Roswitha Scholz
CRISTÓVÃO COLOMBO FOREVER?
Para a crítica das actuais teorias da colonização no contexto do "Colapso da modernização"
ROSWITHA SCHOLZ neste artigo discute as recentes teorias da colonização no contexto do "Colapso da modernização". Tais teorias ganharam ímpeto no debate da esquerda, pelo menos desde o crash de 2007/2008. Segundo Klaus Dörre, o pressuposto básico, apesar de todas as diferenças em cada abordagem, é que o capitalismo precisa de um exterior para continuar a existir. Frequentemente pressupõe-se uma "acumulação primitiva" sucessivamente repetida. Esta não é considerada limitada aos primórdios do capitalismo, mas é declarada a lei central eterna do capitalismo. Scholz, neste ensaio, contrapõe ao teorema da colonização e correspondentes hipóteses de uma permanente "acumulação primitiva" a dinâmica essencial do capital como “contradição em processo". Para evidenciar as diferenças relativamente à crítica da dissociação-valor, Scholz foca-se nas concepções de colonização de Klaus Dörre e Silvia Federici, proeminentes na Alemanha e não só, sendo que se pode atribuir Dörre uma orientação mais sindical e a Silvia Federici uma orientação mais operaista-feminista. Neste contexto, o artigo prossegue ainda com a dimensão negligenciada por Dörre e Federici das guerras civis mundiais hoje. Mas Scholz também mostra que não é suficiente colocar no centro a "contradição em processo", pelo contrário, a dissociação-valor tem de ser ser entendida como contexto dinâmico de base. Para, entre outras coisas, fazer justiça às diferentes disparidades sociais (económicas, racistas, anti-semitas, etc.) com as suas qualidades próprias, ela tem em conta a dialéctica negativa de Adorno, que naturalmente está em conformidade com a lógica do não idêntico da crítica da dissociação-valor. (Resumo na Revista EXIT! nº 13)
1. Introdução: "colonização" – uma explicação corrente da crise actual
2. Robert Kurz: contradição em processo e decadência do capitalismo
2.1. Pressupostos básicos
2.2. Globalização
3. Klaus Dörre: A nova colonização
3.1. Pressupostos básicos
3.2. Globalização
4. Silvia Federici: acumulação primitiva, reprodução e globalização
4.1. Pressupostos básicos
4.2. Mulheres, reprodução e globalização
4.3. Globalização, (re)colonização e reprodução
4.4. A colonização abrangente como princípio fundamental até hoje?
5. Resumo intercalar
6. Crítica da dissociação-valor, raça, classe, género, globalização e decadência do patriarcado capitalista
6.1. Pressupostos básicos
6.2. Colonização, (re)colonização, globalização?
6.3. Administração da crise nacional e internacional, o tornar-se obsoleto do trabalho abstracto, ruína da periferia e guerra civil mundial
6.4. Sobre a relação entre crítica da dissociação-valor, "raça", "classe", género, globalização e teorias da colonização.
7. Teorias da colonização e perspectivas de transformação
1. Introdução: "colonização" – uma explicação corrente da crise actual
Na sequência do crash de 2007/2008 e também de uma nova consciência da crise ecológica, tornou-se claro que o capitalismo está metido numa “crise múltipla”. Por vezes acrescenta-se-lhe mesmo a dimensão “de género” (ver Demirovic e outros 2011). Neste contexto é preciso assinalar, pelo menos desde 2008, uma referência mais acentuada às teorias da colonização, que assumiram uma posição importante no discurso da crise na primeira metade da década de 2010. Dado que tais posições, pelo que me é dado ver nas discussões, também de algum modo parecem óbvias para muitos na órbita da crítica da dissociação-valor, é preciso submetê-las aqui a uma crítica. Elas têm manifestamente uma evidência muito imediata. Pois não é verdade que hoje todos e cada um se sentem um pouco, para não dizer maciçamente “colonizados”, postos a render, comoditizados, penetrados pelo capitalismo, e não corresponde isso justamente também às actuais teorias da crise da crítica do valor? Pois não é assim mesmo que o capitalismo vem a si actualmente? O mundo não se tornou de facto uma mercadoria há muito tempo, e também “a nós” não é tirada “terra” de forma insuportável?
Pelo contrário, é preciso aqui evidenciar e apresentar as diferenças entre as teorias da colonização e a crítica da dissociação-valor, salientar que as teorias da colonização permanecem numa época histórica passada, tomando a colonização anacronicamente como modelo eterno para novos desenvolvimentos. Faço isso procedendo a comparações através de citações mais extensas. Ver-se-á que o teorema da colonização já por si é desajeitado quando se trata da mobilidade temporal do processo de socialização capitalista; até a “mobilidade” temporal do processo capitalista tem de ser aqui minuciosamente apanhada através desta metáfora, mesmo num sentido não espacial, como “consequência das colonizações” (Klaus Dörre, ver abaixo). De modo que voltaremos ao conceito de “acumulação primitiva” de Marx para poder entender os actuais processos de crise. Sobre o assunto são invocados/as teóricos/as como sobretudo Rosa Luxemburgo, Hannah Arendt, Burkhard Lutz e David Harvey. É o que acontece em Klaus Dörre que fez nome como teórico da colonização na Alemanha e não só. Ele resume assim o cerne das actuais ideias de colonização: “A ideia central que une as diversas variantes da teoria da colonização diz que o capitalismo é incapaz de se reproduzir a partir de si mesmo. Para a sua auto-estabilização as sociedades capitalistas precisam a) de um crescimento continuado da riqueza social que, no entanto, b) só pode ser conseguido por meio da internalização de externalidades, por meio da comoditização de TERRA antes não imputada à valorização. Ao contrário do que o conceito sugere, as colonizações não se esgotam numa dimensão sócio-espacial ou físico-material. A expansão do capitalismo ocorre no medium tempo, tanto fora como dentro das sociedades nacionais, tanto sectorialmente como em campos específicos, e atinge diferentes modos de produção, grupos sociais, formas de vida e mesmo as estruturas da personalidade… No entanto, a racionalidade da troca de equivalentes na forma da mercadoria, que nas sociedades capitalistas tende para a generalização, nunca consegue impor-se completamente, porque permanece incrustada noutras racionalidades de acção a que a comoditização reage, ou pode reagir expansivamente, possessivamente, até mesmo IMPERIALISTAMENTE. Entender o desenvolvimento capitalista como sequência de colonizações significa, assim, ultrapassar a construção de um capitalismo puro e, em vez disso, ter sistematicamente em conta a dependência de um EXTERIOR da socialização de mercado capitalista” (Dörre 2013, 113, destaque no original).
De seguida gostaria de discutir, no contexto da crítica da dissociação-valor, duas concepções de colonização que se destacam não apenas no espaço de língua alemã: a teoria da colonização de Klaus Dörre, que a meu ver apresenta uma perspectiva do movimento operário modificada, e a concepção de Silvia Federici, que argumenta a partir de um ponto de vista operaista-feminista. Em termos de lógica da exposição, será aqui relevante explanar a conexão entre “contradição em processo” e decadência do capitalismo, para depois entrar na sua dinâmica em termos de conteúdo, na perspectiva da crítica da dissociação-valor. Neste contexto também falarei repetidamente da inaptidão da metáfora da colonização, ou de termos semelhantes, como por exemplo cerca global, enquanto CONCEITOS teóricos. Por fim pretende-se mostrar que, no entanto, tudo isto deve ser colocado no contexto da crítica da dissociação-valor(mais-valia), na sua fragmentariedade, que também dá seguimento a outras críticas ao racismo, anti-semitismo, anticiganismo, homofobia e disparidades sociais na sua qualidade própria. No decurso da minha argumentação, sobretudo próximo do fim, serão ainda referidas dimensões até aí não abordadas, como por exemplo processos de asselvajamento no contexto das tendências de desestatização na periferia e das intervenções políticas de ordenamento mundial cada vez mais desajeitadas. O último ponto das minhas observações visa as estratégias de acção nas concepções de colonização de Dörre e Federici.
2. Robert Kurz: contradição em processo e decadência do capitalismo
2.1. Pressupostos básicos
Ao contrário das diversas concepções de colonização, Robert Kurz vê o take-off do capitalismo baseado em múltiplos factores, entre os quais o protestantismo. No entanto ele destaca aqui particularmente a “revolução das armas de fogo”. (1) Por esta razão a criação de dinheiro foi central no absolutismo, sendo que o “dinheiro” nas sociedades anteriores desempenhava apenas um papel marginal e não era um constituinte social. É assim errado considerar o mercado, o dinheiro, o trabalho, a circulação e a simples produção de mercadorias como constantes antropológicas. Pelo contrário, é preciso constatar o mecanismo seguinte: Reside na “nova maquinaria de destruição uma abstracção das necessidades materiais e sociais... A paradoxal 'abstracção real' da forma do valor e o carácter transcendental da relação social a ela associada têm aí a sua origem. O dinheiro transmutado dos primórdios da Modernidade foi a forma primordial desta abstracção real transcendental, ou seja, a mercadoria primordial que impôs a todos os objectos ... a forma da mercadoria autonomizada, até aí inexistente” (Kurz 2012, 131 [115/6]) (2) (a) Nessa situação também a força de trabalho dos produtores e produtoras teve de ser transformada numa mercadoria; o trabalho material abstracto, tal como o dinheiro enquanto princípio de socialização, apenas nesta fase se constituíram em geral.
Aqui é preciso subdividir o conceito histórico de crise. Trata-se de diferenciar entre a constituição histórica do capital e as crises quando ele começou a processar nas suas próprias bases, com o trabalho abstracto como uma “substância material abstracta” (ibidem, 192 sgs [170 sgs]). Kurz fala aqui, com Marx, do “movimento em si mesmo” do capital. Este processo não se desenvolveu linearmente: “Há que reter que a constituição e o desenvolvimento histórico do capital, durante muito tempo e até ao século XX, teve por consequência uma situação híbrida entre a lógica pura do fetiche do capital como 'movimento em si mesmo', por um lado, e uma multiplicidade de modos de imposição, assincronias e mutações na estrutura do mercado mundial, por outro” (ibidem, 241 [215/6]).
Para Kurz é a “contradição em processo” que constitui o ponto essencial da sua teoria da crise, quando o capital assumiu o seu “movimento em si mesmo”. Escreve ele, com referência a Marx: “Com isto… fica estabelecida uma contradição fundamental objectiva no seio do 'sujeito automático' do fetiche do capital e da sua dinâmica histórica: por um lado, o fim‑em‑si da 'riqueza abstracta' assenta única e exclusivamente no dispêndio cada vez maior de energia de trabalho humana, que, de acordo com Marx, é a 'substância do capital', da qual o dinheiro (capitalista) não é mais que a forma de manifestação palpavelmente reificada. Por outro lado, o aumento constante das forças produtivas torna precisamente esta substância cada vez mais supérflua, retira‑a do processo produtivo e acarreta assim a desvalorização lenta e, por fim, dramática das 'objectualidades do valor' cada vez mais formais (paulatinamente dessubstanciadas) da mercadoria e do dinheiro. No fragmento das máquinas dos Grundrisse, Marx diz a este propósito que '(…) o capital reduz aqui a um mínimo – de forma perfeitamente involuntária – o trabalho humano, o dispêndio de energia… ; ou seja, precisamente essa substância da energia humana abstracta de 'nervo, músculo e cérebro' ... À energia humana constituinte de substância substitui‑se, de acordo com Marx, o 'poder dos agentes'... que 'são postos em movimento'… por ela própria enquanto dimensão votada ao desaparecimento. Deste modo, 'o (…) próprio capital é a contradição em processo, devido ao facto de tentar reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao passo que, por outro lado, estabelece o tempo de trabalho como único critério e fonte da riqueza' ... No entanto, uma contradição dinâmica não pode ficar 'em processo' para todo o sempre, antes tem de culminar ou passar pelo seu clímax: 'O capital trabalha assim na sua própria dissolução como forma que domina a produção' ... Deste modo, o fim‑em‑si fetichista desmente‑se em si próprio e esbarra com o seu limite interno objectivo, que acaba por se tornar absoluto... 'Deste modo colapsa a produção que assenta sobre o valor de troca'”(ibidem, 260 [232/3])
Porém, isto não acontece linearmente, mas sim mediado por passos de desenvolvimento histórico: “No entanto, o que é decisivo para um entendimento suficiente é essa outra modulação histórica que ocorre no próprio plano categorial, a saber, o mecanismo de compensação relativa, que se estende ao longo de várias épocas, devido ao qual a contradição fundamental começa por não se manifestar de imediato, não sendo tão‑pouco resolvida, mas ... antes é reproduzida numa escala cada vez maior, e só nesse sentido é (periodicamente) ultrapassada de forma temporária” (ibidem, 274 [245]). Se numa fase anterior do capitalismo se tratou da expansão absoluta do dispêndio de energia laboral, mais tarde tratou-se da elevação da parte relativa da mais-valia, através da aplicação de maquinaria exigida pela concorrência entre os capitais individuais. A longo prazo este processo faz ir ao ar o próprio automovimento fetichista.
Trata-se aqui não de um “regresso do mesmo”, em que o capitalismo possa continuar por toda a eternidade, mas por assim dizer de um “movimento direccionado”, que se dirige para um fim.
Em termos históricos concretos é preciso aqui ter em conta a expansão interna e externa: “Mesmo quando o capital já se reproduzia 'com base nos seus próprios fundamentos' ... ou como 'movimento em si mesmo', estava ainda muito longe de conquistar, até nos países definidos como capitalistas, a totalidade do espaço de reprodução. Estruturas definidas, do ponto de vista económico moderno, como sendo 'de subsistência', assim como relações de mercadoria e dinheiro ainda associadas a resquícios das relações de obrigação (pessoais e institucionais) ainda não completamente 'economificadas' ... mantinham‑se a par da relação de capital – ou com ela entrosadas –, que avançava com agressividade, se bem que em graus extremamente variáveis” (ibidem, 286 [256]). Aqui, “as restantes condições não se mantinham constantes; a massa pura e dura do dispêndio de capital monetário adicional aumentava de forma incessante, à medida que o capital desbravava terreno em todos os ramos produtivos e 'capitalizava' o espaço terrestre neste sentido histórico, ou seja, transformava‑o num espaço global da valorização. Embora o dispêndio de energia de trabalho por mercadoria diminuísse incessantemente, o número de efectivos da força de trabalho aplicados de uma forma produtiva na perspectiva do capital crescia, ainda assim, de forma contínua, devido a este movimento expansivo exterior. Através apenas de uma tal expansão permanente, o aumento da mais‑valia relativa por elemento da força de trabalho também impulsionava adicionalmente a produção de mais‑valia no que diz respeito à sua massa absoluta, que parecia crescer 'até alcançar dimensões monstruosas'... O conceito de uma expansão 'exterior' refere‑se aqui à reprodução (ainda) não abarcada pelo capital (e que nunca poderá ser abarcada de forma absoluta)” (ibidem, 287 [256/7]).
Em termos de teoria da crise, no entanto, para Kurz é ainda mais importante a “expansão interna do capital” processando nas suas próprias bases: “Na medida em que o capital incorpora em si os ramos produtivos pré‑existentes e os modela à sua imagem, ou seja, transforma‑os em componentes de uma produção de 'riqueza abstracta', essas produções também são profundamente transformadas no seu plano interno. É esse o processo que Marx designou como transição histórica da subsunção 'formal' para a subsunção 'real' da actividade produtiva sob o capital. No seu decurso, as técnicas, disposições dos meios de produção, organizações de processos, etc., são adaptadas, ou seja, alienadas da sua finalidade ligada à satisfação de necessidades no sentido da produção de bens de uso” (ibidem, 289 [259]). Isto significa concretamente: “A inovação dos processos refere‑se a ramos produtivos já existentes ou transformados pelo capital. Na medida em que são submetidos à 'subsunção real', ou seja, as suas técnicas tradicionais pré‑existentes são substituídas por técnicas capitalistas, também o seu procedimento de fabrico é afectado pelas inovações permanentes; e não só a técnica propriamente dita, como também os processos de organização ou comunicação. Se, nas industrializações de base do século XIX, a ênfase incidia ainda no aumento do recurso às máquinas mecânicas, no século XX, a partir da segunda revolução industrial ('taylorismo', 'fordismo'), a inovação deslocou‑se crescentemente para o afiamento dos processos produtivos; não só pela famosa linha de montagem e pelas técnicas de organização do trabalho, que começaram a transformar os seres humanos em robôs, mas também com recurso a máquinas‑ferramentas e logo, também, a técnicas de comando, etc. Esta chamada 'racionalização' causou um surto de produtividade monstruoso” (ibidem, 290 [260]). Este mecanismo compensatório da “expansão interna” do capital consiste, portanto, na “poupança maciça de dispêndio de trabalho ou de energia do trabalho humano por produto”. Isto “também atingia ramos produtivos que, até então, tinham estado organizados na sua estrutura interna de um modo essencialmente artesanal, mesmo que já fossem objecto de uma concentração semelhante à de uma fábrica” (ibidem, 291 [260]), o que se mostrou claramente na produção em massa de automóveis, frigoríficos e outras coisas.
2.2. Globalização
Desde a década de 1980 ocorreu um salto qualitativo no desenvolvimento das forças produtivas, na sequência da revolução microelectrónica, com o qual o fim do movimento de expansão interna entrou no campo de visão. Isto podia ver-se, por exemplo, no facto de o PC embaratecer mais rapidamente do que os bens de consumo anteriores. “Mas faltou um momento decisivo: a saber, a expansão correspondente na aplicação adicional de força de trabalho que fosse produtiva na perspectiva do capital” (ibidem, 295 [264]). O significado de tais desenvolvimentos em termos de crise tornou-se agora claro nas últimas décadas e particularmente no crash de 2007/2008: “Uma vez que o nexo interno é mediado por detrás das costas dos actores e não pode ser adequadamente abarcado pelas estatísticas burguesas, visto que estas se limitam a elaborar 'projecções' de momentos isolados e sem nexo na percepção distorcida pelas transacções de mercadorias e dinheiro determinadas pela concorrência, a crise manifesta irrompe necessariamente de forma surpreendente e repentina, e não pode de modo algum ser explicada a partir da tacanha perspectiva empírica” (ibidem, 296 [265]). Aqui já não pode ser gerado mais nenhum “novo modelo de acumulação”; mas a esperança num novo regime de acumulação pode ser encontrada em algumas esquerdas. “O esgotamento de mercados internos importantes, os crescentes fluxos de exportação unilaterais e o seu financiamento por défices ou bolhas financeiras … não constituem um deslocamento sustentável da acumulação, mas já são em si manifestações extremas de crise. Por isso, de resto, a suposta ascensão da China também não é uma continuação da expansão, quer exterior, quer interna do capital … visto que esse 'milagre' é sustentado sobretudo por défices internos e externos” (ibidem, 303 [271]). Também o “novo modelo de acumulação” esperado por muitas esquerdas em relação com a “sociedade dos serviços” não apareceu, pelo contrário, houve um regresso da “mais-valia absoluta”: “As desavergonhadas medidas coercitivas a nível empresarial que, no plano social, parecem apontar para um regresso à preponderância da mais‑valia absoluta, podem ser interpretadas como reacções cegas e desesperadas ao limite interno da produção de mais‑valia enquanto tal”(ibidem, 305 [273]). Isto, no entanto, é apenas um estádio intermédio na decadência do capitalismo devida às revoluções tecnológicas que tornam supérfluo o trabalho abstracto – com consequências brutais e bárbaras.
