O capitalismo, a crise ... o divã – e o declínio do patriarcado capitalista

Notas críticas sobre o marxismo lacaniano de Slavoj Žižek e Tove Soiland

 

Roswitha Scholz

 

 

1. Introdução * 2. Pontos-chave da teoria de Žižek * 2.1 Lacan e Hegel * 2.2 Crítica do pós-modernismo * 2.3 Economia, ideologia e socialização fetichista * 3. Žižek e a crítica da dissociação-valor * 3.1 Marx e Adorno * 3.2 Economia, ideologia e socialização fetichista * 3.3 Psicanálise – Crítica social – Psicologia social – Carácter social narcisista hoje * 3.4 Resumo: Žižek e a crítica da dissociação-valor * 4. Tove Soiland, Žižek, Irigaray e esboços de um marxismo feminista? * 4.1 Tove Soiland e a sua crítica feminista do sujeito pós-edipiano * 4.2 A crítica estruturalista do valor de Tove Soiland * 4.3 Tove Soiland e seus esboços de um feminismo marxista: Luxemburgo e Bennholdt-Thomsen na perspectiva de um capitalismo/patriarcado capitalista que eternamente se vai regulando * 4.4 Tove Soiland e as diferenças em relação à crítica da dissociação-valor * 5. Žižek, Soiland e a crítica da dissociação-valor * Bibliografia

 

 

1. Introdução

Há algum tempo que Žižek vem sendo um dos intelectuais de esquerda mais influentes, juntamente com Badiou, Agamben e Negri (cf. sobre os dois primeiros: Böttcher 2019; sobre Negri: Jappe 2002, Kurz 2003, 255ss. e Scholz 2005, 247ss.). Se alguém disser que está a escrever algo sobre "Žižek" depara com a incompreensão. Diz-se que ele é confuso, oco, polémico, por vezes até é descartado como um bluff e um impostor, ficando assim completamente fora de discussão. Coloca-se então a questão de saber porque é ele considerado ao mesmo tempo respeitável, é muitas vezes convidado e as massas afluem aos seus eventos. Porque consegue publicar em editoras como Suhrkamp ou Fischer e é considerado um "filósofo estrela"? Porque é que textos e entrevistas com ele podem ser encontrados em jornais 'sérios' como o NZZ e o 'Die Zeit'? Existe até uma revista académica 'International Journal of Žižek Studies'. Surge assim a suspeita de que no decadente sujeito burguês pós-moderno existe mais necessidade autoritária de totalitarismo do que se poderia pensar.

            De seguida pretendo em primeiro lugar criticar a teoria de Žižek e o seu pendor androcêntrico do ponto de vista da crítica da dissociação-valor, mas também mostrar, pelo menos até certo ponto, o seu papel como figura central na transição da pós-modernidade para uma era anárquica-autoritária, que vai de par com uma referência semi-irónica a Lenine e a Estaline nos seus escritos.

            Tanto mais surpreendente é que Tove Soiland, cujos textos em alguns aspectos coincidem com a teoria da dissociação-valor, especialmente no que diz respeito à crítica das exigências de flexibilidade no capitalismo globalizado e à correspondente "crítica de género e queer", não só defenda Žižek, como também tente tornar o seu pensamento frutífero para um "marxismo lacaniano" feminista. Na terceira parte discuto a abordagem de Tove Soiland – com referência a Irigaray. Finalmente tiro uma conclusão tendo como pano de fundo a crítica da dissociação-valor.

            Uma vez que, como é sabido, Žižek não é necessariamente compreensível e o seu pensamento nem sempre segue critérios lógicos, fui muitas vezes obrigada a recorrer a literatura secundária, que tenta dar sentido ao conjunto. A sua forma associativa de escrever conduz ao facto de o seu trabalho ter em parte o carácter de uma colagem de módulos de textos, como tem sido frequentemente constatado. De acordo com Rex Butler, a reivindicação do próprio Žižek é que ele só pode ser lido de modo a não simplesmente ser original, mas ter novos significados (Butler 2006). Com certeza que "os estudos das fontes são importantes, mas em cada caso no lugar certo e com a consciência de que se está sempre a interpretar, atribuindo sempre um novo significado" (Heil 2010, 11). É com gosto que atendemos esta reivindicação, como se verá, mas tendo como pano de fundo uma dinâmica (objectiva) da dissociação-valor que põe fundamentalmente em causa o quadro teórico de Žižek, o qual continua a reclamar – mesmo de forma um pouco contundente – a supremacia masculina tendo em mente uma completa libertação da humanidade. Comecemos, no entanto, por apresentar alguns pontos-chave da teoria de Žižek.

 

2. Pontos-chave da teoria de Žižek

2.1 Lacan e Hegel

Na minha opinião, Žižek preocupa-se principalmente com o significado do nível simbólico e da dimensão psíquica no sentido de Lacan, uma forma de pensar que, segundo Žižek, poderia depois ser perfeitamente combinada com a filosofia hegeliana. Marx é aqui (na realidade) subordinado, apesar da insistência marcial de Žižek sobre ele. Naturalmente que Žižek muito menos chega à dissociação-valor como princípio da forma social. Com Lacan, ele assume um "Grande Outro" e um "pequeno outro". Aqui, o pequeno outro aponta sempre para uma falta no sujeito. O objecto pequeno outro refere-se ao desejo/gozo (sexual), incluindo as mulheres. O Grande Outro, por sua vez, significa estrutura, lógica, lei, Deus e coisas assim. Neste contexto, Žižek assume de Lacan a hipótese de um real imaginário e simbólico: O imaginário é a fase do espelho, ou seja, de facto a fase mãe-filho; o simbólico, por sua vez, é a incursão do mundo no mundo da criança. O real, sob a forma de uma perturbação, é agora suposto representar este simbólico em primeiro lugar, sendo que a relação entre o "real" e a realidade permanece geralmente indeterminada, ou seja, o mundo externo e o mundo interno são retroflectidos no sujeito (cf. Žižek 2008, 18ss., Heil 2010, 62ss.). O objecto pequeno outro mostra-se assim no fantasma, que não é fixo e pode ligar-se a várias coisas. É responsável pela possibilidade de gozo após a intrusão da ordem simbólica; de facto, é apenas através desta restrição que este desejo se torna verdadeiramente explosivo. A ideologia sempre esteve assim ligada à constituição do sujeito e à luta com o desejo inconsciente, ao qual a política dominante é capaz de se apegar (cf. Soiland 2013, 143s., sobre ideologia ver também mais abaixo).

            Žižek liga aqui Lacan e Hegel, situação em que Hegel já é sempre o advogado da contradição, na medida em que representa o geral e, portanto, está sempre dependente do outro/especial. Aqui ele pensa que Lacan e Hegel se encontram na "falta no sujeito". E por isso Žižek pode, mais uma vez, recorrer de forma bastante descomplicada a uma lógica geral androcêntrica. O nível simbólico de Hegel como o geral da ordem simbólica, das ideologias, encontra-se assim com o simbólico-subjectivo no sentido de Lacan, onde o decisivo é o significante em oposição ao significado, porque segundo Žižek não há um mundo em si (cf. por exemplo Heil 2010, 32ss., Žižek 2014, 1070ss.).

            Na minha opinião, Žižek é assim, como referido, principalmente um lacaniano que tenta decifrar a teoria de Lacan, mediada por Hegel, num padrão de crítica do capitalismo, principalmente com base na cultura pop e na política. Para ele, este é o acesso central ao pós-modernismo capitalista. É aqui que se alimenta a sua crítica do capitalismo. Ao fazer isso, Žižek não se contenta simplesmente com uma negação que chega a uma síntese e é de algum modo completada, mas sim a uma síntese que, por sua vez, estabelece um Outro a partir de si. Neste sentido, Žižek assume que o capitalismo é capaz de uma renovação sem limites. Žižek leva certamente em conta o valor, o fetichismo, embora também o apreenda psicanaliticamente, com Lacan, como um fantasma/uma ilusão que, no entanto, produz realidade. Ao fazê-lo, ainda assim, ele chega ao proletariado, ou a tomar partido pelo proletariado, como verdadeiro ponto de referência (mais sobre isto abaixo).

            Žižek não está preocupado em compreender Marx, Hegel, Freud etc. no texto original, mas em interpretá-los na medida em que "dizem respeito ao nosso presente" e assim os "repetir" (Heil 2010, 11). Portanto, a verdade também aqui, mais uma vez, é subjectiva; é basicamente absorvida no presente e no ponto de vista correspondente. Uma fetichista dinâmica social objectiva não é realmente tida em conta.

 

2.2 Crítica do pós-modernismo

Contra este pano de fundo, Žižek repreende severamente o pós-modernismo e o multiculturalismo: "Embora critique o espírito do tempo pós-moderno, especialmente sob a forma de multiculturalismo, num certo sentido ele próprio vai contra o pós-modernismo com os meios do pós-modernismo, e certamente aceita técnicas que são geralmente associadas ao conceito de pós-modernismo. A sua prática de leitura significa retirar um texto do seu contexto de origem a fim de lhe dar sentido num novo contexto, o que é uma prática pós-moderna. A ideia de que cada conceito aponta para além de si mesmo, que o significado não pode ser fixado [...] também se encontra naturalmente nos autores pós-modernos. O grande interesse de Žižek pela cultura popular [...] está intimamente relacionado com a valorização do popular e da cultura do quotidiano" (Heil 2010, 15s.). Precisamente ao fazê-lo mesmo até com Lenine, ele está a visar um Lenine pós-pós-moderno, como se verá. Por pós-modernismo entende-se geralmente fenómenos como a confusão da cultura alta e popular, a estetização/culturalização, o fim das ideologias e do conceito de verdade, a identificação da cópia e do original na cópia, e assim por diante. O distanciamento das condições existentes tornou-se impossível. Žižek vira-se particularmente contra estas últimas.

            Com Lacan, ele assume que, ao contrário das abordagens pós-coloniais e pós-estruturalistas, o sujeito não é simplesmente produzido por invocação, como em Althusser, por exemplo, mas que surge uma tensão entre o objecto pequeno outro e o sujeito. A subjectivação nunca é, portanto, totalmente bem sucedida. Este sujeito já está sempre dividido em dois desde o início e resiste às exigências do objecto Grande Outro, do nível simbólico etc., o que de facto o traz para a forma de sujeito em primeiro lugar, razão pela qual a subjectivação nunca pode ser completamente bem sucedida, como constatado acima.

            Nas condições capitalistas avançadas, o sujeito já não é ideologicamente invocado, como era até meados dos anos 70; em vez disso, num capitalismo modificado / capitalismo de consumo, é por assim dizer exigido o seu desalinhamento, no decurso de tendências de flexibilização. Também aqui Žižek segue Lacan (cf. Soiland 2013, 11ss.). O objecto Grande Outro diluiu-se em grande parte, por assim dizer: o pai, a lei, a ordem simbólica vinculativa etc. O sujeito é agora atirado de volta sobre si mesmo e tem agora de erguer o objecto Grande Outro dentro de si, ou seja, tem de ser o seu próprio senhor, o senhor do gozo associado ao objecto pequeno outro. O prazer torna-se agora um imperativo. Na prática, isto manifesta-se em reivindicações de auto-optimização a serem traduzidas em "tecnologias do eu" (Foucault). Surge um (frágil) "eu empresarial" (Ulrich Bröckling), que já não conhece nenhuma autoridade, mas o "eu" torna-se a sua própria autoridade. Em combinação com a tendência para uma pluralização dos projectos de vida, há uma exigência de reconhecimento da diferença e uma ideologia de multiculturalismo, com um simultâneo vazio ao nível do objecto Grande Outro e défices de significado ao nível simbólico. A dissolução das estruturas edipianas traz assim consigo uma nova dominação autoritária do eu [self], para além da moral e da ética (tradicionais) (Žižek 2009, 91ss.).

            Como já foi mencionado, Žižek lê agora Marx também tendo por fundo um Lacan politizado. Ao fazê-lo, assume uma considerável mutabilidade do capitalismo, porque as contradições do capitalismo conduzem sempre à sua reconfiguração. Isto corresponde precisamente à sua própria interpretação de Hegel, segundo a qual o espírito do mundo não vem a si mesmo, mas o "Outro no capitalismo" conduz sempre à sua nova formação em progresso. Ao mesmo tempo, por outro lado, também constata hoje um fim do capitalismo (ver, por exemplo, Žižek 2019, 34). Uma contradição, na verdade. Mas quem quer ser tão mesquinho. Pode ser assim e assado. Anything goes, contra o que Žižek constantemente se pretende opor.

 

2.3 Economia, ideologia e socialização fetichista

O económico é suposto ser a base que produz teoria e prática social. Por outro lado, Žižek não quer economificar as relações. "No marxismo, o 'fetichismo das mercadorias' dá as coordenadas da maneira como as mercadorias aparecem aos sujeitos, e esta aparência determina o seu estatuto social objectivo; na psicanálise, o 'fantasma' fornece o quadro dentro do qual os objectos aparecem ao sujeito que deseja, e este quadro constitui as coordenadas do que o sujeito experimenta como 'realidade'" (Žižek 2002, 32, ênfase no original). Escreve ainda: " [...] de facto, o capital não se produz a si próprio, mas explora a mais-valia do trabalhador. Assim há um terceiro nível que é preciso acrescentar à simples oposição da experiência subjectiva (do capital como simples meio de satisfazer eficientemente as necessidades humanas) e da realidade social objectiva (da exploração): a 'ilusão objectiva', o negado 'fantasma inconsciente' (do misterioso movimento circular e auto-gerador do capital), que é a verdade (embora não a realidade) do processo capitalista [...] a verdade tem a estrutura de uma ficção: a única maneira de formular a verdade do capital é ilustrar esta ficção do seu  'imaculado' movimento auto-gerador" (ibidem., 115, ênfase no original). Talvez Žižek esteja aqui também a aludir à formulação marxiana de que o auto-movimento do capital age como se tivesse "o diabo no corpo" (Marx citado em Kurz 2012, 178 [159]). O que Marx aqui quer dizer metaforicamente é levado à letra e lacano-marxistamente a sério por Žižek. A este respeito, Žižek defende a utilização de Marx também para reinterpretações: "[...] isto significa que a tarefa mais urgente da análise é repetir a 'crítica da economia política' de Marx sem cair na tentação da multiplicidade ideológica das modernas sociedades 'pós-industriais'" (Žižek 2002, 115s.).

            Tove Soiland mostra agora o que é o conceito de ideologia de Žižek: "Žižek agarra o fetichismo da mercadoria [...] com o conceito de uma 'crença inconsciente' [...] e, portanto, ideologia ao nível do que Lacan chama de fantasma [...] O fantasma do valor que se autovaloriza, longe de ser apenas uma fantasia, tem a capacidade de se realizar [...] e é por isso que Žižek diz: ‘O nível fundamental da ideologia [...] não é o de uma ilusão que mascara o verdadeiro estado de coisas, mas o de um fantasma (inconsciente) que estrutura a nossa própria realidade social.’ [...] Assim, as pessoas não julgam mal a realidade, mas não conseguem ver que a própria realidade é estruturada pela ilusão: A própria realidade é ideológica" (Soiland 2013, 147s.). Mesmo quando as pessoas sabem que estão sentadas num fantasma, ainda se comportam como de costume. Isto é expresso, por exemplo, na ironização pós-moderna.

