Roswitha Scholz

Entrevista à revista konkret, Julho de 2020

 

 

Uma crise como a do coronavírus agrava as desigualdades sociais em geral. Em que medida afecta as mulheres?

A questão central é que, com o encerramento das creches e infantários, elas tiveram de supervisionar as crianças e fazer o trabalho de casa, para além de trabalho ao domicílio, por exemplo em teletrabalho. Também li que mulheres, na sua maioria empregadas a tempo parcial, abandonaram a actividade profissional. Até 25 por cento.

 

Isso significa que durante a pandemia ocorreu muito mais trabalho não pago e que foi em grande parte feito por mulheres.

Isso tem as suas causas na sociedade patriarcal capitalista, bem como nas conexas socialização de mulheres e homens e divisão global do trabalho entre homens e mulheres, o que por sua vez tem um aspecto psicossocial que não deveria ser subestimado. E, naturalmente, no facto de as mulheres se sentirem mais responsáveis pelas actividades de cuidar, e os homens pelas actividades na esfera pública e na produção.

 

Se as mulheres não se sentissem responsáveis, o trabalho da esfera da reprodução ficaria para os homens, e então eles também o fariam?

Quando se objecta que as mulheres teriam de dizer não, diz-se frequentemente que “contra isso fala a estrutura”, quer dizer, as mulheres ganham menos do que os homens. Mas além disso as mulheres internalizaram o papel que tem sido assumido, desde o antigo patriarcado até ao patriarcado pós-moderno ou pós-pós-moderno.

 

A sério, na crise do coronavírus as mulheres fazem o que já faziam antes, só que fazem mais.

É verdade. Sendo que, naturalmente, é preciso dizer que, no contexto do coronavírus e do confinamento, por exemplo o cuidar das crianças voltou a ser deslocado para a esfera privada. Mas estes trabalhos, tal como todas as actividades de cuidar, também já eram executados profissionalmente por mulheres.

 

Acha que as profissões de cuidar também são mais mal pagas porque são por natureza profissões de mulheres?

Sim, são construções e atribuições profundamente ancoradas no sistema patriarcal capitalista, que levam a que o trabalho produtivo ou a actividade profissional estejam localizados na esfera masculina, enquanto as actividades desenvolvidas na esfera privada são menos valorizadas, porque se pensa: as mulheres são por natureza assim. Mas também as mulheres que trabalham nas profissões ditas masculinas acabam por sentir esta dissociação, como eu lhe chamo, e são consideradas como viragos e sobretudo como menos competentes.

 

O que é a dissociação?

Dito simplesmente, dissociação quer dizer que as actividades de reprodução são dissociadas do valor, do trabalho abstracto, e remetidas para a esfera privada que é atribuída às mulheres. Neste contexto surgem um domínio público e um domínio privado. O todo também tem uma dimensão psicossocial: em virtude da sua socialização, meninas e meninos orientam-se de modo diferente: os homens acreditam que têm de se demarcar da mãe e da feminilidade, as meninas devem identificar-se com a mãe, para que depois queiram assumir as actividades de cuidar. Ao que corresponde todo o discurso sobre masculinidade e feminilidade.

 

A dissociação refere-se a uma espécie de trabalho que não faz parte da criação de valor?

Exactamente. Mas o caso não é que o valor domine a dissociação. Há uma relação dialéctica: um não pode existir sem o outro.

 

O trabalho de reprodução é necessário?

Sim.

 

E por isso também é preciso um burro que o faça.

Por assim dizer.

 

Ainda sobre a crise do coronavírus: até que ponto é que as medidas com que o governo pretende suavizar as consequências da pandemia ajudam as mulheres?

Tenho de reconhecer que não me ocupei com essas medidas. O que eu percebi é que o subsídio de desemprego para trabalhadores com horário reduzido não chega a muitas mulheres, porque só raramente é pago em casos de trabalho a tempo parcial. E no que respeita ao domínio do cuidar, ofereceu-se às mulheres umas salsichas vegan (ri) – refiro-me aos subsídios. Não creio que o trabalho feminino após a pandemia esteja grandemente valorizado. O mais provável é que com o aumento da dívida pública se chegue a um choque de desvalorização, e eu penso que depois a cornucópia não voltará a ser despejada, mas virão medidas de poupança drásticas. Então passamos por uma revolução nos cuidados de modo completamente diferente: se o Estado não conseguir continuar a financiar cuidados prestados profissionalmente, eles voltarão a ser delegados à esfera privada, e isso significa então ainda mais trabalho para as mulheres…

 

… que já não será pago.

Exactamente.

 

Acontecerá então o que Angela Merkel e Jutta Allmendinger, do Centro de Ciências Sociais de Berlim, chamam “retradicionalização”?