Resumindo, pode assim registar-se que: “O capitalismo atinge o seu clímax quando a expansão interna é atingida e ultrapassada pelo desenvolvimento das forças produtivas. Então a queda relativa da taxa de lucro transforma-se numa queda absoluta da massa social de mais-valia e portanto de lucro, esbarrando assim a valorização do valor supostamente eterna na sua desvalorização histórica. (3) Podem apontar-se alguns indícios de que o desenvolvimento capitalista ingressou neste estado desde os anos de 1980, com a terceira revolução industrial. O culminar da contradição interna é modificado e filtrado pela expansão histórica do sistema de crédito, que prossegue reflectindo especularmente a estagnação e declínio da massa de trabalho produtora de valor. Já o permanente aumento relativo do capital real empurrou progressivamente os custos mortos antecipados até às alturas, de tal modo que só podiam ser financiados pelos lucros correntes numa parte cada vez menor. O crédito transformou-se de elemento propulsor adjuvante da produção de mais-valia no seu substituto. A acumulação alimenta-se desde então cada vez menos da substância de trabalho real passado e cada vez mais da antecipação de trabalho imaginário futuro. Investimentos e empregos sem qualquer base real são financiados por uma dívida global sem precedentes e pelas bolhas financeiras daí resultantes. ... Todavia, apesar das aparências temporárias, aqui não se acumula capital, como se viu na indústria de construção de muitos países após o estouro das bolhas imobiliárias. … Após um encadeamento cerrado de crises financeiras, que nos últimos trinta anos abalaram países e sectores económicos isolados, o crash financeiro de 2008 assumiu pela primeira vez uma dimensão global. O rompimento das cadeias de crédito coloca na ordem do dia o grande surto da desvalorização. Foram os Estados, já por si altamente endividados, que impediram o início da avalanche, por meio de injecção maciça de crédito adicional e emissão monetária ... As dívidas estatais incumpríveis somam-se aos créditos incobráveis dos mercados financeiros; aproxima-se a fusão nuclear do sistema de crédito. O futuro capitalista já consumido tornou-se presente. A Grécia mostra exemplarmente que as pessoas teriam de deixar de viver durante anos para continuarem a satisfazer os critérios capitalistas. Logo que a emissão monetária deixe de se limitar a adiar a desvalorização dos títulos de dívida, mas passe a alimentar directamente a conjuntura económica com dinheiro sem substância por meio da simulação de crédito, o próprio meio dinheiro em si se desvalorizará” (Kurz, 2013a, 235 sgs.).
Kurz tem portanto perfeitamente em conta “colonizações” capitalistas, sem usar explicitamente este conceito, ou usa com Marx conceitos semelhantes, como expansão interna e externa entre outros. O ponto crucial da sua argumentação, no entanto, é a lógica do capital no sentido da contradição em processo que tem de chegar ao fim, com o que também “novas colonizações”, como fonte de um NOVO modelo da acumulação, nolens volens terão de ir contra a parede; novas “colonizações”, “novas cercas” e a correspondente exploração como FENÓMENOS, que devem ser levados a sério, de modo nenhum estão suspensos, no entanto têm de ser categorialmente classificados na dimensão histórica, tendo por fundo a contradição em processo.
3. Klaus Dörre: A nova colonização
3.1. Pressupostos básicos
Dörre toma a “colonização” como foco da sua elaboração TEÓRICA. “Colonização significa, por conseguinte, expansão do modo de produção capitalista para dentro e para fora. A separação da terra de uma grande parte da população camponesa constituiu assim um 'mercado interno'; a população sem terra foi obrigada a alimentar-se através da venda da sua força de trabalho. Foi assim que ocorreu a remoção da orientação pelas necessidades; matérias primas e alimentos tornam-se agora mercadorias. A subsequente aniquilação das indústrias locais e o processo de separação entre manufactura e agricultura realizam uma reformulação ainda mais radical, que cria para o modo de produção capitalista em expansão o necessário potencial de força de trabalho” (Dörre 2009, 37). Isto aplicou-se até o capitalismo começar a processar nas suas próprias bases. Aí desempenharam um papel importante as intervenções estatais, por exemplo, leis tendo por objecto a obrigação de trabalhar e a regulação do salário. “Assim, o capitalismo já nos seus começos não foi uma economia de mercado auto-regulada, pelo contrário, o Estado desempenhou o indispensável papel de parteiro do novo modo de produção. Ele cuidou de que a formação do mercado tivesse sucesso sob condições de assimetrias estruturais de poder. A expansão externa do modo de produção capitalista, baseada em que o capitalismo desde o seu nascimento se constituiu como um sistema internacional, isto é, interligado por cima dos Estados nacionais, também foi politicamente promovida” (ibidem, 38). Dörre, portanto, não põe em destaque, como Kurz, a revolução das armas de fogo e a actividade estatal a isso associada no absolutismo, como momento essencial de um contexto formal capitalista em constituição, que trazia consigo a formação do “trabalhador assalariado duplamente livre”. Ele também vê, de facto, como Kurz e Marx, a libertação deste “trabalhador assalariado duplamente livre” e a valorização de matérias primas e alimentos; no entanto, para ele, o Estado tem sempre um papel central na história do capitalismo e das suas “colonizações” e justamente também na medida em que “conseguiu contornar as leis económicas”, por exemplo no fordismo (ver abaixo). Acresce que para ele, na sua interpretação de Marx, desempenham um grande papel as “assimetrias de poder”, falando claramente, a oposição das classes, enquanto para Kurz decisivos são o Marx do fetiche e o “sujeito automático”. Se para Kurz o Estado é a instância central de ordenamento das relações fetichistas, para Dörre a Estado é a instância judicial que também consegue cuidar da “justiça social” como a história comprova.
Sobre o papel do Estado que, para muitas esquerdas, de acordo com isso tem até hoje uma grande importância, escreve Kurz: “A transformação das estruturas feudais descentralizadas em aparelhos estatais burocráticos angariadores de dinheiro fez da estatalidade – ela própria constituída neste processo – o demiurgo dessa «reinvenção» do dinheiro. A correlação original das recíprocas produção do Estado e transmutação do dinheiro conduziu, com a sua orientação ideológica unilateral para a função de demiurgo do Estado, a uma ilusão sobre este, cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir (em especial na esquerda de todas as social‑democracias). No entanto, esta primeira instância da 'economia política' cedo perdeu o controlo sobre a sua criatura, supostamente funcional de acordo com um fim determinado. A monetarização de todas as contribuições em géneros e a contínua invenção de novos impostos, pagáveis em dinheiro, obrigaram a uma monetarização cada vez mais abrangente da totalidade da reprodução, com consequências insuspeitadas” (Kurz 2012, 128 [113]). Kurz define o carácter do Estado remetendo para Marx da seguinte maneira: “É verdade que o Estado é a 'forma' do 'resumo da sociedade burguesa'... ou seja, da relação de fetiche capitalista e, assim, parte integrante da mesma. Precisamente por isso, porém, não pode transcendê‑la no seu conceito; o que ele «resume», afinal, é justamente o processo cego da concorrência, a cujos resultados apenas pode reagir” (ibidem, 262 sg. [235]). Para Kurz, portanto, o Estado é tudo menos um contornar das leis económicas, como para Dörre, pelo contrário, é parte integrante imanente, moderadora e fetichista da socialização capitalista, até no processo do seu crescente tornar-se obsoleta.
Dörre critica agora nas posições de Rosa Luxemburgo e Hannah Arendt designadamente o seguinte: “Sem dúvida que as colonizações capitalistas são sob diversos pontos de vista irreversíveis, por exemplo, quando absorvem modos de produção tradicionais ou consomem recursos naturais. Nesse sentido a capitalização de mercados externos surge como um processo que tem de chegar ao fim num ponto de fuga distante, pois sem mercados externos não há capitalismo” (Dörre 2009, 41). Em vez disso, Dörre pretende dar a entender que as colonizações capitalistas são na verdade ilimitadas, ou que o capitalismo cria para si incessantemente um exterior, seja na forma de regiões devastadas ou também na forma de força de trabalho inexplorada. Este “exterior” poderia “numa fase posterior de desenvolvimento revelar-se como objecto de investimentos de reparação de longo prazo” (ibidem, 44).
Em relação ao papel do Estado, Dörre também se demarca de David Harvey: “O seu modus operandi (das colonizações, RS) assenta, o que em Harvey apenas implicitamente é evidenciado, em formas de intervenção do Estado extremamente diferentes”. Aqui pode “o rebentar de leis puramente económicas, como por exemplo no caso da expansão de serviços públicos, da produção de bens públicos ou do desenvolvimento de sistemas de segurança colectivos, ocorrer também por meio da descomoditização (desconexão dos riscos do mercado) e de fixações a longo prazo de capital em círculos secundários ou terciários. Tais estratégias, que Harvey designa 'acumulação por expropriação', utilizam a exploração de equipamentos públicos e a desregulamentação de mercados de trabalho como alavanca para uma re- ou descomoditização da força de trabalho. Transposto para a problemática do desenvolvimento, isto significa que o capitalismo não pode existir sem colonizações, sem a utilização de bens exteriores (incluindo força de trabalho improdutiva)” (ibidem, 44). Aqui são lançados por Dörre diferentes níveis históricos uns contra os outros, um anular pós-moderno de domínios e mecanismos capitalistas anteriormente socializados é indiferentemente equiparado com o mecanismo da colonização supostamente essencial para o capitalismo, justamente também quando não se consegue sustentar um entendimento ontológico do Estado no capitalismo, como se pode ver hoje. Segundo Dörre, o que se passa fundamentalmente é o seguinte: “O exército industrial de reserva nas suas diferentes manifestações pode ser utilizado nas fases de conjuntura favorável para mobilizar força de trabalho adicional. Inversamente, particularmente em tempos de crise, os excluídos da produção capitalista representam um potencial de pressão que é aplicado para manter os custos do trabalho o mais possível baixos” (ibidem, 45).
Consequentemente em Dörre “a formação deste capitalismo social-burocrático” baseia-se “num ciclo de investimentos efectivos em infraestruturas de longo prazo, na absorção do potencial de força de trabalho de um sector da economia tradicional, agrário e de pequenas empresas, bem como numa institucionalização antes desconhecida do 'poder do trabalhador'. A sua génese pode ser reconduzida em primeiro lugar a estratégias de descomoditização da força de trabalho” (ibidem, 47). No entanto a dinâmica interior-exterior também na fase fordista não foi anulada. “Continuando a questão social presente na funcionalização das actividades de reprodução das mulheres, na figura da sobre-exploração de migrantes ou na construção de exterioridades sociais pela sociedade da maioria” (ibidem, 50). As hipóteses de colonização são assim em Dörre transportadas para as mulheres, migrantes e outros “outsiders” de modo de facto forçado, já quase um pouco relutante, sendo que se pretende que a oposição de classes continue a ser sempre o verdadeiramente decisivo. De resto, a oposição das classes também continua a ser um ponto de referência central para Harvey, que funciona como deão (masculino) do teorema da colonização nos tempos mais recentes, sendo que as pioneiras nas novas abordagens da colonização nas últimas décadas na esquerda foram de facto feministas (cf. Feministische Autorinnengruppe 2013; mais sobre o assunto abaixo).
3.2. Globalização
Desde o fim dos anos setenta, segundo Dörre, surgiu um novo desenvolvimento. “Em vez do alargamento das capacidades de produção e da massa de mais-valia, o aumento da taxa de lucro tornou-se agora o objectivo preferido da empresa. No entanto, as sobrecapacidades e a pressão sobre a taxa de lucro não foram os únicos focos de crise. Nos negócios e nas empresas tinham-se esgotado os recursos de produtividade do tipo de racionalização dominante, porque a decomposição, estandardização e controlo do trabalho entraram cada vez mais em contradição com as necessidades de força de trabalho em média altamente qualificada. A individualização dos estilos de vida e dos desejos dos consumidores entravam em colisão com um sistema de produção orientado para a produção em massa estandardizada. Internacionalmente, o desmoronamento do sistema de taxa de câmbio fixa criou uma divisão internacional do trabalho (4) modificada, provocada pela expansão além-fronteiras das grandes empresas, bem como pela industrialização baseada no endividamento de muitos países em desenvolvimento, juntamente com as turbulências assim desencadeadas de um ambiente modificado do regime de acumulação de base nacional” (Dörre 2009, 51). Aqui se mistura mais uma vez o plano macro com o plano micro, agora designadamente com as necessidades dos empregados altamente qualificados; a crise também é explicada em primeiro lugar com referência a uma modificação do “regime de acumulação de base nacional”, situação em que não se entende o todo, o contexto capitalista global, o “movimento em si” capitalista à escala global. Dörre prefere manter-se aqui categorialmente no saco do movimento operário tradicional e do quadro de referência nacional, que por acaso foi destruído pelo desmoronamento da taxa da câmbio internacional.
Dörre constata que “as mais importantes mudanças… [se consumaram] nas relações entre empresas, Estados e mercados financeiros. A globalização marca aqui a crescente interligação e penetração pela tecnologia da informação de diversos segmentos financeiros. Dos anos de 1990 até à crise global de 2008, os mercados financeiros foram o sector da economia com mais forte crescimento. Em primeiro lugar como consequência da crescente internacionalização do comércio, da produção e das empresas, a esfera financeira autonomizou-se relativamente à economia real” (ibidem, 55). O desacoplamento dos mercados financeiros é aqui central. “O excesso de liquidez nos mercados financeiros é o húmus em que cresce a transformação do capital financeiro em capital fictício. Promovidos pela desregulação dos mercados financeiros e ainda mais acelerados pela moderna tecnologia de informação e comunicação, os riscos associados às transacções financeiras são decompostos nos seus elementos de base e resolvidos em instrumentos financeiros com os quais se pode negociar. D, expresso em títulos financeiros, torna-se, de meio de pagamento e de crédito, em puro objecto de especulação, utilizado com o objectivo de realizar D'. Isto, obviamente, sem poder criar adequadamente novo valor com tais operações, pois em última instância apenas pode ser repartido o que antes foi criado como mais-valia na economia real. A ideia fetichista de que o capital monetário desligado da economia, na figura de títulos financeiros e derivados, poderia igualmente multiplicar-se a partir de si mesmo constitui a origem de todas as economias de bolhas” (ibidem, 56). Neste contexto Dörre fala de um “regime de acumulação dominado pela finança” (Ibidem, 57 sgs.). Dörre gostaria à partida de pôr objecções à tese de um “regime dominado pela finança”: “Há de facto uma multiplicidade de argumentos plausíveis que do ponto de vista da eficiência económica falam contra a tese de um REGIME financeirizado. Todavia aqui defende-se o ponto de vista de que o capitalismo do mercado financeiro justamente não procede de um modelo de reprodução pensado e particularmente eficiente. Contrariamente à formação do fordismo, a hegemonia da racionalidade do capital financeiro não radica primeiramente na fábrica, na interacção entre conceitos de racionalização pensados e consumo de massas. Torna-se real o que visto do lado do poder é eficientemente APLICÁVEL. Predominando sobre o Estado, o novo regime entregou aos mercados financeiros funções económicas centrais na fixação, no nível e na orientação dos investimentos. O que conduziu a modificações profundas no sistema de corporate governance; influenciou fusões de empresas e a reorganização dos conglomerados empresariais, bem como o controlo do nível de consumo e o comportamento dos consumidores” (ibidem, 59, destaque no original).
Mesmo sendo o novo capitalismo do mercado financeiro com as suas especificações dominante na orientação, tem de ser sublinhado ainda assim que ele não constitui nenhum novo regime, no sentido de “regime de acumulação”, ou seja, não constitui nenhum novo modelo que represente um novo ciclo de valorização, no sentido de um capitalismo que permaneça eterno; pelo contrário, o capitalismo do mercado financeiro anuncia o fim do capitalismo. Nele se mostra justamente a “dessubstanciação do capital” e a “desvalorização do valor”, e justamente em relação ao capitalismo como um todo, que não pode ser explicado a partir da natureza das modificações interempresariais.
Dörre vê aqui sobretudo três mecanismos de “transferência”: “Primeiro: Shareholder value e controlo centrado no mercado” (ibidem, 60). Para os empresários a questão já não é o lucro em si, mas o “rendimento do capital próprio”. O primado fordista da economia de produção face à economia de mercado inverte-se aqui. A organização da empresa e do comércio orienta-se para os compradores, bem como para os mercados financeiros, e constitui as correspondentes estruturas organizacionais … a empresa integrada verticalmente é desmembrada; desenvolve-se o princípio da subvenção cruzada no interior do conglomerado empresarial e mesmo da empresa. Deste modo as conjunturas das vendas repercutem-se imediatamente nas unidades organizacionais. O resultado não é qualquer tipo de organização uniforme, mas a reestruturação permanente” (ibidem, 61). Aqui ele apresenta mais uma reflexão: “De facto não desaparecem as hierarquias e as formas burocráticas de organização, pois o manegement com poder de decisão alimenta o 'poder difuso' do mercado para disciplinar os empregados e os interessados na empresa. Empresa e trabalhadores devem respirar com a situação do mercado, amortecendo as flutuações conjunturais e irrupções de crise com a aplicação dos próprios recursos. A alavanca decisiva para criar uma flexibilidade compatível com o mercado é a concorrência contínua entre trabalhadores” (ibidem, 62).
