O ASSELVAJAMENTO DO PATRIARCADO

NA PÓS-MODERNIDADE

 

Roswitha Scholz

 

 

1.

Na segunda metade da década 80 eram favoráveis os prognósticos sobre o desmantelamento das hierarquias e discriminações das mulheres. Partia-se do princípio de que, na sequência das tendências de individualização, as mulheres também teriam ganho mais possibilidades de acção, de modo indirectamente proporcional à desintegração da família nuclear. Algumas interpretações chegaram ao ponto de dizer que os indivíduos podiam agora escolher se queriam ser homens ou mulheres. Houve até “donos de casa” que chamaram a atenção para si mesmos como novidade, espalhando a esperança de que em breve talvez se pudesse ver uma grande tendência nesse sentido. Nos anos 80, ao mesmo tempo, as tendências da "nova feminilidade" eram vistas como expressão da viragem conservadora-liberal. Mas não poucas pessoas presumiram que não passariam duma simulação da feminilidade moderna.

Em contraste, nos anos 90 começou por se falar de uma "reacção negativa". A generalizada viragem à direita e o agravamento da situação económica tinham varrido um dos principais temas dos anos 80, as relações assimétricas de género. No entanto, ainda nos anos 90 subsistem avaliações feministas que “em princípio” vêem o fim do patriarcado (por exemplo, Libreria delle donne di Milano, 1996).

Gostaria de contrariar tais posições com a tese de que, no final da pós-modernidade, é mais provável que estejamos a lidar com um asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias do que com a sua dissolução, o que não exclui que as mulheres também tenham ganho com os desenvolvimentos das últimas décadas. Não há dúvida de que uma modificação das relações de género teve lugar nos últimos 30 anos; contudo, isto não resultou no desaparecimento absoluto da dupla sexualidade (social). Pelo contrário, no decurso das tendências da globalização, pode agora observar-se a formação de identidades flexíveis-compulsivas, as quais, mantendo a hierarquização de género, se apresentam de maneira diferente para homens e mulheres.

Neste contexto, gostaria de demonstrar a seguir que análises, teorias e concepções de acção muito debatidas no feminismo apoiam estas tendências de asselvajamento e estas identidades flexíveis-compulsivas específicas de género, bem como todo o entretanto desolado sistema patriarcal capitalista, cujos limites ecológicos, sociais e económicos há muito se tornaram ostensivamente evidentes. Isto aplica-se, por exemplo, a teorias desconstrucionistas, a modelos de acção orientados para o Estado-nação e a opções internacionalistas / da sociedade civil, bem como a várias visões de subsistência e de trabalho autónomo no feminismo. É claro que nisto é preciso desde logo arrancar a máscara demasiado solta das ilusões verde-rubras de que as relações assimétricas de género podem ser substancialmente melhoradas imanentemente ao sistema. Após a vitória verde-rubra na RFA, é provável que tais esperanças se tornem mais populares também no feminismo.

Para poder desmontar ponto por ponto estes contextos, no entanto, gostaria de começar por apresentar pelo menos alguns aspectos da tese da dissociação-valor que defendo, uma vez que esta tese forma o quadro teórico no qual irei colocar as tendências e desenvolvimentos aqui desde já esboçados apenas muito brevemente.

 

2.

Na versão dum entendimento crítico da teoria de Marx a que aqui me refiro, "valor" e "trabalho abstracto" estão no centro do esforço da crítica teórica. De acordo com ela, o "trabalho" no entendimento hoje comum só surge no capitalismo, ou seja, "trabalho" não é a actividade humana per se, como na maioria dos marxismos, mas a forma histórica específica da actividade social no capitalismo. Enquanto nas sociedades pré-modernas a produção era principalmente para o uso, o sistema de produção de mercadorias caracteriza-se pelo automovimento do dinheiro, pelo ganho de valor (mais-valia) através da transformação de trabalho vivo em quanta de trabalho morto e abstracto. (cf. Kurz, 1991, p. 15ss.). Isto também esboça brevemente o significado de "valor".

Fica fora desta perspectiva o facto de no capitalismo também terem de ser realizadas actividades reprodutivas no lar e terem de ser educadas as crianças, de haver tarefas de cuidar que não podem ser feitas ou não podem ser feitas apenas por meio mercado e que recaem principalmente sobre as mulheres. Também não se tem em conta que no desenvolvimento moderno em ligação com isto são delegados na "mulher" ou a ela atribuídos sentimentos e características, fraqueza, menor capacidade de entendimento, sensualidade, passividade etc. O "homem", pelo contrário, representa assertividade, intelecto, força de carácter e coisas assim. Ser homem foi equiparado a cultura, ser mulher foi projectivamente equiparado a natureza.

Na minha opinião, a relação hierárquica de género no patriarcado produtor de mercadorias é essencialmente determinada por esta dissociação de actividades, qualidades e atribuições específicas de género, sendo que o facto empírico de as mulheres também poderem ser ou serem agressivas, activas, intelectuais etc., e nunca terem sido exclusivamente donas de casa, não põe minimamente em causa esta determinação teórica central. Assim, esta dissociação específica de género enquanto dissociação não pode ser derivada da forma do valor; pelo contrário, é, de certo modo, a sombra projectada pelo valor. Por um lado, é uma componente da socialização do valor, mas, por outro lado, também está fora dela. E é por isso que não pode ser subsumida no termo "trabalho", como muitas feministas insistem. Na minha opinião, seria preciso conseguir uma nova compreensão da socialização que mediasse dialecticamente "a dissociação" com o valor, ou seja, não a acrescentasse externamente (cf. Kurz, 1992; Scholz, 1992).

Contudo, o sistema marxista convencional de categorias não é suficiente para uma compreensão teórica da relação assimétrica de género quando se incluem os momentos dissociados: os níveis psico(ssocial) e cultural-simbólico também têm de ser considerados. Assim, por exemplo, a análise dos discursos religiosos, filosóficos, científicos etc. pode ser usada para mostrar como se formam ideias colectivas sobre o que são homens e mulheres na modernidade dominada pelos homens e em que atribuições se expressa a "dissociação" (cf. p. ex. Honegger 1991). Com a ajuda de instrumentos psicanalíticos, é possível descobrir as consequências do facto de a educação da criança no desenvolvimento moderno estar principalmente nas mãos das mulheres, nomeadamente que, ao contrário das meninas, as crianças masculinas têm de se desidentificar das mães para adquirirem a sua própria identidade, o que anda de mãos dadas com uma dissociação e desvalorização do feminino (por exemplo, Chodorow, 1985).

Assim, tal como a Escola de Frankfurt, assumo aqui a necessidade de uma abordagem interdisciplinar com referência ao todo social. Neste contexto, Regina Becker-Schmidt escreveu uma vez muito apropriadamente (embora erradamente no contexto da cobertura universalista, e ainda pensando nas antigas categorias de base e superestrutura): "Androcentrismo (é) não só um fenómeno de superestrutura, como a ideologia, mas uma expressão psicossocial de um inconsciente social; poderia dizer-se que é também um fenómeno infra-estrutural psicogenético" (Becker-Schmidt, 1989, p. 216). Para a tese da dissociação-valor, gostaria – distanciando-me de Becker-Schmidt – de interpretar esta afirmação limitando-a ao patriarcado produtor de mercadorias, de tal modo que o recalcamento / a dissociação do chamado feminino, a inferiorização das mulheres reais e a existência da dominância masculina estão profundamente ancorados na psique dos indivíduos do capitalismo patriarcal; e que, de facto, aqui a "dissociação", como padrão sociocultural básico e mecanismo psicossocial em mediação com a divisão social do trabalho, determina essencialmente a sociedade como um todo. Mesmo na decadência do patriarcado produtor de mercadorias, quando a família nuclear se dissolve e os indivíduos são libertados dos seus papéis tradicionais, é possível discernir uma posição de menoridade para as mulheres e uma situação diferente para os homens.

No sentido da determinação teórica da dissociação-valor, as mulheres têm de ser localizadas na esfera privada. Isto não significa, evidentemente, que o patriarcado como relação "se situe" nas esferas desintegradas privada e pública. Pelo contrário, o androcentrismo moderno é a força concentrada de um contexto global material-ideal-psicossocial que representa, por assim dizer, o "éter da sociedade", para dar aqui outro significado a uma formulação de Hegel. O funcionamento da relação de género atravessa assim todos os níveis e domínios, e assim também os diferentes domínios da esfera pública. As mulheres também já estiveram sempre em esferas públicas. No entanto, a dissociação também aqui é evidente, na medida em que, por exemplo, ocupam uma posição subordinada na vida profissional, são mais mal pagas etc. Assim, deve considerar-se como forma social básica a dissociação-valor e não apenas o valor.