            Para Žižek, o fetiche da mercadoria como relação não é basicamente nada, mas no entanto encontra a sua expressão num proletariado modificado. De acordo com o Žižek, o fetichismo da mercadoria desmaterializa-se hoje em dia, não assumindo mais um "objecto fixo" mas tornando-se uma "entidade virtual", não comprando mais a coisa mas, designadamente, a ilusão da coisa, e transformando dinheiro em dinheiro electrónico (Žižek 2002, 122). Ele define o actual capitalismo virtual, designadamente, da seguinte forma: "A mudança essencial diz respeito ao estatuto da propriedade privada. O factor decisivo de poder e de controlo já não é o último elo da cadeia de investimentos, a empresa ou o indivíduo a quem 'realmente pertencem' os meios de produção. O capitalista ideal funciona hoje de modo completamente diferente: investe dinheiro emprestado, 'não possui' nada, pode até estar endividado, e no entanto exerce controlo sobre as coisas" (Žižek 2002, 115). No entanto, Žižek não pensa que por causa disto o conceito de propriedade esteja necessariamente obsoleto. "O ‘capitalismo tardio’ caracteriza-se pelo fosso entre a produção da experiência cultural per se e a sua base material (parcialmente invisível), entre o espectáculo (da experiência teatral) e os seus mecanismos secretos de encenação. Longe de desaparecer, a produção material continua a existir e fá-lo como mecanismo de apoio de um espectáculo de palco" (ibid., 123). No conjunto, deixa em aberto a questão de como se encontra hoje o conceito de propriedade (ibid., 129s.). Em vez disso, seria preciso ter em conta, com Postone, que já desde o surgimento da grande indústria a questão não são as potências retiradas aos produtores e apropriadas privadamente pelos capitalistas. "Pelo contrário, do que se trata aqui é de forças produtivas sociais gerais cujo carácter alienado é inerente ao processo da sua própria constituição" (Postone 2003, 524).

            O trabalho manual é agora considerado obsceno por Žižek. Agora é preciso escondê-lo, como outrora o sexo. Encontra-se nas linhas de montagem do Terceiro Mundo, nas fábricas do mercado mundial, nos "Gulags chineses" etc., sendo que Žižek não quer ver misturada a diferença entre a produção material e a produção imaterial. A este respeito, ele enfurece-se contra a tese do fim da sociedade do trabalho. Ao fazê-lo, deixa em aberto a questão de saber se os cibertrabalhadores também pertencem ao proletariado. Chega ao ponto de perguntar se o desempregado (precário) não é o "puro proletário de hoje". A partir daqui ele tira a conclusão, dirigida contra Jeremy Rifkin: "Se a sociedade 'pós-industrial' de hoje precisa de cada vez menos trabalhadores para se reproduzir [...], então não são os trabalhadores que são excedentários, mas sim o capital (Žižek 2002, 125s., ênfase no original). Invertendo o argumento, Žižek também se identifica aqui como um ontologista do trabalho.

            Agora a questão é como sair das circunstâncias. Dificilmente se acreditaria, mas para Žižek um "acto" (Lacan), um "evento" (como diz Žižek em referência a Badiou) é adequado para destruir este fantasma (ver, entre outros, "Badiou" 2009, 181s., Butler 2006, 117ss., espec. 151ss., Heil 2010, 85s.). Isto não quer dizer (pseudo)levantamentos de negros, de pessoas transgénero, de mulheres etc., mas Žižek continua a visar a luta de classes. Assim escreve contra as ideologias pós-modernas que se centram na dimensão do significado: "De um ponto de vista marxista, a 'luta de classes' não é o horizonte final do significado, o fenómeno social último, mas a matriz generativa formal dos diferentes horizontes ideológicos do entendimento. Ou seja, não se deve confundir este conceito verdadeiramente dialéctico de forma com o conceito liberal-multiculturalista de forma como quadro neutro das muitas ‘narrativas’ diferentes [...] A própria noção dialéctica de forma aponta precisamente para a impossibilidade desta ideia liberal de forma, independentemente do seu conteúdo específico contingente; pelo contrário, ela representa o núcleo traumático do real, o antagonismo que ‘dá cor’ a todo o campo em questão. É precisamente neste sentido que a luta de classes é a forma do social; todos os campos sociais são por ela sobredeterminados" (Žižek 2002, 40s.). Na pós-modernidade, Žižek entende os habitantes das favelas, os precários e afins (ver acima) como sucessores do proletariado clássico (ver também Heil 2010, 91ss.). Pelo contrário, as mulheres, as transidentidades, os negros etc., como foi dito, há muito que estão integrados no capitalismo actual. De acordo com Žižek, as correspondentes posições ideológicas pós-modernas teriam de perceber que se trata da "transição do fantasma" (Lacan), ou seja, que uma identidade plena nunca existe, uma vez que o objecto fantasmático pequeno outro, constituído pela falta no sujeito, que por isso não existe em si mesmo em sentido próprio, é inalcançável. É portanto absurdo assumir um sujeito que surgiu através da invocação, que pode depois ser desconstruído insistindo na sua própria multiplicidade (ver também Žižek 2013, 139ss.). Pois após o Grande Outro se ter perdido na pós-modernidade, as pessoas estão agora, por assim dizer, sob o domínio de um gozo abstracto que as escraviza. Polemicamente, também se poderia formular: Sem pai, sem renúncia, também não é possível um verdadeiro gozo na pós-modernidade. A ideologia é assim directamente equiparada a processos psicológicos na obra de Žižek.

            Numa perspectiva alegadamente radical de crítica, ele está preocupado em ganhar controlo político sobre um processo de produção que se tornou independente, situação em que um entendimento convencional da democracia, mesmo em ligação com o politicamente correcto, já se torna afirmativo; a este respeito, Žižek está preocupado com uma verdadeira democracia pós-capitalista. Neste contexto, volta-se também contra Laclau/Mouffe, que sugerem que a economia está sob o domínio da política, equiparando assim política e economia. Tove Soiland constata a este respeito: "A adesão ao estatuto determinante último do económico, como pano de fundo contra o qual as lutas culturais, tais como as lutas pelo reconhecimento da política de identidade de esquerda, devem ser vistas ou reenviadas – e com elas a insistência na necessidade da economia política, que não pode ser reduzida apenas a um campo de significados contestados – é dirigida em Žižek contra uma reescrita do económico, contra o conceito de política que tem continuado a ser [...] desenvolvido no projecto de uma 'democracia radical'" (Soiland 2013, 152). Quando Žižek insiste assim numa atenção veemente à crítica da economia política, é preciso salientar, contudo, que isto é feito no contexto de uma psicologização maciça da forma (de mercadoria) como fantasma que cria a realidade, sendo que ele frequentemente tem em vista o fetichismo da mercadoria como fetichismo do consumo e não o trata como um laço interno do capitalismo (para a crítica de tais pontos de vista, ver: Ortlieb 2007).

            Assim, o ponto de vista particular do proletariado (mesmo que de modo nenhum apenas os afectados possam e devam assumi-lo), que parece opor-se a uma justaposição indiferente e imanente de várias disparidades sociais, continua a ser válido para ele como uma perspectiva alegadamente transcendental. Na minha opinião, uma tal particularidade do ponto de vista do "proletariado" e um correspondente tomar partido por ele não tem nada a ver com a "verdade", como diz Žižek, uma vez que a sua "posição particular é transcendida no geral" (Heil 2010, 21), mas antes é uma ideologia retrógrada, que já não quer conhecer os "outros" e o Outro. Žižek basicamente não quer nada mais do que uma verdade masculina e um desejo e um prazer androcêntricos masculinos, em combinação com o correspondente fetichismo do trabalho. Aqui, para ele, mesmo quando fala de uma "autodesvalorização do valor", a hipótese psicanalítica é antecendente como real.

            Se ele agora quer repetir Lenine, quer dizer: "Repetir Lenine não significa repetir o que Lenine fez, mas o que ele não fez, as suas oportunidades perdidas". A este respeito, Lenine não é simplesmente anacrónico para Žižek, mas deve ser lido de tal modo que a sua "insondabilidade [...] é um sinal de que algo está errado com a nossa época" (Žižek 2002, 187, ênfase no original). Também aqui se torna evidente mais uma vez que o fetiche como estrutura básica objectiva, que ainda formava a estrutura básica para o socialismo realmente existente e para o seu declínio, não é adequadamente apreendido, da perspectiva da crítica da dissociação-valor (cf. Kurz 1991).

            A este respeito, é apenas lógico que nas introduções e visões gerais do pensamento de Žižek, normalmente Lacan e Hegel são citados e desdobrados como referências centrais, mas Marx aparece mais quase como um acessório. Estruturas (fetichistas) objectivas estão basicamente fora do seu campo de visão, interpretadas a partir de uma lógica psicanalítica lacaniana, recomendando "recordar, repetir e elaborar", por exemplo e especialmente em relação a Lenine (ver também Žižek 2018). O autoritário e o clownesco estão assim misturados na obra de Žižek no sentido de um clown do horror.

 

3. Žižek e a crítica da dissociação-valor

3.1 Marx e Adorno

A seguir, gostaria de esclarecer a diferença fundamental entre o quadro conceptual de Žižek e a crítica da dissociação-valor com base em alguns aspectos (para mais sobre isto, ver Scholz 2011/2000). Em contraste com Žižek, assume-se nesta que o valor e a dissociação são equiprimordiais e que um não pode ser derivado do outro; o valor, portanto, não pode existir sem o seu Outro.

            Em vez disso, Žižek procede por princípio de Hegel que ainda gostaria que o Outro se fundisse na sua contradição num todo androcêntrico. Aqui ele parte da incompletude do sistema hegeliano. A lógica contraditória do sistema hegeliano faz sair o seu Outro sem fim, de modo que o processo contraditório possa começar constantemente de novo, com o que Žižek, como se viu, também justifica a elevada capacidade de mudança do capitalismo. No entanto, em termos da crítica da dissociação-valor, Hegel tem de ser lido da forma como habitualmente acontece: Nomeadamente, ele considera o Outro de pouca importância e, no conhecimento da sua indispensabilidade dialéctica para o geral, ainda assim afinal subordina-o a este geral. Marx, como é bem sabido, transfere esta visão de Hegel para a análise do capital, embora, nas palavras do conhecido dito, ele vire Hegel de pernas para o ar. Marx, mais uma vez como Hegel, faz isto em relação a algo geral, precisamente em relação ao valor/mais-valia e ao capital, pelo que a contradição em processo (omitindo a dimensão da dissociação) seria levada ad absurdum, ou seja, o valor contido na mercadoria torna-se cada vez menor, e neste processo o trabalho abstracto torna-se finalmente obsoleto hoje em dia. As actividades reprodutivas de amar, preservar, cuidar etc., que são geralmente executadas por mulheres, sistematicamente não têm lugar neste processo.

            O pensamento na lógica da identidade, cuja crítica na vida quotidiana e na ciência é crucial para a crítica da dissociação-valor, não pode assim ser simplesmente derivado da troca (como faz Adorno), sendo o tempo de trabalho socialmente médio, o trabalho abstracto que está por detrás da forma de equivalência, o terceiro comum que torna possível que coisas desiguais se tornem iguais, mesmo em teoria e na ciência, como é o caso no pensamento positivista. Pelo contrário, é a forma basilar da dissociação-valor que torna isto possível. A este respeito, de um ponto de vista da crítica da dissociação-valor, também é inadmissível confundir simplesmente os níveis material, simbólico e psicossocial, como é o caso de Žižek. Pois o trabalho abstracto e o valor como substância do capital, por seu lado, precisam em contrapartida de excluir o trabalho doméstico e afins, o sensual, o emocional, o não inequívoco, o não analítico, o mundo da vida, o que não pode ser apreendido por meios científicos, e de o considerar inferior. Esta dissociação do feminino não coincide com o não-idêntico de Adorno, mas representa o reverso obscuro do valor (mais-valia) da própria lógica do capital, que não se esgota na forma da mercadoria ou na lógica da troca, mas apenas vem a si na forma do capital enquanto tal. A lógica da dissociação-valor como um todo é assim responsável pelo facto de o objecto concreto não ser percebido na sua própria qualidade na economia, na política e na economia política, mas ser presa de um pensamento identificador e unidimensional. Contradições, ambivalências, diferenças não podem assim ser tidas em conta. Neste contexto, a crítica da dissociação-valor deve ter a coragem de pensar também contra si mesma, por assim dizer, e de dar seguimento e analisar também outras disparidades sociais como o racismo, o anti-semitismo, o anticiganismo, a homofobia, a disparidades económicas etc. na sua lógica própria (ver em detalhe: Scholz 2005).

            Contudo, para tal pensamento da crítica da dissociação-valor não se trata de um abstracto hipostasiar de diferenças e afins, como em várias teorias pós-modernas, mas os diversos níveis, domínios e momentos também devem ser entendidos como reais, irredutivelmente relacionados entre si na sua ligação objectiva e interna no sentido da dissociação-valor como contexto básico e como totalidade. Assim, não se trata de uma simples sinopse ecléctica dos vários momentos, mas estes têm de ser relacionados entre si como "não-idênticos" simultaneamente "essenciais", no sentido de uma contraditória dissociação-valor dialéctica negativa.

            Mas o que é que Žižek faz em vez disso? Ele amalgama sem mais nem menos os diferentes níveis do psicanalítico-emocional, em combinação com o cultural-simbólico e com a construção do pensamento da filosofia geral de Hegel no ponto central de uma "falta no sujeito". Aqui, na minha opinião, são equiparadas coisas díspares. Perde-se o respeito pelo conteúdo específico e pelos diferentes objectos dos diversos níveis, os diferentes níveis de abstracção na falta no sujeito são simplesmente equiparados. Não são relacionados com a forma fetichista da dissociação-valor como contexto básico na sua contraditoriedade como formas (de pensamento).

            Como já vimos, Žižek parte fundamentalmente do sujeito, da falta no sujeito, do vazio, do nada. A partir daqui, ele determina o exterior, o contexto capitalista global. A sua insistência na natureza dividida do sujeito contra os pós-modernistas acaba por levá-lo de volta a uma hipostasiação do sujeito típica da filosofia clássica, que menospreza o objecto na sua lógica própria.