Como segundo mecanismo de transferência ele vê um “dispositivo de regulação baseado na concorrência”. Com referência a Boltansky/Chiapello, escreve: “Com isto… são identificadas deslocações no dispositivo de regulação que são centrais para a passagem ao capitalismo financeiro. A força propulsora é um novo espírito do capitalismo que … proclama o primado da socialização de mercado contra o comando hierárquico e a incrustação da burocracia. Este novo espírito só pode criar harmonia porque se apresenta como projecto de libertação” (ibidem, 63). O capitalismo incorporou as exigências de autonomia, criatividade e responsabilidade pessoal dos novos movimentos sociais, que estavam viradas contra o regime fordista.
Como terceiro mecanismo de transferência ele indica a “precarização”: “Quando a promessa de liberdade da economia de mercado dá em nada é completada com um novo regime disciplinar. 'Hartz IV', por exemplo, faz subir a disponibilidade para fazer concessões de todos aqueles que ainda têm trabalho. Vistas em termos sistemáticos, as estritas regras de tolerabilidade do capitalismo financeiro preenchem uma função semelhante à dos restos de leis do tempo do feudalismo no contexto da acumulação primitiva. Elas activam e disciplinam a força de trabalho para um novo modo de produção flexível… O compromisso de base do estado social do fordismo, apoiado em fortes blocos de interesses, é irreversivelmente quebrado. Ainda sob a capa de instituições aparentemente estáveis, ocorreram no regime de acumulação modificações dos modelos de produção e dos dispositivos de regulação social que no seu conjunto anunciam um novo estado de agregação da sociedade” (ibidem, 68). Isso também significa que: “No caso das crises do mercado financeiro, o modus operandi da colonização funciona imediatamente sobre as relações de propriedade. (5) Os títulos de propriedade são desvalorizados para depois serem reintroduzidos no circuito do capital a preços de liquidação e com relações de propriedade modificadas” (ibidem, 69).
Após o crash de 2008, as novas intervenções do Estado, segundo Dörre, continuam a “acumulação através da expropriação” na forma de cortes nas pensões de reforma, por exemplo. Bancos e empresas sistemicamente relevantes são segurados pelos Estados. Há aqui pressão do manegement e das correspondentes instituições no sentido de um “risco moral” (ibidem, 70). Dörre também determina como complexo causal da crise “os desequilíbrios da economia mundial e os limites da política monetária, bem como a “intransparência dos produtos financeiros” e respectivos riscos (visíveis, por exemplo, na crise do subprime) (cf. ibidem, 70 sgs.). Sobre isto não posso entrar aqui em pormenores. Para Dörre a crise do mercado financeiro é também uma crise social, em que o medo da queda social representa uma marca essencial (cf. ibidem, 74 sgs.). Isto ainda tem por consequência: “Se a racionalidade do capitalismo financeiro, incluindo os seus mecanismos de transferência, falha tão obviamente face à sua autoformulada pretensão de eficiência, a consequência são problemas de legitimação do novo regime de mercado”, donde se deduz “que a colonização político-financeira esbarra em limites imanentes” (ibidem, 80 e 81). A esperança de Dörre é agora que a estrutura social contraditória também continue a criar movimentos de protesto, em que ele vê a ecologia (alterações climáticas etc.) como campo essencial do problema. “Talvez a via do capitalismo eco-social trate de facto de uma salvação provisória do sistema” (ibidem, 83). Aqui, segundo Dörre, não são apenas os movimentos dos trabalhadores que são centrais, como por exemplo no Brasil e na África do Sul. Ele põe em jogo também uma “economia solidária” e a “reconstrução de um domínio público para lá da motivação do lucro. Havendo… uma resposta conceptual, então estou convencido que ela é descrita da melhor maneira com o conceito de DEMOCRACIA ECONÓMICA. Enquanto nos últimos anos os sociólogos nas suas análises fizeram sobretudo variações sobre o capitalismo, a democracia económica significa pensar na sua suplantação” (ibidem, 86, destaque no original).
Assim se torna claro que Dörre agora simplesmente declara radicais estratégias de solução reformistas antes definidas como imanentes. Assim se pretende que seja pago tributo aos novos desenvolvimentos. Isto também se aplica a “novas” soluções da questão da transformação aparentemente distantes do movimento operário, como por exemplo as da “economia solidária”, que para ele representam uma opção no seu quadro reformista “radical”. Perante este pano de fundo, Dörre constata depois que hoje também seriam de incluir outros sujeitos para além do trabalhador assalariado, por exemplo, mulheres e migrantes (sobre isso entrarei um pouco mais detalhadamente na conclusão das minhas observações, como já foi dito).
Dörre obtém a sua concepção de colonização também recorrendo a Gramsci, para além de incluir reflexões da teoria da regulação e se basear na teoria das “ondas longas”. Assim, é de lhe contrapor, com Kurz, que aqui se mostra o que este constata para a teoria institucional, nomeadamente que “a teoria institucional é apropriada na melhor das hipóteses para argumentar perante a lógica basilar da dinâmica capitalista e para esclarecer a crise apenas a partir de fenómenos sociais variados e de interacções institucionais, culturais etc. com a 'economia', enquanto a lei do desenvolvimento histórico interno em si permanece uma black box” (Kurz 2005, 425 sg.). E o que se aplica à teoria da regulação também pode ser afirmado para Dörre: “O que permanece totalmente escondido na teoria da regulação, como em todas as anteriores teorias dos estádios ou das ondas, é a relação das respectivas configurações, modelos, regimes, ondas, estádios etc. com a forma do valor e a sua substância, o 'trabalho abstracto' … É simplesmente suposto a priori que em princípio se voltará sempre a produzir 'taxa e massa suficiente' de mais-valia e de lucro em cada novo momento, novas configurações etc. … A maior parte de O Capital de Marx, da análise da forma do valor até à queda tendencial da taxa de lucro, é completamente supérflua para a teoria da regulação, tal como para teoremas aparentados; os conceitos são de facto ocasionalmente mencionados, mas de modo nenhum mobilizados como instrumentos de análise”. Trata-se “sempre apenas de MANIFESTAÇÕES superficiais históricas desta estrutura fundamental ontologizada exactamente como no marxismo tradicional” (ibidem, 429 g.). No caso de Dörre estas manifestações são depois subsumidas no conceito fenomenológico de “colonização”, isto é, ele vê a troca de mercadorias e de equivalentes como “aparência” e as relações de exploração e de dominação como a verdadeira essência (cf. Dörre 2015, 43). Pode reconhecer-se neste procedimento de Dörre um “individualismo metodológico” no sentido de Kurz. Escreve este, no contexto de uma crítica à teoria dos sistemas: “Os 'factos' ou as 'acções' individuais só são abstraídos indutivamente, em certa medida, até ao famigerado «plano meso» dos chamados domínios, ao passo que a verdadeira relação global desaparece, por assim dizer, no nevoeiro e apenas surge como ligação exterior ou como um dito efeito recíproco entre os 'verdadeiros' domínios individuais” (Kurz 2012, 171 [152]). É verdade que em Dörre também se fala de possíveis “limites” do capitalismo, mas estes estão paradoxalmente no contexto de teorias que no fundo supõem um capitalismo eterno e não são realmente nada apropriadas para avançar logicamente para um fim do capitalismo, como acontece com uma contradição em processo pensada até ao fim.
As “colonizações” hoje identificadas como tais não devem ser simplesmente subsumidas num CONCEITO geral de colonização; pelo contrário, têm de ser colocadas no contexto complexo desta contradição em processo; pensados como “princípio” os TEOREMAS da colonização e as hipóteses de possibilidades infinitas de acumulação induzem em erro. No caso de Dörre e não só, a sua intervenção funciona no sentido da auto-salvação do capitalismo, em vez da sua suplantação. Isto é mais ou menos o programa secreto da esquerda em si que, com todas as suas pretensas diferenças, não quer saber para nada de uma “ruptura categorial” e se coloca assim, de facto, à disposição da futura administração da crise, incluindo aqui concepções vulgares de crítica do valor.
4. Silvia Federici: acumulação primitiva, reprodução e globalização
4.1. Pressupostos básicos
Até agora não se falou do processo de reprodução, no sentido de uma “dissociação do feminino” no conjunto da reprodução. Para Dörre ela funciona na forma de trabalho feminino de reprodução como “exterior” ao capitalismo, que (no seu entendimento) nada tem a ver com a forma capitalista, mas podendo, por outro lado, representar uma reserva para a transformação do capitalismo, questão a que ainda voltarei mais tarde. Para Kurz esta dissociação é central para o conjunto da reprodução (cf. Kurz 2005). No entanto, por exemplo no seu livro Dinheiro sem valor, ela não é examinada sistematicamente (cf. Kurz 2012). Silvia Federici, pelo contrário, promete desde logo aparentemente ter de facto em conta este problema, com referência “às de Bielefeld”, no entanto apenas numa expressão operaista. (6) “A minha tese é que a teoria marxista que pretenda ter ressonância nos movimentos anticapitalistas do século XXI tem de repensar a questão da 'reprodução' e dos seus diversos aspectos (como reprodução dos indivíduos e reprodução da força de trabalho) e isto numa perspectiva que tenha em conta o conjunto do planeta. Se pensarmos nas actividades através das quais a nossa vida é reproduzida, podemos ultrapassar a ilusão de que o desenvolvimento capitalista esteja em posição de criar as condições materiais para uma sociedade não exploradora. Podemos também assim evidenciar que os obstáculos no caminho da 'revolução' não consistem porventura na falta ou indisponibilidade de know-how técnico, mas sim na desvalorização sistemática da vida humana e nas cisões que além disso o desenvolvimento capitalista produz no interior da comunidade global de trabalhadores e trabalhadoras” (Federici 2012a, 24). Segundo Marx “o valor da força de trabalho também é calculado através do valor das mercadorias (alimentação, vestuário, habitação) 'sem cujo fornecimento diário o portador da força de trabalho, a pessoa, não poderia renovar o seu processo vital', portanto, através do tempo de trabalho necessário à sua produção” (ibidem, 27). Contra isso Federici constata, com Mariarosa dalla Costa, que o trabalho não remunerado da reprodução “produz a mercadoria mais importante para a sociedade capitalista, da qual depende a produção de todas as outras mercadorias: a força de trabalho” (ibidem, 39 sg). A concepção de Federici, a meu ver, pode ser subsumida com razão no conceito geral das “teorias da colonização”, mesmo não usando ela este conceito explicitamente como conceito central. Correspondentemente, ela parte da seguinte hipótese fundamental: para ela “a acumulação primitiva não foi um acontecimento histórico único…, limitado à origem do capitalismo, como ponto de partida da 'acumulação como funcionamento habitual das coisas' … Pelo contrário, é um fenómeno que em qualquer altura está na base, como constitutivo das relações capitalistas, e que se repete sempre como 'parte do processo contínuo da acumulação capitalista' … que traz sempre consigo simultaneamente a sua expansão'” (Federici com referência a de Angelis e Lazzarato 2013, 40). Aqui “a 'separação dos produtores dos seus meios de produção' … para Marx a chave essencial da acumulação primitiva – tem de ser percebida como algo que se repete continuamente, particularmente em tempos de crises capitalistas, quando as relações de classe são desafiadas e precisam de novos fundamentos … No contexto da resistência generalizada contra a regulamentação capitalista e o empobrecimento da nossa vida, não admira que a acumulação primitiva pareça ter-se tornado um PROCESSO DURADOURO, com crises económicas, guerras e expropriações maciças, que agora parecem ser os pressupostos para a organização da produção e da acumulação à escala mundial” (ibidem, 41, destaque no original).
Aqui se torna já claro que para Federici classe, luta de classes, trabalho e acumulação primitiva são eternos no capitalismo e portanto também vigoram na era da globalização. O ponto de partida para Federici é aqui subjectivo-operaista duma ponta à outra, excluindo qualquer hipótese de socialização fetichista. Aí é subsumida a problemática de género e não só. Segundo Federici a teoria da luta de classes de Marx tem de ser alargada: “Temos de reconhecer sobretudo que a história da acumulação primitiva não pode ser entendida do ponto de vista de um sujeito abstracto universal. Pois um aspecto importante do projecto capitalista foi a desarticulação do corpo social, tendo as pessoas sido obrigadas a diferentes regimes disciplinares, que produziram uma acumulação de 'diferenças' e hierarquias. Estas influenciam profundamente o modo como as relações capitalistas são sentidas” (ibidem, 41). Esta história tem também de ser escrita “do ponto de vista dos escravizados, dos colonizados, dos povos indígenas, cujas terras além disso são o objetivo principal das cercas – em síntese, de todos aqueles sujeitos cujo lugar na história do capitalismo não pode ser equiparado à história do trabalhador assalariado” (ibidem, 42). Pretende-se que uma multiplicação de sujeitos díspar e pós-moderna seja aqui reinterpretada maciçamente do ponto de vista do marxismo do movimento operário. Aqui se torna óbvio um tabu da abstracção, que nas últimas décadas tem sido típico no feminismo e não só (cf. Scholz, 2011). Contextos macro abrangentes são suspensos e o ponto de partida metodológico coincide imediatamente com a vivência e com as diversas preocupações, como é característico das posições operaistas, em vez de considerar, por um lado, as diferentes dimensões, na sua diferença qualitativa e, por outro lado, as colocar como tais em relação recíproca de modo abrangente, no contexto de uma relação de dissociação-valor fragmentária. Na hipostasiação do lado subjetivo, de resto, reside também o perigo de “sorelização”, se ocorre uma invocação vitalista da “existência” imediata de modo abstracto e no sentido de uma falsa imediatidade não-dialéctica, existência que em si não tem qualquer conteúdo nem orientação e, portanto, também pode derivar para a direita. O que na circunstância sucedeu na chamada rebelião árabe, a que também Federici e não só se referem na sua dança das resistências, é amplamente conhecido. Karin Priester fala neste contexto de uma “filosofia vitalista pós-moderna” (Priester 2008, 84, cf. também Scholz 2009, 83 sgs.). A (pretensa) compreensão para com os colonizados, os escravizados, os “povos” indígenas pode assim virar na queixa chauvinista da própria colonização/ocupação, por exemplo pelos EUA, ou mesmo por um capital financeiro judaico. Acresce que Federici supõe que da situação de escravatura, proletarização, repressão das mulheres etc. segue-se nos grupos e indivíduos afectados uma experiência e consciência homogénea; mas não tem de ser de modo nenhum esse o caso, como indicaram justamente as análises pós-modernas e pós-estruturalistas, mesmo se no caso se entregaram a uma hipostasiação da diferença, passando os planos ESTRUTURAIS OBJECTIVOS para o outro mundo. É preciso aqui fazer justiça plenamente aos colonizados e escravizados, mas não no sentido redutor de uma falsa imediatidade, como acontece em Federici (ver abaixo).
4.2. Mulheres, reprodução e globalização
Para Federici a caça às bruxas desempenhou um papel importante no processo de acumulação primitiva nos séculos XVI e XVII: “Foi a caça às bruxas que possibilitou ao Estado apropriar-se dos corpos das mulheres e transformá-los em máquinas de reprodução da força de trabalho, pois foi criminalizada qualquer forma de contracepção e interrompida qualquer forma de controlo da reprodução por elas usado. A caça às bruxas também serviu para destruir as formas de cooperação existentes entre as mulheres, pois vizinhas e amigas foram obrigadas sob tortura a acusar-se umas às outras e a colocar qualquer forma de associação feminina sob suspeita de demonismo. Finalmente aprofundaram-se as divisões entre homens e mulheres, tendo o poder das mulheres sido apresentado como poder que as mulheres usariam sem mais contra os homens para destruírem os seus corpos e almas. Deste modo, a caça às bruxas nos séculos XVI e XVII desempenhou um papel chave na formatação da sociedade capitalista moderna, uma vez que as hierarquias com base no sexo e as identidades construídas foram centrais para a definição da organização capitalista do trabalho e para a disciplina laboral capitalista” (ibidem, 43). (7)
A caça às bruxas e o disciplinamento do corpo para Federici têm sobretudo de ser passados pelo buraco da agulha do marxismo operaista do movimento operário e serem tomados como fundo de outras dimensões da repressão. Mistura-se aqui o processo de constituição do capitalismo com os seus actuais níveis de desenvolvimento, assumindo-se um processo duradouro de acumulação primitiva. Para conseguir esclarecer o disciplinamento dos corpos no capitalismo, no entanto, não é preciso tomá-los como ponto de partida absoluto, como faz Federici. Pelo contrário, a importância e o papel da caça às bruxas no início da Idade Moderna somente se tornam claros se forem interpretados como transição na história da constituição do patriarcado capitalista, até o capitalismo começar a processar com base nos seus próprios fundamentos. Trata-se aqui de colocar este desenvolvimento no contexto da dissociação-valor (e não apenas do valor, ou da mais-valia) como determinação fundamental do patriarcado capitalista; NESTE contexto, o disciplinamento dos corpos como TAL e a caça às bruxas tiveram então uma importância própria. Senão o corpo sofredor em abstracto desmente-se a si mesmo e torna-se mero joguete dos interesses do antigo marxismo, ou do operaismo, no contexto de uma “falsa imediatidade”. A caça às bruxas no início da Idade Moderna também é importante para Kurz, mas sob o ponto de vista da crítica do fetichismo (Kurz 2012, 133 sg. [118]; voltarei a isso mais abaixo); Dörre é completamente omisso sobre o tema.
Através do aumento da jornada de trabalho, continua Federici, e da máxima redução de custos no século XIX, tornada possível também com a introdução das mulheres no processo de trabalho, apesar da sua menor avaliação comparativamente com os homens, ficaram no entanto prejudicadas desde logo muitas actividades de reprodução; correspondentemente a mortalidade infantil, por exemplo, era alta (cf. Federici 2012a, 28). Logo isso se modificou: “Em termos marxistas, o desenvolvimento do trabalho reprodutivo e a formação da dona de casa a tempo inteiro daí resultante foram consequências da passagem de um modo de exploração do trabalho assente no espremer da mais-valia 'absoluta' para outro assente no espremer da mais-valia 'relativa'” (ibidem, 30). A redução da jornada de trabalho foi então compensada pela aplicação da técnica e pelo aumento da intensidade do trabalho. Na sequência desta transição foi investido mais trabalho e mais dinheiro na reprodução dos/as trabalhadores/as. O salário médio do trabalhador masculino subiu, também no contexto de uma nova política salarial. “Marx não entendeu a importância do trabalho reprodutivo porque aceitava os critérios capitalistas sobre o trabalho e a prosperidade e assumiu o ponto de vista de que o desenvolvimento do trabalho industrial teria atingido um grau em que estaria iminente a luta pela emancipação da humanidade da exploração” (ibidem, 32 sg.).