Isto é verdade em princípio, mesmo que globalmente não se possa assumir que o desenvolvimento patriarcal / na forma de mercadoria tenha tido lugar uniformemente nas diferentes regiões do mundo, por exemplo tendo em conta as formações sociais com simetria de género que ainda hoje não adoptaram, ou não adoptaram plenamente, conceitos modernos de género. É preciso dizer, no entanto, que tais sociedades estão hoje claramente em minoria. Mostram, contudo, que a hierarquia de género não é de modo nenhum uma necessidade cultural-antropológica (cf. Lenz/Luig, 1995).

Neste contexto, também é preciso ter em conta que a relação de género nem sempre se apresenta igual, mesmo no âmbito do desenvolvimento do Ocidente cristão. Só no século XVIII é que surgiu o moderno "sistema de dupla sexualidade" (Carol Hagemann-White) e se chegou a uma "polarização dos caracteres sexuais" (Karin Hausen); antes disso, as mulheres eram consideradas – por assim dizer – como apenas uma variante diferente de ser homem. Por esta razão, as ciências sociais e históricas começaram recentemente a assumir a instituição de um modelo de um só género na época pré-burguesa. Por exemplo, a vagina foi vista como um pénis virado para dentro (Laquer, 1996). Ainda que as mulheres também então fossem consideradas inferiores, elas bem que ainda tinham muitas possibilidades de influenciar por vias informais, uma vez que ainda não se tinha constituído uma esfera pública de grande dimensão como na modernidade. Nas sociedades pré-modernas o homem teria uma primazia sobretudo simbólica, com escrevem Heintz/Honegger (1981). As mulheres ainda não tinham sido definidas exclusivamente como donas de casa e mães, como aconteceu a partir do século XVIII, complementarmente às atribuições dos homens, que então tiveram de se tornar competentes na esfera pública (emprego, política, ciência, etc.). Nas sociedades agrárias a contribuição da mulher para a reprodução material era considerada tão importante como a do homem (Heintz/Honegger, 1981, p. 15ss.).

Se a moderna relação de género, com as correspondentes atribuições sexuais polarizadas, estava inicialmente limitada à burguesia, ela expandiu-se pouco a pouco a todas as camadas e classes com a generalização da família nuclear, com um último impulso do desenvolvimento fordista nos anos 50 do século XX. Assim, a dissociação-valor não é uma estrutura rígida, como as que se podem encontrar em muitos modelos estruturais sociológicos, mas sim um processo. Também não deve ser concebida como estática e sempre a mesma. Na pós-modernidade, ela assume mais uma vez uma nova face. Isto leva-nos ao nosso verdadeiro tema.

 

3.

Kornelia Hauser constata com Arlie Hochschild que na sociedade actual as mulheres têm "um código emocional cada vez mais unissexo, baseado no antigo código dos homens". Diz ela: "Semelhante ao anterior modelo de dois sexos, estamos a caminhar para um modelo unissexo – embora bastante modificado: as mulheres são homens, apenas diferentes" (Hauser, 1996, p. 21).

Alguns estudos recentes apontam numa direcção semelhante. De seguida recorro principalmente às reflexões de Irmgard Schultz, no último capítulo do livro "O excitante mito do dinheiro. A nova conexão de tempo, dinheiro e género na era da ecologia", publicado em 1994. Embora discorde de Schultz em muitas coisas desde logo em princípio, por exemplo, que ela aborde a história do dinheiro principalmente como "um mito do pensamento moderno", que não questione explicitamente o significado do trabalho assalariado e que assuma que os padrões culturais de género não afectam o espaço psíquico interior dos indivíduos, considero a sua análise útil para o desenvolvimento futuro da teoria da dissociação-valor, mesmo que a autora possa não concordar com ela.

Schultz interessa-se pela ligação entre relação de género e globalização. Tanto quanto me é dado ver, ela é a primeira a abordar esta questão nos anos 90, na reavaliação do debate dos anos 80. Entretanto surgiram muitas publicações sobre o tema. Contudo, uma vez que essencialmente confirmam as observações de Schultz, limito-me a complementar estas com as descobertas mais recentes da segunda metade dos anos 90.

No contexto dos processos de globalização, Schultz analisa na pós-modernidade uma conexa alteração no entendimento do tempo e na convivência, bem como novas tendências de individualização e modificações na relação de género, no contexto do desenvolvimento do dinheiro rápido por via da actividade especulativa nos anos 80. Ao fazê-lo, ela inclui centralmente novas normas e modelos, ou seja, o nível simbólico. Contudo, é por sua vez problemático que ela tente fazê-lo de acordo com modelos de regulação (aos quais em geral se refere muito), ou seja, que a função dos modelos seja por ela vista ao nível da regulação política (cf. Schultz, 1994, p. 33s.). O que aqui se perde de vista, porém, é que, precisamente devido às tendências de globalização descritas, a política está a perder o controlo em muitos aspectos, no que diz respeito às suas funções tradicionais. A sociedade, a política e a economia estão agora apanhadas em contradições a um nível qualitativamente novo (cf. Kurz, 1994). Voltarei a este assunto mais adiante.

Ora uma das principais teses de Schultz é que a globalização possibilitada pela aplicação das tecnologias informáticas e as tendências de individualização que a acompanham levam, como diz com Christa Wichterich, a uma "feminização da responsabilidade" no domínio social e ecológico (Schultz, 1994, p. 201). Schultz ilustra isto sobretudo com referência à Jamaica, à qual a chamada "política de ajustamento estrutural" foi imposta pelo FMI e pelo Banco Mundial na sequência da "crise da dívida". No essencial, isto significa uma forte restrição do consumo de massas interno em benefício de investimentos orientados para o mercado mundial e duma orientação geral das estruturas económicas e sociais para a exportação.

A consequência do "ajustamento estrutural" para as mulheres da Jamaica foi que elas perderam maciçamente rendimentos e formas de vida a eles ligadas, por exemplo por força do encerramento de pequenas empresas inviáveis, nas quais trabalhavam principalmente mulheres, ou da interrupção do apoio a pequenas agricultoras e agricultores. Algumas mulheres trabalham agora em más condições laborais e salariais na zona de comércio livre estabelecida no porto de Kingston. Na Jamaica, 70% das mulheres com menos de 25 anos de idade não têm rendimentos regulares; destas, 80% nunca tiveram oportunidade de trabalhar regularmente, nem têm qualquer formação. Globalmente, no entanto, 2/3 de todas as mulheres trabalham. Para Schultz, isto exprime uma tendência geral: As mulheres estão cada vez mais integradas no mercado (mundial), mas sem que lhes seja dada a sua própria oportunidade de assegurar a subsistência. Por isso ela fala também de uma "jamaicanização" das condições sociais.

Devido ao "ajustamento estrutural", as condições de vida na Jamaica pioraram, por exemplo, o custo de vida e as rendas aumentaram terrivelmente enquanto os salários eram reduzidos; os cuidados médicos pioraram e tornaram-se mais caros, os cortes sociais no sistema educativo reduziram as hipóteses de qualificação sobretudo às meninas e mulheres. Em geral, a mudança na situação social afecta as mulheres de forma diferente dos homens. Segundo Schultz, elas têm agora de tentar "compensar os cortes do Estado social e a destruição das bases naturais da vida". É por isso que Schultz também fala de uma "ecologização do trabalho das mulheres" analogamente ao conceito de "jamaicanização". As iniciativas de auto-ajuda no Terceiro Mundo são levadas a cabo principalmente por mulheres, os homens pelo contrário abstêm-se (Schultz, 1994, p. 201ss.).

Segundo Schultz, também no "Primeiro Mundo" se pode observar uma "ecologização do trabalho das mulheres". Assim, ela fala também de uma "síndrome de mulheres e lixo" no que diz respeito ao sistema dual na separação do lixo na Alemanha, pois são principalmente as mulheres que com ele são oneradas; são sobrecarregadas com a responsabilidade, embora o sentido e o sucesso de tudo isto sejam extremamente questionáveis e também aqui seja criada uma "orientação das mentalidades para o Estado autoritário". Deste modo, ocorre mais uma vez uma "moralização do trabalho doméstico" (Schultz, 1994, p. 206).