 

3.2 Economia, ideologia e socialização fetichista

Žižek supostamente quer ajudar a economia a recuperar o seu direito, em contraste com os pós-modernos. No entanto, a economia de Marx parece estranhamente tomada de fora na sua concepção. Impõe-se a suspeita de que ela se destina principalmente a servir o sujeito, precisamente tendo em mente uma falta no sujeito. Se no pós-modernismo se perde o Grande Outro do sujeito, aquilo que realmente o constitui em primeiro lugar, uma vez que só assim é que realmente se chega ao gozo do gozo, então com o recurso à crítica da economia política talvez ele esteja também a visar que ele próprio, de certo modo como psicanalista do capitalismo, não seja tão estúpido a ponto de se deixar enganar por um sujeito sem falta, que se mata pelo verdadeiro gozo tornando-se o imperativo para si mesmo como seu próprio senhor, sem que haja um mundo exterior. A este respeito, então, existe um exterior, uma objectividade que, no entanto – e isto, penso eu, deve ser tido em conta – já é sempre do sujeito. Pois o mundo enquanto tal não existe para Žižek, como disse, o que implica que mesmo um mundo fetichista, mesmo se produzido apenas por acção das mãos, é na melhor das hipóteses apenas parcialmente reconhecido, pensado no sentido do "proletariado".

            Žižek vê o mundo através de óculos lacanianos, psicanalíticos, e é assim que ele interpreta Marx (e Hegel). O sujeito, o significado e o desejo estão em primeiro plano para ele. Isto vê-se quando ele determina o valor do ponto de vista do sujeito, ainda como "fantasma". Ver o valor como uma relação e um mero pensamento induzido pelo sujeito é comum na actual esquerda marxista (pós-moderna), para a qual a substância é considerada anátema. O que Kurz escreve em relação a Michael Heinrich é ainda mais verdadeiro em relação a Žižek, com o seu fundo psicanalítico. "O que a abstracção tem de «real» … deixa de se referir a um substrato material, mais não sendo que uma coisa que existe unicamente no pensamento. Mas isso está certo apenas até certo ponto ... No entanto trata-se de uma coisa específica existente no pensamento enquanto abstracção real no sentido de uma execução de acções que não existe apenas na troca, mas já na produção: também aí se abstrai objectivamente (não de um modo subjectivamente consciente), no sentido do apriorismo transcendental, do processo de produção concreto e técnico, precisamente no que se refere ao dispêndio real abstracto de energia humana que depois, na troca, reaparece sob a forma da objectualidade do valor — mas, lá está, num plano social mediado pela concorrência e não a título individual." (Kurz 2012, 194 [174]). Neste contexto, Kurz fala da "substância material abstracta do fetiche do capital" (ibid. 192ss. [172ss.]). Ao fazê-lo, ele também castiga um "individualismo metodológico" em várias leituras de Marx que tomam como ponto de partida a mercadoria individual ou o capital individual, em vez da complexidade do fetiche do capital. "O conceito de individualismo metodológico é aqui entendido num sentido mais lato do que o é muitas vezes nas ciências sociais, com destaque para a economia, isto é, não apenas referido lógica e imediatamente às acções dos indivíduos ... mas, de um modo geral, a algo idealmente individual; ou seja, também no sentido institucional ou categorial. Nesta medida, o individualismo metodológico consiste, no essencial, em pretender expor e explicar uma lógica abrangente e determinante para um todo com base no caso individual e isolado, que então figura como «modelo», entendendo-se como tal não apenas acções individuais definidas como «fundamentais», mas também formas estruturais, designadas por «embrionárias», ou partes elementares tratadas como algo idealmente individual. É possível estender este procedimento a «metamodelos», em que se supõe que o todo volte a apresentar-se de um modo ideal-típico; mas é justamente com base numa lógica de actos, estruturas ou partes elementares individuais …” (ibid. 59s. [55s.]). No que diz respeito à psicologização das estruturas sociais e seus efeitos sobre os sujeitos, Adorno já tinha formulado nos anos 50: "Quem, tal como Freud,  concebesse a sociologia como psicologia aplicada, cairia, apesar de toda a intenção esclarecedora, na ideologia. Isto porque a sociedade não é constituída imediatamente por seres humanos, pois as relações entre eles se autonomizaram. Elas confrontam todos os indivíduos tendo mais poder que eles, e mal toleram as moções psicológicas como distúrbios da maquinaria social, que são integrados na medida do possível" (Adorno 1998, 89 [131]). Embora Žižek fale em forma de mercadoria e afins, ele não tem realmente em conta a independência do fetiche em relação aos indivíduos, no sentido da forma da dissociação-valor, tal como definida acima como forma mediada em si mesma de sujeito-objecto, sociedade-indivíduo, acção-estrutura e afins, que as suas acções enfrentam como um contexto coercivo objectivo; em vez disso, ocorre uma psicologização do valor como um fantasma que cria a realidade.

            Também a ideologia é psicanaliticamente simplificada em Žižek em termos de individualismo metodológico. A ideologia, no sentido aqui considerado, contudo, significa "nada mais do que reflexão afirmativa, isto é, pensamento reflexivo, relacionado com o conteúdo na forma, com a forma e para a forma (positivamente a pressupondo e confirmando) [...] A forma fetichista como forma social de reprodução constitui um quotidiano de valorização do valor, na medida em que objectivos quotidianos de reprodução e desejos de todo o tipo são quase ‘automaticamente’ traduzidos nas condições da forma fetichista e, ao mesmo tempo, submetidos a priori a estas condições: É preciso 'ter trabalho' [...] e assim 'ganhar dinheiro' para garantir a autopreservação [...] Até nos poros da vida quotidiana, a percepção, pensamento, acção, e há muito tempo que também o desejo e até o sentimento são pré-estruturados pela forma do fetiche, pelas suas condições, categorias e critérios, mesmo que as pessoas não estejam de modo nenhum absorvidas por isso, mas sofram fricções diárias: e isto aplica-se ainda mais à com isso mediada relação de dissociação-valor sexualmente constituída" (Kurz 2003a, 263, ênfase no original). Kurz inclui de facto desejos e sentimentos, "o desejo" se se quiser, na sua definição de ideologia, mas não faz deles a definição básica da sua definição de ideologia, como Žižek. Também aqui se torna claro: para Žižek, forma significa relação de classe, para Kurz significa a forma de fetiche predominante comum a todos.

            Se Žižek diz que na "ironização" do pós-modernismo vem à tona um "eles sabem-no, mas fazem-no na mesma" ideológico (cf. Soiland 2013, 148), é preciso contrapor que a ideologia muda no processo social, e que tal ironização e apalhaçamento da realidade da crise, ainda financeiramente baseada no crédito (privado) até que a crise cerrada se tornou evidente o mais tardar no crash financeiro de 2008, há muito que atingiu os seus limites. Pelo menos desde então os indivíduos pós-modernos perderam a ironia e o riso. Há já algum tempo que o autoritarismo, uma orientação à la Carl Schmitt etc. tem vindo a florescer novamente, mesmo em variantes de esquerda como as representadas por Žižek.

            De uma forma diferente, Chantal Mouffe e o seu populismo de esquerda também navegam nestas águas. Neste contexto, Ingo Elbe fala de uma "frente transversal pós-moderna" (2019), mas os três (Žižek, Laclau; Mouffe e Elbe) estão apanhados na forma fetichista da política e da democracia, sem reflectir sobre o facto de esta estar em declínio; voltarei a discutir brevemente este assunto mais adiante. Žižek passou aqui completamente por cima disso como possibilidade imanente-ideológica no capitalismo decadente. Pode-se supor: porque ele próprio a executa pós-moderna e ironicamente, e não quer perceber um todo induzido pela dissociação-valor. Em termos de crítica da dissociação-valor, Žižek estaria aqui virado, por assim dizer – e esta é a verdadeira ironia! – para se virar para si mesmo.

            A fim de tornar clara a dimensão fundamental, formularei tudo mais uma vez de modo diferente: Žižek não só demonstra "individualismo metodológico" no que diz respeito ao recurso ao seu método psicanalítico, do qual ele deriva então o seu entendimento da ideologia, mas também no que diz respeito à forma de mercadoria, às primeiras 150 páginas de O Capital. Para ele, o escândalo não é o trabalho abstracto em si mesmo, como laço interno do capitalismo no sentido da exploração das pessoas em geral, e neste contexto a mais-valia como momento progressivo da contradição em processo, ou seja, que a quantidade de trabalho por produto se torna cada vez menor, mas ele apenas tem em mente a exploração do trabalhador. Aqui, como já mencionado, a ontologia do trabalho de Žižek torna-se evidente. Para Žižek, o valor é principalmente um fantasma, que depois se torna real. A este respeito, a "produção" também volta a entrar, mas apenas como a exploração da classe trabalhadora combinada com a assunção de um princípio ontológico do trabalho, segundo o qual uma "substância material abstracta" não pode desaparecer, mas persiste implicitamente, mesmo numa sociedade pós-capitalista. Neste contexto, nega então o sistema capitalista como um todo, como um quadro a que é inerente a dicotomia operário e capitalista e que deve ser finalmente ultrapassado (cf. Heil 2010, 9). O que é crucial, porém, é o facto fetichista de que algo se passa nas costas dos actores, e tanto dos capitalistas como dos trabalhadores. O fim-em-si autonomizado do "sujeito automático", que acaba por esbarrar num limite absoluto, não pode portanto ser simplesmente apreendido subjectiva e psicanaliticamente. A consequência desta autonomização tem sido, desde meados dos anos 80, uma dívida pública e um insuflar dos mercados financeiros, que se descarregou no crash de 2008, sendo que a chamada produção real há muito que é mediada pelos mercados financeiros. Isto esteve ligado com o desenvolvimento das forças produtivas (Terceira Revolução Industrial), que trouxe consigo poupanças de trabalho e sobrecapacidades, de modo que o capital procurou oportunidades de investimento na esfera financeira. Este desenvolvimento não afecta apenas os capitais individuais, mas leva à desvalorização do valor através do mecanismo da concorrência entre eles. A produção de mais-valia à escala da sociedade no seu conjunto, do capital no seu conjunto, tornou-se agora cada vez mais impossível. A este respeito, também se envergonhou um positivismo de esquerda, que canta a eterna cantiga "O capitalismo não tem fim" (ver em detalhe Kurz 2012, entre outros).

            Tais mecanismos e estruturas não podem ser simplesmente divididos em "práticas", por exemplo dos proprietários do capital, dos actores do mercado financeiro, dos políticos etc. Em certa medida, Žižek cita práticas como solução para a frequente objecção que enfrenta de que combina abruptamente psicanálise e crítica social (Žižek 2002, 144). Também se aplica então a Žižek o que Kurz reprova aos críticos do capitalismo que, de acordo com o livro primeiro de O Capital, fazem uso do capital individual como uma "entidade categorial". "Desta perspectiva, o carácter do capital enquanto realidade objectiva do fetiche acaba por permanecer oculto, pois no plano do capital individual parece ainda tratar-se de um acontecimento que possa ser apreendido com os meios da teoria da acção que, em certa medida, se resume ao cálculo subjectivo e em que se defrontam de forma imediata actores do interesse. Aquilo que constitui esses mesmos actores e que não aparece, na sua percepção limitada, como um objecto distinto, nomeadamente a entidade pressuposta do «processo global», desaparece num mundo composto por factos imediatos." (Kurz 2012, 177 [159]). Žižek também acha que os três volumes de O Capital teriam de ser lidos hoje, mas isto tem de ser visto no contexto da sua leitura errática e, em última análise, do seu fundamentalismo lacaniano. Aqui tudo isto teria de ser reformulado mais uma vez em termos de crítica da dissociação-valor, nomeadamente que a lógica do próprio capital se baseia na dissociação do feminino e da reprodução, que não é absorvida na reprodução do capital, mas é a sua condição prévia (ver acima). E assim também – a fim de respeitar um entendimento fragmentário da totalidade – seria necessária uma distinção tanto do nível cultural-simbólico como do nível psicanalítico (para além do material), no contexto de uma contraditória lógica da dissociação-valor como um todo. A seguir será discutida em mais pormenor sobretudo a relação entre crítica social e psicologia (social).

 

3.3 Psicanálise – Crítica social – Psicologia social – Carácter social narcisista hoje

Žižek aplana psicanálise e crítica social, o nível da forma, o nível do sujeito na forma vazia do fantasma, do nada na "falta no sujeito", com o que é preciso conformar-se (mas no fim do que, supostamente, permanece a revolução do proletariado). Ao fazê-lo, ele conclui do sujeito para a forma social, implicitamente passando o seu procedimento eclético e selvagem como um procedimento consistente, no sentido de uma falta no sujeito que sempre existiu, e que uma pessoa, tendo em mente a sua imperfeição, teria de e deveria acompanhar. A verdadeira consequência, no entanto, é então uma brutal "psicanalisação" do capitalismo na falta do sujeito masculino, a qual, no entanto, é suposto permitir de novo a ordem e a adaptação, segundo Žižek. À distância teórica, ele preocupa-se com as "coordenadas ideológicas hegemónicas" (Žižek 2002), em contraste com uma orientação prática frequentemente encontrada entre os esquerdistas. Do meu ponto de vista, porém, o que emerge é um esboço teórico caótico que simultaneamente serve anseios autoritários.

            O que Adorno escreve no álbum de família de todo o psicologismo também se aplica a Žižek: "O psicologismo em todas as suas formas, que toma o indivíduo como ponto de partida incondicional, é ideologia. Ele enfeitiça a forma individualista de socialização como uma determinação extra-social, natural, do indivíduo [...] Tão logo se expliquem a partir da psique os processos que, na verdade, se subtraem à espontaneidade individual e que incidem entre sujeitos abstractos, humaniza-se, como consolo, o que é reificado" (Adorno , 56 [89]). Adorno assume aqui a relação entre sujeito e objecto/sociedade como mediada desde o início; ele não a curto-circuita simplesmente como faz Žižek que ainda deriva psicanaliticamente a ideologia do "fantasma" do valor. "Eles [os alienados RS] e suas motivações não se esgotam na racionalidade objectiva e algumas vezes agem contrariamente a ela, embora sejam seus funcionários" (ibid., 56 [89]). Neste sentido, escreve ainda: "A separação entre psicologia e sociologia [...] não é algo absoluto, mas tampouco insignificante e refutável arbitrariamente. Nela se expressam um estado falso perene, a divergência entre o universal e sua legalidade, por um lado, e o indivíduo na sociedade, por outro" (ibid., 87 [129]). No caso de Žižek, o universal e a lei são acrescentados externamente, com toda a sociedade capitalista a ser então concebida, no seu cerne, em primeira instância, como totalmente entretecida psiquicamente. Um 'individualismo metodológico' está em acção em Žižek, como referido, também porque ele interpreta psicanaliticamente o capitalismo no seu conjunto. Quando Žižek quer recordar Marx e Lenine, repeti-los, e elaborar o comunismo a fim de tornar visível o não cumprido, ele certamente significa isto num sentido psicanalítico. A história e a sociedade são tratadas por ele como um sujeito (ver também Žižek 2018, 7ss.). Ao que é preciso contrapor: " [...] os conflitos se desenrolam, por assim dizer, sem janelas nos indivíduos e devem ser deduzidos nominalisticamente de sua economia pulsional individualmas eles possuem forma idêntica em inumeráveis indivíduos. Por isso o conceito de psicologia social não é tão equivocado quanto esta palavra composta e seu uso mundialmente disseminado fazem crer. A primazia da sociedade é reforçada retrospectivamente por aqueles processos psicológicos típicos, sem que aí se anuncie equilíbrio ou harmonia entre os indivíduos e a sociedade" (Adorno , 87 [129]).