Consequentemente, o aumento da actividade profissional da mulheres nas últimas décadas deve ser assim avaliado, segundo Federici: É preciso “constatar que a entrada das mulheres no trabalho assalariado ocorreu em tempos de uma ofensiva histórica contra os direitos e reivindicações dos/as trabalhadores/as, em que as reduções de custos empresariais, a deslocalização de partes do processo de produção e o abrandamento das determinações relativamente a direitos laborais conduziram a um abaixamento dos salários e tornaram o trabalho precário e cada vez mais insalubre. Não admira que os postos de trabalho à disposição das mulheres estejam no fim da escala salarial. Trata-se das actividades mais monótonas, mais inseguras e pior remuneradas. Agora até mesmo estes postos de trabalho estão ameaçados, justamente pela crise económica mundial que já se repercute – ainda que apenas numa dimensão limitada – na parte das mulheres no mercado de trabalho” (ibidem, 72 sg.). As mulheres estão frequentemente empregadas em actividades no sector dos serviços que outrora foram abertos à iniciativa privada. Além disso tiveram elas próprias de voltar a executar os serviços em falta, devido aos cortes nos serviços sociais. Trabalham agora designadamente em call centers.
Nos centros capitalistas partes significativas da lida da casa foram retiradas de casa e comercializadas. Aumentaram as casas com uma só pessoa. No entanto: “Enquanto os saltos tecnológicos nos domínios chave da economia mundial induziram uma reordenação da produção, na esfera do 'trabalho doméstico' não ocorreu nenhum salto tecnológico que tivesse diminuído significativamente o tempo de trabalho em média socialmente necessário para a reprodução dos/as trabalhadores/as” (ibidem, 75). E isto apesar de o computador em parte também ter entrado no domínio da reprodução. Assim, por exemplo, as compras e o trabalho sexual podem ser “tratados” por esta via. Para além do Twitter e do Facebook, surgem novas redes sociais. Trabalha-se com robôs de apoio pessoal entre outros (cf. ibidem, 75). Tudo isto, no entanto, não pode constituir nenhuma “substituição para o trabalho de reprodução da vida”, pois este inclui a satisfação de necessidades complexas e de tal modo que os aspectos físicos e afectivos estão indissoluvelmente ligados uns aos outros e em grande medida são exigidos… em interacção humana” (ibidem, 75 sg.). Estas actividades apresentam uma estrutura temporal diferente da do trabalho abstracto. Hoje são muitas vezes assumidas por migrantes. Através da desvalorização que continua a existir do trabalho doméstico, o trabalho doméstico pago, com a suas condições miseráveis, torna-se o “pendant em termos de tempo histórico do trabalho nas plantações” (ibidem, 77). Aqui são sobretudo as mulheres do Sul que têm de ombrear com as consequências negativas da globalização. Elas hoje têm de se esforçar mais para conseguir os meios de subsistência, têm de cuidar dos doentes etc. As mulheres recorrem frequentemente ao trabalho no domicílio, com salários mínimos, para poderem conciliar família e profissão. No entanto, é preciso notar aqui que as actividades femininas de reprodução têm um carácter diferente do do trabalho nas plantações, desde logo porque estão submetidas a uma “lógica de gastar tempo” e são desenvolvidas em privado; pelo contrário, o trabalho nas plantações, que no “Terceiro Mundo” constituiu desde a formação do capitalismo uma espécie de pendant do trabalho fabril, ocorria na esfera pública e era marcado por uma “lógica de poupar tempo” (cf. Frigga Haug). É indispensável estabelecer aqui as diferenciações.
4.3. Globalização, (re)colonização e reprodução
Federici entende por “globalização uma série de medidas políticas, através das quais o capital internacional reagiu à crise do trabalho e da acumulação nos anos de 1960 e 1970. Nestes anos ocorreu um extraordinário ciclo de luta a nível mundial, estimulado pelos movimentos anticoloniais e pelo movimento dos direitos cívicos nos EUA. Foram mobilizados continuamente novos sujeitos” (ibidem, 50). Ela parte aqui da questão de saber “como as mudanças sociais epocais das últimas quatro décadas se repercutiram na reprodução da força de trabalho” (ibidem, 51). Federici vê assim na globalização um “processo de 'recolonização'” (ibidem, 60 sg.) que se estendeu a todo o mundo. Ela demarca-se aqui de posições que concebem a informatização e a financeirização como os aspectos principais da globalização: “Segundo uma ideia muito divulgada, a 'contra-revolução' capitalista que constitui o cerne da globalização consistiu numa dupla deslocação. Em primeiro lugar, um tipo de acumulação assente na produção de mercadorias seria substituído por outro em que predomina a financeirização. Em segundo lugar, ter-se-ia passado da produção industrial assente na fábrica para um arranjo em que ciência, conhecimento, informação e cultura seriam os mais importantes objectos da produção, o que teria levado a uma crescente desmaterialização do trabalho, mas também a uma menor procura de trabalho … Conceitos como ´sociedade do conhecimento' e 'revolução informática' são utilizados atravessando linhas de divisão política e a Internet é vista como modelo de novas formas de cooperação e de produção de bem-estar” (ibidem, 51 sg.). Em Hardt/Negri o diagnóstico é “capitalismo do conhecimento”, em Jeremy Rifkin, “fim do trabalho”. Neste contexto Federici também critica as referências da esquerda e do feminismo ao “Fragmento das máquinas” dos Grundrisse de Marx (cf. ibidem, 52). Para Federici, pelo contrário, mais importante é “a capacidade de o capital fazer baixar os custos de produção dos/as trabalhadores/as através de um alargamento em grande escala do mercado de trabalho mundial” (ibidem, 53). Ela assume aqui o aumento permanente de trabalho, justamente na era da globalização. Mesmo reconhecendo perfeitamente que ocorreu uma revolução microelectrónica, para ela o decisivo é a expansão da força de trabalho a nível mundial, o que obviamente é diametralmente oposto à hipótese de uma “contradição em processo”.
O processo da globalização, continua Federici na sua dicção operaista, “agudizou a desigualdade e a polarização social e económica. As hierarquias, que marcaram historicamente a divisão sexual e internacional do trabalho, e que tinham sido evitadas pelos movimentos anticoloniais e pelo movimento das mulheres, foram por ele firmemente restabelecidas. As ex-colónias têm sido até hoje o centro estratégico da acumulação primitiva … As colónias foram o palco das formas de exploração mais intensivas. Foram o lugar da escravidão e das plantações. Das antigas regiões coloniais foram durante séculos retirados os mais valiosos recursos (prata, ouro, diamantes, madeira, borracha, trabalho vivo) para depois serem embarcados para a Europa e os EUA. Designo estas regiões como 'centro estratégico' porque a sua reorganização económica e social se tornou o fundamento e condição da reorganização global da produção no mercado de trabalho mundial. De facto, nunca teria sido possível a Europa e os EUA exporem-se à ´desindustrialização', destruírem as estruturas organizativas em que se apoiaram as comunidades de trabalhadores/as europeias e norte-americanas e deslocarem as instalações industriais para onde os custos salariais são mais baixos se a reorganização económica das antigas colónias não tivesse desenvolvido um grande reservatório de força de trabalho e esta força de trabalho não tivesse sido fornecida ao mercado mundial. Portanto não por acaso foi nas colónias onde vimos os primeiros e mais brutais processos de expropriação e empobrecimento, os mais radicais desinvestimentos públicos na reprodução da força de trabalho e os mais violentos ataques às populações locais. Tais ataques aconteceram, quer na forma de sangrentas guerras por procuração, como as desenvolvidas nos anos de 1980 e 1990 na América Central e que se podem ver até hoje em muitos países africanos, quer na forma de intervenções militares directas, como vimos na Somália, Afeganistão e Iraque. De facto a violência mais uma vez tem sido a 'parteira' de uma nova forma de acumulação. Através dela se abriram novos territórios à extracção de petróleo, diamantes, lítio e coltan. Simultaneamente foram recrutados novos corpos para o mercado de trabalho e os antigos senhores coloniais puderam assegurar o controlo geral total da economia política. As ocupações de terras a isso associadas provocaram uma nova diáspora, empurrando milhões de pessoas do campo para as cidades, que se assemelham cada vez mais a campos de refugiados” (ibidem, 60 sg.).
Segundo Federici, no “Terceiro Mundo” o desemprego aumenta e os salários diminuem dramaticamente. As populações foram privadas da terra que servia para a extracção de matérias primas e produção de bens alimentares. “Centrais eléctricas públicas ficaram fora de serviço … Foram reduzidos os orçamentos públicos para a saúde e educação, bem como subvenções e serviços de apoio à agricultura, que deviam possibilitar a satisfação das necessidades humanas básicas. Em consequência, baixa a esperança de vida e assiste-se ao regresso de fenómenos dos quais tinha sido assumido que a 'influência civilizadora' do capitalismo os teria feito desaparecer da face da Terra: fomes, subalimentação, epidemias periódicas e até a caça às bruxas. Só em África foram mortas milhares de mulheres como pretensas bruxas … Isto tem a sua origem em parte em manipulações das autoridades locais, que apontam para pretensas ameaças de bruxaria a fim de desviar a atenção da liquidação do terreno comunitário. A caça às bruxas em parte também se explica pela depreciação a que foram votadas as mulheres idosas, que vivem de actividades de economia de subsistência em sociedades crescentemente monetarizadas” (ibidem, 63).
Na determinação das tendências da globalização torna-se agora plenamente claro que Federici não tem nada em comum com tendências para o colapso provocadas pelo desenvolvimento das forças produtivas, como as que são invocadas no fragmento das máquinas. Para ela não existe o tornar-se obsoleto do trabalho abstracto, a dessubstanciação do capital e a desvalorização do valor provocados pela contradição em processo, como Kurz explicou. De modo tipicamente operaista, em vez disso ela vê na globalização uma “recolonização”, enquanto “contra-revolução”, no sentido de um entendimento subjectivista das classes modificado. Às posições que descobrem na financeirização um novo tipo de acumulação ela contrapõe uma acumulação eterna do capital. Para ela não há qualquer “clímax do capitalismo”; ele pode verdadeiramente continuar a existir até ao fim dos tempos e a mobilizar à escala mundial força de trabalho mal remunerada.
Segundo Federici, simplesmente tem de haver aqui uma expansão do trabalho, pois também as actividades femininas de reprodução, as actividades de subsistência dos camponeses, as actividades na economia paralela e outras se apresentam como “trabalho” e portanto supostamente criam “valor”. As actividades femininas de reprodução são para ela particularmente relevantes, tendo por fundo a reprodução da força de trabalho, sem considerar a sua lógica própria em si, no contexto da dissociação-valor, como relação basilar fragmentária e contraditória. Porém, estas actividades também têm de ser submetidas à crítica, tal como o trabalho abstracto (voltaremos a isso mais tarde). Em vez disso, a vida de dona de casa da fase fordista é explicada de modo reducionista, meramente económico, num contexto de marxismo tradicional, sobretudo pela redução dos custos do trabalho através do trabalho doméstico. No quadro de referência de uma contradição em processo reformulada, tendo por fundo a dissociação-valor como contexto global e o clímax do capitalismo que lhe está associado, no entanto, também a nova caça às bruxas, por exemplo em África, com o pano de fundo de relações tradicionais, deveria ser classificada numa situação em que se juntam relações tradicionais e relações capitalistas, e não tendo por fundo uma acumulação primitiva, como princípio estrutural central e eterno do capitalismo, que apenas à primeira vista parece plausível.
4.4. A colonização abrangente como princípio fundamental até hoje?
Grande parte dos ramos de trabalho intensivo da produção industrial, como assinala acertadamente Federici, é deslocalizada para países da Europa Oriental e também para países do chamado Terceiro Mundo. Antigas fábricas “socialistas” foram desactivadas e completamente privatizadas. Produtos locais deixaram de ser postos à venda. Muitos países do Terceiro Mundo foram obrigados a uma “reforma estrutural”. Empresas do exterior apropriaram-se dos recursos destas regiões e dos seus bens de investimento. “Simultaneamente as empresas abriram novos mercados de vendas para os seus produtos, ocupando o lugar de produtores/as locais” (ibidem, 57). Aqui desempenharam um papel decisivo as organizações internacionais (Banco Mundial, FMI, OMC etc.). Também o Estado de bem-estar social chegou ao fim. “Assim se chegou também a um deslocamento no interior da relação temporal entre reprodução e acumulação. Com os cortes nos sectores da saúde e educação, nas pensões de reforma e nos transportes públicos, bem como com a introdução de 'taxas de utilização', muitos aspectos da reprodução da força de trabalho foram tornados fonte imediata de acumulação” (ibidem, 58). Deste modo também as actividades reprodutivas foram financeirizadas.
Também se verifica uma desregulação no facto de os/as trabalhadores/as se tornarem precários e no corte das pensões de reforma, na redução de cuidados de saúde e de ofertas de educação, mesmo nos países “ricos”, em resultado de reformas estruturais, financeirização, guerra e crise da dívida bem como crise hipotecária; trata-se aqui de “activar um novo impulso de acumulação” (Federici 2013, 44 sg.). Federici assume que o bem-estar no capitalismo esteve limitado a determinados períodos e a determinados lugares. Este bem-estar foi “claramente resultado de uma interacção específica de circunstâncias históricas e pactos de serviços, que chegaram ao fim com as lutas dos anos de 1960 e o colapso do comunismo” (ibidem, 45). As tendências de empobrecimento afectam, entretanto, uma grande parte da população, por exemplo, também na Grécia, Itália, Espanha e EUA. Particularmente afectadas são as mulheres de baixos rendimentos e as mulheres negras, que têm de se “sustentar” a si e à família. Vão trabalhar como empregadas domésticas em países distantes, disponibilizam-se como mães de aluguer, dão os filhos para adopção etc. Segundo Federici, em toda a parte “é atacada a sua capacidade para controlar a própria reprodução” (ibidem, 46).
Constata Federici: “Os programas económicos e sociais que o capital internacional aplicou para derrotar os movimentos de libertação dos anos de 1960 e 1970 conseguem garantir que A EXPROPRIAÇÃO (DA TERRA E DE TODOS OS DIREITOS ADQUIRIDOS), A PRECARIEDADE DO ACESSO A RENDIMENTOS MONETÁRIOS E DO EMPREGO, UMA VIDA SOB O SIGNO DA INCERTEZA E DA INSEGURANÇA E O AGRAVAMENTO DAS HIERARQUIAS BASEADAS NO RACISMO E NO GÉNERO SEJAM INSTITUCIONALIZADOS como condições de produção para as gerações futuras”. De tal modo que, segundo Federici, POR TODA A PARTE A FIGURA DO TRABALHADOR SE TORNA NA FIGURA DO IMIGRANTE, DO TRABALHADOR DESLOCADO, DO REFUGIADO” (ibidem, 48, destaque no original). Formas de escravatura antiga estão de volta. A esperança de vida da classe trabalhadora baixa mesmo nos países ricos. No “Terceiro Mundo” expandiu-se o modo de vida de assalariado à jorna. Nestas circunstâncias, a classe dos capitalistas, segundo Federici, faz-nos acreditar que não haveria alternativa ao capitalismo. Pelo contrário, em todo o mundo se podem ver resistências. “Pois qualquer sistema que não consegue reproduzir a sua força de trabalho, nem tem nada para lhe oferecer de futuro a não ser crises que se repetem, está condenado à queda” (ibidem, 50). Apesar de toda a evocação da reprodução da força de trabalho, segundo Federici hoje é o TRABALHADOR migrante que representa o protótipo da pauperização capitalista. O inimigo principal é aqui “o capital”!
5. Resumo intercalar
Tal como em Dörre o trabalhador subcontratado precário, mesmo na sua forma migrante, é o protótipo do explorado na era da globalização, Federici vê numa posição idêntica o trabalhador migrante, recusando no entanto decididamente uma posição reformista, ao contrário de Dörre. Ela vê as relações de trabalho precárias como “desejadas” e supõe-nas como “objectivo” do capital. Assume de facto que a “colonização” é um princípio que também hoje ainda faz efeito em termos de teoria da acumulação. Uma crítica do “disciplinamento dos corpos”, no sentido da moderna disciplina do trabalho, que também é bem recebida por vários/as críticos/as do valor (e da dissociação), ocorre nela à maneira tradicional-operaista e MESMO SIMPLESMENTE NO CONTEXTO DE UMA ONTOLOGIA DO TRABALHO! Se Dörre está numa tradição sindical do movimento operário, em que é atribuída uma grande importância ao Estado, e se tenta prolongar tal ponto de vista nos tempos actuais, tendo por fundo Gramsci, hipóteses da teoria da regulação, da teoria das ondas longas etc., situação em que ele presta atenção de passagem às mulheres, aos migrantes e à ecologia mais contra vontade, no caso de Federici está em primeiro plano o ímpeto subjectivista da luta de classes em sentido operaista, sendo que ambos têm como ponto de partida um pensar em termos de teoria do ponto de vista e/ou um individualismo metodológico, não em último lugar com raízes num pensamento de luta de classes tradicional.
É notório que o fundo teórico de Federici é ainda mais árido que o de Dörre. As verdadeiras referências para ela são Marx, com a separação entre produtores e meios de produção no contexto da acumulação primitiva, bem como a concepção de Dalla Costa, segundo a qual também as actividades reprodutivas são necessárias para a formação da força de trabalho, e ainda alguns teóricos que recorrem à importância do “Terceiro Mundo” e finalmente também Foucault. De resto ela permanece sobretudo no plano descritivo. Nem ela nem ele chegam ao ponto essencial da contradição em processo, com todas as suas consequências de um limite sistémico. Esta perspectiva da contradição em processo, que tem de chegar ao seu fim, não tem de resto nada a ver com um ponto de vista do optimismo do progresso, que Federici censura por exemplo a Hardt/Negri. Uma maneira de ver que assume um clímax do capitalismo, pelo contrário, move-se num plano OBJECTIVO de teoria da acumulação, em que o desenvolvimento das forças produtivas não é simplesmente conotado como positivo, como no marxismo tradicional ou nas concepções neo-operaistas; as forças produtivas e as respectivas tecnologias também podem ser forças destrutivas.