É claro que se pode questionar se Schultz não sobrevaloriza geralmente o aspecto ecológico na sua argumentação, e se esta abordagem não é já determinada pelo seu tema "a nova conexão de tempo, dinheiro e género na era da ecologia", como diz o subtítulo do livro. Na década de 1990, económica e socialmente assolada pela crise, a percepção dos problemas ecológicos está de novo a recuar para segundo plano, mesmo nos países altamente industrializados, o que se exprime nomeadamente numa pronunciada "vontade de compromisso" por parte dos Verdes. No entanto, em última análise, não considero a questão do significado da ecologia decisiva no trabalho de Schultz, porque, embora ela se concentre – de modo bastante central – no ponto de vista ecológico, ela também inclui igualmente os níveis económico, social e cultural.

Consequentemente, a crise social e ecológica anda de mãos dadas com uma crise sociocultural. No "Terceiro Mundo", as relações familiares alargadas estão a dissolver-se cada vez mais. Agora os homens vão em busca de trabalho, as mulheres vão para as cidades ou para o estrangeiro como migrantes pelo casamento ou, como escreve Wichterich, tentam frequentemente encontrar um meio de subsistência para si próprias e para as suas famílias em condições indignas, por exemplo, como empregadas domésticas em países ricos. Neste contexto, também tem de ser sublinhado que a prostituição e o tráfico internacional de mulheres atingiram uma nova qualidade devido ao aumento da globalização desde 1989 (cf. Wichterich, 1998, p. 94ss.). O resultado de tais desenvolvimentos é que as mulheres ficam são cada vez mais forçadas a assumir uma responsabilidade tradicionalmente conotada como masculina. "Considero isto", diz Schultz, "a causa sociocultural decisiva para a 'feminização da responsabilidade'. Sociologicamente falando, as tendências de globalização e flexibilização da economia são acompanhadas por tendências de mistura e flexibilização globais dos modos de vida" (Schultz, 1994, p. 207).

Na Jamaica, mais de 1/3 de todas as mulheres vivem em comunidades não conjugais, as crianças são criadas apenas pelas mulheres – apoiadas por vizinhas ou parentes femininas. Os homens têm apenas o estatuto de visitantes. São postos à porta quando já não dão jeito às mulheres. A promiscuidade é comum, filhos fora do casamento de diferentes pais são um fenómeno frequente. A história destas formas sociais na Jamaica também está tradicionalmente em estreita ligação com a colonização. Sobre o que não irei mais longe aqui (ver Schultz, 1994, p. 207s.).

Tendências de individualização também têm sido observadas na Alemanha desde os anos 80. O quadro vinculativo do casamento na criação dos filhos dissolveu-se, e cada vez mais mulheres têm sido integradas no mercado de trabalho, independentemente do seu estatuto familiar. Neste contexto, as biografias também se tornaram mais flexíveis. Schultz levanta várias objecções contra Ulrich Beck, provavelmente o teórico da individualização mais conhecido. Acima de tudo, ela critica Beck por negligenciar as diferenças de género a nível político; pois Beck assume que o problema ecológico afecta todas as pessoas por igual. Chernobyl, no entanto, mostrou que foram principalmente as mulheres que tiveram de suportar as consequências na vida quotidiana (cuidados com radiações na comida, especialmente para as crianças pequenas etc.). Além disso, apenas os europeus abastados do centro e do norte da Europa puderam deslocar-se para zonas não atingidas pelas radiações (Schultz, 1994, p. 210).

Na minha opinião, outra objecção importante de Schultz a Beck, mas também a Xaver Kaufmann, que tenta captar novos desenvolvimentos de modo algo diferente de Beck, é que eles não vêem a especificidade de género das "necessidades de decisão". "É o princípio da auto-organização masculina dos proprietários do tempo que em toda a vida não são obrigados a um inalienável tempo de suporte de vida. Xaver Kaufmann, como Ulrich Beck, não vê a diferença entre o tempo da vida masculino e o feminino no seu acoplamento com as responsabilidades sociais" (Schultz, 1994, p. 212). De um ponto de vista feminista, Schultz distancia-se – na minha opinião com toda a razão – da nostalgia familiar. Com referência a vários estudos, ela também aponta as vantagens do parentesco por opção sobre o parentesco de sangue (cf. Schultz, 1994, p. 213s.).

No entanto, seria errado assumir generalizadamente que a erosão dos modos de vida tradicionais tem carácter meramente emancipatório (para as mulheres), como mostra Wichterich. "As garantias sociais são quebradas tanto como as materiais. Nas favelas de Nairobi, o 'desaparecimento' tornou-se uma ocorrência diária. O marido ou amante deixa a cabana pela manhã sem uma palavra e nunca mais regressa. Ele tenta a sua sorte noutro lugar, com outra namorada e outro trabalho de ocasião. As crianças 'desaparecem' num mundo de droga, prostituição e crime, vivem em gangues de rua e talvez reapareçam na cabana da mãe após alguns meses. Ou talvez não. A brutalização das relações, a negligência do social e o empobrecimento das emoções e da psique são custos sociais, não registados estatisticamente em lado nenhum, da espiral descendente em que mais de um terço da população se encontra. Organizações de assistência social e igrejas nas favelas de Nairobi lamentam o aumento da violência doméstica, para onde é canalizada a frustração acumulada da vida, e um número crescente de mães monoparentais. Quanto mais os homens abandonam a responsabilidade familiar através da migração e da sua economia de namoradas múltiplas, mais importantes para a segurança social são os laços entre familiares femininas, mas também as alianças das mulheres do bairro (...) Os homens também têm amigos. Mas para eles o agente de ligação decisivo é o álcool" (Wichterich, 1998, p. 175s.).

Schultz, juntamente com as "mulheres de Bielefeld" Maria Mies, Veronika Bennholdt-Thomsen e Claudia von Werlhof, suspeita que as estruturas económicas (trabalho informal e afins) e as formas de vida associadas nos países do Terceiro Mundo estão a desenvolver-se cada vez mais também nos países ocidentais. Schultz refere-se em particular ao conceito das "mulheres de Bielefeld" de "tratamento como dona de casa" (1). Por exemplo, quando as mulheres no México foram inicialmente pioneiras na luta pela terra não cultivada, os proprietários de terras masculinos e os funcionários estatais masculinos acabaram por assumir um compromisso com as mulheres (Schultz, 1994, p. 216).

A inclusão das mulheres no mercado mundial pode agora acontecer de tal modo que, por exemplo, no México as mulheres "tratadas como donas de casa" recebem nessa qualidade empréstimos do Banco Mundial. Assim, o trabalho contratado remunerado acresce ao seu trabalho de subsistência não remunerado na terra para obter alimentos. Por exemplo, às mulheres mexicanas foram oferecidos empréstimos para criarem uma determinada raça de galinhas para venda no mercado. No entanto, por várias razões, a venda das galinhas não compensou, de modo que as mulheres acabaram por ficar endividadas. Da perspectiva do Banco Mundial, o "trabalho de subsistência das mulheres nos seus próprios campos de cultivo aparece como 'tempos vazios' e 'paralisações' no processo de fluxo dos tempos de fluxo globais" (Schultz, 1994, p. 219).

Com as "mulheres de Bielefeld", Schultz assume um aumento maciço dos produtores de mercadorias que têm de ir vivendo a sua vida sem salário e sem segurança. Neste contexto, são consideradas as seguintes características centrais da globalização nos anos 90: Não em último lugar devido às novas tecnologias, as empresas estão a sair dos limites do Estado-nação e a instalar-se onde as condições lhes são mais favoráveis. Surgem global players. Os Estados nacionais estão agora a competir uns com os outros como nunca se viu antes. A fim de atrair capital, são implementadas medidas de desregulamentação, os impostos são reduzidos para as empresas, as medidas e regulamentos do Estado social são cortados, as leis de protecção do trabalho são alteradas, os salários são reduzidos etc. O resultado é uma informalização da economia. Há uma informalização do trabalho, os empregos inseguros aumentam: Trabalho temporário, outsourcing, subcontratação, trabalho doméstico e de quintal, uma subcontratação generalizada, mal remunerada, não organizada, com uma enorme pressão de trabalho estão em expansão. Tais relações de produção são características dos anos 90. Em contraste, as zonas de produção livre, com grandes fábricas e más condições salariais e de trabalho, que ainda se encontravam no Sudeste Asiático ou na América Latina nos anos 80 e onde trabalhavam principalmente mulheres jovens, são um modelo descontinuado.

