mas sim da crítica de uma abrangente socialização de práxis de dissociação-valor; práxis entendida não simplesmente – e redutoramente – como práxis política, mas sim como práxis social num sentido abrangente, que transpõe a falsa imediatidade do quotidiano e a pretensa feminilidade como seu reservatório (mas também não tem nada em comum com uma versão estruturalista de práxis teórica à la  Althusser, que evita à partida qualquer relação dialéctica). Ao negar o princípio social fundamental ela  declara algo não apenas sobre a crítica da relação de género, mas sim sobre a crítica da situação social mundial como um todo.

 

Também não se trata aqui para ela de uma permanente invocação e degustação das contradições sociais, porque estas reservariam pelo menos potencias para uma resistência e já em si de algum modo impeliriam para além de si mesmas, mas sim da sua suplantação e crítica. O contra-polo a isto seria, por exemplo, uma filosofia da “práxis” operaísta como a de Hardt/Negri, que acha que acolhe o “sucesso” já no interior das quatro paredes desta práxis.

 

Além disso as anteriores análises à dissociação do feminino, bem como as análises relativas às tradições racistas, não apenas são opressivas, mas mostram – mesmo se elas próprias frequentemente ainda permanecem num contexto de classes estrutural e simultaneamente politicista – que estruturalmente é simplesmente impossível um recurso simples ao iluminismo.

 

Assim a crítica da dissociação-valor tem de ser feita valer e pensada sem compromisso num sentido complexo. Não deve ser tratada como “ingrediente” moralista, mas sim como crítica de um contexto essencialmente formador da estrutura, que sabe da necessária mediação de sujeito e objecto, e não se fundamenta em última instância genuinamente na teoria da acção, para assim conseguir legitimar a crítica nas ciências sociais em geral (de igual modo é obviamente impossível também a hipostasiação unilateral do lado do objecto). Por maioria de razão se aplica à teoria da dissociação-valor como princípio social fundamental aquilo que Diethard Behrens objecta a certas posições marxistas: “Uma dialéctica restringida à teoria da acção tem de falhar à nascença, uma vez… que já está sempre em busca do operador da dialéctica, a procurada mediação da crítica imanente cai portanto na mediação externa, isto é, na mecânica de indivíduo e sociedade” (Behrens, 2010, p. 114). Um entendimento marxista da ciência, que em concorrência com o entendimento burguês da ciência gostaria de sobrepujá-lo e que se lhe equipara, sai basicamente da pista. Em vez disso será preciso analisar as próprias ciência e filosofia burguesas enquanto constituídas de modo fetichista.

 

Ironicamente o recurso ao pós-estruturalismo, que pretendeu desconstruir a racionalidade e o iluminismo do ocidente cristão ou pelo menos da modernidade e o sujeito humanista em geral, cai novamente em conhecidas águas racionalistas. Isto aponta obviamente para o facto de certas concepções pós-estruturalistas terem ainda mais a ver com o iluminismo e com as correspondentes formas de racionalidade do que gostariam de admitir. Isto exprime-se descontraidamente também em Althusser, que marcou particularmente o (pós-)estruturalismo, de tal modo que, por um lado, hipostasia a estrutura, por outro lado, porém (ou justamente por isso) coloca em questão o sujeito humanista. Escreve ele na auto-biografia: “Tive contra mim não apenas a corja dos filósofos, que escreviam livros 'pelo Homem' contra Foucault e contra mim (...), mas também todos os ideólogos do partido, que não faziam segredo de que me reprovavam e só me suportavam porque não me podiam expulsar em virtude da minha notoriedade” (Althusser, 1993, p. 214).

 

Como já foi dito, também Althusser em auto-crítica regressou ao velho sujeito das classes, enquanto “articulava” de antemão a acção, as práticas, a estrutura. Assim deveria a tarefa de uma dialéctica sujeito-objecto encontrar uma “perfeita” solução positivista; ou seja, desembocar num pensamento que é “hegemónico” na sociedade capitalista-burguesa em geral desde os seus começos, mesmo se a crítica “normativa” exterior ao conceito teórico e a correspondente declaração de engagement vão apanhando  com enfado o que vem à rede – obviamente recusando qualquer crítica fundamental da forma.