Federici não contesta completamente a revolução tecnológica e financeirista, contudo para ela o decisivo é a estratégia do capital de restringir os custos à escala mundial. No entanto assim escapa-lhe o carácter fetichista da crise mundial, em que a opção de baixos salários é apenas uma fase de transição para a superfluidade (ver abaixo). Quem hoje é precário, do mal o menos, ainda não caiu completamente fora… A precariedade é assim apenas a ameaça do perigo realmente existente da superfluidade. Esta objecção é válida tanto para Dörre como para Federici. A SUPERFLUIDADE objectiva é a verdadeira categoria, a que é decisiva, não simplesmente a precariedade, que é o mero sentimento disso e que parece ser o subjectivamente verdadeiro, com a manutenção de uma actividade profissional seja de que tipo for, que deve ser mantida incondicionalmente, nem que seja na forma de um pós-moderno empresariado de si mesmo, tendo por fundo uma sociedade do trabalho concebida como ontológica. O medo de tornar-se supérfluo é tão grande que apenas consegue identificar-se a si mesmo teoricamente como o tornar-se precário, sendo assim tabu o chegar ao fim absoluto da sociedade do trabalho; este é o horror puro e simples para o precário, que se vê obrigado a posicionar-se no interior de relações em decadência para se poder manter a si mesmo como ser que se esforça ao máximo. Tudo isto tem de ser entendido no quadro de uma crítica geral da dissociação-valor, como crítica que a si mesma se afirma e simultaneamente se restringe.
6. Crítica da dissociação-valor, raça, classe, género, globalização e decadência do patriarcado capitalista
6.1. Pressupostos básicos
De seguida será evidenciada a dinâmica da dissociação-valor como dinâmica fundamental em oposição aos teoremas metafísicos da colonização. Também Kurz parte de uma alteração qualitativa das relações de género, com referência à teoria e à crítica da dissociação-valor (com base em Scholz 2011/2000). Mesmo se a teoria da dissociação-valor no seu conjunto para ele permanece marginal, como já foi dito, sobretudo no seu último livro Dinheiro sem valor, em última instância toda a sua obra tem de ser simplesmente localizada no interior de uma abordagem crítica da dissociação-valor. Mas Kurz não supõe de modo nenhum – e esta já era sempre a sua tese central num contexto de crítica do valor – uma classe de capitalistas (personificada), que seja pessoalmente responsável pela exploração da classe trabalhadora (e, no caso de Federici, também pela formação de relações de género hierárquicas), mas sim um contexto fetichista global. Escreve Kurz sobre a transição para o capitalismo: “Também as relações entre os sexos foram profundamente abaladas no âmbito desta transformação … Tratou‑se de um momento essencial da constituição capitalista, desde os primórdios da transformação do dinheiro. Neste processo, todos os elementos da reprodução social não passíveis, ou dificilmente passíveis de serem representados no âmbito da lógica do dinheiro que também determinava o Estado (do acto de confeccionar a comida ao cuidar dos filhos e até ao 'amor') foram retirados do contexto das relações de vinculação ou obrigação existentes até então, mas foram ao mesmo tempo dissociados da nova sociabilidade da mercadoria e delegados nas mulheres … Ao facto de o dinheiro moderno (o capital) e o Estado partilharem uma origem comum no seio da sociedade oficial sobrepôs‑se outra coincidência de origens mais importante, entre a universalidade abstracta (dinheiro e Estado), por um lado, e a dissociação sexual dos momentos da reprodução que nela não têm cabimento, por outro: 'Aquilo que está dissociado não é um mero 'subsistema' dessa forma (como, por exemplo o comércio externo, o sistema jurídico ou a política), mas é essencial e constitutivo para a relação global social' … Foi deste modo que surgiram a moderna relação entre os sexos e a família burguesa, que tinham tão pouco que ver com as estruturas anteriores do mesmo nome como o dinheiro transmutado com as suas antigas formas de existência. Também aqui, como é evidente, não se estabeleceu conscientemente uma meta, no sentido de uma relação nova e abrangente e da sua lógica transcendental; os actores agiram, sim, com base em motivos de alcance limitado (por exemplo, a dissolução das antigas representações pessoais patriarcais), os quais, também sob este aspecto, se desenvolviam 'nas suas costas' em direcção a uma outra constelação das relações entre os sexos” (Kurz 2012, 132 sg. [117 g.]).
Kurz refere aqui também a caça às bruxas como acontecimento crucial: “O processo das atribuições simbólicas e reprodutivas ao sexo feminino decorreu de um modo tão sanguinário e repressivo como o desenraizamento de partes consideráveis da população e a transformação do dinheiro. Prova disso é a bárbara caça às bruxas que se arrastou do século XV até ao início do século XVIII. O patriarcado da Antiguidade e da Idade Média feudal transformou‑se, assim, no moderno, mediado pela lógica do dinheiro. A dominação masculina não se terá diluído, mas assumiu outra constituição, quase 'objectiva', determinada pela 'economia' em formação. O carácter estruturalmente 'masculino' do processo de 'desvinculação', associado à mobilização original em torno das armas de fogo, foi inscrito na base do capital nascente – mas foi‑o, precisamente, como momento dissociado das formas de base e não explicitamente contemplado na reflexão oficial. Depois de a máquina auto‑referente da multiplicação do dinheiro estar estabelecida e ter dissociado sexualmente todos os momentos da reprodução que era incapaz de abranger, a 'economia' assim criada produziu, graças à sua dinâmica própria, 'leis' próprias” (ibidem, 133 [118], ver já Scholz 1992).
Perante este pano de fundo, no fordismo baixaram os custos de produção da força de trabalho relativamente à mais-valia, que subiu também do ponto de vista do capital, o que significou que salários reais e poder de compra aumentaram continuamente, resultando numa optimização das possibilidades de consumo dos assalariados. A formação do modelo de família homem-ganha-pão/mulher-doméstica veio assim de par com a passagem da produção com mais-valia absoluta à produção com mais-valia relativa, proporcionada pelo desenvolvimento das forças produtivas.
No pós-fordismo, com a revolução microelectrónica, dissolvem-se as instituições da família e do trabalho remunerado, na sequência dos processos da globalização, que eles próprios resultam do processo da dissociação-valor; as relações de género tradicionais desfazem-se sem que desapareçam as hierarquias de género. As relações entre os sexos no patriarcado capitalista asselvajam-se mesmo. O homem como ganha-pão da família e a mulher como dona de casa tornam-se obsoletos; as relações de género são agora aparentemente individualizadas, as mulheres são “duplamente socializadas” (Regina Becker-Schmidt), isto é, são igualmente responsáveis pela família e pela profissão, mesmo se agora são liquidados os trabalhos de reprodução cada vez mais profissionalizados, por sua vez também por mulheres. Os homens “são transformados em donas de casa” (von Werlhof), na medida em que se movem em relações de emprego precárias. Tendencialmente manifestam-se também no “Primeiro Mundo” relações que conhecemos das favelas dos países do “Terceiro Mundo”. As mulheres educam os filhos com a ajuda de familiares mulheres e de vizinhas, os homens vão e vêm, sendo frequentemente também sustentados pelas mulheres; assim continua o patriarcado capitalista, mesmo na sua erosão. As mulheres têm agora de reproduzir uma sociedade que de facto já não pode ser reproduzida, na decadência do patriarcado capitalista, sendo que os homens, com a tendência a “tornarem-se donas de casa”, frequentemente se desresponsabilizam. Nisto a situação das mulheres no Terceiro Mundo ou na Europa de Leste apresenta-se sem dúvida mais dramática do que na Alemanha.
O desenvolvimento das forças produtivas e da tecnologia, no entanto, não é mediado apenas materialmente pelas actividades de reprodução “privadas” executadas pelas mulheres, mas também está ligado com a dissociação do feminino na psicologia social e nos símbolos culturais, como mostram diversos estudos (cf., por exemplo, Scheich 1993). Decisivo aqui é que a dissociação do feminino relativamente ao valor (mais-valia) não é um “exterior” ao capitalismo, mas a relação de dissociação-valor(mais-valia) é, sim, uma relação basilar dialéctica, que desde o início constituiu o todo fetichista e o “movimento em si”, justamente porque a dissociação do feminino é simultaneamente exterior à relação de valor (de mais-valia). Por isso, no caso das actividades femininas de reprodução, não se trata simplesmente da reprodução da mercadoria particular força de trabalho (caso em que esta pode depois ser novamente subsumida ao “valor”), pelo contrário, esta dimensão tem a sua lógica própria, que resulta justamente da relação dialéctico-dinâmica com o valor, e de facto no sentido da reprodução social total no patriarcado capitalista. Nisso a dissociação é tanto pressuposto do valor (da MAIS-valia) como inversamente. É esta lógica própria, que não em último lugar resulta da separação entre trabalhos produtivos e actividades dissociadas improdutivas, que é preciso ter sempre em conta. É esta dinâmica de dissociação-valor que em última instância possibilita a contradição em processo e gera a queda do capitalismo, pelo que este contexto de dissociação-valor tem de ser reformulado como contexto basilar (cf. também Scholz 2013). Esta dissociação atravessa todos os planos e domínios, não pode ser simplesmente reduzida à divisão entre esfera privada e esfera pública; por exemplo, as mulheres na vida profissional continuam a ganhar menos que os homens, mesmo com qualificações equiparáveis. A dissociação-valor(mais-valia) é um contexto basilar objectivo que constitui o todo social mundial como tal e não tem apenas por objecto as relações de género em sentido estrito, como um “aspecto” da totalidade social da socialização do “valor”. Como tal a crítica da dissociação-valor também tem de dar espaço a diferentes disparidades sociais (ver abaixo).
Mas Federici não consegue ver isto com a sua concepção de colonização, porque esta está revestida de operaismo e de luta de classes e a partir daí utiliza nas mulheres, camponeses, “povos” indígenas etc. o seu ponto de partida já sempre subjectivista. Isto aplica-se na generalidade também à sua ingénua definição do conceito de natureza. Não é preciso acrescentar que na concepção de colonização de Dörre por maioria de razão não se consegue encontrar tal abordagem em termos de teoria da dissociação-valor.
6.2. Colonização, (re)colonização, globalização?
Se se tomar como ponto de partida a contradição em processo / o contexto de dissociação-valor, incluindo o “mecanismo de compensação relativa” no fordismo, pelo qual a contradição fundamental parecia removida no fordismo, para depois se mostrar tanto mais claramente na era da globalização, então também não se pode falar do processo de globalização como uma recolonização renovada, no contexto de uma colonização permanente como princípio capitalista fundamental, pelo contrário, tem de se falar de um processo orientado, que hoje ou em breve estará a chegar ao fim. Federici vê as coisas de modo perfeitamente diferente: em vez de, tendo por fundo a dissociação-valor como contexto fundamental do patriarcado capitalista, constatar o tornar-se obsoleto do trabalho abstracto e a desvalorização do valor, no contexto duma contradição em processo que se aproxima do fim na financeirização e informatização e na revolução microelectrónica, ela assume um aumento do trabalho hoje, que além do mais continuará para sempre.
Em vez disso, é preciso classificar as tendências efectivamente observáveis de “colonização” no contexto do clímax do capitalismo, do “Colapso da modernização” (Kurz) e do tornar-se supérfluo em massa, em vez de as elevar a essência e a lei fundamental (a-histórica) do capitalismo. Sobre isso escrevia Kurz já em 1991: “As ideias de uma 'colonização' capitalista do Leste estão claramente orientadas no antigo paradigma esquerdista da 'exploração neocolonialista' do Sul; em ambos os casos conjura-se como motivo fundamental a absorção de 'mão-de-obra barata' pelo 'vampiro' capital. Mas essas ideias tinham o seu fundamento real na história de imposição pré-fordista do capital, há muito tempo passada. Mão-de-obra barata como meio principal da acumulação, trabalho forçado e de escravos em produções pouco dispendiosas, na exploração de matérias-primas (mineração, plantações) ou em gigantescos projectos de infraestruturas, como a construção de caminhos de ferro e de barragens, faziam parte (particularmente na União Soviética) das forças impulsionadoras históricas do capital, isto é, de sua 'acumulação primitiva'. Quem refere essas forças e esses motivos sem cerimónias ao actual sistema global está vivendo ideologicamente do passado e deixa de ver os potenciais entrementes nascidos da cientificização e o nível daí resultante da produtividade.” (Kurz 1991, 190 sg. [166]). A acumulação primitiva nos países do Terceiro Mundo, comparável com a registada cerca de 400 anos antes em alguns países europeus, ocorreu em grande medida apenas após a Segunda Guerra Mundial, num nível de socialização mundial já elevado (em que os restos da subsistência tradicional se tinham mantido, mesmo durante a brutal fase de colonização). Por isso, em relação à “modernização atrasada” dos Estados do Terceiro Mundo, trata-se por assim dizer de canhões, porque eles já não conseguem realizar uma acumulação primitiva no contexto de um “novo modelo de acumulação” à escala global (cf. ibidem, 223 sgs. [193 sgs]). A industrialização “ficou parada a meio caminho, isto é, depois de desarraigar as massas, deixou de integrá-las na moderna máquina de exploração da economia empresarial” e restringiu-se a determinadas regiões (ibidem 224 [194]). Tais tendências prosseguem no essencial no processo de globalização das últimas décadas.
Tal como Federici concebe erradamente os actuais processos de globalização como “recolonização”, também há posições que simplesmente negam os processos da globalização como processo mundial. Kurz também se opõe a tais posições: não em último lugar “no curso da globalização … foram estabelecidas de modo completamente novo 'zonas económicas especiais' e sobretudo zonas de processamento de exportação (ZPE) nas quais se move o capital transnacional. Já a designação 'zona' aponta para o carácter extraterritorial de crise de toda a organização. A extraterritorialidade consiste bem seguramente em condições especiais fiscais, de licenciamento, de direito do trabalho etc. em que se exprime a crescente renúncia do Estado nacional à sua capacidade de regulação. Tais zonas expandem-se a grande velocidade, enquanto simultaneamente se quebra a coerência da economia nacional e, pelo contrário, aumentam também velozmente as zonas de completa paralisia e abandono” (Kurz 2005, 182). De notar que Kurz designa estas zonas económicas especiais com o termo “extraterritorialidade” e não com o conceito de “colonização”. Elas têm mais a ver com “estado de excepção” do que com trazer para dentro do sistema regiões exteriores ao capitalismo, no sentido de uma permanente auto-renovação (ver abaixo).
Kurz parte fundamentalmente do facto “de que a globalização atinge cada vez mais países – mas justamente como processo de crise interna, com divisão económico-social. A dimensão da penetração transnacional pode ser mais ou menos forte; a maior parte das vezes surge apenas em dose homeopática, enquanto a maioria do espaço fica abandonado à desintegração. Toda a periferia global no seu conjunto é assim, por um lado, atingida, por outro lado, de forma completamente irregular” (ibidem, 182). É preciso aqui notar, ainda assim: “No interior da compressão do processo de globalização a determinadas regiões à escala planetária, continental e nacional ocorrem constantes deslocamentos e reagrupamentos” (ibidem, 179). Isto aplica-se também aos países em desenvolvimento e aos BRICS. Assim, até a redacção da revista Prokla constata num call for papers de 2014: “Também as perspectivas de desenvolvimento dos BRICS não são de modo nenhum claras: se Estados como a Índia e o Brasil ainda há pouco eram considerados casos de sucesso, mais recentemente há sinais de que estes países estão a cair em crise. A Rússia, há poucos anos uma potência líder, é hoje considerada um país em desenvolvimento, cuja política se vê obrigada a criar uma nova esfera de influência” (Redacção da Prokla, 2014). Entretanto pode constatar-se por toda a parte que os países em desenvolvimento estão numa crise profunda.
Federici, pelo contrário, compreende os cegos processos da globalização – ceterum censeo – como uma vontade de colonizar do “capital”, no contexto de uma “acumulação primitiva” global e permanente, com o sugar da força de trabalho que pode continuar sem fim.
Tendo como pano de fundo uma perspectiva de crítica da dissociação-valor, os actuais processos de globalização “não ocorrem, no entanto, na senda de um movimento ascendente do capitalismo global, mas sim na senda de um movimento descendente. Por isso predomina na formação estrutural da 'auto-similaridade' global a tendência negativa e, como resultado, mantém-se a antiga distância entre o centro e a periferia; mas no interior de uma história comum de crise e desintegração … A 'auto-similaridade' do sistema mundial permanece superficial, porque se apresenta no centro e na periferia numa densidade completamente diferente … Por isso se expandem … os processos de desintegração social nos países periféricos ainda mais depressa do que nos países centrais do capitalismo” (Kurz 2005, 109). Os fenómenos de desintegração dos países da periferia, porém, são um sério aviso também e justamente para os países do chamado Primeiro Mundo, como há muito se pode ver (Kurz 1991, 189 [165]). A lógica da contradição em processo, de crédito, financeirização e economia do deficit, mostra-se hoje, quando o “limite interno” do capitalismo está à vista, ou seja, empiricamente, em relações de modo nenhum tornadas iguais nem da mesma empiria; a história colonial desenrola-se mesmo pelo presente adentro e determina-o, no que é preciso concordar com Federici; mas é por isso que as mudanças qualitativas recentes à escala mundial há muito deixaram de poder ser esclarecidas com uma TEORIA da colonização, no fundo partindo das anteriores relações nas antigas colónias.
Assim, em Federici, é visível um etnocentrismo invertido: para ela, as margens do capitalismo, nomeadamente as colónias, os povos indígenas, ou também as mulheres da “cultura dominante” (Birgit Rommelspacher, ver abaixo) são transformadas mais uma vez em “centro estratégico”, mas sempre dentro de um marxismo do movimento operário modificado, que se sente obviamente na necessidade de cavalgar entre outros o pressuposto básico da colonização para ainda se conseguir legitimar. Sobre isso o próprio Kurz constata ainda para países emergentes como a China: “Aqui não é industrializado território nenhum, mas ocorrem actividades económicas desterritorializadas, pontuais, cuja coerência não é formada pela China nem por outros países enquanto economias nacionais, mas sim exclusivamente por funções particulares da economia empresarial” (8) (Kurz 2005, 128).