Agora, por exemplo, estão a emergir no domínio das tecnologias da informação e do conhecimento trabalhadores essenciais qualificados, privilegiados, maioritariamente brancos e masculinos, e uma periferia empresarial composta por trabalhadores mal remunerados, com poucas qualificações e insuficientemente seguros. Contudo, o privilegiado sector high tech não tem necessariamente de estar nos chamados países altamente desenvolvidos. A Siemens, por exemplo, está actualmente a desenvolver os seus programas informáticos na Índia. Deste modo, surge o Terceiro Mundo no Primeiro Mundo e o Primeiro Mundo no Terceiro Mundo.

No entanto, é preciso dizer que desde o início se perdem através da racionalização postos de trabalho que já não são criados em nenhuma parte do mundo, ou seja, nem nos países de baixos salários do Terceiro Mundo nem nos sectores de baixos salários do Primeiro Mundo. No futuro, esta tendência de racionalização irá provavelmente afectar não só o sector da produção, que já se tornou marginal, mas também o sector dos serviços, cuja expansão é muitas vezes vista como uma grande oportunidade para as mulheres. Neste contexto, os especialistas informáticos altamente qualificados de certo modo têm estado sempre empenhados na sua própria racionalização. As crises de sobreprodução são a consequência inevitável deste desenvolvimento (cf. Wichterich, 1998).

Apesar de tais tendências de marginalização e embora o modelo do homem como sustento da família esteja há muito obsoleto, a relação hierárquica de género não está de modo nenhum a dissolver-se. "Alexis, da série Dinastia, transmitida com grande efeito mediático não apenas no Quénia, Venezuela, México e Jamaica, constitui o ideal das pequenas trabalhadoras independentes all over the world que, apesar da subordinação hierárquica de género, apesar da crescente privação de possibilidades de reprodução auto-suficiente, de algum modo gerem a sua própria reprodução, bem como a dos seus filhos e, por vezes, também a dos homens a quem eles pertencem (...) O modelo da dona de casa hoje em dia já não é necessariamente descrito pelas leis do casamento e da castidade para as mulheres, como era no século XIX. Não funciona através da pintura de personagens de género, mas através da definição de atribuições funcionais, que – e considero que esta é a expressão decisiva dos processos de fluxo de produção globais – são concebidas duplamente: por um lado como obrigação funcional da maternidade potencial, com todas as suas responsabilidades oikos, e por outro lado ao mesmo tempo como obrigação da garantia monetária da subsistência: responsabilidade pelo dinheiro e pela vida (sobrevivência). Esta dupla e paradoxal atribuição funcional é expressa no modelo da dona de casa como pequena trabalhadora independente. Ela é o modelo paradoxal da flexibilização global" (Schultz, 1994, p. 217 e p. 218).

Aí o temos de novo: o pós-moderno “modelo unissexo” já mencionado acima. Agora também os seus violentos aspectos sombrios e as conexas desvantagens e opressões específicas das mulheres se estão a tornar visíveis. Na minha opinião, contudo, tem de ser sublinhado que a transição para este modelo não teria sido possível sem internalizações pelos indivíduos masculinos e femininos (trazidas do moderno sistema da dupla sexualidade do patriarcado na forma de mercadoria), como se pode ver precisamente na responsabilidade das mulheres pelo lar e pelas crianças, que é tida como natural e permanece subjectiva e objectivamente intocada. Sem uma imagem ainda de algum modo internalizada da boa mãe e dona de casa, também não é possível nenhuma transformação na boa mamã-lixo pós-moderna. Pode assumir-se que tais momentos subjectivos, que agora se tornaram fluidos, e os momentos objectivos a eles associados, têm algo como uma função de estribo para a formação de novas formas pós-modernas de patriarcado. Em Hauser acima, bem como em Schultz, por outro lado, a coisa soa como se não existisse uma interioridade psíquica nas mulheres pós-modernas. Neste contexto, tem de assumir-se também que a crescente violência masculina bem como a actual fixação masculina no álcool, de que Wichterich fala acima, tem as suas raízes nos papéis e nas ideias tradicionais de género.

Schultz salienta que a imagem das "pequenas trabalhadoras independentes" é diferente em cada cultura. No México católico, por exemplo, existe um culto machista que não existe na Jamaica, devido à história da colonização britânica.

No entanto, as tendências de "jamaicanização" também se fazem notar noutros aspectos diferentes em países que não têm de cumprir as condições do FMI e do Banco Mundial: RFA, EUA, Inglaterra etc. Neste contexto, contudo, Schultz também vê as estratégias políticas da Reagonomics e do Thatcherismo como uma variante das políticas de ajustamento estrutural. Para as mulheres, o desmantelamento do Estado social significa não só que elas são cada vez mais chamadas a cuidar dos doentes, a cuidar dos filhos etc., mas ao mesmo tempo também começa a faltar o trabalho remunerado no sector social, que era realizado principalmente por mulheres, como observa Young (1998, p. 191s.).

Já desde os anos 70 se fazem ouvir os slogans sobre a "feminização da pobreza" na Europa e nos EUA. Isto também mostra que com "a redução dos benefícios do Estado social (...) se torna visível uma nova lógica de definição negativa das vidas das mulheres como 'vidas vazias' político-financeiramente sem valor. Lógica que funciona como uma selecção entre vidas de mulheres valiosas e sem valor, e se mostra num padrão flexibilizado de hierarquias de género" (Schultz, 1994, p. 223). Isto significa que, a par de formas "valiosas" de "pequenas trabalhadoras independentes", existem também mulheres indesejadas. Nos EUA, por exemplo, é evidente que as mulheres deixaram há muito de ser posicionadas socialmente apenas com base na sua pertença a um marido, mas que isso é feito de acordo com critérios de pertença "étnica" e de pertença a um Estado-nação financeiramente poderoso. Isto é expressão da globalização. As requerentes de asilo, as mulheres negras, as mulheres das chamadas minorias étnicas e as reformadas formam o estrato mais baixo da população nos EUA; vivem no gueto, fazem "trabalhos sujos" mal pagos e pertencem à massa dos sem-abrigo. As mulheres do Segundo e Terceiro Mundos são vistas como uma ameaça social e ecológica, devido à sua capacidade de procriação (cf. Schultz, 1994, p. 223s.).

Esta situação dá agora origem a "novas formas de exigência de identidade", como escreve Schultz. Uma vez que a existência não pode ser assegurada por benefícios sociais ou financeiros das instâncias públicas nem por possibilidades de produção de subsistência, estão a surgir formas sociais "privadas", "que funcionam como instâncias mediadoras no processo de socialização individualizadora". Estes são contextos informais em que a pertença social é posta como uma "exigência de identidade rígida". Um exemplo disto seriam as comunidades agrupadas em torno do ponto de referência comum da etnia. Se a pressão existencial é a razão para se identificarem com o grupo excluído, isto tem frequentemente consequências fatais para as mulheres. Apesar das frequentes experiências de violência, são forçadas, por pressão identitária, a aceitar a relação hierárquica entre homens e mulheres (Schultz, 1994, p. 224s.).

Estes padrões de identidade são escolhidos quando não há qualquer possibilidade de adquirir uma "identidade profissional e monetária formal", embora Schultz sublinhe que isto é um modelo e não o "interior psíquico da maioria das pessoas" (Schultz, 1994, p. 226). Esta identidade profissional e monetária é hoje essencialmente caracterizada por três critérios, ao longo dos quais a exclusão funciona no contexto tempo=dinheiro: "– uma capacidade formal sem 'tempos vazios'; – uma 'competência formal' que não inclui explicitamente a responsabilidade pela reprodução; – uma 'profissionalidade formal' que não faz referência às experiências em 'contextos privados' e como pessoa de género" (Schultz, 1994, p. 225).

 

4.

Apesar de toda a crítica e da necessidade de aditamentos, parece-me que a imagem das "pequenas trabalhadoras independentes" e a notória tendência para uma jamaicanização/ecologização em Schultz são adequadas para caracterizar a nova qualidade das relações de género pós-modernamente modificadas na sequência dos desenvolvimentos globais e neoliberais. Neste contexto, os restos da "dissociação-valor" moderna ainda hoje se podem ver claramente nesta nova qualidade, o que gostaria de voltar a destacar brevemente no seguinte.