 

            Neste contexto, também poderiam ser feitas reflexões psicanalíticas sobre "A matriz psicossocial do sujeito burguês na crise", como Leni Wissen as fez tendo por fundo a crítica da dissociação-valor, mesmo que ela não se refira explicitamente a Adorno (Wissen 2017). Wissen assume que a crise actual revela um limite interno absoluto do capital em ligação com a Terceira Revolução Industrial (entretanto, fala-se mesmo da Indústria 4.0), que se faz sentir no desemprego, no emprego precário, na fuga do capital para a esfera especulativa, na digitalização, nas novas tecnologias, nas tendências de individualização, na erosão da família nuclear, na nova pobreza, na miséria dos refugiados, nos amoques etc. Ao mesmo tempo, observa um recalcamento da crise, que se manifesta não só num vício da harmonia no discurso público, mas também em maquinações neofascistas agressivas. Em geral, um culto da preocupação, uma falsa imediatidade e uma fácil susceptibilidade são sinais do nosso tempo, que correspondem ao domínio de um carácter social narcisista. Assim, com a dissolução do sujeito burguês, pode observar-se ao mesmo tempo uma tendência maciça para a auto-optimização de um "eu empresarial" (Ulrich Bröcklung), o que acaba por resultar numa sobrecarga do sujeito e num aumento da depressão. "As exigências excessivas que acompanhavam as normas de comportamento baseadas na culpa e na disciplina reflectiam-se na neurose, como expressão de um conflito subjacente entre o desejo e a repressão. A depressão, contudo, não é caracterizada por um conflito, mas expressão da incapacidade narcisista de entrar em contacto com o mundo dos objectos – psicanaliticamente falando, a depressão é expressão da incapacidade para carregar objectos libidinalmente. Mas um objecto só pode ser carregado libidinalmente se puder ser percebido como objecto fora do universo narcisista." (ibid., 36). Neste contexto, "a propagação do tipo social narcisista é a expressão do sujeito capitalista burguês em decomposição, que persistentemente cava a sua própria sepultura. O narcisismo tornou-se assim a última saída para o sujeito em decomposição da sociedade da dissociação-valor." (ibid., 37). Aqui ela constata que "no conjunto ocorreu uma domesticação do pensamento psicanalítico, patente no recalcamento do conceito de pulsão no debate dentro da psicanálise: a partir do 'ego' em conflito de Freud, ficou, no ambiente das correspondentes psicologias do eu e do self, um 'eu' sem contradições, que já não conhece nenhum conflito. A 'deslibidinização' da psicanálise corresponde aos desenvolvimentos sociais de uma psicologização e individualização gerais das relações sociais, e a um centramento num 'self' ou 'eu' livre de conflitos". (ibid., 37s.). A crítica de uma "psicanálise revista" que Adorno formulou já nos anos de 1940 e 1950 tem assim certos paralelos com a crítica de Žižek ao sujeito invocado de Althusser (embora ele transfira depois esta crítica para uma crítica dos novos movimentos sociais que vêem uma panaceia na multiplicação de sujeitos sem ter em conta uma divisibilidade do sujeito). No entanto para Žižek, ao contrário de Adorno, isto vai de mãos dadas com uma psicologização completa das relações sociais, como já vimos.

            Wissen assume que o sujeito burguês com a correspondente "matriz psicossocial" se desenvolveu no contexto da constituição do patriarcado capitalista (emergência do sistema manufatureiro e fabril no absolutismo com o objectivo de aumentar o dinheiro para poder financiar guerras, internalização da ética do trabalho, caça às bruxas, formação das esferas de produção e reprodução com a correspondente repartição do trabalho por género etc.): "Ao que corresponde uma dinâmica pulsional em que, perante o adiamento da pulsão, a libido sobe às alturas, na alegre expectativa da 'recompensa pela recusa'. Este 'truque' da libido para lidar com a recusa da pulsão também define simultaneamente a via para o processo de sublimação da pulsão. A necessidade de adiamento da pulsão surge com a imposição do modo de produção capitalista e com o dispêndio de trabalho abstracto com este exigido. É claro, portanto, que a formação da sociedade capitalista também não poderia ficar de fora da estrutura da pulsão. Daqui se pode concluir: Somente com o patriarcado capitalista surge uma estrutura de pulsão na qual Ego, Id e Superego interagem como instâncias separadas, em conflito umas com as outras, e assim intermediando a dinâmica psicológica" (ibidem, 39).

            A formação de um sujeito masculino é inconcebível sem a dissociação do feminino. A masculinidade e a feminilidade não são nada ontológicas na opinião de Wissen, ao contrário de Freud e também de outras abordagens psicanalíticas, mas "marcas" que levam a identidades compulsivas com uma desvalorização da feminilidade, que é apreendida como a falta de um falo (ibid., 41). Este vazio implica agora projecções do sujeito masculino. Não é permitido que a feminilidade seja nada por direito próprio. A matriz picossocial do sujeito burguês é assim caracterizada pelo complexo de Édipo, segundo o qual a criança masculina desiste do seu desejo da mãe, uma vez que caso contrário é ameaçada de castração pelo pai. Identifica-se então com o pai e com a sua lei. A criança do sexo feminino associa a falta à mãe, faz uma viragem para o pai, de quem ela deseja ter um filho para compensar a inveja de não possuir um pénis. "Assim estrutura o falocentrismo a forma psíquica feminina 'sem forma'" (ibid., 42). De acordo com Wissen, Freud pode certamente ser criticado a este respeito, no entanto, ela argumenta que se deve colocar o destino da libido feminina no contexto da forma da dissociação-valor e não simplesmente responsabilizar o pensamento de Freud por isso.

            Com a erosão das instituições família e trabalho remunerado, no decurso de tendências gerais de flexibilização, também esta matriz picossocial é posta em causa, e forma-se um carácter social narcisista. Embora o sujeito burguês nunca estivesse livre de narcisismo, no sujeito pós-moderno em condições de crise o narcisismo "implode". Um "elevado grau de 'auto'-referencialidade" é susceptível de ser aqui comum a homens e mulheres, embora de formas diferentes. "[...] a forma de processamento psíquico não se dissolve simplesmente, mas continua ainda a determinar as vias do desenvolvimento psicossocial – sob o signo da pós-modernidade esta via só pode levar ao narcisismo" (ibid., 43).

            Se o 'narcisismo primário' no desenvolvimento psicossocial da criança ainda devia ser ultrapassado em Freud, na pós-modernidade o ego narcisista é dominante no adulto, que não alcança a clássica instância do ego no sentido freudiano. Isto significa, entre outras coisas, que há uma insistência na realização imediata do desejo, sem haver instâncias intermediárias mediadoras. Neste contexto, Wissen assume que um carácter autoritário pode sobrepor-se a um carácter pós-moderno-narcisista, uma vez que os dois nunca existem em forma pura e também podem existir distorções entre gerações. É a realidade pós-moderna-capitalista que aqui encoraja e até exige formações de carácter narcisista. Este carácter tem de ser pensado como flexível numa sociedade extremamente flexível e "acelerada" (Hartmut Rosa). "Isto também significa que o tipo narcisista pode passar de um extremo ao outro de repente. O 'eu narcisista' e a correspondente mediação de processos pulsionais são extremamente 'flexíveis' e adaptáveis na sua imediatidade, o que não em último lugar será devido à falta de formação da libido objectal. Esta por sua vez é a expressão de acesso (narcisista) imediato ao 'mundo de objectos'" (ibid., 45).

            Wissen assinala que, devido às mudanças ocorridas nas últimas décadas, houve de facto um abrandamento dos papéis tradicionais de género e uma equalização do código diferenciado por género. Ela interroga-se como isto se relaciona com o carácter social narcisista. Segundo Wissen, não se deve aqui assumir que o carácter social narcisista exista independentemente da matriz psicossocial binária e das hierarquias de género correspondentes. "O carácter social narcisista caracteriza-se precisamente pelo facto de ele poder passar de um extremo ao outro de repente, porque as suas ligações ao objecto – dito eufemisticamente – são muito frouxas. Ainda que o estádio narcisista primário não conheça a diferença entre os sexos, está bem ciente do 'falo'. Na fase narcisista primária, meninas e meninos esperam ter um 'falo'. Isto significa que o falocentrismo também não está ultrapassado por ter havido uma certa aproximação dos códigos binários. E, sob a hegemonia do falo, os códigos binários também não podem simplesmente desaparecer, no contexto da sociedade da dissociação-valor" (ibid., 46). Há, segundo Wissen, um asselvajamento do patriarcado, e também um asselvajamento dos códigos, precisamente quando estes códigos colidem em termos reais com a realidade actual. Para pôr a coisa de uma forma chamativa, o homem bonzinho que assiste a festas de travestis pode no dia seguinte estar a lamentar o declínio do homem e a participar num desfile antifeminista. As ideologias queer e de género fazem a sua parte para dar cobertura a um carácter social narcisista, por assim dizer. Com a sua abordagem teórica, não conseguem explicar porque é que se está a espalhar hoje uma crise da masculinidade que "encontra expressão num embrutecimento das relações de género", mas também se manifesta numa mentalidade masculina de obsessão e violência, tal como em amoques. "Está à vista que soçobram as 'possibilidades de sublimação' e, assim, as barreiras inibidoras da manifestação imediata das emoções. Isto é expressão do narcisista" (ibid., 47).

            As mulheres, responsáveis tanto pela profissão como pela família, estão hoje expostas às projecções e à violência masculinas e não só; como administradoras da crise, também têm de arranjar uma criança, que na crise fundamental objectiva há muito foi por água abaixo e já não pode ser tirada viva. Isto leva a exigências excessivas e à depressão, com que as mulheres são particularmente afectadas (embora a proporção de deprimidos masculinos esteja a aumentar). "A depressão representa uma variante 'feminina' do narcisismo", segundo Wissen, embora também tenha de ser feita pesquisa sobre vias femininas de reacção narcisista, que tendem a ser indirectas, no sentido de uma "agressividade narcisistamente passiva" (ibid., 48).

            Pode assim resumir-se: Em contraste com Žižek, cujo pensamento central é baseado em Lacan, Wissen parte muito bem de uma complexa crítica da dissociação-valor. Por um lado, está consciente do carácter totalitário do contexto da dissociação-valor como princípio estrutural central; por outro lado, porém, tem em conta diferentes níveis dentro e fora dele, acompanhando níveis objectivos sociais, psicossociais e cultural-simbólicos na sua separatividade e na sua lógica própria, mas também a sua simultânea unidade numa contraditória forma de dissociação-valor em sua fragmentariedade. Ao mesmo tempo, Wissen também não cai em nenhum individualismo metodológico, seja da forma de mercadoria simples, seja da forma de uma psicanálise que se coloca sobre os factos sociais. Pois, no seu carácter necessariamente monadológico, no seu indispensável individualismo metodológico no que respeita à constituição psíquica, uma psicologia social psicanalítica só de uma forma dialéctica negativa pode reivindicar validade no contexto do falso todo em relação a uma socialidade que está separada dela. Wissen serve-se aqui de conceptualidades freudianas "antigas", que Žižek com Lacan traduz significativamente em estruturalistas, como é típico do pós-modernismo, mesmo que Žižek no resto se afaste de uma esquerda da invocação no sentido de Althusser. As conceptualidades freudianas, pelo contrário, são ainda hoje "mais verdadeiras", uma vez que são capazes de representar o mau estado da sociedade de uma forma não falsificada e não ideológica, em vez de ainda o transferirem para uma instrumentária conceptual (pós-moderna) e assim também o afirmarem mais uma vez.

 

3.4 Resumo: Žižek e a crítica da dissociação-valor

Žižek confunde assim os níveis cultural-simbólico e psico(ssocial), e depois tenta 'ligar à terra' Lacan através de uma suposta "ligação à terra" marxiana, que ele mais uma vez psicologiza. Ao fazê-lo, ele deriva a sociedade em geral de um básico padrão psicológico androcêntrico, situação em que um Marx então obviamente de novo psicologizado é acrescentado externamente, tendo por fundo de uma interpretação aventureira de Hegel no sentido de um capitalismo eternamente sobrevivente. A democracia, os movimentos sociais e a "materialidade" seriam também, em primeiro lugar, a saída de um (pós-moderno) carácter social psicossocial, ao qual seria preciso opor um Marx mascarado de lacaniano e um culto pós-moderno do proleta e da masculinidade como forma de sair do capitalismo, a fim de já não ter de saber nada sobre uma objectividade fetichista de facto objectiva no sentido da dissociação-valor como contexto básico essencial. A ideologia é assim psicologicamente derivada do "fantasma" (que, no entanto, é suposto criar a realidade!) e mostra-se na ironia pós-moderna, num pensamento de diversidade, num multiculturalismo e coisas do género. Em vez disso, a ideologia teria de ser colocada num contexto de cegueira, também em relação à vida quotidiana; a sociedade fetichista da dissociação-valor e a sua decadência hoje em dia não são reconhecidas e são ignoradas num "é sempre assim". Neste contexto, o racismo, o sexismo, o anti-semitismo e o anticiganismo, a homofobia etc. teriam também de ser estruturalmente determinados na sua historicidade até hoje, em vez de se assumir que são basicamente abolidos num pensamento pós-moderno da diferença e que a verdadeira contradição principal é o antagonismo das classes, embora de uma forma modificada. Isto é ideologia do ponto de vista crítico da dissociação-valor.

            Assim, Žižek não se ocupa realmente da socialização fetichista que se tornou independente dos indivíduos, embora seja feita por eles, sendo que as actividades reprodutivas femininas estão significativamente ausentes na sua obra, e a dissociação do feminino que atravessa todos os níveis e domínios é desconsiderada. Neste contexto teriam também de ser considerados o desenvolvimento das forças produtivas, o desenvolvimento do mercado financeiro e o limite interno do capitalismo.