Isto implica, diz ainda Kurz: “Nas condições da terceira revolução industrial, que tornou esta imediatidade do mercado mundial uma realidade, as forças produtivas e os meios de produção da maior parte do mundo são dispensados por falta de rentabilidade em termos de economia empresarial, mas sem que as pessoas sejam dispensadas também da forma capitalista (que, lá está, há muito que também constitui a sua forma interior de sujeito), sendo que essa forma de sujeito também sempre sofre a carga da moderna relação entre os sexos, ou seja, é sexualmente modificada. Onde não são dispensados pura e simplesmente, os meios de produção (não em último lugar as terras agrícolas férteis) sofrem uma reorientação forçada para o mercado mundial universal, o que significa, por exemplo, no âmbito do agro-business global, a produção pouco exigente em termos de mão-de-obra de produtos de alta tecnologia, de bens de luxo como flores cortadas ou alimentos seleccionados para os centros ocidentais, ao passo que a população local é expulsa das suas terras e privada dos seus recursos vitais, que não (ou já não) podem ser representados economicamente sob a forma do valor, sem, no novo patamar das forças produtivas, poderem ser integrados na produção para o mercado mundial, nem sequer de forma meramente repressiva como 'hands' [trabalhadores manuais]. É um facto que os fluxos de mercadorias e de dinheiro, em que se representam a produção agrária marginalizada ou situações pontuais de aproveitamento assalariado barato, são de uma dimensão negligenciavelmente reduzida face à totalidade do produto global e, em especial, face ao volume do capital financeiro vazio de conteúdo; mas é precisamente nesta dimensão relativamente microscópica da criação de riqueza 'válida' a nível mundial que desaparece a vida de enormes massas populacionais de 'supérfluos'. A riqueza (ela própria apenas abstracta e destrutiva) dos países centrais do Ocidente não depende da massa de flores cortadas baratas, provenientes da Colômbia ou da África central, que são levadas para as metrópoles por avião; mas é por essa meia dúzia de flores cortadas que populações inteiras são sacrificadas socialmente, precisamente porque a existência no âmbito do mercado mundial está ferreamente estabelecida como a única forma de existência possível” (Kurz 2003, 66 [cap. 2, nº 5, ao fim]).
A extracção de coltan e de outras matérias primas, tal como a exploração de trabalho para os telemóveis hoje em dia, são algo diferente dos tempos da colonização. As “flores cortadas” em Kurz são apenas uma metáfora da riqueza superficial do Ocidente. Numa grande percentagem, a economia actual corre em transacções no mercado financeiro e em cadeias transnacionais de criação de valor, isto é, de investimentos de racionalização, explorando a redução de custos. É justamente uma riqueza mercantil superficial que por maioria de razão exige aqui tal exploração exaustiva e que ocorram deslocalizações do investimento para outras partes do mundo condicionadas pela racionalização, nas quais depois é exercida uma exploração maciça da força de trabalho, sendo que no seu conjunto baixa a massa de valor e o trabalho abstracto na sua “substância material abstracta”. Tais relações de exploração, no entanto, devem ser consideradas presentemente à escala do todo social (mundial) constituído, elas próprias são sobretudo mediadas pelo crédito e não em último lugar financiadas no contexto de um circuito de deficit. Mesmo os alimentos básicos são hoje patenteados e tornados objecto de especulação. NESTE contexto as matérias primas continuam a ser exploradas como antes, com as respectivas consequências ecológicas, por exemplo, também em formas novas como o fracking, e ocorrem “colonizações”. Nisso também se pode falar hoje de “segurança de reservas estratégicas de matérias primas”, sendo que a segurança da matérias primas fósseis, em cuja base assenta todo o modo de vida capitalista, quando elas se tornam cada vez mais escassas assume um papel mais importante do que anteriormente (ibidem, 103 sgs.).
Naturalmente que tão pouco a reprivatização de equipamentos púbicos aqui pode passar por nova colonização em sentido estrito – como em Dörre e também em Federici. Trata-se de uma reestruturação no interior da socialização patriarcal capitalista que, após a fase fordista do “mecanismo de compensação relativa”, anuncia agora o fim do capitalismo. Os actuais movimentos de refugiados falam aqui uma linguagem clara. E assim o trabalhador subcontratado / trabalhador migrante / refugiado, explorado de facto de uma maneira nova e precário, não é porventura uma nova versão de trabalhador/proletário, mas a expressão do seu tornar-se obsoleto; uma via de exploração de tipo novo, que a contradição em processo assume por agora na sua forma de desenvolvimento, numa determinada fase da decadência do capitalismo. É verdade que desde os anos de 1990 ocorreu uma nova fase de expansão da produção de mais-valia absoluta à escala global, todavia isto já é uma consequência de se evidenciar o limite interno da produção de mais-valia no contexto capitalista global, como se mostra também nos países do centro com cortes salariais, aumento do tempo de trabalho etc. (cf. Kurz 2012, 305 sgs [272 sgs]). Mais cedo ou mais tarde, no entanto, tais tendências deverão ser alavancadas por novos passos da racionalização, como se vê, por exemplo, na discussão do fenómeno “Indústria 4.0”, mesmo que ambas as tendências devam desenvolver-se paralelamente durante algum tempo. Os seres humanos serão eles próprios simplesmente abandonados. Portanto é preciso formular as disparidades sociais, também na dimensão global, para além das categorias do velho movimento operário (ver, por exemplo, Scholz 2005, ver abaixo). Nisto o marxismo ocidental e o marxismo do bloco de leste não estão assim tão afastados como se sugere. (9) Em resumo, pode dizer-se que as enormes manchas em branco no Terceiro Mundo mostram que os seres humanos concretos há muito são tão supérfluos como se julgam precários actualmente aqui na Alemanha, onde, no seu empresariado de si mesmos, há muito pressentem que não são poupados a esse destino, mas que os ameaça a paralisação absoluta (ver Grécia etc.), o que eles no entanto (pretendem) ignorar – sendo que a Grécia e os Estados a oeste dos Balcãs, abalados pela crise, eles próprios ainda são obrigados a acolher refugiados, como Estados terceiros supostamente seguros, quando são regiões das quais as pessoas fogem, tendo por fundo a perspectiva da superfluidade.
6.3. Administração da crise nacional e internacional, o tornar-se obsoleto do trabalho abstracto, ruína da periferia e guerra civil mundial
A concluir, pode constatar-se mais uma vez: “É … uma ilusão óptica ver aqui uma reindustrialização com base em novas vias orientadas para a exportação, que poderiam conduzir para além da antiga divisão de funções em que os países periféricos foram degradados a fornecedores de matérias primas. Pelo contrário, a antiga degradação é apenas completada ou substituída por uma nova, nomeadamente a utilização de opções baratas, desconexas, para a economia empresarial transnacional, enquanto o corpo da economia nacional se desmorona” (Kurz 2005, 128). Como se viu, o capitalismo determinado pelo mercado financeiro, essencialmente mediado pelo crédito e caracterizado por um circuito de déficit, já não pode por si “arranjar” um novo modelo de acumulação, após o fim do paradigma da produção. Ele cria constantemente “bolhas financeiras” que têm de rebentar mais cedo ou mais tarde. Mesmo uma potência até aqui considerada de hiper-soberania, como a China, está entretanto a passar por isso (cf. Konicz 2015).
De seguida será abordado pelo menos ao de leve um contexto, nomeadamente a relação entre administração da crise nacional e internacional, o tornar-se obsoleto do trabalho abstracto, o desmoronamento da periferia e as guerras civis mundiais, que até agora quase ainda não foram faladas e que em Dörre e Federici caem fora como dimensões da “colonização”, porque eles recuam perante uma CRISE de facto FUNDAMENTAL do patriarcado capitalista, que não pode ser evitada por qualquer classe dominante nem subalterna (revolucionária). Neste contexto, Kurz também contradiz todas as teorias que continuam a ver o Estado nacional como base reguladora primária, vendo ainda neste contexto possibilidades de ordem mundial, tanto na dimensão meso como na dimensão macro da globalização, uma ilusão que para alguns também consiste hoje em ver uma decadência mais ou menos provável do capitalismo, que ainda assim deve ser dominada de modo tanto quanto possível imanente. Em vez disso, Kurz vê a administração da crise nacional e internacional como momento característico da actual socialização mundial. As guerras de ordenamento mundial das últimas décadas não servem apenas para a segurança das reservas de matérias primas (não em último lugar o petróleo) e dos mecanismos de transferência capitalistas, a fim de garantirem uma criação (reduzida) de valor à reprodução capitalista. Escreve Kurz, já no ano de 2005: “Na periferia os processos de colapso em parte já levaram mesmo à dissolução do próprio aparelho de violência nacional em estruturas de senhores da guerra e subculturas terroristas. O 'imperialismo global ideal' (no sentido do Ocidente e dos EUA criadores da ordem, R. S.) não tem aqui qualquer perspectiva de reconstrução das possibilidades de acumulação; limita-se a tentar reconstituir os aparelhos nacionais de violência e de administração de pessoas (como no Iraque, no Afeganistão ou na antiga Jugoslávia) e onde já nada mais funciona passa à política dos protectorados, a campos de detenção e por fim à aniquilação de pessoas em larga escala … De certa maneira parece repetir-se aqui a história da constituição da moderna sociedade burguesa. No princípio era o estado de necessidade, a submissão do material humano à valorização do capital, como descreveram Marx no capítulo sobre a 'acumulação primitiva' e Foucault fenomenologicamente no que respeita à história de disciplinamento para as exigências do 'trabalho abstracto'. O núcleo violento de todo o direito burguês, incluindo os direitos humanos, surge desvendado. No entanto há uma diferença decisiva. O capitalismo inicial, num nível de produtividade relativamente baixo, ainda tinha à sua frente a história da acumulação e imposição do capital; o capitalismo de crise da terceira revolução industrial, num nível enormemente elevado e já não integrável nas suas formas, tem-na já atrás de si. Por isso é fundamentalmente errado descrever a actual administração da crise planetária como nacional, como renovada 'colonização capitalista', como faz grande parte da esquerda (para assim poder responder de alguma forma, repetindo os seus paradigmas tornados obsoletos). ´Colonização´ implicaria que aqui se tratasse de mobilizar recursos e sobretudo de força de trabalho para a renovação do movimento de acumulação. O caso é exactamente o contrário; para a administração da crise trata-se de desmobilizar recursos e força de trabalho, porque o capital mundial, no nível atingido do standard de produtividade e rentabilidade, já não é capaz de uma reabsorção alargada de capacidades produtivas na forma de 'trabalho abstracto'. O novo colonialismo de crise externo do Ocidente visa apenas manter na ordem as massas de seres humanos inutilizáveis nas regiões em colapso. O novo colonialismo de crise interno dos aparelhos nacionais de administração de pessoas, por outro lado, visa apenas apaziguar repressivamente a desmobilização da força de trabalho 'própria' e dar-lhe uma forma contínua gerível. O que se procura é a administração da pobreza até à exaustão e não a renovação reguladora de ´projectos´ sociais globais. O capitalismo transnacional já não está simplesmente em posição disso” (Kurz 2005, 457 sg.). Correspondentemente também estão, entre outros, “condenados ao fracasso os projectos induzidos pelo Estado de baixos salários e de trabalho comunitário obrigatório, pois não podem constituir nenhuma base de acumulação autónoma, pelo contrário, representam apenas uma fase de transição para novas camadas de párias” (Kurz 2003, 357). (10) A Pax Americana, portanto, já não é qualquer construção imperialista, no sentido de assegurar uma hegemonia nacional, mas caracteriza a aglomeração de capital já multinacional, para lá de um centro de dominação nacional. Imperialismos securitários funcionam há muito mas é para trabalhadores “estrangeiros” mexicanos nos EUA, por exemplo, mostrando-se actualmente em particular nos movimentos de refugiados que a fortaleza Europa procura desesperadamente conter, aplicando-se isso pelo menos aos/às migrantes “supérfluos/as”, com poucas qualificações. Não seria de admirar se a “colonização” fosse novamente virada à direita: “nós” estamos a ser inundados e colonizados por eles, não somos “nós” que os estamos a esmagar.
Federici mais uma vez vê as coisas justamente ao contrário, ainda que fale frequentemente de encerramentos e da perda de cada vez mais postos de trabalho: “Temos, no entanto, de rejeitar a conclusão de que a indiferença que a classe capitalista internacional mostra perante a perda de vidas humanas provocada pela globalização prova que o capital já não precisa de mais trabalho vivo, de modo que estaríamos cada vez mais rodeados de populações 'supérfluas'. De facto, a destruição da vida humana em grande escala é desde a formação do capitalismo uma das suas componentes estruturais. É a contraparte necessária da acumulação de força de trabalho, o que constitui sempre inevitavelmente um processo violento. As 'crises de reprodução' periódicas, que presenciámos durante as últimas décadas em África, assentam nesta dialéctica de acumulação e destruição de força de trabalho” (Federici 2012, 66 sg.). Ela coloca neste contexto relações de trabalho precárias, escravatura infantil, tráfico de órgãos etc. Ora de facto o fetiche do capital, para obter valor (mais-valia), por um lado, depende da força de trabalho humana, por outro lado, neste fim em si irracional, ele abstrai da obtenção de mais-valia de cada ser humano. Federici no entanto força esta dialéctica, ainda colorida no sentido do antigo marxismo das classes, de forma a-histórica, a fim de não ter de ver hoje o tornar-se obsoleto do trabalho abstracto e o desmoronamento do capitalismo.
Salta aqui à vista que a anomia e os processos de asselvajamento como tais quase não merecem atenção a Federici (sobre isso ver as observações de Gerd Bedszent relativamente à Nigéria neste nº da EXIT!). A miséria do mundo actual é para Federici o resultado do capital, no sentido da classe capitalista. Gerd Bedszent, pelo contrário, escreve, por exemplo: as “regiões 'libertadas' da ditadura transformam-se … na sua maioria rapidamente em palco de milícias étnicas, guerreiros religiosos e bandos armados de criminosos perfeitamente vulgares. Um exemplo particularmente crasso é o Iraque, em que a guerra de ordenamento mundial de 2003 levou de facto à rápida queda do ditador Saddam Hussein, mas o país, na sequência da crescente destruição da economia e das infraestruturas públicas, caiu numa interminável guerra civil entre milícias religiosas combatendo entre si … Após o colapso das economias nacionais dos Estados periféricos, restam frequentemente localizações ainda mais isoladas de criação de valor, a maioria das vezes extracção de matérias primas ou empresas agrárias organizadas industrialmente. Estas localizações estão cada vez mais desligadas da economia real das respectivas regiões e funcionam já apenas como fornecedoras da economia das metrópoles capitalistas” (Bedszent 2014, 19 sg.). Neste contexto, Bedszent constata que: “Na sequência do desmoronamento do Estado ocorrem frequentemente lutas sangrentas pelo controlo das últimas fontes de criação duradoura de valor entre os restos do exército estatal, movimentos rebeldes, milícias étnicas e guerreiros religiosos. O partido em conflito que se afirma em cada região pode sacar às empresas produtivas dinheiro na forma de licenças de venda, impostos ou pura extorsão, para assim se financiar. Se as lutas caem depois fora de controlo, de tal modo que o fluxo de matérias primas das regiões em luta fica seriamente ameaçado, voltam a ser pedidas novas guerras de ordenamento mundial do Ocidente” (ibidem, 20). Contudo: “A ausência de estatalidade … não pode ser reconstruída pela pura força militar” (ibidem, 20). De resto também cresce aqui a violência masculina. Hoje, em tempos de uma situação de guerra civil mundial realmente agudizada, em que de facto não pode deixar de se ver que ela arde em todos os cantos da Terra, de um contínuo crescimento da superfluidade, em que a opção de baixo salário será apenas uma fase de transição enquanto se tornam obsoletos o trabalho abstracto e o trabalho doméstico, do financiamento a crédito etc., tais avaliações de desmoronamento estão mais que confirmadas.
Aqui se revelou a impotência do Ocidente, ou dos EUA, que já há muito tempo não conseguem apresentar-se como mega-autoridade/soberania. O cenário de uma guerra civil mundial assumiu hoje contornos ainda mais claros: pense-se apenas na zona árabe, no Mali, na Nigéria etc., na realidade não é preciso nenhuma lista, basta ver as notícias diárias. É de presumir que no caso do conflito Rússia-Ucrânia se pretenda simular mais uma vez o conflito União Soviética / Rússia versus Ocidente, sendo que ele tem um carácter completamente diferente, por causa da nova situação de desmoronamento mundial; tanto a Rússia, como também a China, os EUA e a Zona Euro estão ameaçados por cenários de ruína próprios, mesmo se até agora sempre vamos continuando “umas vezes a subir, outras vezes a descer” (cf. Kurz 2013a). Por isso o conflito Rússia-Ucrânia não é de modo nenhum uma mera tempestade num copo de água, no entanto ele não sugere simplesmente um antigo cenário de conflito, em que seria provável que pudesse desenvolver-se como grande “contradição principal” na perspectiva geo-política, tanto que a economia mundial está entretanto mediada consigo mesma, isto é, ela passa por cima das “economias nacionais” individuais. Também o eixo Rússia-China-Índia, por exemplo, que mais uma vez se pretende afirmar em termos geopolíticos, é afectado por isso. Assim, não deveríamos deixar-nos impressionar com a intervenção “de Putin” no conflito da Síria.
Neste contexto, o tema de momento muito discutido da “Indústria 4.0”, com uma robotização ainda desconhecida e a importância da “inteligência artificial”, está hoje a fazer concorrência às recentes teorias da colonização e à afirmação do alargamento estrutural mundial da exploração de força de trabalho, mesmo na opção de baixos salários, e independentemente do facto de se tratar de trabalhos na indústria ou nos serviços (ainda que questões técnicas possam permanecer em aberto por mais tempo, como por exemplo os automóveis de condução automática). Mesmo que se conceba esta inovação mais uma vez como colonização, no sentido da expropriação da segurança fordista, como Dörre faz. Isto afecta não apenas o “Primeiro”, mas também o “Terceiro Mundo”, tal como os países emergentes, sendo que a aproximação ao “Terceiro Mundo” já vai bem avançada em alguns países do sul da Europa. Como já se disse, a poupança de trabalho e a expansão de trabalho poderão aqui entrar em corrida ainda por algum tempo, num quadro que se vai tornando cada vez mais inseguro, corrida que no entanto acabará em prejuízo do “trabalho”, podendo os prováveis crashes financeiros acelerar ainda mais este processo. A forma exacta de desenvolvimento da crise fundamental não pode, contudo, ser antecipada; tão pouco se pode indicar a data exacta em que o capitalismo colapsa, como gostariam alguns que entendem este colapso no sentido de um enfarte cardíaco repentino (cf. sobre isso Kurz 2012, 355 sgs. [319 sgs.]). Trata-se de um processo mais longo, que já podia ser percebido pelo menos desde a década de 1980, mas que ainda não aconteceu, como hoje se pode dizer retrospectivamente (ver Kurz 1986).