 

Também o discurso pós-moderno e a elaboração teórica pós-estruturalista acabaram assim por realizar a “missão civilizatória do capital” na sua forma de decadência, quase apetece dizer ironicamente. Um discurso batido sobre o género, para o qual se trata sobretudo da “produção” do género e da relação entre si de quaisquer relata vazios, é a prova eloquente disso. Até a dimensão psicanalítica é aqui incluída de modo meramente mecânico. Também em Hardt-Negri tal discurso está presente, pois justamente a uma multitude   de zeladores “multiplamente” estabelecida está subjacente um momento emancipatoriamente irracional.

 

Tais críticas sociais enviesadas encontram-se não apenas no feminismo, mas actualmente podem ser encontradas muitas vezes generalizadamente no discurso social predominante na esquerda. É justamente a ideologia patriarcal que considera as mulheres próximas da empiria, da práxis e da vida; um gender-feminismo cumpre no fundo essa exigência, uma vez que se dá por satisfeito com uma existência meramente estruturalista ou estrutural-sociológica, em vez de insistir no plano metalógico da dissociação-valor, que em toda a sua complexidade de modo nenhum se esgota na luta em torno do género.

 

Aqui seria preciso ainda suplantar – ceterum censeo – um ponto de vista dialéctico (negativo) no sentido da CRÍTICA da dissociação-valor. Mesmo na crítica é necessário, metódica e metodologicamente tal como em termos de conteúdo, ultrapassar o masculino-feminino, o heterossexual-homossexual, bem como a determinação da relação interseccional das diferentes disparidades sociais, não devendo ser efectuada a sua degustação, mas sim a negação da respectiva situação, em primeiro lugar mesmo apenas no plano do pensamento. Só nesta base poderão depois ser tidas em conta novamente uma somática e uma verdadeira crítica das opressões concretas (um conceito acertado que não por acaso ficou fora de moda); se assim não for, o recurso secundário às identidades tradicionais em geral será já festejado como emancipação a sério (veja-se, por exemplo, o lenço na cabeça das mulheres islâmicas, que nos campos do feminismo ocidental é visto sobretudo emancipatoriamente, como resistência contra o Ocidente).

 

Nesta base será preciso depois reflectir também uma dialéctica cultura-natureza e sexo-género que de modo nenhum tem de desembocar na hipótese da heterossexualidade natural e que nos actuais discursos sobre ecologia e natureza é simplesmente posta de lado. Estes últimos estão prisioneiros de considerações instrumentais, como se nunca tivesse havido antes críticas sérias, interessadas numa reflexão mediada – por muito deficitárias que também tenham sido.

 

Adorno não está preso a uma metodologia marxista trabalhadora e dedutiva, pelo contrário, ele pensa a forma social (mesmo que acanhada na “troca”) num sentido abrangente. Ele compreende a totalidade ainda na sua não-identidade, pelo que as suas reflexões também em termos de conteúdo representam algo completamente diferente das de certos exegetas de uma nova leitura de Marx, para quem o conteúdo no fundo está subordinado a pontos de vista meramente metodológicos ou metódicos (palavra-chave: dialéctica como método, seja no interior ou no exterior do marxismo do movimento operário etc.). A verdadeira (in)verdade do todo social, no entanto, apenas se revela tendo em conta uma crítica da dissociação-valor estabelecida complexamente, que não pode ser fundamentada apenas em termos de teoria do conhecimento, pelo contrário, só pode atingir o seu propósito numa efectiva suplantação da práxis androcêntrica, racista e inimiga da natureza, e se situa para além de um romântico quotidiano do homem coercivamente “transformado em dona de casa” (Claudia von Werlhof), tão chato como simultaneamente inchado, fazendo da necessidade virtude, que secretamente está de olho em algo diferente e procura casar um plano irracionalista com uma crítica do valor falsamente estabelecida como racionalista.

 

 

 

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