– Em geral, mesmo nos países ocidentais, a educação dos filhos está firmemente nas mãos das mulheres, apesar da dissolução do casamento e da família; em linha com isto, as mulheres – especialmente na era pós-moderna apaixonada pela arbitrariedade – têm padrões de decisão diferentes dos dos homens; a sua referência ao tempo é diferente, na medida em que não podem estar comprometidas apenas com a "lógica de poupar tempo" (Frigga Haug).

– Às mulheres incumbe a principal responsabilidade pelo oikos, a qual (proveniente das relações de género tradicionais) assume agora uma qualidade especial devido à visibilidade dos processos de desintegração social e de destruição global, na medida em que uma dimensão global entra aqui em jogo. Neste contexto, torna-se candente o que Frigga Haug uma vez observou – nomeadamente que as actividades da reprodução que roubam tempo cada vez menos podem ser realizadas, sobretudo devido à luta livre das mulheres pela existência material (no trabalho remunerado), como se pode concluir das observações de Schultz – e no entanto são atribuídas às mulheres como "lixo" (cf. Haug, 1996, p. 117s.).

– Numa figura metamorfoseada, a dissociação-valor continua a mostrar-se no constructo das mulheres como natureza, mediado pela sua capacidade de procriação, que agora paradoxalmente aparece como ameaçadora do ponto de vista ecológico. Nesta argumentação já distorcida (e também malthusiana), mais uma vez se assume óbvia (e implicitamente) o absurdo de que as mulheres "produzem" crianças por partenogénese. Como se isso não exigisse também homens, que são tanto e tão pouco "natureza" como as mulheres.

O resultado global desta dissociação, em mudança de forma e em dissolução, é mais uma vez uma específica preterição das mulheres, ao contrário dos homens, precisamente na crise epocal. A vida de desempenho e trabalho conotada como masculina, pelo contrário, é mais procurada do que talvez nunca antes. Isto aplica-se não só quando com a consciência da carreira se visa um emprego altamente qualificado no sector de alta tecnologia, por exemplo, mas em geral; embora ou precisamente porque os homens estão também cada vez mais expostos a relações de emprego precárias. No capitalismo globalizado, a "compulsão de poupar tempo" que já existia na modernidade culmina numa orientação de "just in time". Aqui as mulheres são igualmente responsáveis pelo dinheiro e pela sobrevivência. O facto de as mulheres estarem agora a assumir funções que eram tradicionalmente "assuntos de homens" não se aplica apenas aos países do Terceiro Mundo, porventura em resultado dos movimentos migratórios, mas também aos países altamente industrializados. Na Alemanha, por exemplo, as mães monoparentais têm de ser muitas vezes mãe e pai ao mesmo tempo no quotidiano.

Aparentemente, estamos de facto a avançar para um modelo unissexo com relações de género hierárquicas, ainda que um modelo que passou pelo processo de dissociação-valor "clássico-moderno". Mesmo quando o "Colapso da modernização" (Kurz, 1991) e com ele a erosão do patriarcado produtor de mercadorias se torna visível, o androcentrismo continua a provocar desordens como "fenómeno infra-estrutural psicogenético" no sentido da dissociação-valor, mesmo com modelos, estados emocionais e códigos modificados, que vão de mãos dadas com uma situação económica modificada.

No seu conjunto, as observações anteriores deixam bem claro que, com as grandes tendências pós-modernas de individualização, surgiu tudo menos a idade de ouro para as mulheres, como havia quem pensasse até ao início dos anos 90; essas posições também ignoram amplamente o facto de que as opções e decisões pós-modernas sempre foram per se limitadas ao patriarcado capitalista, com as consequências correspondentes: por exemplo, o afrouxamento das relações entre os homens também tem o efeito de que a moral de pagamento aos filhos não nascidos no casamento e aos filhos de casamentos dissolvidos está a afundar-se, como se tem podido ver em relatos recentes da imprensa. Também se torna claro que a avaliação de algumas esquerdistas e feministas de que a dissolução da família poria igualmente fim à opressão e à discriminação das mulheres era uma falácia mecânica da lógica formal. Em vez disso, chega-se a um asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias. Schultz não tira esta conclusão, embora a sua análise a sugira decididamente.

 

5.

Embora Schultz descreva a existência pós-moderna das mulheres no seu conjunto longe de cor-de-rosa, não lhe ocorre questionar radicalmente esta existência. Pelo contrário, ela apela "sobretudo também a estratégias políticas e instituições políticas diferenciadoras de género para apoiar o modo de vida quotidiano" (Schultz, 1994, p. 212). Schultz de maneira nenhuma está sozinha no feminismo dos anos 90 com a sua posição que positivamente estipula relações de género pós-modernas, como mostrarei com referência a duas outras concepções.

Desde o início dos anos 80 que a tese da "dupla socialização", apresentada por Regina Becker-Schmidt e suas colegas ao estudar as mulheres trabalhadoras na indústria da antiga RFA, atraiu sucessivamente cada vez mais atenção nas ciências sociais. Becker-Schmidt assume uma ambivalência fundamental entre as mulheres resultante das contradições estruturais da sua situação social. "As mulheres adquiriram uma capacidade de trabalho complexa que as qualifica para dois 'postos de trabalho': o doméstico e o não doméstico. Se quiserem ganhar experiência nos dois campos de práxis, são ameaçadas pelos problemas qualitativos da dupla carga. (...) Ambas as formas de dominação exacerbam os problemas: a sobrevivência das estruturas patriarcais na família (...) dificulta a participação das mulheres no mundo do trabalho fora de casa e em outras formas de vida pública. E a hierarquia de valores do sistema profissional, que avalia as pessoas de acordo com pontos de vista das categorias económicas e não de acordo com as necessidades da vida, não toma em consideração a existência de um posto de trabalho na família (...)" (Becker-Schmidt, 1987, p. 23s.).

Se também aqui a crítica está implícita, a melhor avaliação das mulheres e da sua situação de vida pós-moderna em relação aos homens torna-se finalmente clara em reflexões psicanalíticas mais recentes de Becker-Schmidt, nas quais ela mostra, por assim dizer, uma dimensão subjectiva da "dupla socialização". "Através de inversões de polaridade identificatórias e de reformulações das introjecções maternas e paternas, é mais provável que sejam as jovens a aderir a movimentos de busca de cruzamento de géneros na formação do seu ego. Mesmo que não consigam realizar todos os seus potenciais no decurso das suas vidas porque, por exemplo, são mantidas fora de certos domínios reservados aos homens (...) Mesmo que as mulheres se submetam às ideias masculinas sobre o papel feminino na família, há algo como 'obediência sob protesto' (Ferenczi) na sua flexibilidade. Não se deixam amarrar à casa (...) O potencial inovador para realizar opções socialmente obstinadas num projecto de vida, e assim reunir o privado e o público socialmente separados, no sentido de um trabalho de integração, está do lado do grupo do género feminino" (Becker-Schmidt, 1995, p. 240).

Se, por exemplo, em alguns projectos da filosofia da vida no patriarcado moderno na forma de mercadoria encontramos a construção da mulher como indivíduo mais pleno do que o homem, porque ela é (profissionalmente) dona de casa e mãe, longe do processo do trabalho remunerado, e em geral, supostamente por toda a sua natureza, não tende a ser unilateral, porque, por exemplo, o seu intelecto e o seu sentimento estão mais bem integrados do que no homem de mente estreita, então no trabalho de Becker-Schmidt temos a versão pós-moderna invertida desta velha visão patriarcal. A mulher aparece "mais plena" não como dona de casa e mãe, porque afastada da vida profissional, mas, precisamente ao contrário, como "duplamente socializada".

É verdade que o facto da dupla carga é abordado na penúltima citação, mas não se enquadra realmente na concepção de Becker-Schmidt em termos teóricos; por conseguinte, no seu trabalho domina geralmente a figura da mulher como resistente, e mesmo na obediência, como se pode ver. Becker-Schmidt assume que ser simplesmente dona de casa é conservador e que as mulheres têm de se opor particularmente a isso.