Mesmo que ainda venha mais uma “onda longa”, seja ela curta ou comprida, o fim do patriarcado capitalista deverá ser confirmado, o que obviamente não tem de significar incondicionalmente um fim emancipatório. No entanto, a questão das forças produtivas, e não só ela, já é sempre a questão da relação de dissociação-valor, como CONTEXTO BASILAR em si contraditório que, no sentido de uma abordagem dialéctica negativa, difere do antigo entendimento da contradição no sentido de Marx.
6.4. Sobre a relação entre crítica da dissociação-valor, "raça", "classe", género, globalização e teorias da colonização.
Para Federici há uma ocupação/colonização em toda a parte e sempre, e mesmo de cada pessoa, em que “o capital” está sempre interessado na exploração da força de trabalho, sendo a sua fome insaciável. Isto vale também para a era da globalização, em se pretende que ele está vitalmente interessado na expansão do “proletariado mundial”. Os sujeitos são para ela as mulheres, os camponeses, os povos indígenas, os trabalhadores, os trabalhadores deslocados precários etc. Diferentes regimes de disciplinamento geram uma acumulação de diferenças e hierarquias, de tal modo que o capitalismo é sofrido e vivido a partir de localizações específicas. Diferentes disparidades sociais tornam-se assim na categoria da colonização em acumulação primitiva duradoura, equiparadas aditivamente nas suas diversas qualidades, com um procedimento de lógica da identidade. Federici fundamentalmente parte do princípio de que as mulheres, os camponeses, os povos indígenas e no fundo também a natureza criam “valor”.
A teoria da dissociação-valor, pelo contrário, parte do princípio de que o feminino foi dissociado do valor (mais-valia), do trabalho abstracto e do sujeito masculino e delegado nas mulheres (actividades de cuidar, mas também qualidades como sensibilidade, emotividade, fraqueza de carácter entre outras), o que trouxe consigo a divisão em um domínio público e um domínio privado, com as correspondentes conotações sexuais hierárquicas. As modernas ideias de género espalharam-se assim por todo o mundo. A dissociação-valor não pode aqui ficar presa na divisão destes domínios, pelo contrário, ela atravessa todos os planos e domínios da sociedade e tem também um lado sociocultural e sociopsicológico. Deve ser compreendida como processo, isto é, ela não é sempre a mesma. Na pós-modernidade tem uma face diferente da da modernidade. As mulheres são agora “duplamente socializadas”, desfaz-se o papel dos homens de ganha-pão da família. Esta dissociação do feminino é agora também o pressuposto para uma contradição em processo, com a qual o trabalho abstracto se torna obsoleto no clímax do capitalismo, perante um enorme crescimento da riqueza material. O fantasma de uma feminilidade irracional não só foi decisivo no desenvolvimento das ciências naturais e das forças produtivas, mas revelou-se também na formação da família nuclear no fordismo, com as suas atribuições de género, que hoje está a desaparecer na sua forma tradicional. Assim, valor e dissociação condicionam-se um ao outro: um é o pressuposto do outro e vice-versa, o valor não tem o primado.
Contudo não se pode por isso falar da relação hierárquica de género como contradição principal – tendo a dissociação do feminino do valor por consequência, no competente entendimento da ciência, que o mundo da vida, o contingente, o não compreensível analítica e conceptualmente, que em grande medida continua a ser associado ao feminino, foi negligenciado, desprezado e considerado inferior, não só na economia e na política, mas mesmo também na ciência. Dominante foi um pensamento classificador que não toma em consideração a qualidade particular, a “coisa” em si não abarcada no conceito, e assim não consegue suportar as rupturas, ambivalências e diferenças que lhe estão associadas e, portanto, absolutiza a identidade e nega a não-identidade (cf. Adorno 1966). Se a crítica da dissociação-valor toma conhecimento disto daí resulta que ela tem necessariamente de aguentar a espargata que consiste em, por um lado, se afirmar como contexto basilar, por outro lado, só poder fazer isso se ela própria se retirar e admitir o que não fica absorvido no seu conceito, ao contrário do pensamento androcêntrico universalista. Ocorre assim a situação paradoxal de que ela só se pode manter se estiver pronta a desmentir-se também a si mesma. Mas isto não significa que ela se bata ao lado das diferenças, ambivalências, rupturas, dessincronizações etc., como que em flutuação livre, pelo contrário, ela tem de asseverar estas por assim dizer em si mesmas, fazendo valer simultaneamente a sua qualidade própria. Por isso racismo, anti-semitismo e anticiganismo não podem ser derivados da dissociação-valor, enquanto contexto social basilar, tal como a dissociação não pode ser derivada do valor. Isto significa que a dissociação é de certa maneira o paradoxo de um conceito não idêntico, e isso mesmo ainda no seu fluir histórico-dinâmico.
Birgit Rommelspacher escreveu já em 1995, no que respeita à equiparação de mulheres, “selvagens”, colonialismo: “Consequentemente as mulheres são discriminadas do mesmo modo que as minorias étnicas, pois o racismo colonial seguiu no essencial a mesma lógica que o sexismo. Esta lógica funciona nas construções da 'mulher' e do 'selvagem', que muitas vezes se sobrepõem” (Rommelspacher 1995, 106). Daí retira ela a consequência: “Uma tal detecção de pontos comuns deveria realmente levantar também a questão das diferenças. Mas tal questão em regra não é colocada. Isto vale sobretudo também para os debates influenciados pelo ecofeminismo, que destacam a ligação entre a exploração dos povos colonizados e a exploração das mulheres como 'matéria prima'. A apropriação colonial de terra e recursos naturais é equiparada à colonização das mulheres nas nações industrializadas. Aqui se assume a equiparação não só das imagens, mas também dos princípios da exploração e da dominação política” (ibidem, 106 sg.).
Não é difícil perceber que isto também se aplica a Federici e significa, no contexto aqui criticado de colonização, que a crítica da dissociação-valor tem de reconhecer na sua própria lógica e denunciar publicamente não só estruturas sexistas, mas também racismo, anti-semitismo e anticiganismo, bem como disparidades económicas, mesmo no sentido da queda das classes médias formadas na fase fordista (que hoje se colocam no centro das atenções, cheias de autocomiseração). Isto aplica-se igualmente à composição específica das relações sociais em diferentes regiões do mundo, às quais ela também tem de satisfazer em concreto, até aos cenários microdimensionais de, por exemplo, identidades híbridas e de uma cumulação de formas de discriminação nos indivíduos isolados, tendo por fundo um ser devindo [Gewordensein] histórico, no contexto global patriarcal-capitalista (sobre isto detalhadamente Scholz 2005 e 2008). Ao contrário de críticas do valor hoje muito divulgadas, a crítica da dissociação-valor assume, portanto, muito bem a relevância das disparidades e hierarquias económicas e sociais, bem como a necessidade da sua análise. A crítica de uma mera perspectiva de repartição no marxismo tradicional não deve levar a que o bebé seja lançado fora com a água do banho, pelo contrário, é preciso ter em conta as dimensões de desigualdade, para lá do entendimento no sentido do marxismo do movimento operário. Portanto também não se deveriam aqui evitar os planos meso e micro, nem as perspectivas mais próximas da empiria. Que não devem ser simplesmente tratados como inferiores face à dissociação-valor como teoria macro (cf. Scholz 2009a). Na teoria da colonização de Federici, pelo contrário, ocorre uma “totalização” (Hedwig Dohm), como se ela, com a afirmação de uma acumulação primitiva permanente, subsumisse tudo em conceitos fenomenológicos como expropriação, vedação, ocupação de terras, tendo por fundo uma difusa determinação da reprodução social.
Para Federici ocorre aqui uma referência aos sujeitos discriminados independentemente de quaisquer mediações, no modus da pura imediatidade. Nela não tem lugar uma determinação estrutural da “raça”, do género e das disparidades económicas; que são tratados e analisados sobretudo no plano descritivo. Tão pouco são criticadas por Federici as mudanças no plano subjectivo, na forma de identidades compulsivas flexíveis, inapelavelmente exigidas pelo turbocapitalismo, não só porque para ela todos os sujeitos têm de ser resistentes, mas também porque ela hipostasia e aprecia à partida a subjectividade do movimento, transformada mesmo em fundamento e motor do desenvolvimento capitalista. Como operaista, ela ignora simplesmente os momentos e potenciais bárbaros nos movimentos sociais “de resistência”.
A crítica da dissociação-valor não enaltece simplesmente as diferenças, nem as deixa a flutuar como nas teorias pós-modernas, até ao ponto de ela própria se dissolver como grande categoria. Ao contrário dum pensamento pós-moderno da diferença, para ela não se trata apenas da qualidade de uma determinada coisa, pelo contrário, trata-se de com isso insistir paradoxalmente numa totalidade, pressuposta tanto aos indivíduos como aos grupos sociais, queira-se ou não. A grande categoria dissociação-valor, como contexto basilar, só se torna tal através do facto de ela própria ter de se afirmar como absoluto, dando seguimento a diferenças, contradições e desigualdades. Isto também está abrangido pelo seu objecto especial. Ora este objecto especial não é de modo nenhum arbitrário, mas trata-se de uma relação social fundamental até hoje pouco tematizada como tal: dado que as mulheres foram e são consideradas à partida como “peculiares, menores, diferentes” (Gudrun-Axeli Knapp), mesmo na maioria das outras culturas e regiões mundiais, e que justamente por isso a dissociação do feminino como princípio fundamental foi dissimulada também na teoria e na ciência, a teoria fundamental da dissociação-valor não pode ser formalizada como simples auto-relativização, nem o género pode ser concebido como apenas uma diferença e hierarquia entre muitas diferenças e hierarquias (cf. Scholz 2011).
Na guerra civil mundial, como resultado da dissociação-valor enquanto contexto fetichista basilar em toda a sua complexidade, de seguida justamente também as mulheres se tornam relevantes como administradoras da crise, seja na periferia em grupos de auto-ajuda, seja nas alavancas do poder – mesmo à escala global – como relações sociológicas de desigualdade simplesmente baratas independentemente de “raça”, classe e género, justamente quando o patriarcado capitalista está sem conserto e já nada se pode conseguir à maneira patriarcal habitual. Mas as mulheres também voltam aqui à situação de maltratadas com a máxima “trivialidade”, enquanto forçadas à prostituição, empregadas domésticas etc. (frequentemente migrantes). O aumento parcial do poder das mulheres é assim uma vitória de Pirro, que reside apenas na linha de queda do patriarcado capitalista em colapso, mas que muito pouco tem a ver com emancipação, no sentido de uma suplantação fundamental de tais relações.
A teoria da dissociação-valor, como já se disse, tem de reformular a contradição em processo desta maneira. Não é simplesmente o valor (a mais-valia) que produz a respectiva dinâmica, pelo contrário, a dissociação é o seu próprio pressuposto em cruzamento dialéctico com ele, cruzamento que possibilita tal dinâmica e só assim gera o “sujeito automático”. Por conseguinte, é a dissociação-valor, como princípio dinâmico do patriarcado capitalista, que também se modifica a si mesma neste processo contraditório, que determina todo o desenvolvimento histórico e o “movimento em si mesmo” através de todas as etapas históricas até ao actual asselvajamento do patriarcado.
Aqui é preciso, mais uma vez, acentuar e reter: é verdade que não se pode por princípio partir de um patriarcado universal, nem sequer em tempos pré-modernos ou noutras culturas, quanto a isso também nas sociedades não-modernas houve muitas excepções (cf. Arbeitsgruppe Ethnologie Wien 1989) e também é preciso distinguir as diversas faces das hierarquias patriarcais. Mas, por outro lado, também não pode ser ignorado que desde os tempos pré-modernos até hoje a maioria das sociedades foram/são constituídas patriarcalmente. As concepções desconstrutivistas, que já partem sempre de inter-relações de género, já não conseguem ter em conta este facto. Para elas este facto violento é simplesmente feito desaparecer por artes mágicas. Não se trata aqui de cair num ponto de vista absolutamente relativista da cultura e historicista, nem de promover a hipostasiação da diferença, como era usual nas abordagens pós-modernas das últimas décadas. Também é preciso assumir que as ideias de género e os modos de vida ocidentais entraram de diferentes maneiras em amálgama com as estruturas patriarcais tradicionais mesmo na periferia. A afirmação da dissociação-valor como contexto social basilar, que se localiza num alto nível de abstracção, não deve aqui ser confundida com um ponto de vista de classe média ocidental, que generaliza a posição das mulheres ocidentais de classe média; pelo contrário, trata-se aqui de uma estrutura objectiva fundamental que para já nada tem a ver com determinações identitárias, pontos de vista e interesses particulares. Neste caso é preciso também pensar que o modelo de civilização patriarcal ocidental de facto aspira a submeter tudo até ao seu desmoronamento, pelo que tem de se assumir uma totalidade social fragmentária a nível mundial no sentido da dissociação-valor. Federici não consegue pensar um tal plano fundamental porque à partida pensa identitariamente, na base do marxismo do movimento operário operaista, e nesse sentido considera as mulheres, os camponeses, os povos indígenas, os trabalhadores migrantes pós-proletários como oprimidos e “colonizados pelo capital”. Sem universalizar a dissociação-valor de uma maneira equivocada, é preciso agora entender muito bem no sentido da crítica da dissociação-valor as dimensões “raça”, classe, género e colonização nas diferentes regiões mundiais, bem como desigualdades, processos da globalização e o desmoronamento do patriarcado capitalista num cenário de guerra civil mundial hoje, no contexto duma “contradição em processo” modificada.
O atributo “feminino” também não pode ser considerado como o utópico, pelo contrário, ele já é sempre imanente ao contexto da socialização de dissociação-valor em si fragmentário, como o Outro do valor. Neste contexto seria preciso criticar também as chamadas relações heteronormativas que, como arranjo heterossexual nas sociedades modernas, advêm da divisão dos domínios da produção e da reprodução, mas simultaneamente não se deve esquecer que as relações de género maioritárias também nas sociedades tradicionais não raramente implicavam uma hierarquia de género entre homens e mulheres, uma circunstância que frequentemente é feita desaparecer na argumentação pós-moderna. O questionamento da dupla sexualidade não significa de modo nenhum uma garantia de que desapareça a hierarquia homem/mulher. Por muito que também as dimensões diferentes tenham de ser tidas em conta, a dissociação-valor, como contexto categorial de base, não pode ser simplesmente inchada e diferenciada. Como metateoria abrangente, que sabe muito bem da sua própria limitação e nunca se pode colocar ingenuamente como universalista, ela tem de ser afirmada incondicionalmente como tal, e é perante este pano de fundo que depois também as mudanças na relação de género podem ser compreendidas. Por outras palavras: a dissociação-valor, como contexto de base, tem de ser vista em certa medida como o verdadeiro fundamento social, que co-constitui essencialmente o capital como sujeito automático, ou seja, o fetiche do capital, só com ela sendo ele possível em geral. Desta maneira ela solta-se do ponto de vista do marxismo do movimento operário, que consequentemente também não pode ser transferido para outros sujeitos, como acontece em Federici, tal como se solta de qualquer ideia de uma contradição principal. Isso já é frustrado pelo seu objecto próprio, a contradição de género, uma vez que esta – ceterum censeo – de acordo com a sua própria lógica está condenada a arranjar realmente lugar para aquilo que não se lhe submete.
Dörre argumenta contra outras teorias da colonização surgidas no contexto femininista: “Com a violenta gestação de relações de exploração que é utilizada no trabalho de subsistência, no entanto, declara-se um mecanismo de formação INespecífica como sendo de validade geral e fundamental, o qual justamente NÃO corresponde ao princípio da troca de equivalentes capitalista. A exploração, na sua versão essencial a montante da produção de mais-valia, é considerada como logro baseado na força, como 'roubo'. Pelo contrário a teoria de Marx pretende esclarecer como é possível a exploração, apesar do princípio da igualdade contratual vigente no mercado de trabalho” (Dörre 2015, 45, destaque no original). No que diz respeito às últimas, Dörre fala de “formas de exploração primárias”, falando no caso das primeiras de “formas de exploração secundárias”. “Pode então falar-se de exploração secundária sempre que são utilizados mecanismos de disciplinamento legitimados em termos simbólico-culturais, ou estatal e politicamente, com o objectivo de conservar diferenças interior-exterior, a fim de pressionar a força de trabalho ou o nível de vida de grupos sociais, por exemplo através da desvalorização racista ou sexista, claramente abaixo do nível geral salarial e de reprodução assegurado pelo Estado de bem-estar social, ou ainda, a fim de poder utilizar actividades dentro e fora da esfera profissional como recursos grátis não-pagos” (ibidem, 46). Aqui temos nós a velha tese da contradição principal e secundária, que nos é apresentado por Dörre em novo design colonial. “Forma” para ele é apenas a antiga “forma” mediada pela mais-valia. Ele não alcança a determinação da dissociação-valor, como contexto basilar contraditório e em processo, ou seja, uma relação de dissociação-valor que sabe do sem-forma (dissociação) em mediação dialéctica com o valor (mais-valia) como seu pressuposto não reconhecido, o que também implica que os diferentes planos, dimensões e domínios no interior da teoria da dissociação-valor têm de ser tidos em conta na sua lógica própria. “Dissociação” é assim de certa maneira um conceito-anticonceito e apenas ele possibilita um conceito da forma capitalista do valor (da mais-valia) em geral. Dörre está muito longe de tais ideias, como também Federici. Particularmente Dörre deveria aqui talvez “trabalhar” um pouco mais as suas ideias (androcêntricas) de forma. As actividades femininas de cuidar deveriam assim representar designadamente o “Outro”, mas onde está a determinação de que a dimensão sexual é realmente o decisivo, o constituinte da forma? É preciso tê-lo em conta, mesmo se esta dimensão de dissociação-valor – como se viu – depois tem igualmente de se retirar considerando Outros com “iguais” direitos.
