Roswitha Scholz
"Sem luta nada se consegue"
Roswitha Scholz à conversa com Fabian Henning
sobre dissociação-valor e patriarcado
Publicado inicialmente na revista Jungle World nº 44,
3 de novembro de 2016
O sexo do capitalismo ainda é tão claro como constatava há mais de 20 anos?
Escrevi o ensaio O valor é o homem em 1992, ele apareceu então ainda na revista Krisis. Foi antes de mais um exercício teórico, agora considero o ensaio demasiado simplista. "O valor é o homem" – esta formulação sensacional já me é quase um pouco desconfortável, porque soa muito como se eu tivesse personalizado o domínio abstracto. O fundamental para mim, no entanto, é entender a dissociação-valor como contexto de base do patriarcado produtor de mercadorias. Aqui acontece que o feminino e o trabalho doméstico são dissociados do valor, do trabalho abstrato e das formas conexas de racionalidade, sendo que certas qualidades conotadas como femininas, como a sensualidade e a emotividade, são atribuídas às mulheres. O homem, por seu lado, representa algo como entendimento, força de carácter e coragem. No desenvolvimento moderno, o homem foi identificado com a cultura, a mulher, com a natureza. Valor e dissociação estão aqui numa relação dialéctica recíproca. A dissociação-valor atravessa todas as esferas da sociedade, ou seja, a economia, a política, a ciência e também as esferas pública e privada. Entretanto desenvolvi muito mais o teorema da dissociação-valor. O ensaio de 1992 não é para mim incómodo, mas, sempre que se cita a partir dele, acho que já não é bem assim.
Em 2000, publicou "O Sexo do Capitalismo".
Sim, em O Sexo do Capitalismo elaborei e modifiquei a minha tese, tal como em muitos ensaios que tenho vindo a publicar na EXIT! Em 2013, por exemplo, escrevi um texto sobre care.
Que pensa do debate sobre o “care”? Será a referência positiva ao trabalho de “cuidar” ingénua?
A meu ver, as discussões sobre o care estão sobretudo carregadas de moralismo. O cuidar surge aí menos como um problema objectivo no patriarcado capitalista, e mais como uma questão ética. Irene Dölling, por exemplo, exige uma valorização das actividades honorárias e de voluntariado. Ela vê o capitalismo decadente. O care é para ela uma concepção para o futuro, a que se refere positivamente Ao contrário de concepções mais antigas, que visam também uma apreciação da feminilidade com a maior valorização dos chamados trabalhos reprodutivos, a concepção de care em Dölling passa bem sem uma relação positiva com a feminilidade. Na verdade, tal concepção de care também passa muito bem sem o feminismo, porque o que se idealiza não são as mulheres, mas sim as actividades não comerciais em geral. O metaplano da reprodução global da sociedade, a dissociação-valor, está ausente em tais teorias. Isso é uma vergonha, pois o care – ou o recurso às actividades reprodutivas realizadas principalmente pelas mulheres – é originalmente uma concepção materialista, marxista. Não quero dizer que não se tem de lutar, por exemplo, pela melhoria da qualidade pavorosa dos hospitais e lares de idosos, ou por melhores salários. Simplesmente não gosto do completo kitsch expresso em conceitos de luta como “revolução do care”. Nem do absurdo de que se poderia transformar esta sociedade numa sociedade de care..
Isso também se aplica às teorias pós-modernas?
As abordagens pós-modernas, de Judith Butler e Michel Foucault ou no seu seguimento, a partir dos anos noventa foram sobretudo esforços para a desconstrução de identidades. Estas abordagens queer-feministas pretendem desconstruir os dualismos mulher/homem e produção/reprodução. O que, no entanto, tem de falhar, enquanto permanecer a relação de dissociação-valor. Se as abordagens queer-feministas agora de repente se interessam pela crítica da economia política, isso surpreende-me. A crítica da economia política e o queer-feminismo já nas suas premissas são contraditórios. Também a relação entre feministas desconstrutivistas e feministas materialistas não era propriamente pouco conflituosa. Nos anos noventa, quem se referisse à grande narrativa de Marx ainda seria ridicularizada como uma avó senil. Naquela época havia muito poucas feministas que se referiam a Marx, como, por exemplo, Frigga Haug. No caso de Regina Becker-Schmidt e Gudrun Knapp Axeli já eu me questionei sobre o que terá a sua pesquisa ainda a ver com Marx e com a teoria crítica. Acho que então também era difícil ser levado a sério na universidade com a crítica social radical. Isso tem a ver com o estabelecimento de estudos sobre as mulheres e com a mutação para os estudos de género. Eu fui politicamente socializada na segunda metade dos anos setenta, o feminismo era então um movimento extra-institucional, contra o establishment e contra a elaboração teórica androcêntrica. A partir de meados dos anos oitenta o feminismo foi sendo cada vez mais institucionalizado. Na academia era preciso legitimar-se com base em teorias estabelecidas, com o que o reconhecimento da dissociação do feminino foi estruturalmente reprimido.