Becker-Schmidt ignora simplesmente o facto de a forma hoje dominante de conservadorismo não querer voltar à norma da esposa, dona de casa e mãe, como até Schäuble, Süßmuth e Nolte mostram. Além disso, a "mulher que tudo quer" há muito que faz parte da publicidade. Isto também mostra que algo mudou a nível simbólico. Com a assunção da resistência e da capacidade de inovação das mulheres, resultante da "dupla socialização", Becker-Schmidt afirma basicamente a mulher pós-moderna como "pau para toda a obra" (2) e, portanto, cimenta as relações sociais patriarcais pós-modernas.

Becker-Schmidt também não questiona a mulher pós-moderna e a sua situação através de uma crítica social fundamental, como, por exemplo, Adorno fez relativamente à satisfação dos trabalhadores com o salário (Becker-Schmidt vem da tradição da teoria crítica); em vez disso, há uma referência positivamente populista à existência pós-moderna na forma de mercadoria e às conexas necessidades imanentemente ambivalentes das mulheres.

Com a minha crítica não quero negar que, até à segunda metade da década de 1980, de facto basicamente até ao início da década de 1990, podia de certo modo parecer que as mulheres eram inovadoras de uma forma socialmente transcendente com o seu protesto contra o "patriarcado", que durante muito tempo não raro andou de mãos dadas com uma crítica do capitalismo. E nessa altura este protesto estava provavelmente também relacionado com os conflitos cada vez mais notórios entre a participação no mercado de trabalho e a responsabilidade que continuava a existir no domínio privado; tanto mais que, como é bem sabido, desde os anos 60 que as mulheres têm estado cada vez mais em pé de igualdade com os homens, por exemplo em termos de qualificações, as mães também têm vindo a seguir cada vez mais uma actividade profissional e tem havido um clima de crítica social em geral. Mas na sociedade dos anos 90, agora mais do que nunca "unidimensional" (Herbert Marcuse), querer continuar ainda a reconhecer nisso um potencial de certo modo inovador e resistente é, na minha opinião, mais do que errado (ver abaixo).

Hoje, pelo contrário, salta à vista que as mulheres foram "duplamente socializadas" (e de tal modo que tomam consciência disso, mesmo que essa situação não implique necessariamente também a sua crítica) num momento histórico em que a desintegração da socialização negativa há muito afirmada começa a fazer-se sentir em grau extremo, e o patriarcado produtor de mercadorias com o seu correspondente modelo de civilização ameaçam ficar fora de controlo também neste país. Nos anos 90, esta estrutura de "dupla" socialização", que Becker-Schmidt presume ser só por si uma fonte constante de resistência, consolida-se paradoxalmente nas e através das próprias condições tornadas caóticas.

Neste contexto, é preciso notar basicamente que Becker-Schmidt não chega a um questionamento radical do trabalho doméstico e do trabalho remunerado, como creio que estaria hoje em agenda para uma perspectiva emancipatória. Isto já é verdade a um nível teórico fundamental. Ela assume sem os questionar pressupostos da ontolologia do trabalho, que nos seus textos em geral transfere para as actividades femininas de reprodução. E nesta base é então constatada a "dupla socialização" das mulheres e prosseguida a sua idealização.

Tendo por fundo as observações de Schultz, o conceito de "dupla socialização" de Becker-Schmidt parece uma zombaria. Evidentemente, é preciso ter em conta que existem variantes nobres e variantes de miséria da "dupla socialização" e da individualização das mulheres. Estas variantes nobres apresentam-se, por exemplo, sob a forma de mulheres profissionais com boa situação que conseguiram fazer carreira no sector de alta tecnologia ou no sector financeiro – mesmo que o homem "'tipo tigre', sempre em movimento, eficiente, flexível, livre" (Wichterich, 1998, p. 71) ainda continue a ter as melhores hipóteses aqui, – e/ou também no facto de mulheres privilegiadas (com consciência da carreira), por exemplo, contratarem migrantes mal pagas para as actividades da reprodução.

Pode assumir-se que hoje as variantes nobres da individualização feminina ainda se encontram mais no Primeiro Mundo, enquanto as variantes de miséria se encontram principalmente no Terceiro Mundo. Neste contexto, surge o seguinte problema em relação às mulheres ainda relativamente privilegiadas "duplamente socializadas" da "cultura dominante" (Birgit Rommelspachen) local, que poderá tornar-se ainda mais evidente com um maior agravamento da situação económica: "A subordinação das mulheres é regulada pelo Estado-nação, tem lugar nos e através dos espaços delineados pelo Estado-nação da família, do domínio privado e do público, do domínio da produção e da reprodução (...) Medidas para 'compatibilizar a família e o trabalho', para a segurança social das chamadas famílias monoparentais, para a protecção estatal contra a discriminação são apenas alguns exemplos em que as linhas de fronteira são indicadas (...) Embora não haja sinais de que o novo arranjo dos sexos que aqui emerge seja acompanhado de um enfraquecimento ou muito menos dissolução da divisão sexista do trabalho, já está a cristalizar-se um novo consenso: a igualdade da mulher como doutrina do Estado, o Estado-nação como garante do que foi alcançado até agora e como mentor de uma publicização progressiva das 'virtudes femininas' até agora reservadas como privadas. Se o próprio projecto de emancipação for assim reconhecido no Estado-nação, parece estar traçado o caminho para a política de poder do Estado-nação ainda poder ser legitimada em nome dos interesses das mulheres". (Eichhorn 1994a, p. 88).

Sublinhe-se aqui mais uma vez que um "código emocional cada vez mais do mesmo sexo" baseado "no antigo código dos homens" e uma normatividade e mentalidade femininas de oikos de forma modificada se encontram no perfil da nova mulher pós-moderna. Em vez disso, apesar de toda a nomeação de novidades estruturais, Eichhorn enfatiza na sua exposição as "virtudes femininas" como se ainda fossem as antigas. Todavia torna-se aqui evidente que assim a anterior resistência da "mulher duplamente socializada" pode hoje transformar-se de modo nada inovador em reaccionarismo pós-moderno.

 

6.

Se a concepção de "dupla socialização" das mulheres domina actualmente as ciências sociais, a abordagem desconstrucionista de Judith Butler esteve no centro da filosofia feminista nos anos 90. Como é que o pensamento de Butler se liga com a relação de género qualitativamente nova aqui apresentada?

Antes de entrar nesta ligação, gostaria primeiro de delinear muito brevemente a posição de Butler. No livro "Problemas de Género" ela critica a separação entre sexo e género que há muito é feita no feminismo. Seguindo vários teóricos e teóricas, mas sobretudo Foucault, ela desenvolve uma perspectiva que, em última análise, permite que o sexo se funda completamente no género, uma vez que o sexo biológico, e mesmo o próprio corpo em geral, seriam produtos do discurso. Uma vez que para Butler o género é uma categoria performativa e não expressiva, ou seja, tem de ser ritualmente representado uma e outra vez, ela vê na subversão interna do dualismo de género, que em sua opinião se encontra nas subculturas gay e lésbica através de práticas paródicas repetitivas, uma forma de tornar a identidade de género radicalmente inverosímil (cf. Butler, 1991).

O problema de Butler, na minha opinião, é que ela quer tornar inverosímil através da sua caricatura a moderna identidade de género e o moderno "sistema de dupla sexualidade" há muito tornados obsoletos sem que por isso a hierarquia de género tenha desaparecido. As "verdadeiras desconstruções" tiveram lugar há muito tempo, o que pode ser visto na "dupla socialização" das mulheres, mas também no vestuário de homens e mulheres etc. Portanto, justifica-se aqui a objecção a Butler de Cornelia Eichhorn, que – ao contrário de mim – também adopta uma abordagem construcionista, nomeadamente "que a exigência às mulheres de serem multifacetadas e flexíveis, mãe e pai, camarada e namorada, amante e companheira de luta, mulher de carreira e mulher de limpeza numa só pessoa, costumava ser entendida e rejeitada como parte da divisão sexista do trabalho. Hoje, pelo contrário, com Butler pode-se acreditar ver a luz da liberdade a piscar por detrás desta exigência" (Eichorn, 1994b, p. 43). É óbvio até que ponto Butler afirma assim o ideal neoliberal pós-moderno de Schultz da "pequena trabalhadora independente", no qual Alexis da série Dinastia e a dona de casa e mãe oikos, agora ainda com responsabilidade ecológica e simultaneamente responsável pelo dinheiro e pela sobrevivência, entram numa amálgama qualitativamente nova, no decurso da globalização, do neoliberalismo e do uso de novas tecnologias.