7. Teorias da colonização e perspectivas de transformação
Como já foi referido, para Dörre as intervenções estatais, não em último lugar promovidas pelos movimentos sociais de protesto, são cruciais para efectuar uma mudança social fundamental; assim se poderiam talvez materializar um novo “Green New Deal” e um novo “ciclo Kondriatiev” ecológico. Para ele o objectivo é sobretudo uma dimensão de pós-crescimento acoplada a uma perspectiva de redistribuição. Correspondentemente, as instituições “trabalho profissional, constituição económica, … Estado de bem-estar e democracia” têm de ser modificadas (Dörre 2013, 135). No fundo lamenta-se aqui o fim do socialismo real, que já em tempos teve uma perspectiva de propriedade colectiva que agora se pretende reinstalar. “O campo de intervenções ecológicas e inovações verdes decisivas é descoberto como acumulador potencial, que deverá possibilitar tanto o crescimento a longo prazo como também a sua descarbonização e desmaterialização” (ibidem, 136 ). Isto teria agora de acontecer no contexto de uma “ordem mundial multilateral”, uma perspectiva que de resto permanece em grande parte exterior à análise de Dörre (Dörre 2009, 83).
Dörre vê aqui perfeitamente que mesmo as “melhores concepções de Green New Deal” não apresentam no fundo qualquer solução para o dilema do crescimento. E constata: “A transição para sociedades pós-crescimento apresenta-se actualmente como utópica, pois isso afecta o núcleo essencial da socialização capitalista” (ibidem, 136). “Núcleo essencial” quer aqui dizer orientação para o lucro e crescimento compulsivo, no fundo entendidos no contexto de uma velha relação de classes. Apesar de todo o cepticismo, em Dörre pode reconhecer-se que continua presente de algum modo uma perspectiva social-democrata. Mas as esperanças social-democratas envergonharam-se entretanto até à medula com os exemplos de Obama e Tsipras.
Neste contexto vago ele também vê presentemente embriões para uma transformação social. Que reconhece “nas actividades de alimentar, educar, formar, cuidar e proteger”, hoje mal pagas e apenas dificilmente susceptíveis de racionalização, que são executadas sobretudo por mulheres. “Se os há … estes são os sectores que conseguem crescer – lentamente – no capitalismo avançado. Valorização e melhor pagamento de uma parte destas actividades, financiamento através de impostos e política redistributiva, novas formas de propriedade, como prestação de serviços organizada cooperativamente, democratização do trabalho de prestação de serviços através da cogestão de produtores e clientes, reduções de horário de trabalho justas em termos de género e tempo para a democracia, estas são algumas importantes notas para uma perspectiva de transformação centrada no trabalho com sentido. Uma tal transformação não se consegue sem o controlo público de sectores sociais chave (energia, finanças etc.). Ela teria de transformar as grandes empresas com posição dominante no mercado naquilo que elas implicitamente já são – instituições públicas, cujas actividades estão ligadas a uma vontade colectiva democrática” (ibidem, 138). Aqui se torna claro em Dörre o vivo interesse em manter um capitalismo (domesticado) e não só; no caso das “melhores concepções de Green New Deal”, a questão não é apenas se com as suas exigências ecológicas elas não conseguem parar a espiral de crescimento no capitalismo, mas também como podem um Green New Deal, tal como os trabalhos (femininos) de cuidar, ser apoiados em tempos de financeirização, de circuitos de déficit e do tornar-se obsoleto do trabalho abstracto, que já não admitem mecanismos de compensação como no fordismo, quando hoje em toda a parte vem à luz do dia uma contradição entre matéria e forma, acompanhada por uma diminuição da massa de mais-valia (cf. também Ortlieb 2009). Isto significa, concretamente, que o Estado também dispõe de menos impostos para financiar as actividades de reprodução. E levanta-se a questão de saber porque haveria o capital de investir justamente em tais domínios não rentáveis, se uma aplicação nos mercados financeiros é essencialmente mais lucrativa. De notar aqui também que Dörre, por um lado, coloca o “género” como exterior à determinação da forma, por outro lado, porém, considera-o justamente por isso como transcendente (trabalhos de cuidar). Trata-se aqui simplesmente de um modo de ver superficial, na realidade é por assim dizer uma lei imanente ao patriarcado que as mulheres e o que lhes está associado sejam vistas como solução e saída para a miséria capitalista, de acordo com um cântico religioso católico: “Estende o teu manto, Maria!” (cf. Scholz 2009b). Em vez disso, a dissociação-valor terá de ser colocada como relação social basilar, na sua contraditoriedade processual, em que o feminino terá de ser visto como a forma sem forma da forma do valor, como pressuposto para que o valor (mais-valia) possa existir em geral. Que entretanto é posto como o “Um”.
Dörre também inclui no seu portfólio de transformação algo como uma “economia solidária”. Aqui as actividades femininas de reprodução são apenas uma entre muitas formas de actividade informais. “É necessária a prova prática de alternativas, o alargamento de sectores retirados ao sector privado orientado para o lucro, por exemplo na forma de economia solidária ou da reconstrução de um domínio público” (Dörre 2009, 86). Longe de quaisquer ideias de crítica do fetichismo, mais uma vez se hipostasia assim imediatamente um plano prático na forma de pseudoconcepções.
Aqui se encontra ele mais uma vez com Federici, que vê nos “commons” e na “economia solidária” uma saída do capitalismo. “Nos EUA observamos também o desenvolvimento de diferentes 'economias solidárias', que consistem em bancos de tempo, moedas locais, baldios do conhecimento (KNOWLEDGE COMMONS), troca directa e diversas outras formas de auto-subsistência comunitária e apoio recíproco” (Federici 2013, 50 sg., destaque no original). Aqui se torna visível que a grande resistente no fundo está completamente presa a critérios, categorias e quantidades imanentes, em que se trata de compensar algo: bancos de tempo, moedas locais, propriedade jurídica e respectiva democratização etc. “enquanto o verdadeiro problema da suplantação da forma da mercadoria permanece escondido” (Kurz 2013b, 137 sg).
O pressuposto aqui seria naturalmente partir de uma teoria da relação de dissociação-valor em processo, a qual, para a si mesma se afirmar, tem de se distanciar de si mesma e, neste contexto, não apenas incluir dimensões aparentemente qualitativas como a ecologia, mas também desigualdades sociais como “raça”, classe, género, anti-semitismo e anticiganismo, para lá do velho esquema das classes
A partir daqui também seria preciso questionar (ver acima) pseudo-concepções imediatas à la commons, economia solidária e esquemas de open-source, que se apresentam todas como possibilidades de solução no contexto de uma crítica do valor popular, de momento com muita saída. Entretanto, de resto, as discussões sobre indústria 4.0 e capitalismo 4.0 no contexto da cena dos commons e do open-source desempenham um papel (impressoras 3D, ligação em rede de máquinas e produtores/as, Big Data etc.). Se a robotização de “todos e cada um” no discurso hegemónico é muitas vezes pressentida como chance para a sobrevivência do capitalismo, os respectivos desenvolvimentos, por outro lado, são muitas vezes tratados – numa perspectiva rasteira e limitada – como possibilidade de esboçar novas utopias. Em vez disso dever-se-ia tratar de, com uma visão crítica, sondar estas novas potencialidades tecnológicas, justamente tendo por fundo a crítica da dissociação-valor, sob pontos de vista da ecologia social – como tão bem se lhes chama sempre – para uma mudança sistémica abrangente radical, pontos de vista que não se percam numa ideologia do pequeno, baseada numa filosofia vitalista, à qual, como se viu, não em último lugar também as perspectivas de colonização se submetem.
Entretanto, trata-se de tudo menos da dissociação do feminino, que constitui o pressuposto dialéctico do trabalho abstracto; em vez disso, a perspectiva da dissociação é muitas vezes incluída apenas como apêndice do valor, ou referida como questão secundária. Claro que não é percebido o carácter dialéctico negativo da dissociação-valor nem do seu entendimento da totalidade, ela que já se entendeu sempre como em si fragmentária juntamente com a sua determinação do racismo, anti-semitismo, anticiganismo e disparidades económicas à escala mundial do processo histórico, incluindo uma crítica da história do colonialismo. A velha crítica do valor androcêntrica e universalista tem de ser aguentada de modo obviamente desesperado e continua a afirmar-se como tal. Como se a forma fundamental da dissociação-valor nunca tivesse sido formulada, ou existido, assim por exemplo na Never Work Conference, uma conferência de crítica do valor em Inglaterra, em que críticos do trabalho universalistas e androcêntricos ficaram entre si, tendo a dissociação-valor como contexto social basilar sido tematizada quando muito de passagem, com ampla exclusão da mulheres (a Never Work Conference) presta-se a que a perspectiva do Terceiro Mundo pareça com certeza incluída. O fetiche abstracto do trabalho em toda a sua reificação: “Viva o fetiche!”, festeja-se, enquanto ele aparentemente se nega a si mesmo (Scholz 2014), tudo isto, claro, na discussão académica (masculina) internacional, atravessando contextos e países.
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NOTAS
(1) Certamente poderia pôr-se a questão de saber se as armas de fogo, na sua qualidade de armas novas, foram de facto um constituinte essencial do capitalismo, mas há um consenso generalizado sobre que na fase absolutista ou mercantilista a obtenção de dinheiro para o exército da guerra era o objectivo supremo.
(2) No próximo número da revista Exit! Richard Aabromeit também aborda detalhadamente o papel do dinheiro e as teorias monetárias recentes.
(3) Decisivo para a determinação da taxa de lucro, no entanto, é que ela não deve ser relacionada com o capital individual, mas sim com o capital global que não é economicamente mensurável, não sendo por isso verificável quantitativamente, como pensam marxistas de diversas cores e entre eles também Dörre (ver abaixo), e como também nos querem convencer modelos matemáticos da economia política amplamente divulgados (cf. Kurz 2012, 307 sgs. [275 sgs.]). Em conformidade com isso também é absurda a hipótese de uma mercadoria do mercado financeiro, como mercadoria de segunda ordem, que por enquanto deverá ter salvado o capitalismo nas últimas décadas (cf. Lohoff/Trenkle 2012). Pelo contrário, o que aqui se mostra é o patriarcado capitalista como processo histórico a tornar-se obsoleto no seu conjunto, o que não pode ser reduzido a uma ideia de colapso repentino mecânico (ver acima); mas, sobretudo, numa formulação mais complexa, a socialização patriarcal capitalista na forma da mercadoria não pode ser equiparada com a “propriedade”, que agora deveria ser transferida para um estado quase natural nas formas dos commons. Pelo contrário, é preciso suplantá-la.
(4) Kurz põe em questão o conceito de “divisão internacional do trabalho” no contexto dos actuais processos da globalização: “… no caso da troca de mercadorias dos países industrialmente desenvolvidos entre si, nem sequer neste sentido negativo se pode falar de 'divisão de trabalho' no sentido de Ricardo. Cujo pressuposto seria que cada país industrial se especializaria em determinados produtos ou componentes de produção industriais” (Kurz 2005, 73). Mas não é esse o caso. Tal divisão de trabalho “só seria possível se se tratasse de uma associação de produção mundial o mais possível racional de bens naturais e materiais visando a satisfação das necessidades gerais. Mas o objectivo da produção capitalista é completamente diferente, a saber, o fim em si mesmo da valorização do capital” (ibidem, 74). Sendo isto, no entanto, dito apenas de passagem.
(5) As relações de propriedade não são em Kurz (nem de resto em Moishe Postone) entendidas no sentido de título jurídico de propriedade, como no fundo acontece em Dörre, nem como neste são consideradas um genuíno pilar fundamental da análise do capital, pelo contrário, acontece o inverso: as relações de propriedade são elas mesmas produto e parte integrante da socialização fetichista como um todo e resultam justamente daí, sendo que a própria aparência de privacidade pertence à socialização fetichista (ver, por exemplo, Kurz 2012 e também Postone 2003).
(6) Foram “as de Bielefeld” que criaram em primeiro lugar a teoria da colonização na “Nova Esquerda”. Para elas trata-se de mostrar “que a divisão hierárquica do trabalho entre os sexos, a submissão e exploração das mulheres representa a base e o fecho de todas as relações de exploração posteriores e que a colonização do mundo, a exploração da natureza, dos territórios e das pessoas, que o capitalismo mais que tudo precisa como pressuposto, seguem este padrão… O controlo sobre as mulheres e sobre a terra é, portanto, o fundamento de todo o sistema baseado na exploração. Trata-se, assim, de POSSUIR estas 'relações de produção'. A relação com elas é uma relação de apropriação. Esta relação de apropriação é, por um lado, o pressuposto para a formação da relação de produção central entre trabalho assalariado e capital, por outro lado, este último exige a apropriação das mulheres e das colónias como 'recursos naturais'” (von Werlhof/Bennholdt-Thomsen/Mies 1983, 9, destaque no original). Escrevem elas: “O mais importante conhecimento que se impôs com estudos mais detalhados das causas históricas da dominação masculina foi que sexismo e patriarcalismo não são sinais de atraso, mas sim componentes necessários, centralmente ideológicos e institucionais do sistema industrial e do seu modelo de acumulação” (ibidem 5). Von Werlhof e outras continuam Rosa Luxemburgo. Não podemos abordar aqui as diferenças entre “as de Bielefeld” e a concepção de Federici.
(7) Escreve ela neste contexto: “A apropriação pelo Estado dos corpos das mulheres e da sua capacidade de reprodução foi ... o princípio da regulação dos recursos 'humanos', a primeira intervenção 'biopolítica' do Estado e a sua contribuição para a acumulação de capital, ao contribuir para o aumento da proletariado” (Priester 2008, 43). É preciso pôr em dúvida que tenha aqui havido um cálculo do “Estado” para o “aumento do proletariado”. Abstraindo de que o Estado em sentido moderno apenas então começou a constituir-se, o que aqui vem ao de cima mais uma vez é o ponto de vista marxista das classes de Federici. Também não deixa de ser questionável se as mulheres terão sido de facto perseguidas como bruxas por causa do seu conhecimento da contracepção, ou se não estará aqui o desejo do pai do pensamento em determinadas correntes feministas (ver, por exemplo, Heinemann 1989). Em todo o caso, o livro de momento muito considerado de Federici, “Calibã e as bruxas”, onde ela aborda a importância da caça às bruxas na formação do capitalismo, é no seu conjunto muito interessante pela revisão de material histórico (ver, por exemplo, Bareuther 2014). Nesse ponto, uma crítica da dissociação-valor também pode recorrer a este livro em vários aspectos, ficando claro que o seu enquadramento operaista é altamente problemático (cf. Federici 2012b).
(8) Tais formulações, de resto já frequentemente surgidas em citações de Kurz no contexto aqui tratado, talvez já não fossem mais usadas por ele hoje, pois correspondem ao plano micro do capital individual e, portanto, são baseadas no individualismo metodológico, sendo que em vez disso ele colocou entretanto em primeiro plano o “movimento em si” do capital e o “todo” do capital (cf. Kurz 2012). Mas isso não constitui nenhuma ruptura na argumentação de Kurz, pois para ele já antes o que estava em questão era o plano abrangente, estando no entanto ele próprio ainda preso a um vocabulário do capital individual-particular que já não corresponde verdadeiramente ao conteúdo.
(9) Gramsci e Althusser, por exemplo, só dificilmente poderiam deixar de ser enquadrados no marxismo do movimento operário, ao contrário porventura da Escola de Frankfurt até Backhaus & Cª. Ingo Elbe, com o conceito geral de “marxismo ocidental”, aplica aqui a mesma bitola a situações diferentes. Marxismos centralmente críticos do fetichismo são aqui equiparados com marxismos estruturalistas e politicistas, mesmo ainda profundamente agarrados ao marxismo tradicional (é o caso em Elbe 2008). Seria preciso diferenciar aqui ainda a crítica da dissociação-valor, que vai além de ambas estas perspectivas. Esta perspectiva, no entanto, é posta de lado por Elbe, desde logo porque ele trata única e exclusivamente dos marxismos ocidentais androcêntricos. Todas as outras modificações do marxismo, como por exemplo de proveniência pós-colonial (mesmo se baseadas em Gramsci e Althusser) ficam excluídas.
(10) A Alemanha Biedermeier (b) de Merkel, apesar de Hartz IV e outras coisas, considera-se longe disso sem razão, segundo a divisa: "Bom São Floriano, poupai a minha casa, queimai as outras". O que acontece quando a falsa segurança se revela como tal (o que no fundo todos sabem) não precisa realmente aqui de mais explicações. Na Alemanha a pobreza aumenta cada vez mais, como é geralmente conhecido; com referência à Grécia, ocorre aqui apenas uma externalização dos custos internos, mesmo ideais. O ressentimento contra judeus, “ciganos” e outros “estrangeiros” nas últimas décadas “pós-modernas” já fala aqui uma linguagem eloquente. Apesar de toda a pseudo-revisão do nacional-socialismo e do Holocausto nos últimos anos, já se diz agora oficialmente “Tu és Alemanha”. Deus nos livre (e sobretudo “aos outros”) se, com a continuação do desenvolvimento social, a coisa ainda se agrava mais. Também os incêndios de casas de requerentes de asilo tiveram a meio da década de 2010 novamente um conjuntura em alta. E ainda vêm aí mais refugiados...
(a) As citações de O colapso da modernização, A Guerra de ordenamento mundial, O clímax do capitalismo e Dinheiro sem valor de Robert Kurz seguem de perto as traduções em língua portuguesa acima mencionadas de PAZ E TERRA, OBECO e ANTÍGONA respectivamente. Na indicação das páginas do texto citado refere-se primeiro a página da edição em língua alemã referida pela autora e depois [entre parêntesis rectos] a página da edição em língua portuguesa (Nota do tradutor)
(b) O período Biedermeyer (1815-1848) está associado à restauração alemã e é marcado pelo conservadorismo na política, na literatura e na arte (Nota do tradutor)
Original CHRISTOPH KOLUMBUS FOREVER? Zur Kritik heutiger Landnahme-Theorien vor dem Hintergrund des „Kollaps der Modernisierung“. Publicado na revista EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft, nº 13 (01/2016), pag. 46-100, [EXIT! Crise e Crítica da Sociedade da Mercadoria, nº 13 (01/2016)], ISBN978-3-89502-400-9, 192 p., 13 Euro, Editora: Horlemann Verlag, Lindenallee 9, 16278 Angermünde, Deutschland, E-mail: info@horlemann-verlag.de, http://www.horlemann.info/.
Tradução de Boaventura Antunes (05/2016)