            Žižek não quer realmente saber nada sobre o fim do capitalismo, ou as suas declarações sobre isso são contraditórias. O resultado aqui, afinal de contas, é um culto pós-pós-moderno do proletariado e da masculinidade que trabalha para as tendências de direita. Ao mesmo tempo, 'o trabalhador' já não pode ser encontrado na realidade. Žižek refugia-se nos desempregados, que são agora supostamente os actuais proletários por excelência, em vez de tirar a conclusão de que o proletariado se tornou hoje simplesmente obsoleto e que a exclusão e a superfluidade são os problemas centrais. Uma crítica do sistema fetichista é limitada em Žižek à categoria do trabalhador num nível sociológico. Neste contexto, não se deve considerar simplesmente contra Laclau/Mouffe que falta 'economia' no seu trabalho, mas sim o que Robert Kurz já tinha considerado em 1994 no artigo "O Fim da Política": "A crise de todo o campo de referência é hoje evidente, e tornou-se conhecida do público como ‘crise da política’. À medida que a forma de totalidade da mercadoria se torna patente como princípio dominante no fim da sua fase ascendente e à medida que, em consequência, o ‘subsistema economia’ impõe seu domínio estrutural sobre o ‘subsistema política’, o céu político vem abaixo. A política vive a sua desmistificação económica como distorção de todos os seus parâmetros. Embora ainda existam e até surjam partidos explicitamente de direita (ou de estrema direita), todos os partidos (inclusive os de esquerda) pendem para a direita como reacção à crise; e embora o neoliberalismo se apresente como ideologia específica e os liberais como partido específico, a posição de liberalismo económico e de radicalismo mercadológico insinua-se relativamente em todos os partidos e em todas as ideologias, tanto na direita como na esquerda. O ponto decisivo é o crescente abandono da ‘política’ aos critérios económicos autonomizados. Com isso, além de se extinguir a ênfase histórica da política, torna-se visível a crise existencial de todo o modo de socialização" (Kurz 1994, 98s.).

            Hoje, porém, já não seria apropriado falar da "totalidade da forma da mercadoria", mas, no decurso de uma metamorfose da crítica do valor, ter-se-ia de falar da forma da dissociação-valor. Žižek tem razão em criticar Laclau/Mouffe, mas fá-lo não para a frente, mas para trás. Isto aplica-se não só ao problema da forma, mas também às disparidades sociais para além do "proletariado", como racismo, sexismo etc. Já passou muito tempo desde 1994. Especialmente desde o crash de 2008, estão mais uma vez a acumular-se as tendências, os movimentos e os partidos para trás e para a direita (também à esquerda). A proeminência de Žižek corresponde a tais tendências autoritárias. Žižek teria agora de mostrar a distância crítica que exige dos outros em relação a si próprio, a fim de perceber que a sua alegada palhaçada de Lenine e Estaline acaba por desaguar em águas autoritárias. Discriminações sexistas, homofóbicas, racistas, anti-semitas e anticiganas teriam de ser determinadas na sua condicionalidade estrutural e na sua qualidade intrínseca no patriarcado capitalista; a sua tematização não pode ser simplesmente descartada como uma criticável ideologia pós-moderna.

            Tanto a hipótese de uma diversidade democrática oca como um pensamento decisionista do evento, que corresponde ao pensamento de Carl Schmitt, teriam de ser questionados no sentido da crítica da dissociação-valor, a fim de se chegar a novas margens. Žižek, portanto, é compatível com a frente transversal, apenas de uma forma diferente de Laclau/Mouffe com o seu vazio de conteúdo do conceito de democracia, com o qual populistamente se pretende prestar homenagem à diversidade (cf. sobre a crítica de Laclau/Mouffe: Flatschart 2010). É a "crença mais ou menos inconsciente" nas autoridades que se supõe domar o capitalismo, embora já não se acredite realmente nele nem no seu funcionamento. Tacitamente, contudo, ainda se espera por estratégias imanentes de superação que possam ser aplicadas com autoridade, se necessário – e isto apesar da fragilidade e decrepitude fundamentais do patriarcado capitalista. Na época caótica-autoritária de hoje, um regime autoritário levaria ainda mais à barbárie e ao asselvajamento das condições (cf. Bedszent 2019, Scholz 2019).

 

4. Tove Soiland, Žižek, Irigaray e esboços de um marxismo feminista?

4.1 Tove Soiland e a sua crítica feminista do sujeito pós-edipiano

Soiland critica – com toda a razão – as identidades flexíveis pós-modernas com que o feminismo queer e de género concorda, mas fá-lo no contexto de um marxismo lacaniano à la Žižek. Isto é irritante na medida em que Irigaray há muito que criticou Lacan pelo seu androcentrismo, e Soiland escreveu uma longa tese de doutoramento sobre este assunto (Soiland 2008).

            Soiland assume que a sociedade actual já não é moldada por identidades de género "fixas", como era até aos anos 70, mas que também às mulheres são exigidas identidades flexíveis. Segundo Soiland, um feminismo desconstrucionista à la Judith Butler legitima ideologicamente tais tendências, concentrando-se na linguagem e no significado, e a partir daqui procura socavar as fixações de género e a matriz heterossexual, através da subversão e da ambiguidade. Em ligação com isto estão também as tendências para a interseccionalidade e um amplo discurso sobre diferenças entre as mulheres. Segundo Soiland, assim a relação hierárquica de género já não poderia ser realmente tematizada, porque a tematização da categoria mulher supostamente já evoca a ordem da bissexualidade que é preciso subverter. Soiland contrapõe a este tipo de teoria pós-estruturalista, que está em casa principalmente nos EUA, a visão marxista crítica do capitalismo da Escola de Ljubljana, cujo representante mais proeminente é Žižek (não posso entrar aqui em observações sobre Foucault, a quem Soiland também se refere positivamente neste contexto). A objecção de Žižek a Butler é que as identidades híbridas há muito que são uma componente subjectiva da actual exigência de flexibilidade. Um "estereótipo de género [...] pode ser uma forma de subjectivação, mas não é a única forma de subjectivação. Outras formas de subjectivação podem ser, por exemplo, uma exigência: 'Sê plural'" (Soiland 2013, 6). Ao fazê-lo, ela continua a presumir, com Žižek, que mesmo uma constelação pós-edipiana pode ser ou é afirmativa e não tem nada a ver com a abolição da dominação, mas que "a contingência [...] [é] a verdadeira ideologia do nosso tempo" (ibid., 7). Neste contexto, ela volta-se contra a aversão às grandes categorias. Soiland critica aqui nas teorias de género e queer a "destematização do género" (ibid., 9) que delas decorre e, ligada a isto, também a da esfera reprodutiva, sugerindo que tudo pode ser feito através do mercado. Isto, argumenta ela, contrasta com a situação até aos anos 70, que ainda conhecia a oposição entre a esfera privada e a esfera pública, com o masculino ganha-pão da família e a dona-de-casa. No entanto, ainda existem hierarquias de género numa época em que o gozo se torna um dever.

            Segundo Soiland, isto tem consequências diferentes para as mulheres e para os homens. Aqui ela refere-se novamente a Lacan. "Lacan é o primeiro desconstrucionista. Ele diz que as posições de género não são nada biológicas, mas sempre fabricadas [...] [É] em última análise um posicionamento do fantasma social [...]. Enquanto a forma edipiana proibia o corpo materno, agora neste discurso da universidade [ou seja, o discurso que equivale a um eu abstracto como senhor de si mesmo, RS] o corpo materno ou o dom da mãe é imaginado neste fantasma de tal modo que este dom seria acessível a todos os guiados pelo conhecimento adequado. Sob a ideia de acessibilidade, também toda a economia dos cuidados, a distribuição dos cuidados no mercado poderia ser criticamente iluminada. Este fantasma de acessibilidade de uma boa distribuição deste dom materno para todos envolve as mulheres numa ambivalência diferente, numa problemática diferente dos homens, porque são identificadas com um ideal do qual são ao mesmo tempo uma parte. Pode-se dizer que a posição masculina deriva do facto de simplesmente ter este fantasma. A posição feminina deriva do facto de ela também ter este fantasma, mas ao mesmo tempo ser parte deste fantasma" (ibid., 12).

            Estranhamente, Soiland nesta exposição não fala de Irigaray. Que de algum modo parece ter apenas uma importância secundária. Numa entrevista, no entanto, ela também regressa a Irigaray. Irigaray, ao contrário de Lacan, preocupa-se em "pensar [em] outra estrutura do desejo, na qual a impossibilidade constitutiva do ser humano não provém de uma proibição. Especificamente: que não é o pai que tem de proibir o acesso da criança ao corpo da mãe, mas que a própria mulher pode dar à criança uma estrutura e assim um limite com o qual a sua subjectividade entra em jogo. Isto tornaria possível um desejo completamente diferente, tanto para meninas como para meninos [...] o real é para ela (Irigaray) um fantasma retroprojectado de uma realização abrangente, em última instância de fusão com o corpo da mãe, e é um problema da nossa cultura que este corpo permaneça no escuro. Pois é o enigma do corpo feminino que dá origem ao real. Irigaray diz: Se o estatuto da mulher e da mãe fossem diferentes na nossa cultura, esta ideia do real, da promissora fusão, não surgiria de todo. Em última análise, é a proibição do incesto que dá origem à noção de incesto em primeiro lugar. E é esta proibição que torna impossível à mulher, e à mãe, aparecer como sujeito" (Soiland 2015, 5s.).

            Mesmo em muitos dos trabalhos mais recentes de Soiland não existe uma crítica decidida a Lacan e a Žižek e ao seu androcentrismo; embora haja críticas de que falta a posição do sujeito feminino, os seus fundamentos teóricos quase não são tocados e as suas abordagens são utilizadas para a crítica de uma subjectividade pós-patriarcal, mesmo que esta seja supostamente diferente para as mulheres. No entanto, a própria Soiland observa que esta questão ainda aguarda, em grande parte, uma resposta. Em contraste com Wissen, Soiland não recorre neste contexto à crítica da dissociação-valor e, nesse contexto, ao significado da matriz picossocial que produz um sujeito instável na pós-modernidade em condições de crise fundamental. Continua, em última análise, presa no quadro de referência de Lacan e de Žižek.

 

4.2 A crítica estruturalista do valor de Tove Soiland

No entanto, Soiland também recorre a uma crítica do valor, embora à maneira estruturalista; e, ao fazê-lo, também lê Irigaray com Marx. Tal como Žižek, que se baseia em Lacan, ela confunde psicologia e teoria social sem hesitação (para o seguinte, ver também Scholz 2011, 220ss.).

            O "valor de troca", segundo Soiland (citando Irigaray), "de dois signos, duas mercadorias, duas mulheres, é uma representação dos desejos-necessidades dos sujeitos do consumo e da troca, não é de modo nenhum ‘próprio’ daqueles. No caso limite, as mercadorias – ou as suas relações – são o álibi material para o desejo de relações entre homens" (Irigaray citada em Soiland 2003, 163). Soiland refere-se aqui à afirmação de Marx: "É apenas uma determinada relação social dos próprios seres humanos que aqui assume para eles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas" (Marx citado em Soiland 2003, 163) e comenta com isso Irigaray: "A relação que dá às mulheres-mercadoria a sua forma de valor [não é] de modo nenhum própria delas, apenas reflecte a relação dos sujeitos que as trocam. Por outras palavras: Na sua objectualidade de valor, que é ao mesmo tempo a sua única existência social possível, encarna a relação dos homens que as trocam: ‘figuras fantasmagóricas’, de facto – tem de se pensar na sua existência como a objectivação da relação entre os homens" (Soiland 2003, 163). As mulheres representariam assim forma natural e forma de valor, valor de uso e valor de troca em igual medida (ibid., 162). Para Soiland, o género – de acordo com a tradição psicanalítica estruturalista – significa assim uma "posição de sujeito e de desejo, e para isso a mulher tem apenas de contribuir com o seu corpo, com o 'substrato material', sem contudo ser ela própria aí colocada" (ibid., 166). Escreve ela ainda: "Os homens usaram-nas [as mulheres RS] para negociar, mas não têm relação de troca COM elas" (Irigaray citada em Soiland, ibid., 164, ênfase no original). Em Irigaray/Soiland, ocorre assim também uma ontologização do sujeito e da troca e da esfera da circulação.

            Isto dá agora origem ao problema de as mulheres, na perspectiva da análise de Soiland/Irigaray, serem basicamente supostas atingir o estatuto de sujeito como Outras dentro da forma do valor, situação em que estas autoras assumem sem mais delongas uma forma de mercadoria simples, ou seja, permanecem limitadas à teoria da circulação. Trabalho abstracto, contradição em processo, mais-valia e afins, uma dissociação que corresponde dialecticamente ao valor e no entanto é algo diferente numa lógica do processo patriarcal capitalista que conduz à presente crise e que tem de ser quebrada, tudo isto é um anátema para Soiland. Não posso desenvolver isto aqui, mas já o desenvolvi noutro lugar (Scholz 2011, 221ss.). Em Soiland, como já acontece em Žižek e em Irigaray, ocorre um individualismo metodológico a dois níveis. Primeiro, em relação à produção simples de mercadorias, e segundo, na medida em que esta é psicologicamente infundida. Como se viu, os níveis material, psicossocial e cultural-simbólico também se fundem aqui na lógica da identidade; esta é uma forma de pensar que, como se viu, não corresponde de qualquer modo à dissociação-valor como contexto básico e teria precisamente de ser criticada. A crítica de Butler, do queer e de género deve ser alimentada por esta crítica da dissociação-valor como contexto global e não pela referência a teóricos completamente androcêntricos como Lacan e Žižek na sua regressividade. Lacan, Foucault e Althusser não são criticados por Soiland como pensadores androcêntricos no ensaio "Ler Irigaray com Marx" aqui discutido; pelo contrário, ela está preocupada em sugeri-los ao feminismo como teóricos centrais de referência na interpretação por ela recomendada, mesmo no seu recurso a Irigaray.

 

4.3 Tove Soiland e seus esboços de um feminismo marxista: Luxemburgo e Bennholdt-Thomsen na perspectiva de um capitalismo/patriarcado capitalista que eternamente se vai regulando

Soiland tenta uns "Esboços de um feminismo marxista para o século XXI" (Soiland 2018) onde é surpreendente que Irigaray que, como se viu, critica Lacan (e por sua vez tem ser criticada de uma perspectiva crítica da dissociação-valor), mais uma vez estranhamente não apareça aqui.

            Da perspectiva dos cuidados, ela consegue o que considero ser um entendimento bastante simplista do capitalismo/patriarcado capitalista. Várias teorias estão eclecticamente reunidas, mas em última análise a sua linha de pensamento é determinada por uma visão de teoria da regulação e de teorias de colonização. Como se viu, Žižek, na sua caprichosa interpretação de Hegel, também quer sugerir que o capitalismo pode continuar a desenvolver-se sem fim. Embora Soiland não se refira explicitamente a isto nas suas reflexões sobre os cuidados, estas reflexões também equivalem a tal perspectiva, embora de um modo diferente. Como teórica feminista, Soiland recorre a Marx, uma vez que ele tem em conta as condições materiais e tem um necessário conceito do todo social; nas ideias burguesas de liberdade faltam estes quadros, o indivíduo é pensado como abstracto.

            Contudo, Marx – segundo Soiland – negligenciou a reprodução na esfera privada, e também a reprodução em instituições públicas tais como hospitais, creches, lares de idosos etc., que é levada a cabo principalmente por mulheres.