Assim a concepção de Butler simplesmente não vai a lado nenhum, porque assume a velha polaridade de género, mas tem francamente algo de veladamente ideológico. Esta concepção puramente culturalista não fornece nenhuma resposta às questões actuais, pelo contrário, com ela o problema real das relações hierárquicas de género na pós-modernidade, e em particular a mulher (pseudo-)andrógina, é apresentado como uma solução, com uma atitude progressista. De uma forma diferente isso também acontece em Becker-Schmidt, como já vimos. Ambas as posições apoiam assim as identidades flexíveis-compulsivas específicas de género exigidas hoje em dia no patriarcado produtor de mercadorias em erosão; não têm absolutamente nada em mente a superação da masculinidade e da feminilidade (sociais) em geral, e muito menos no sentido de uma crítica da dissociação-valor para além da pós-modernidade.

Em contraste com tais avaliações críticas da identidade, parece-me mais que as identidades de género modernas na sua hierarquização, não superadas mas apenas em dissolução patriarcal, simplesmente se confirmam hoje mais uma vez no asselvajamento do patriarcado na forma de mercadoria (sendo que Butler em particular, pelo menos no livro "Problemas de género" aqui discutido, entende sempre as identidades de género como meramente fictícias). A este respeito, sou de opinião que ainda existe decididamente demasiada identidade específica de género, mesmo que o modelo dualista de género seja praticamente coisa do passado.

 

7.

Em comparação, as novas ideias feministas de acção, tanto no quadro do Estado-nação como no quadro internacional no discurso da globalização, parecem à primeira vista cimentar menos o status quo no sentido das relações de género pós-modernas descritas até agora. Por exemplo, pretendem, por princípio, uma redistribuição das actividades de reprodução e dos trabalhos de produção, e não apenas um apoio às mulheres duplamente sobrecarregadas no quotidiano como Schultz; e em geral não idealizam as mulheres duplamente socializadas como Becker-Schmidt. Além disso, ao contrário de Butler, também abordam problemas importantes (ecológicos, sociais, económicos), e por isso as discutirei mais detalhadamente de seguida. No entanto, verificar-se-á que apenas se discutem soluções pseudo-radicais e imanentes ao sistema, cujos limites em grande parte há muito se tornaram claros na prática do movimento das mulheres. Também nestes planos não se pretende abalar o sistema patriarcal capitalista nos seus alicerces. Assim, porém, acabam por perpetuar as relações (de género) pós-modernas, porque não são capazes de lhes contrapor realmente nada.

Algumas destas concepções reflectem explicitamente a "dupla socialização" das mulheres em ligação com uma perspectiva de género, embora sem recurso ao desconstrucionismo de Butler (cf. Young, 1998). Mas, mesmo quando isto não acontece, estes debates em todo o caso já quase não assumem o moderno casamento de dona de casa. Dentro deste discurso, podem ser identificadas as seguintes tendências principais, tanto quanto me é dado ver.

Em primeiro lugar, visa-se um novo contrato/compromisso de género no contexto do Estado-nação, que contém um conceito diferente de trabalho e no qual as actividades de produção e de reprodução devem ser redistribuídas no contexto da exigência de uma redução do horário de trabalho (cf. por exemplo Beck, 1997, Haug 1997, Sauer, 1998). Sauer, a cujas ideias me referirei a seguir, também inclui a dimensão europeia; ela quer quebrar estruturas sociais e culturais privilegiadas e também ter em conta o problema da ecologia. Os processos de negociação com o Estado social têm grande peso em tais projectos e a exigência de repolitização é contraposta à actual tendência para a desregulamentação. São consideradas necessárias alianças com outras organizações, por exemplo sindicatos, e com outros grupos desfavorecidos, como as mulheres migrantes (ver Sauer, 1998, p. 40ss.).

Na minha opinião, o problema com tais abordagens, que tentam o paradoxo de uma política de Estado social da globalização, é que não levam a sério os constrangimentos estruturais que emanam do processo de globalização como tal, e muitas vezes fazem-nos parecer como se fossem antes uma "ideologia" do capital e da classe política. Basicamente, estão a tentar alargar o modelo patriarcal-keynesiano de Estado social da fase fordista à era pós-moderna da globalização. O que é largamente ignorado são as assimetrias de poder que existem nos processos de negociação do capitalismo globalizado. Sob a pressão dos mercados mundiais, contudo, o espaço de manobra da política social está realmente a diminuir. Por esta razão, penso que é ingénuo querer usar o Estado como aliado contra a globalização económica (cf. Sauer, 1998, p. 41). O seu poder está a diminuir. É de salientar que isto não se deve à malignidade do "capital"; pelo contrário, no capitalismo globalizado, para valorizar o seu capital as empresas são obrigadas "sob pena de ruína" (Marx) a instalar-se onde as condições são melhores para elas.

Neste contexto, é uma ilusão querer alcançar uma redistribuição dos trabalhos de produção e das actividades de reprodução através de uma redução do horário de trabalho, uma vez que o rendimento básico que isso pressupõe é pouco provável que possa ser alimentado com cofres estatais largamente esvaziados. Aqui a extensão do conceito de trabalho para incluir as actividades femininas da reprodução é questionável (embora seja comum no debate feminista). Pois estas actividades não por acaso seguem uma lógica de tempo diferente do trabalho no domínio da produção e têm por isso um carácter diferente; não podem, portanto, ser chamadas de “trabalho” sem mais. Em geral, Sauer não sujeita o trabalho doméstico e o trabalho remunerado a qualquer crítica fundamental; trata-se apenas da sua redistribuição.

Também acho ingénuo apelar a alianças no Estado com organizações "que também se opõem com cepticismo a uma reestruturação neoliberal ou neocorporativa do Estado social" (Sauer, 1998, p. 40). Isto é particularmente verdade no que diz respeito aos sindicatos. O que aqui se abstrai é que os sindicatos da "Aliança para o Trabalho" estão eles próprios meramente preocupados com uma reestruturação neoliberal um pouco suavizada do Estado e da sociedade. Aqui a tacanha lógica da localização do investimento já é sempre o ponto de partida para as negociações.

Como base para as suas considerações Sauer vê novos campos de trabalho que tenham em conta os limites ecológicos da globalização. Continua a ser segredo seu como devem estes ser instalados no contexto da complicada dinâmica da globalização, que segue inapelavelmente o generalizado princípio da rentabilidade empresarial. Embora Sauer também considere o nível local (por exemplo, negociar modelos de horário de trabalho com indústrias locais), e também reflicta sobre a dimensão europeia (sistema judicial, regulamentos de igualdade), o Estado-nação é o principal ponto de partida do seu plano de acção politicista, que ela alcança tendo com pano de fundo uma análise feminista do Estado social.

Agora há também outras concepções feministas de acção que partem de uma perspectiva internacionalista. Por exemplo, a inscrição dos direitos das mulheres como direitos humanos nas resoluções da ONU é considerada um sucesso da influência das ONGs feministas, e não apenas no feminismo. Neste contexto, há projectos estratégicos que são objecto de muita atenção no discurso feminista da globalização. "Ao politizar os direitos das mulheres a todos os níveis da vida social, política e económica, as exigências para a satisfação das chamadas necessidades práticas (diárias) das mulheres são combinadas com exigências para a satisfação das suas chamadas necessidades estratégicas (de igualdade). A fim de garantir os direitos humanos das mulheres em todo o mundo, há uma simultânea necessidade de melhorias concretas nas condições de vida das mulheres a curto prazo, tais como possibilidades de formação (educação) e cuidados de saúde, melhorias a médio prazo na sua situação legal, como no direito matrimonial, mas também no direito sucessório ou no direito fundiário, e melhorias a longo prazo nas suas oportunidades de influência e posições de poder na vida sociocultural, económica e política. Isto corresponde aproximadamente à escala de 'empowerment' de Sara Longwe (…) no contexto da política de desenvolvimento, em cujo grau superior se atinge a autodeterminação da própria situação. O facto de tal realização do 'empowerment' ter de ligar desde a primeira etapa a política de pequenos passos com a transformação estrutural dos níveis micro, meso e macro foi, aliás, já claramente elaborado pelas mulheres dos continentes do sul em meados dos anos 80" (Ruppert, 1998, p. 100).