Como poderá isso acontecer? O modelo de mulher-dona-de-casa e homem-sustento-da-família está esgotado, porque o homem há muito deixou de conseguir alimentar a família com o seu salário. A situação no seu conjunto há muito que resultou em que as mulheres são responsáveis por ganhar dinheiro e pela reprodução. Provavelmente a retradicionalização é o que eu chamo asselvajamento do patriarcado: quando as estruturas e instituições patriarcais, como a família e o trabalho profissional, se dissolvem, os homens têm ainda mais necessidade de dar provas de que são homens, o que eles fazem a maior parte das vezes mostrando-se violentos contra as mulheres.

Se a miséria económica aumentar com a pandemia, pode acontecer que as mulheres partilhem mais com outras mulheres as actividades da reprodução e da educação das crianças. Algo semelhante é conhecido nas chamadas favelas do Terceiro Mundo. Em todo o caso também é problemático se agora o movimento das mulheres volta a propagar a solidariedade entre mulheres, que se adapta perfeitamente às medidas de administração da crise: as mulheres transformam num conceito de emancipação o que em todo o caso resulta da situação social. Poder-se-ia dizer com Margareta Stokowski: as mulheres são importantes para o sistema, mas o sistema está de rastos.

 

Não será o discurso da retradicionalização também problemático na medida em que procede como se já estivéssemos mais avançados do que realmente estamos?

Por um lado, é de facto assim, procedemos como se estivéssemos mais avançados do que realmente estamos. Ao contrário do discurso dos anos noventa, no entanto, agora vê-se muito melhor que a tradicional distribuição de papéis ainda não foi ultrapassada. Por outro lado, no movimento contra a renomeação dos anos noventa, hoje muitas coisas não são vistas. Todo o discurso feminista virou marxista, quase se pode mesmo dizer marxista vulgar. Ora já não vivemos nos anos cinquenta. O nível de educação das mulheres é outro, bem como as possibilidades de contracepção, houve medidas de racionalização do trabalho doméstico, etc. Nas partilhas no domínio da produção e da reprodução, simplesmente não houve mais nada. Nisto o patriarcado capitalista continuou.

 

A igualdade de direitos é possível no capitalismo?

Bem, tenho um problema com a sua pergunta, porque parte de uma igualdade num sentido plenamente imanente. O mesmo também faz Jutta Almendiger, para quem o capitalismo nesse sentido não existe. Para ela não existe um contexto em que ocorre a discriminação de género. Ela vê tudo num questionamento reduzido: as mulheres igualam-se com os homens ou não? Esta questão não se coloca no sentido da teoria da dissociação e do valor.

 

A igualdade de direitos no capitalismo não é então possível?

Não, não é possível. E eu como mulher também não quero ser duplamente socializada. Não quero emprego nem família. Nem a profissão e carreira masculina é um modelo atractivo nem a maternidade.

 

… e muito menos as duas. O que já é puro stress.

É o stress total. Quer dizer, aí as mulheres tiram uma carta completamente viciada.

 

Mais uma questão, para esclarecimento: o “patriarcado asselvajado” torna-se visível quando as relações económicas são particularmente más?

Já não temos uma crise meramente conjuntural, mas sim uma crise estrutural. O capitalismo encontra-se num processo de decadência, e estas histórias completamente populistas na esquerda são para mim profundamente suspeitas, sobretudo a sua viragem para um rude marxismo das classes, apesar de a classe operária já não existir nessa forma. Como quase já não há operários, proclamam-se simplesmente outros grupos como classe operária: os sem-abrigo, os trabalhadores sazonais, os prestadores de serviços… Aqui o conceito de classe é deturpado para favorecer uma construção “contra os de cima”. Diz-se então: “Expropriar Zuckerberg”, ou os dos hedge funds, ou os que têm o iate em Saint-Tropez – tudo coisas assim. E no seu conjunto a coisa volta a ter naturalmente um carácter anti-semita: Zuckerberg, Wall Street e a má abstracção.

Há um manifesto de Nancy Fraser, Cinzia Arruza e Tithi Bhattacharya com o título Feminismo para os 99% que inclui formulações como: “Os tentáculos do sistema financeiro envolvem a estrutura social” ou sobre “A pestilência da abstracção quantitativa” – o que me horroriza. O problema é que a socialização da dissociação e do valor é um processo anónimo e, quando o pânico se espalha, procuram-se culpados que possam ser apontados a dedo. É sempre assim. Só que os intelectuais fazem um grande alarido com isso, quando a sua tarefa seria tornar claro que a coisa não é assim tão simples. Em vez disso eles assumem este disparate nas suas teorias. Tenho a impressão que quanto maior é a crise mais vulgar isto se torna.

 

Entrevista: Friederike Gremliza

 

 

Original Ich will weder Beruf noch Familie in: revista konkret 7/2020. Tradução de Boaventura Antunes

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