            No fordismo conseguiu-se um aumento da produtividade através de mudanças técnicas e da racionalização dos processos de trabalho. Os lucros aumentaram. Os bens de consumo tornaram-se mais baratos, pelo que as empresas puderam então pagar bons salários, o que significava que a procura destes bens aumentava. Em meados da década de 1970, este modelo de produção entrou em crise, o crescimento da produção diminuiu e o capital procurou novas estratégias de investimento. As estratégias de crise neoliberais (diminuição dos salários, enfraquecimento do poder sindical etc.) pretendiam travar esta tendência. O homem como sustento da família tornou-se obsoleto; o segundo movimento de mulheres – supostamente em protesto contra as relações de género existentes – exigiu o acesso das mulheres ao mercado de trabalho, em conformidade com as novas condições socioeconómicas.

            As actividades de reprodução foram então cada vez mais profissionalizadas. No entanto, pouco lucro pode ser feito com serviços sociais profissionais. A própria lógica das actividades reprodutivas se fecha contra isso, pois não podem ser organizadas de acordo com critérios de eficiência como a produção de bens, uma vez que contêm essencialmente momentos intersubjectivos. "A economificação de actividades que oferecem poucas possibilidades de aumentar a produtividade agrava o problema do declínio das taxas de produtividade no conjunto da economia, que esteve na origem da crise do fordismo", diz Soiland referindo Silke Chorus (ibid., 6). No entanto, de acordo com Soiland, a crise fordista deveria precisamente ser contrariada por uma expansão do sector dos serviços, com serviços sociais caracterizados por baixos salários e condições de exploração. A maioria (das mulheres) não só carece hoje em dia de tempo para cuidar daqueles que necessitam de cuidados na esfera privada, como também carece de dinheiro para pagar tais serviços do próprio bolso. Segundo Soiland, a contradição decisiva hoje em dia não é a relação entre capital e trabalho, mas a relação entre áreas e actividades de fraca e de forte criação de valor. Soiland baseia-se aqui na teórica da colonização Silvia Federici. "Federici fala do facto de, globalmente falando, estarmos actualmente confrontados com uma 'reestruturação da reprodução da mercadoria força de trabalho', e refere-se a esta reestruturação como uma forma de acumulação primitiva. Com isto ela significa que a forma como as pessoas se reproduzem está a ser sujeita a uma profunda mudança que, imposta na sua maioria por condições externas, acaba por privar maciçamente as famílias dos recursos de tempo e dinheiro de que necessitam para a sua própria reprodução. Com esta tese, Federici dá um importante contributo para a actual discussão de uma chamada ‘nova colonização’. Mas enquanto esta discussão, no seguimento de Harvey, visa as espectaculares formas de expropriação dos bens comuns, tais como a privatização da água, do ar, ou das infra-estruturas públicas, a expropriação na esfera privada procede geralmente de forma tácita e muitas vezes de forma pouco tangível mesmo para os afectados por ela" (ibidem, 8s.). A expropriação na esfera da reprodução realiza-se assim tanto em actividades privadas de cuidados como no sector dos serviços pessoais.

            Ela resume provisoriamente: "Marx assumiu que o capitalismo em avanço integraria cada vez mais todas as pessoas do globo em trabalho assalariado. Esta afirmação é simultaneamente correcta e incorrecta. É correcta na medida em que Marx previu o global caminhar a passos largos do trabalho assalariado, obviamente também com uma simultânea expansão do trabalho assalariado. É incorrecta porque esta expansão do trabalho assalariado é obviamente acompanhada por uma simultânea expansão do trabalho não remunerado, ou, por outras palavras, não é exclusivamente na relação salarial que se baseia a existência de assalariados. Nem é possível, nem é do interesse do modo de produção capitalista, converter todo o trabalho social em trabalho assalariado" (ibid., 9s.).

            Soiland refere-se depois a Bennholdt-Thomsen para fazer uma crítica correspondente a Marx. Bennholdt-Thomsen assume com Rosa Luxemburgo que o capital só pode acumular-se através de formas não capitalistas e que está imperativamente dependente destas. As chamadas mulheres de Bielefeld, às quais Bennholdt-Thomsen também pertence, transferem agora este pressuposto para a esfera da reprodução do Norte capitalista. O trabalho de subsistência é assim, de certo modo, uma espécie de base do capitalismo em que se baseia o trabalho assalariado. Bennholdt-Thomsen assume que no capitalismo avançado existe uma "massa marginal" que não se reproduz exclusivamente através do trabalho assalariado. De acordo com Bennholdt-Thomsen, esta "massa marginal" tornou-se entretanto a normalidade. Não se trata aqui do exército de reserva de Marx, pelo contrário, "da perspectiva do capital, ela reproduz-se gratuitamente [...] [mas está] contudo à sua disposição de acordo com as necessidades [...], assumindo assim uma função que é altamente importante para a manutenção global do sistema capitalista". Uma vez que a própria produção de subsistência pertence ao capitalismo, Bennhold-Thomsen fala também de "subsunção marginal". "No caso da reprodução, então, não é só que o capitalismo produz o seu próprio exterior. Também tem interesse em manter esse exterior" (ibidem, 11). Isto também se refere às existências precárias de hoje, que ao mesmo tempo vivem da produção de subsistência e, consequentemente, têm de fazer "trabalho extra" fora do trabalho assalariado. "Portanto, aquilo a que Bennholdt-Thomsen chama 'subsunção marginal' não é a questão de uma mudança na forma de trabalho não remunerado e remunerado, mas precisamente a preservação do trabalho não remunerado, que é necessário para o regime de acumulação pós-fordista, ou ainda, mais precisamente, a inter-relação, que é constitutiva das relações pós-fordistas, do trabalho de cuidados remunerado e não remunerado que em conjunto subsidia o trabalho assalariado 'normal'" (ibid., 11, ênfase no original). Soiland resume: "Com a teoria clássica da mais-valia e a clássica atitude do movimento operário não se chega a lado nenhum aqui [...], já que estamos a lidar com formas de trabalho completamente diferentes" (ibid., 12). Soiland não partilha assim a fé de Marx no progresso, nem o seu optimismo relativamente ao desenvolvimento das forças produtivas como condição prévia para a emancipação. Em vez disso, ela acredita que para isso são necessárias teorias económicas feministas, que [podem] dar uma contribuição significativa para a discussão sobre a "persistência do capitalismo" (ibid., 3). Neste contexto, de acordo com Soiland, só hoje é que a actividade reprodutiva pode tornar-se uma questão importante, porque se tornou escassa devido à actividade profissional das mulheres no decurso da socialização capitalista avançada.

            Como é mediada a socialização dos cuidados com a dimensão subjectiva dos cuidados? Soiland escreve aqui, uma vez mais seguindo Lacan: "Visto desta perspectiva [...] há que perguntar se esta modernização não procura, em última análise, controlar e assim substituir o dom não pensado da mãe, que é constitutivo da nossa cultura, por uma variante agora plenamente esclarecida e modernizada de um gerenciamento económico burocrático" (Soiland 2015a: 126).

            Soiland não pretende aqui uma perspectiva de subsistência e uma política de pequenas redes como Federici e Bennholdt-Thomsen. Pelo contrário, ela vê a contradição entre o trabalho assalariado e o trabalho de cuidados como uma espécie de nova contradição principal. Basicamente, trata-se para ela de uma reavaliação maciça do trabalho de cuidados, um recuo da motivação do lucro e das esferas e áreas correspondentes de uma maneira reformista. Neste contexto, em contraste com a crítica da dissociação-valor, não é a abolição da divisão do trabalho em função do género que é importante para ela; para ela, as mulheres (e os homens?) não têm de mudar muito, mas a questão é antes reconhecer o significado real do lado feminino no capitalismo e tê-lo em conta teórica e praticamente. "A ideia de que nós mulheres temos de nos abolir para nos libertarmos parece-me absurda. Marx também não disse aos trabalhadores: aboli-vos a vós próprios, e então o capitalismo desaparecerá" (Soiland citada por Bettina Dyttrich, em: WOZ de 2.2.2012).

            E aqui entra novamente em jogo Irigaray, como Soiland deixa claro num texto que trata da "subversão do edipiano". Ela escreve que existe uma "terceira posição" a ser ocupada: "É uma questão de pôr fim à subjectividade da mãe que ainda existe, culturalmente falando, encontrando uma representação cultural para o que ela dá [...] para que a perda que é constitutiva do sujeito quando ele entra no social, o momento do triangular, seja moldado de tal modo que não coloque o corpo da mãe desde o início como aquele contra o qual seria necessária uma barreira, uma barreira que depois se ergue precisamente na aporia de impedir aquilo que ela própria produz continuamente de novo" (Soiland 2018a, 113).

 

4.4 Tove Soiland e as diferenças em relação à crítica da dissociação-valor

Vale a pena salientar novamente que, para além da crítica da dissociação-valor, foi Soiland quem questionou maciçamente a teoria queer e de género na década de 2000, mas infelizmente fê-lo contra um pano de fundo de pressupostos marxistas lacanianos. Ao fazê-lo, ela também assume uma "persistência do capitalismo" e, portanto, não uma contradição em processo, em que a quota de valor do trabalho abstracto por produto se torna cada vez menor à medida que a produção aumenta, revelando assim uma "contradição entre matéria e forma" (cf. Ortlieb 2009), o que faz com que o trabalho abstracto se torne obsoleto. Subjacente a isto está a dissociação-valor como contradição fundamental, que também fundamenta a contradição em processo enquanto tal, pelo que a dissociação-valor tem de ser assumida como contradição em processo qualitativamente nova que está subjacente à crise fundamental do patriarcado capitalista. Soiland, pelo contrário, utiliza um conceito inflacionário de trabalho, tomado da de Bielefeld Bennholdt-Thomsen e de Federici, que pretende justificar a persistência. De acordo com isto, as actividades reprodutivas e de subsistência também são rotuladas como "trabalho" sem mais delongas. O resultado é que o trabalho supostamente se expande cada vez mais em vez de se tornar obsoleto. Isto ‘funciona’ na medida em que se assume que tais actividades são a própria base do capitalismo, através da qual, apenas, este pode acumular em geral.

            Soiland tem razão quando ataca a crença no progresso técnico e insiste na importância de uma lógica própria do sector de cuidados e da reprodução para a reprodução global do capitalismo; contudo estão em crise fundamental não só o valor e o trabalho abstracto, mas também os domínios dissociados em crise, como evidenciado pela crescente profissionalização dos serviços sociais, que não geram qualquer mais-valia e cujo financiamento precário tem de ser feito pelo Estado, atingindo este financiamento cada vez mais os seus limites (cf. também Scholz 2013). A meu ver, está completamente fora de questão que o capitalismo se possa perpetuar; pelo contrário, é evidente que a crise está a tornar-se visível em muitos aspectos, de modo que o "fim do capitalismo" está agora a ser considerado por várias pessoas (cf. Scholz 2017). Soiland não menciona esta possibilidade nem o actual "asselvajamento do patriarcado" com uma única palavra, mas explica a formação de uma "massa marginal" e de uma "subsunção marginal" no contexto de um capitalismo indestrutível, situação em que resultariam novas relações de classe (apenas vagamente determinadas e não mais consideradas por Soiland) que, com Bennhold-Thomsen, se tornariam estabilizadoras do capitalismo. Ao mesmo tempo, Soiland não tem em conta a financeirização do capitalismo, nem em termos da superestrutura especulativa, nem em termos do consumo privado, nem em termos do endividamento dos orçamentos públicos. Também ignora por completo uma estratégia de valor para o accionista e coisas semelhantes das empresas, o que não em último lugar desencadeou o crash de 2008 e não só, e uma financeirização que também permitiu que os serviços sociais profissionais inchassem desde a década de 1970. Tais tendências, no entanto, fazem com que pareça provável que se sigam grandes crashes num futuro próximo.

            Para Soiland, a tensão entre áreas de forte criação de valor e áreas de fraca criação de valor (sobretudo o sector de cuidados) é decisiva; ela não vê que são precisamente as áreas de forte criação de valor que estão a entrar em crise no decurso da "desvalorização do valor". Basicamente, Soiland assume uma nova contradição principal, em que já só falta dizer que as mulheres devem ser agora o sujeito revolucionário; isto, porém, num contexto de teoria da regulação e num quadro de perpétuas possibilidades de colonização no contexto de um capitalismo que dure para sempre. Além disso, tanto as de Bielefeld como Federici partem do que eu vejo como uma problemática identificação de mulheres, natureza e colónias, uma suposição que transforma o conceito de colonização num conceito-contentor e que Soiland não critica, mas que simplesmente interpreta à sua maneira para as mulheres, no sentido do trabalho de cuidados e do emprego precário em geral. Soiland também não reconhece que a crítica à "colonização" como fenómeno é inteiramente justificada, mas como teorema é problemática, porque lhe são impostos limites pela contradição em processo no sentido da dissociação-valor como contexto de base (em termos da dimensão dos cuidados, afinal, isto é demonstrado precisamente pelo facto de o seu conteúdo resistir a uma realização eficiente). Não posso ir mais longe aqui (sobre isto, ver, entre outros, Scholz 2016).

