Roswitha Scholz à conversa com Kim Posster
Entrevista à Jungle World de 28.02.2019
Muitas mulheres e queers estão indignadas: são discriminadas, atacadas, ganham menos, e muitas das suas atividades, como trabalho doméstico e de cuidados, são tidas como algo natural à sua condição. Outras recusam-se a aceitar que tal situação possa assim continuar. Contudo, dizem, tal é inevitável devido à estrutura básica da nossa sociedade. Porquê?
Parto do princípio de que a relação de género está profundamente embutida nas condições do patriarcado capitalista, constituindo, digamos, algo como uma estrutura básica. Sobre isso desenvolvi a teoria da dissociação-valor. Aí se evidencia que não é apenas o trabalho abstrato, o valor em Marx, que determina as condições, mas também as atividades reprodutivas esquecidas na sua teoria, como amor, cuidado e solicitude. Atividades estas igualmente necessárias para a preservação do sistema, mas que são menosprezadas.
Tal não se confina apenas à divisão material do trabalho, mas estende-se também aos níveis sócio-psicológico e cultural-simbólico. Ao nível cultural-simbólico, as análises do discurso, por exemplo, mostram como são produzidos o género e o menosprezo das mulheres. Ao nível sócio-psicológico, pode-se verificar como mulheres e homens assumem uma identidade feminina ou masculina. Para além disso, importa também ter presente que a dissociação-valor não é algo estático, mas sim historicamente mutável: Nos anos cinquenta, ainda era diferente, palavra-chave: modelo dona de casa (ela) e ganha-pão (ele). Hoje em dia, as mulheres são duplamente socializadas, pois são igualmente responsáveis pela família e pela vida laboral.
Atualmente, há resistência a essa estrutura básica. A greve das mulheres deste ano também se dirige contra a discriminação e a dissociação das qualidades e atividades femininas. Considera essa prática de contestação como a forma adequada de resistência?
No meu entender, a resistência é muito importante, ainda que eu advogue que uma greve de mulheres não é tudo. No entanto, podemos entendê-la como um sinal.
Foi com muita satisfação que constatei que nos últimos anos houve mais resistência de mulheres merecedora desse nome. Precisamente porque vivi esses desagradáveis anos noventa, em que o feminismo desconstrucionista ganhou relevância. Do ponto de vista desconstrucionista, a opressão das mulheres era uma questão menor. O que importava era a produção cultural do género. Embora aí muitas formas de opressão fossem problematizadas, a opressão individual – e especialmente a das mulheres – não era tão evidente.
Em alguns comités locais da greve, houve controvérsia sobre se a greve deveria ser chamada "greve das mulheres", ou antes "greve feminista", porque isso seria mais apropriado para levar em conta as múltiplas identidades queer.
Para mim é indiferente se é uma greve das mulheres ou uma greve feminista. Na teoria queer dos anos noventa foi basicamente dito: "Se evocas essa opressão feminina e a relação hierárquica de género, então já estás realmente a suscitá-las de novo." Depois ressurgiu, segundo a minha percepção por volta de 2005, após os fenómenos de crise, uma crítica do capitalismo que levou a que queer se tornasse “feminista queer”. De algum modo isso irrita-me, porque, entretanto, a diferença e o conflito entre o feminismo materialista e o feminismo desconstrucionista – se é que a isto se pode chamar feminismo – não são, de forma nenhuma, mantidos. Acho desde logo problemático quando o queer passa simplesmente por crítica do capitalismo.
Devo acrescentar que, no meu entender, feminismo não é apenas a relação de género no sentido mais restrito. Outras disparidades também são consideradas, mas não da forma como o queer o faz, pois tem de ser clara a conexão entre dissociação-valor e outras discriminações.
A esse respeito é importante deixar claro nesta greve das mulheres que não temos nada a ver com o racismo, o anti-semitismo e o frequentemente esquecido anticiganismo. O que se aplica sobretudo a todas as tendências de frente transversal. Acho que temos de nos posicionar contra isso em todas as circunstâncias, promovendo uma oposição maciça.
O subtítulo da convocatória da greve é: "Quando paramos de trabalhar, o mundo fica parado." Nos seus escritos tem-se manifestado, repetidamente, contra a fetichização e ampliação do conceito de trabalho – principalmente quando se trata de atividades de reprodução. Porquê?
É que, de facto, essas atividades reprodutivas não se encaixam no conceito de trabalho. O ponto central da questão é que nas atividades reprodutivas, como, por exemplo, cuidar dos filhos, atividades domésticas, tem de se gastar tempo, ao contrário do processo de trabalho e de produção, em que se trata de poupar tempo. É aí que, para mim, está o problema. Pois, ao nível político-prático, o problema é que toda a gente pensa em função dessas categorias do trabalho. E na realidade, agora, atividades como cuidadoras geriátricas, enfermeiras e assistentes sociais também são realizadas dentro do trabalho abstrato. Aqui eu diria que, na ação imediata, se poderá chegar a um compromisso. No entanto, o caráter das atividades reprodutivas femininas, mesmo que seja feito profissionalmente, não cabe na forma do trabalho abstrato.
Hoje, muitas mulheres têm uma dupla carga porque para além do trabalho reprodutivo exercem também trabalho assalariado. Este facto tem motivado os comités de greve a questionarem o relacionamento com os sindicatos. Nos seus escritos sempre se posicionou veementemente contra os movimentos que só se preocupam com a justiça distributiva. Como encara esta questão?
Eu diria: é claro que se pode fazer algo com ou nos sindicatos. Mas tem sempre de se ter em mente que isso é apenas uma particularidade. A minha compreensão do feminismo assume que não se considere apenas a preocupação como ponto de partida, mas que é necessário ter uma visão mais ampla, pois tem de se estar aberta a outras disparidades sociais. E é isso que uma pessoa, enquanto activista e associativista, tem de levar em conta.
É importante enfatizar isso, como é importante dizer que as mulheres não são apenas ativas na assistência ou nos cuidados. Caso contrário voltamos a um caminho essencialista como foi designado no desconstrucionismo. Também é facto que as mulheres exercem, embora menos do que os homens, actividades de engenharia ou outras e não obedecem ao estereótipo. Mas também é verdade que elas auferem menos salário e têm menos oportunidades de progresso na carreira. Eu acho que tudo está relacionado com a compreensão da feminilidade e da masculinidade no patriarcado capitalista.
Afirmou uma vez que sem luta nada se alcança como mulher. Como podem as mulheres lutar contra o patriarcado produtor de mercadorias, objecto da sua análise, e, nesse combate, quais poderiam ser as aliadas e companheiras de luta?
Penso que não existe a alavanca central na qual nos possamos apoiar. Acho no entanto que a greve das mulheres já é um sinal. Mesmo na vida quotidiana se depara com muito sexismo enquanto mulher. Também isso tem de ser debatido. Existem para tal diferentes níveis. O meu é o da reflexão teórica, mas estou um pouco receosa de que esse boom de movimento possa matar a reflexão sobre de onde toda a repressão realmente vem.
No que diz respeito a companheiras de luta, eu acho que não se pode nomear nenhum sujeito ou grupo em particular, no sentido de “agora vamos orientar-nos por eles”. Temos simplesmente de nos juntar a todas as pessoas que ainda têm os parafusos no lugar.
Original „Mir ist es egal, ob es Frauenstreik oder feministischer Streik heißt“ in: Jungle World, 28.02.2019. Tradução de Virgínia Saavedra.