A crítica da dissociação-valor é, portanto, impossível na universidade?
Na década de oitenta, não era assim tão incomum falar da dissociação do feminino. Tais abordagens foram esquecidas com a crescente institucionalização e com a mudança de paradigma de estudos sobre as mulheres para estudos de género. Foram substituídas por desconstrutivismo, interacionismo simbólico e abordagens etnometodológicas. Na sequência, a teoria feminista foi mais reificada e insistiu visivelmente nas identidades. Quer na reconstrução e referência positiva à feminilidade, quer na desconstrução das identidades. Com o foco forte nas identidades, as estruturas básicas da sociedade deixaram de ser abordadas. Também o movimento das mulheres se tem concentrado cada vez mais no que é local e particular. Na pós-modernidade, prevaleceu um sentimento contra o geral, as grandes teorias eram malvistas na década de noventa.
Isso mudou?
Houve uma oscilação. Que se tornou visível em meados da primeira década do século XXI, com o “Mulheres, pensai economicamente!” de Nancy Fraser. Fraser criticou o facto de o movimento das mulheres se ter colocado demasiado integrado na ordem existente. A desconstrução ter-se-ia tornado propícia ao neoliberalismo.
Assim, tudo pode ser reconduzido à economia?
Para mim não se trata de explicar ou de derivar tudo da forma do valor. Temos de considerar o plano cultural-simbólico, não devemos usar apenas a linguagem e o discurso como substituto da totalidade. Também o plano sócio-psicológico é importante. Temos de ver a dissociação-valor como contexto de base. Nunca disse outra coisa. Sinto-me muitas vezes incompreendida – mesmo pelos fãs da crítica do valor. Estes recebem os meus escritos de crítica da economia, e, claro, também os de Robert Kurz, mas ignoram as passagens de crítica da dissociação-valor. É de perder a paciência. Sou muitas vezes definida com base em Robert Kurz. A Krisis foi sempre um bando de homens. Também o androcentrismo de Robert Kurz eu tive de trabalhar persistentemente, até que ele finalmente se juntou à minha teoria da dissociação-valor. Foi uma dura batalha para introduzir o feminismo no grupo dos homens. Não me sentia levada a sério como mulher, mas sem luta nada se consegue. Lutei em duas frentes – contra o desconstrutivismo e contra os homens da Krisis.
Essa luta levou à cisão do grupo Krisis pela EXIT?
Como uma das poucas mulheres, foi-me atribuída a culpa pela cisão da Exit! e do Grupo Krisis – o que é absurdo. A questão era saber se a dissociação é um aspecto da totalidade, ou se a dissociação-valor é o contexto de base do patriarcado produtor de mercadorias. A dissociação-valor foi um motivo para a separação, mas não o único.
O que pensa sobre a crise e o fortalecimento dos movimentos de direita?
Estou a escrever um ensaio sobre queer, género e viragem à direita. A minha tese é que queer e género se encaixam bem no neoliberalismo e na ideologia da flexibilidade. Além disso, queer muitas vezes não passa de um slogan festivo e, portanto, integrou-se da melhor maneira na sociedade do divertimento dos anos noventa. A diversão acabou, o ambiente mudou: O desenvolvimento da crise acelera, o ressentimento está de volta e vira-se contra os chamados grupos marginais. Até se tentou desconstruir o racismo, o anticiganismo e o anti-semitismo – mas agora essas teorias superficiais, com o seu desprezo por Marx e pela psicanálise, fazem uma triste figura perante a crise. A crise não teria sido, de facto, evitada, mesmo com o conhecimento das estruturas sociais profundas, mas, pelo menos, ter-se-ia chegado a uma avaliação realista do presente. A crise fundamental há muito tempo que já se vê também no Sul da Europa, Grécia, Espanha, etc., na crise financeira e na caça aos especuladores, na relação de crise entre globalização e Estado-nação. Para já não falar do colapso da periferia. A identidade de género surge aqui como o último bastião, quando nada mais é seguro. Contra isto a desconstrução pouco ajuda. Eu concordo, claro, que numa sociedade emancipatória a sexualidade polimorfa deve ser vivida, mas sem dessublimação repressiva. A sexualidade libertada no capitalismo não é realmente livre. Ou seja, não basta referir-se a uma identidade, ou uma identidade diferente, num plano identitário.
Original »Ohne Kampf geht es nicht«. Roswitha Scholz im Gespräch mit Fabian Henning über Wert-Abspaltung und Patriarchat in www.exit-online.org/. Publicado inicialmente na revista Jungle World nº 44, 3.11.2016. Tradução de Boaventura Antunes