            Assim, fica-se com a impressão de que Soiland está mais preocupada com o reconhecimento da subjectividade feminina e das actividades de cuidados do que com a ultrapassagem do capitalismo. Isto também se torna claro na sua interpretação de ler Irigaray com Marx, quando ela exige que as mulheres também sejam reconhecidas como sujeitos da troca na sua própria subjectividade, embora de uma forma diferente dos homens, situação em que ela permanece na forma de mercadoria simples e, além disso, depois psicologiza a forma de mercadoria simples. Ao fazê-lo, Soiland também ignora, em geral, a crítica de Irigaray a Lacan e ao seu androcentrismo quando se trata de definir a subjectividade moderna. Lacan, Irigaray (e Foucault) são igualmente citados como instâncias de teoria e de crítica. Em muitos aspectos, a crítica de Soiland sobre o queer e o género nesta base é bastante perspicaz, mas falta-lhe precisamente o quadro de grande teoria da dissociação-valor como pano de fundo. Pois – ceterum censeo – a alegada base do capitalismo, na qual Soiland conta em particular os cuidados e as actividades reprodutivas, é de facto dialecticamente mediada com ele e não o seu fundamento "verdadeiro". O feminino como dissociado está assim profundamente ligado ao desenvolvimento das forças produtivas; mas este não desempenha um papel importante em Soiland. Neste contexto, também não é evidente porque é que Soiland quer ver a transformação pós-moderna apenas nas teorias e práticas queer e de género, e não já nas mulheres de Bielefeld Bennhold-Thomsen e Cª, e até em Federici com coloração operaista, sendo que estas já insistiam em particularidades, pequenas redes, produção de subsistência etc., ou seja, de modo completamente infantil insistiam e continuam a insistir numa posição não mediada aqui e agora no modus da preocupação, pluralidade incluída. Pretende-se que a não percepção de uma falta no sujeito (feminino?) é própria apenas das ideologias queer e de género, como se não se encontrassem já atitudes correspondentes nas atitudes quase materialistas do segundo movimento de mulheres e dos novos movimentos sociais em geral. O gozo tem de ser imediato, subito, mesmo sob a forma de renúncia, por exemplo estar-se nas tintas para bens de consumo, o que depois se transforma numa hiper-afirmativa atitude de consumo e numa superficial ideologia queer e de género. No entanto, em última análise, Soiland regressa assim, mesmo que implicitamente, a uma simplista ideologia dos cuidados e a uma crença na mãe em termos do marxismo lacaniano (com uma referência marginal a Irigaray) como sendo o terreno primordial ontologizado do capitalismo. Em vez disso, a dissociação-valor teria de ser radicalmente questionada como um todo como contexto dialéctico de base, sobretudo no que diz respeito à distribuição de actividade por género. Isto significaria também que tanto mulheres como homens, pais e mães, podem existir dando e recusando ao mesmo tempo. Seria também uma questão de não considerar como dados nem a assistência (conotada como feminina) nem a renúncia à assistência (conotada como paternal-masculina), mas sim de tornar o gozo e a renúncia, no sentido de um novo feminismo crítico da dissociação-valor, muito praticamente dependente do conteúdo concreto e da situação concreta, em vez de supor uma primitiva atitude de assistência à criança de peito, a que depois já se trata sempre de pôr fim. Tal visão é, por si só, de um capitalismo patriarcal; a própria criança de peito certamente não a conhece. Não pode, portanto, ser uma questão de ontologização da renúncia. O que é crucial aqui, no sentido da crítica da dissociação-valor, é que diferentes fases do capitalismo se sucedem, e que depois de uma fase anti-autoritária-neoliberal, em que é o ego a empunhar o chicote, os anseios autoritários surgem hoje de novo. Leni Wissen escreve – e isto deve ser repetido aqui mais uma vez: "O sujeito burguês e a sua matriz psicossocial baseiam-se [...] decisivamente na dissociação do feminino, na fantasia de dominação da natureza e na imaginação de autoposição. Eles também estão significativamente associados com a internalização do ethos do trabalho. Ao que corresponde uma dinâmica pulsional em que, perante o adiamento da pulsão, a libido sobe às alturas, na alegre expectativa da 'recompensa pela recusa'. Este 'truque' da libido para lidar com a recusa da pulsão também define simultaneamente a via para o processo de sublimação da pulsão. A necessidade de adiamento da pulsão surge com a imposição do modo de produção capitalista e com o dispêndio de trabalho abstracto com este exigido. É claro, portanto, que a formação da sociedade capitalista também não poderia ficar de fora da estrutura da pulsão. Daqui se pode concluir: Somente com o patriarcado capitalista surge uma estrutura de pulsão na qual Ego, Id e Superego interagem como instâncias separadas, em conflito umas com as outras, e assim intermediando a dinâmica psicológica. Esta forma de mediação psíquica, portanto, surgiu apenas na sequência da história de imposição do capitalismo. Freud naturalmente não descreveu a coisa assim, isto é parte da interpretação de Freud aqui efectuada, que assenta numa leitura de Freud no contexto da situação histórica em que ele desenvolveu a sua teoria" (Wissen 2017, 39). E assim emerge também a ideia de mulher como "ser natural domesticado".

            Žižek não percebe nada disto, mas, no contexto de um falso hedonismo consumista do pós-modernismo (que é preciso de facto criticar), critica hoje de maneira retrógrada não que o trabalhador se está a tornar obsoleto, mas que capitalista e trabalhador estejam à procura de transcender a sociedade contemporânea dada. Os cuidados também não são apenas necessários e agradáveis, mas em Soiland a limpeza do rabo deve mesmo continuar a ser uma componente emancipatória essencial, sem questionar a sua historicidade no capitalismo (como necessária antítese da produção) nem criticar que a necessidade de uma desagradável limpeza da merda seja um assunto feminino. Contudo a questão tem de ser também libertar as mulheres do jugo das actividades de cuidados, tal como o trabalho abstracto deve ser questionado. Žižek e Soiland propagam assim na verdade um (neo-)protestantismo, enquanto, no que diz respeito à base socialmente objectiva de tal zelo, tanto o emprego remunerado/produção como a reprodução estão há muito em declínio na sua referência recíproca, e por isso, por exemplo, os idosos que precisam de cuidados são na realidade cada vez mais deixados na sua merda.

 

5. Žižek, Soiland e a crítica da dissociação-valor

Žižek e Soiland aderem ambos a um marxismo lacaniano. Embora existam outros marxistas lacanianos, tais como Mladen Dolar, Alenka Zupančič e Jacques-Alain Miller, Žižek é o mais proeminente e provavelmente o mais citado marxista lacaniano; e Tove Soiland, que agora também é amplamente citada no discurso feminista, segue as suas pegadas. No entanto, Žižek é um representante lacaniano completamente androcêntrico, o que Soiland em todo o caso não problematiza. Por outro lado, ela refere-se a Irigaray que, ao contrário de Lacan, está preocupada com o problema da subjectivação feminina e com as lógicas conexas. Ela lida com isto num volumoso livro sobre Irigaray (Soiland 2010). Soiland critica com Lacan/Žižek o sujeito narcisista dominante no pós-modernismo / feminismo pós-moderno, que é, no entanto, em princípio, um sujeito masculino, também e precisamente porque está dividido. Como a própria Soiland diz, a "identidade" das mulheres é, até agora, um desiderato. No entanto, trata os "novos movimentos sociais" como neutros em termos de género neste sentido, de acordo com o modelo de Lacan/Žižek, e critica-os em conformidade. A dissociação(-valor) como forma da ausência de forma não é assim reconhecida.

            O caminho entre Žižek e Soiland bifurca-se quando se trata de definir um marxismo lacaniano; aqui Soiland prefere ler Irigaray com Marx, enquanto Žižek opta antes por recordar de novo e elaborar não só a partir de Marx, mas também de Lenine e Estaline, a fim de determinar o que não foi satisfeito para o presente. Em reflexões sobre um marxismo feminista, Soiland chega então a concepções da teoria da regulação e da colonização, que, com a inclusão de actividades reprodutivas das mulheres, vão dar a que o trabalho reprodutivo e de subsistência (não remunerado ou mal remunerado) se está a expandir cada vez mais, assim patrocinando também em certa medida o trabalho assalariado e garantindo a "persistência" do capitalismo.

            Uma vez que Soiland está principalmente preocupada com o reconhecimento do trabalho de cuidados e de assistência, afirma os modos de subjectividade e de vida existentes de maneira diferente de Judith Butler na decadência do capitalismo. Na medida em que as identidades flexíveis são implacavelmente exigidas, isto também pode significar do "lado feminino" que as mulheres cada vez mais têm de juntar-se com outras mulheres (familiares, vizinhas, amigas) a fim de poderem gerir a sua reprodução e existência, incluindo a dos filhos, quando o indivíduo homem ganha-pão falha e já não se pode confiar nele. Hoje as mulheres têm de ser frequentemente mãe e pai ao mesmo tempo. Além disso as mulheres têm hoje o papel de administradoras da crise, cada vez mais frequentemente também nas alavancas do poder. Esta necessidade poderia agora ser ideologicamente legitimada por uma abordagem de "affidamento" baseada na teoria de Irigaray, que visa mostrar "como nasce a liberdade feminina" (Libreria delle donne di Milano 2001). As diferenças e hierarquias entre as mulheres devem aqui ser tidas em conta e ainda enobrecidas do ponto de vista da emancipação ideológica. Eva Illouz, numa entrevista, quando questionada sobre como as jovens / as mulheres lidam com a nova insegurança nas relações, diz: "Uma tendência que observo é que as mulheres jovens estabelecem relações com outras mulheres. Não conheço as estatísticas, mas aposto que os números têm aumentado rapidamente. E talvez as mulheres mais velhas devam aprender com as jovens e não entrar no mercado (do amor), onde têm tão poucas hipóteses [...] Muitas de entre nós são mais flexíveis a este respeito do que pensamos. A gente jovem quer ser assim hoje e amanhã, pessoas multissexuais" (Eva Illouz, in: Stuttgarter Zeitung, 7.2.2019). A tendência geral é que as mulheres estão cada vez mais a juntar-se com outras mulheres devido a conflitos (de relacionamento) socialmente induzidos. Por conseguinte, é altamente problemático tentar vender a coerção como liberdade, como parece ser o caso das "milanesas". Se a mãe disfuncional, a mulher, é suposto ser, como em Irigaray e Soiland, a suposta instância que deve ser mãe e pai ao mesmo tempo, isto acomoda ideologicamente a administração da crise patriarcal-capitalista, na minha opinião. Pode assumir-se que é também por isso que Antje Schrupp, para quem uma crise fundamental é obviamente estranha e que invoca a solidariedade das mulheres no sentido das mulheres milanesas, tem encontrado cada vez mais audiência nos media nos últimos anos. Neste sentido, proclama agora um "fim do patriarcado", como fez a Libreria delle donne di Milano em meados da década de 1990 (Libreria delle donne di Milano 1996; Antje Schrupp 2019).

            Se as mulheres chegassem ao poder, caberia a elas decidir o que fazer dele para a emancipação de toda a humanidade. Parece-me que aqui se faz da necessidade virtude. Ignora-se completamente o facto de existir algo independente fora de nós, a socialização da dissociação-valor,  e está completamente distante de tais pontos de vista que um novo poder feminino poderia ser uma finta do patriarcado capitalista em decadência.

            Soiland não se refere às "milanesas", que foram instrumentais no desenvolvimento da abordagem do “affidamento”. No entanto, a consequência de uma comunidade feminina abstracta com base na diferença é retirada da sua análise de Irigaray, por exemplo, por Letsch/Merkle (Letsch; Merkle 2018). Mas esta consequência poderia funcionar em benefício de orientações conservadoras e afirmativas quando se trata, em termos muito práticos, de gerir o capitalismo em decadência e estabilizá-lo relativamente por algum tempo. A ideia de uma feminilidade separada, mesmo que se veja para já como indefinida, e imagens correspondentes de mulheres com a hipostasiação de actividades reprodutivas como utopia poderiam assim também trabalhar involuntariamente para as tendências da direita e ser por elas apropriadas. Em contraste, a teoria da dissociação-valor assume que o trabalho assalariado e as actividades reprodutivas se desenvolveram historicamente e são logicamente equiprimordiais. Os indivíduos do sexo feminino e masculino são assim fixados coercivamente em termos de género até se tornarem flexíveis na pós-modernidade, embora nenhum indivíduo jamais seja absorvido por atribuições coercivas masculinas e femininas. Contudo, os padrões culturais internalizados mudam com o desenvolvimento histórico no contexto da desintegração da socialização da dissociação-valor, também no que diz respeito à dimensão psíquica, como Leni Wissen demonstrou, sem que a hierarquia de género e as suas determinações identitárias tenham simplesmente desaparecido. Em algumas análises feministas actuais, porém, quase se pode ter a impressão de que estamos a viver na década de 1960, o que também pode ter algo a ver com o facto de, no cume da desconstrução das últimas décadas, as dimensões psíquica e corporal terem sido completamente negadas. Agora um problemático feminismo da diferença também está de novo a levantar a cabeça. Para evitar mal-entendidos: A solidarização entre as mulheres é absolutamente necessária hoje em dia, mas teria de ser contra novas imposições de serem administradoras da crise, "pequenas trabalhadoras independentes" (Irmgard Schultz) e mães monoparentais, em vez de assumir estas situações mesmo em auto-organização, assim afirmando de facto as más condições do patriarcado capitalista decadente. Os indivíduos femininos de hoje têm de ser tão flexíveis que também possam/devam voltar a professar ser mulheres. Entretanto, sabemos que os movimentos de protesto de esquerda e feministas também têm sido úteis para o tratamento da contradição do patriarcado capitalista (por exemplo, ao exigir que as mulheres trabalhem desde os anos 70, o que o próprio mercado exigia). Este "antigo" reconhecimento deve ser tornado frutífero e não ingenuamente atirado ao vento na euforia da lua-de-mel dos novos movimentos feministas (como, infelizmente, faz Koschka Linkerhand, que em muitos aspectos argumenta em termos de crítica da dissociação-valor – ver, por exemplo, Linkerhand 2018).

            Žižek afirma agora, autoconfiante com a sua variante do marxismo lacaniano, uma nova mania da masculinidade e do trabalho. Tal como demonstrado, protestar contra a ética do trabalho tem para ele a mesma classificação que a repressão da sexualidade. Uma falta no sujeito, que na pós-modernidade só é satisfeita pelo consumo de mercadorias, exige obviamente para Žižek o punho calejado no alto-forno, para que se possa mais uma vez avançar para um verdadeiro prazer. Ou será o trabalho no alto-forno talvez já em si o verdadeiro prazer, por oposição a uma ida ao ginásio? O trabalhador, ele próprio já completamente disciplinado no patriarcado capitalista, é inteiramente deixado de fora com toda a sua sujidade e "diligência suja" (Robert Kurz), que é subitamente atribuída lacaniana e ontologicamente ao desejo! Žižek e Soiland representam assim no final da pós-modernidade – polémicamente exagerando – o grande par da masculina dominação autoritária e da feminina necessidade de cuidados, como sendo a necessidade básica na aparência realmente natural da pós-modernidade capitalista, apesar de todas as suas distorções. Nem um nem a outra vêem que é a lógica da dissociação-valor, na sua fragmentariedade e na sua processualidade histórica real, que em primeiro lugar constitui tal necessidade.

            Nisto, o próprio Žižek é um pivot na passagem da pós-modernidade à pós-pós-modernidade na era da desintegração do patriarcado capitalista. Como foi dito acima, ele próprio utiliza meios pós-modernos de análise de texto, de ironia etc. para combater o pós-modernismo.

            Mas não é tudo. Outrora muito respeitado por antigos pós-modernistas, ele transforma-se hoje num aparentemente apenas irónico e clownesco Lenine e Estaline pós-moderno, de quem ele não quer simplesmente salvar o não satisfeito para o tempo de hoje para o questionar, mas na realidade, na minha opinião – tal como parece – quer estabelecer um Lenine e um Estaline novamente hoje. Nisto, está em plena consonância com o espírito do tempo autoritário de direita, que quer dar uma descompostura ao supostamente "suave" pós-modernismo. Em alguns aspectos, a aparência de Žižek faz lembrar Trump, Johnson e Bolsonaro, um papel a que Berlusconi é acrescentado como um clássico (cf. Ferraris 2014), mas à maneira intelectual de esquerda. Leni Wissen chama a atenção para o facto – e aqui o supracitado tem de ser repetido – de que nem o carácter autoritário nem o carácter narcisista existem em "forma pura", mas o caminho que tomam depende das mudanças sociais e históricas. Isto não afecta apenas os mais jovens, mas também os mais velhos (cf. Wissen 2017, 44s.). Wissen escreve ainda: "A irrupção da crise desde o final da década de 2000 destruiu a ilusão de uma festa que se pretendia interminável, e a realidade da crise irrompe cada vez mais drasticamente. Esta situação choca com um carácter social narcisista muito susceptível à ofensa e à ameaça, devido ao seu ego frágil. É inerente ao carácter social narcisista que ele possa passar imediatamente de uma posição para outra – especialmente quando se vê ameaçado. Mas este tipo social narcisista, para o qual cada vez mais caem a pique as possibilidades de manter vivo o seu ego frágil, é muito propenso a exorcizar os seus impotentes medos narcisistas com 'novas' clarezas. O que é justamente uma porta aberta às ideias de anti-semitismo, anticiganismo, racismo, antifeminismo, neofascismo etc. Também por esta razão se torna necessária uma crítica do carácter social narcisista no contexto da crítica radical do sujeito" (ibid., 29s.).

            Por isso, não é de admirar que Žižek, no seu livro com o significativo título de "O Absoluto Frágil", se refira ao "livro pioneiro [...] de Badiou sobre Paulo" (Žižek 2000, 5). Assim se aplica a Žižek, e isto não pode ser mais desenvolvido aqui, o que Herbert Böttcher escreveu em relação a Badiou na apresentação do seu texto "Rezar na crise ainda ajuda?" no editorial da exit! nº 16, nomeadamente que a referência a Paulo "leva a uma franca instrumentalização de Paulo para o próprio pensamento. O regresso filosófico a uma figura religiosa vai de mãos dadas com uma religiosa alegria pós-moderna que carrega traços decisionistamente autoritários e inimigos da reflexão. Está relacionado com um pensamento filosófico e teológico existencialista que busca a certeza em experiências existenciais e no risco da decisão." (Meyer 2019, cf. também Böttcher 2019, bem como Scholz 2006). O acto e o evento têm um significado central para Žižek (ver acima). A ideologia no sentido convencional é em si mesma obsoleta para Žižek. Na negação dela mesma, no entanto, no sentido da crítica da dissociação-valor, ela mesma tem de ser mais uma vez levada ao tapete negatoriamente, tanto para além das noções marxistas convencionais de ideologia como das de Butler ou Irigaray. Deste modo, Žižek é, num certo sentido, o ideólogo mais puro do pós-modernismo na sua transformação em autoritário.

            Assim, Žižek e Mouffe são de facto complementares. De acordo com Žižek, o filo-multiculturalismo pode facilmente transformar-se de novo em racismo, mas aqui parece-me que está a funcionar uma racionalização em Žižek: Pois ele não leva realmente a sério o racismo (juntamente com o sexismo e a homofobia), mas afirma que os indivíduos e grupos correspondentes há muito que estão integrados no capitalismo e que a sua tematização é principalmente ideologia (ver acima). Não quero dizer que a crítica do discurso do multiculturalismo esteja simplesmente errada, mas seria importante não orientar mais uma vez este entendimento de uma forma autoritária, mas utilizá-lo de uma forma emancipatória no reconhecimento, mas também, se necessário, na crítica dos "outros".

            Na dimensão do fantasma, Žižek e Soiland ignoram o capitalismo financeiro (Soiland), ou dobram-no de volta ao punho calejado (Žižek) numa correspondente interpretação de Marx, embora o "proletariado", na medida em que ainda se lhe pode chamar isso, seja hoje altamente diversificado e os estratos mais baixos formados principalmente por mulheres e migrantes. Os desempregados precários de hoje têm, portanto, de ser necessariamente feitos passar como o novo proletariado para Žižek. Na minha opinião, esta é a dissimulação/cegueira por excelência de hoje, quando ser supérfluo se torna actualmente o factor determinante. A esfera autonomizada do mercado financeiro é feita passar como uma questão psico-ideológica, que basicamente se supõe existir numa realidade secundária "sã como um pero", à frente de um calejado corpo masculino na produção. Não se quer perceber um nível de abstracção real independente, tem de se o virar de novo para o concreto, em vez de se dar ênfase a esta dicotomia entre abstracto e concreto no sentido da crítica da dissociação-valor com o objectivo de a ultrapassar. O principal é o trabalho! Aqui também Soiland inflaciona o conceito de trabalho alargando-o a todo o tipo de actividades de subsistência, cuidados etc.; em contraste com Žižek, ela tenta ter fundamentalmente em conta a reprodução e as actividades de cuidados em geral para a reprodução do todo social. Contudo, as novas actividades de subsistência, a economia paralela etc. – não apenas no chamado Terceiro Mundo (as tendências correspondentes avançaram há muito para as nações ocidentais) – são expressão da crise fundamental do patriarcado capitalista e de modo nenhum da sua "persistência".

            Em vez disso, teria de se ver que a forma de reprodução da política e da democracia como forma de organização correspondente também entrou numa crise fundamental no decurso da obsolescência do trabalho abstracto e das actividades reprodutivas femininas, no contexto de uma contradição em processo que tem de ser reformulada em termos de crítica da dissociação-valor.

            Tendo como questionável pano de fundo um marxismo do movimento operário, Žižek questiona o quadro social, a socialidade capitalista como um todo: "Žižek não está preocupado com um ‘não a alguma coisa’, mas com o ‘não a tudo’ [...] no quadro de uma sociedade sem classes não é sequer possível confrontar trabalhadores e burgueses" (Heil 2010, 9). Por outro lado, Soiland está basicamente preocupada com uma perspectiva de reforma e de regulação, que consegue através do desvio da teoria da regulação em combinação com teorias da colonização (cf. sobre a crítica da teoria da regulação: Kurz 2005, 423ss.).

            Também em Soiland, como vimos, diferentes níveis se misturam. Não só Irigaray, mas também Žižek, Lacan e Marx permanecem sem qualquer mediação entre si. Irigaray é precipitadamente equiparada aos outros. Finalmente, a isto junta-se a esfera da economia feminista. No lugar de Irigaray, eu teria ficado com uma raiva tremenda, pois tendo eu durante tanto tempo como estudante de Lacan tomado posição contra ele, agora ele e Žižek são igualmente cortejados por uma perita em Irigaray! O facto de Rosa Luxemburgo ter sido a teórica do colapso em primeiro lugar, juntamente com Henryk Grossmann, também é intencionalmente esquecido nas reflexões da Soiland, quando ela assume uma acumulação primitiva (o que significa, presumivelmente, acumulação original) sem fim. Luxemburgo é simplesmente incorporada em termos reformistas.

            Já Žižek simplesmente confunde diferentes níveis. Assim, também Richard Heil escreve no final da sua introdução ao pensamento de Žižek: "O que é problemático no pensamento de Žižek é [...] uma certa imprecisão. Muitas vezes não é claro a que nível ele está a criticar. Por vezes distingue entre acções autênticas e acções inautênticas dentro da ordem social existente, outras vezes rejeita qualquer acção dentro do sistema como estabilizadora em princípio, na medida em que não põe em causa a ordem capitalista fundamental. Assim, Žižek [...] coloca-se positivamente perante partes do movimento feminista, embora o feminismo em particular esteja frequentemente preocupado com a igualdade de direitos das mulheres dentro do sistema existente" (Heil 2010, 143). Pode ser que existam tais afirmações em Žižek no que diz respeito ao feminismo. No entanto, ninguém pode exigir que o destinatário persiga todas as possíveis declarações contraditórias em Žižek. Teórica e sistematicamente, o feminismo e os problemas correspondentes não entram de todo nas suas considerações. A este respeito, ele também está longe de compreender a perspectiva crítica da dissociação-valor na sua totalidade e complexidade em si plenamente fragmentárias. Com Žižek, também se fica um pouco com a impressão de que quando envia mensagens de texto às pessoas, está a contar que sejam esquecidos os pedidos de esclarecimento. Os ouvintes/receptores também nunca sabem se Žižek já invalidou uma potencial objecção algures na sua massa de textos, e por isso preferem permanecer em silêncio, sentindo-se surpreendidos e ponderando se Žižek não estará certo. O respeito pelo imenso conhecimento dele deixa o próprio assim. Assim Žižek não deveria realmente ser criticado. Deve-se estar sempre preparado para isto: Aqui e ali, a coisa pode talvez ser encontrada nas suas obras completas. Não concordamos com esta estratégia de imunização. Se Žižek defende certas declarações e teses, tem de responder por elas e não pode recuar para a grandeza e complexidade contraditória da sua obra (cujos faux-pas lógicos nem sempre podem ser justificados com "dialéctica"!). Não é possível entrar em todos os problemas e joguinhos de Žižek nem nas correspondentes afectações de macho alfa; a situação é demasiado dramática para isso. Talvez ele queira provocar precisamente a sua negação como tal no exagero, mas depois volta a exagerar no gesto de supremacia masculina, que ainda se quer celebrar marcialmente no seu declínio e afundamento. Žižek parece simplesmente não conseguir imaginar uma sociedade sem renúncia, tanto quanto ela é realmente exigida em situações de necessidade.

            Se agora alguns acharem que eu própria interpretei erradamente Žižek, é preciso recordar mais uma vez que ele próprio não toma a sério análises precisas de Marx, Hegel e outros, com base num difuso pensamento de ponto de vista (neoproletário-masculino), à maneira pós-moderna e psicanalítica; por isso também tem de se encenar a si próprio de modo tanto mais "lúdico" dentro de (velhas) ideias de masculinidade; uma forma de pseudo-ironia, em que a velha supremacia masculina continua, no seu aparente desmentido.

 

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Scholz, Roswitha: ›Die Demokratie frisst immer noch ihre Kinder‹ – heute erst recht! Überlegungen zu einem 25 Jahre alten Text und einige kritische Bemerkungen zu dem Artikel von Daniel Späth ›Querfront allerorten!‹, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr. 16, Springe 2019, 30–60. Trad. port.: ‘A democracia continua a devorar os seus filhos’ – hoje ainda mais! Reflexões sobre um texto de 25 anos e alguns comentários críticos sobre o artigo de Daniel Späth 'Frente transversal em toda a parte!’, online: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz32.htm

Scholz, Roswitha: Christoph Columbus forever? Zur Kritik heutiger Landnahmetheorien vor dem Hintergrund des ›Kollaps der Modernisierung‹, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr. 13, Berlin 2016, 46–100.  Trad. port.: Cristóvão Colombo forever?Para a crítica das actuais teorias da colonização no contexto do "Colapso da modernização", online: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz24.htm

Scholz, Roswitha: Editorial, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr.14, Angermünde 2017, 7–18.  Trad. port.:  Editorial exit! Nº 14, online: http://www.obeco-online.org/editorial_exit14.htm

Schrupp, Antje: Das Ende des Patriarchats [O fim do patriarcado], in: jungle world Nr. 32/2019.

Soiland, Tove: Irigaray mit Marx lesen – Eine Rehabilitation des Denkens der sexuellen Differenz [Ler Irigaray com Marx – Uma Reabilitação do Pensamento da Diferença Sexual], in: Widerspruch – Beträge zu sozialistischer Politik Nr. 44, Zürich 2003, 159–172.

Soiland, Tove: Luce Irigarays Denken der sexuellen Differenz: Eine dritte Position im Streit zwischen Lacan und den Historisten [O pensar da diferença sexual de Luce Irigaray: uma terceira posição na controvérsia entre Lacan e os historicistas], Wien 2010.

Soiland, Tove: Lacan und Marx. Das Subjekt und die Ideologie [Lacan e Marx. O sujeito e a ideologia], in: Widerspruch – Beträge zu sozialistischer Politik Nr. 62, Zürich 2013, 140–154.

Soiland, Tove: Queering gender als Bestandteil spätkapitalistischer Subjektivierung – Vortrag [Género queer como componente da subjetivação capitalista tardia – Palestra] @e*camp 2013a, auf: evibes.org.

Soiland, Tove: Über das Genießen in Zeiten des Neoliberalismus [Sobre desfrutar em tempos de neoliberalismo], 2015, auf: theoriekritik.ch.

Soiland, Tove: Die Ungreifbarkeit postfordistischer Geschlechterhierarchie [A intangibilidade da hierarquia de género pós-fordista], in: Walgenbach, Katharina; Stach, Anna (Hrsg.): Geschlecht in gesellschaftlichen Transformationsprozessen [O género nos processos de transformação social], Opladen 2015a, 115–130.

Soiland, Tove: Der Sockel des Eisbergs: Umrisse eines feministischen Marxismus für das 21. Jahrhundert [A ponta do iceberg: Esboços de um Marxismo Feminista para o Século XXI], 2018, auf: soziopolis.de.

Soiland, Tove: Der Umsturz des Ödipalen – Ein feministisches Dilemma [A subversão do edipiano – Um dilema feminista], in: Busch, Charlotte; Dobben, Britta; Rudel, Max; Uhlig Tom (Hrsg.): Der Riss durchs Geschlecht – Feministische Beiträge zur Psychoanalyse [A fenda através do género – Contribuições Feministas para a Psicanálise], Gießen 2018a, 951–17.

Wissen, Leni: Die sozialspsychologische Matrix des bürgerlichen Subjekts in der Krise, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr.14, Angermünde 2017, 29–49. Trad. port.: A matriz psicossocial do sujeito burguês na crise. Uma leitura da psicanálise de Freud do ponto de vista da crítica da dissociação-valor, online: http://www.obeco-online.org/leni_wissen.htm

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Žižek, Slavoj: Die Revolution steht bevor – Dreizehn Versuche über Lenin, Frankfurt 2002. Trad. port.: Às portas da revolução: Escritos de Lenin de 1917, Boitempo, São Paulo, 2005.

Žižek, Slavoj: Lacan – Eine Einführung, Hamburg 2008. Trad. port.: Como ler Lacan, Zahar, Rio de Janeiro, 2010.

Žižek, Slavoj: Auf verlorenem Posten, Hamburg 2009. Trad. port.: Em defesa das causas perdidas, Boitempo, São Paulo, 2008.

Žižek, Slavoj: Klassenkampf oder Postmodernismus – Ja bitte! [Luta de classes ou pós-modernismo – Sim, por favor!], in: Butler, Judith; Laclau, Ernesto; Žižek, Slavoj: Kontingenz, Hegemonie, Universalität – Aktuelle Dialoge der Linken [Contingência, hegemonia, universalidade – diálogos actuais das esquerdas], Wien 2013, 113–170.

Žižek, Slavoj: Weniger als nichts – Hegel und der Schatten des dialektischen Materialismus, Berlin 2014.  Trad. port.: Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético, Boitempo, São Paulo, 2013.

Žižek, Slavoj: Lenin heute – Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten [Lenine hoje – Recordar, repetir e elaborar], Darmstadt 2018.

Žižek, Slavoj: Wie ein Dieb bei Tageslicht – Macht im Zeitalter des posthumanen Kapitalismus [Como um ladrão à luz do dia – O poder na era do capitalismo pós-humano], Frankfurt 2019.

 

 

Original Der Kapitalismus, die Krise … die Couch – und der Verfall des kapitalistischen Patriarchats. Einige kritische Bemerkungen zum Lacan-Marxismus on Slavoj Žižek und Tove Soiland publicado na revista exit! nº 17, Abril 2020. Tradução de Boaventura Antunes (6/2021)

 

 

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