Neste contexto, também a concepção da DAWN (Development Alternatives with Women for a New Era), uma organização internacional de mulheres, com os seus objectivos de »Restructuring the market«, »Reforming the state« e »Empowering civil society« ganhou proeminência no discurso feminista sobre a globalização. É claro que os três níveis são aqui vistos como interligados. O objectivo é um novo ethos de desenvolvimento global: o trabalho deve ser redistribuído e reavaliado (incluindo entre os sexos); a produção deve ser ecológica e socialmente compatível. As desigualdades sociais (de classe, etnia e género) devem ser reduzidas e formas alternativas de produção devem ser promovidas; há uma exigência de responsabilização das instituições financeiras (OMC, FMI, blocos económicos regionais etc.) e de implementação de programas alternativos de ajustamento estrutural "suave" etc.; pretende-se também uma maior democratização das instituições políticas. Transparência, solidariedade, responsabilidade são postuladas como máximas políticas e, neste contexto, também são exigidos cuidados de saúde suficientes, melhores possibilidades de educação etc. É enfatizada a necessidade de estratégias tanto nacionais como globais a diferentes níveis.

Em tais considerações também se opõe às tendências gerais de desregulamentação uma repolitização do Estado, no quadro de uma redefinição global do político no sentido da ‘civil society’: "Se a sociedade civil em relação à política institucional pode geralmente ser descrita como um 'campo de luta sobre prioridades sociais, objectivos de desenvolvimento' (...), então o movimento internacional das mulheres luta neste campo, do nível local ao global, pelo objectivo de um desenvolvimento com direitos das mulheres, de uma 'Women’s Development Agenda' (...) como resultado da transformação das relações globais de poder e dominação" (Ruppert, 1998, p. 103). Este modelo de acção também atribui grande importância à ligação em rede com outros potenciais aliados.

Ruppert coloca essas ideias na concepção de ‘global governance’, de que muito se fala no discurso geral da globalização em torno da sociedade civil etc. Originalmente, ‘global governance’ era um "plano liberal de regulação de algumas das situações de crise social que se estão a intensificar drasticamente no decurso da globalização", ou seja, problemas ambientais, movimentos migratórios etc. Em contraste, a "‘global governance’ na perspectiva das ONG críticas, e especialmente das organizações de mulheres críticas, é assim examinada quanto ao seu potencial para redefinir radicalmente o conteúdo e as formas da política global" (Ruppert, 1998, p. 95).

Tais ideias são também sobre o apoio quotidiano às mulheres, como Schultz exige, mas estão ligadas a exigências fundamentais mais abrangentes de mudanças sociais (mundiais). Basicamente, é uma concepção semelhante à de Sauer, excepto que aqui o nível global é tomado como ponto de partida. Ambas as concepções se complementam de facto. Consequentemente, as objecções centrais feitas a Sauer também se aplicam aqui. Neste contexto, é óbvio qual é o dilema central de tais projectos internacionalistas. Tal como a concepção de Estado social de Sauer, os modelos de acção apresentados por Ruppert abstraem das duras estruturas económicas do patriarcado produtor de mercadorias globalizado e das correspondentes relações de poder. Numa espécie de má benfeitoria, os programas bem sonantes são formulados em abstracto, só na teoria. As possibilidades de negociação que eram dadas num Estado social keynesiano entretanto tornado anacrónico não só devem ser transferidas para o agora "Estado nacional competitivo" (Joachim Hirsch), como no caso de Sauer, por exemplo, mas são mesmo projectadas a nível global. Aqui nem sequer existem a este nível instâncias de controlo global como existem no Estado-nação. Neste contexto, o problema não é apenas que o FMI, por exemplo, não deixa realmente que as ONGs vejam as suas cartas de intenções, como frequentemente se acusa no discurso das ONGs, mas que tais instituições estão elas próprias sujeitas à dinâmica da economia global (pense-se, por exemplo, na situação monetária precária do FMI, na sequência de cada vez mais economias em colapso, tanto no Sul como no Leste). Assim, mesmo que as ONGs femininas fossem autorizadas a controlar as instituições económicas e financeiras, de um modo geral não poderiam evitar tornar-se simplesmente parte da administração da crise a este nível.

Ora, no que diz respeito ao discurso dos direitos humanos, as ONGs de mulheres conseguiram influenciar os documentos finais das principais conferências das Nações Unidas nos últimos anos. No entanto, bem no espírito de co-administração da má realidade, a seguinte tendência é já evidente no contexto político internacional em caso de uma palavra a dizer sobre "temas sensíveis", mesmo quando se trata apenas de exigências morais não vinculativas: "Em termos de conteúdo, a sequência de conferências trouxe uma orientação mais forte do movimento das mulheres para o que é politicamente viável. Não só se aproximaram da 'grande política', como também foram forçadas a trabalhar de acordo com as suas especificações. No dilema entre esforço de adaptação e estratégias de oposição, o lobbying obriga a compatibilidade com a realpolitik. Sobre o espectro de acção entre o mainstream, a integração das preocupações das mulheres em cada negociação e cada capítulo dos documentos finais, e a visão de uma radical mudança estrutural global (...) a política no contexto da conferência tende inevitavelmente cada vez mais para os pequenos passos do mainstream. Os grandes projectos alternativos ainda servem, na melhor das hipóteses, como muito distantes estrelas orientadoras da acção política" (Wichterich, 1998, 235).

No entanto, a esperança da sociedade civil de que o capitalismo possa ser civilizado até se tornar irreconhecível (ver também, por exemplo, Dubiel et al. 1989) não parece ser desapontada por qualquer realidade da experiência. Mesmo que os debates sobre "sociedade civil" no grande discurso social global já tenham há muito ultrapassado o seu auge, as concepções eufóricas de organização da "sociedade civil" que hipostasiam a vontade política abstracta fazem parte do estoque fixo do discurso feminista na segunda metade dos anos 90. Isto também se aplica a Christa Wichterich que, apesar da declaração acima, sob o título "Contra a impotência", algumas páginas mais adiante no seu livro sobre a globalização feminista cita positivamente, entre outras coisas, o projecto acima mencionado da DAWN sobre »restructuring the market«, »reforming the state« e »empowering civil society« (Wichterich, 1998, p. 237ss.).

Justamente numa altura em que se torna claro que a margem de manobra político(-social) dentro do sistema patriarcal capitalista se está a tornar cada vez mais estreita, e em que surgem problemas que não podem ser ultrapassados na imanência do sistema, em que as guerras civis estão a sacudir o globo e os focos de conflito são cada vez mais etc., está a espalhar-se um "totalitarismo da sociedade civil" (Hirsch, 1995, p. 156s.) para o qual é tabu o questionamento fundamental do patriarcado produtor de mercadorias. Em vez de se questionar, numa perspectiva emancipatória, como poderia ser uma sociedade qualitativamente diferente, o que parece francamente impor-se quando se olha para o cenário global de crise, adopta-se uma atitude de "ainda assim" no discurso da sociedade civil da globalização das ONGs feministas e não só, mesmo quando se reconhece que as ONGs estão "em rede e enredadas" (Altvater et al., 1997): ainda assim, as violações dos direitos humanos são denunciadas como escândalos, ainda assim, o problema da ecologia é abordado etc. (Isto aplica-se mesmo a J. Hirsch que, apesar de apresentar argumentos certeiros contra o discurso da sociedade civil, contudo, depois de enumerar pontos problemáticos, elogia as ONGs a nível internacionalista neste sentido do “ainda assim”, como elementos promotores no processo social mundial – cf. Hirsch, 1995, p. 190ss.).

A ilusão de poder mudar alguma coisa através da intervenção política, tanto no quadro nacional como no internacional, está agora a receber um novo alimento das modificações na atmosfera político-social, nomeadamente através da vitória verde-rubra nas eleições para o Bundestag. Mais realistas deverão ser as avaliações de H.M. Enzensberger e C. Stefan, parafraseadas por Reinhard Mohr na Spiegel (n.º 42/1998): "'Variações de ênfase simbólico-estilísticas', uma pitada de 'imitação de Blair' e elegantes encenações mediáticas são o que Enzensberger espera da 'República de Berlim', que é, afinal de contas, a continuação da de Bona, mas nenhuma dinâmica de debates políticos intelectuais", para já não falar de mudanças substanciais reais que teriam de ser acrescentadas. Neste contexto, "o governo verde-rubro, de acordo com Cora Stephan, (...) terá finalmente de impor ao eleitorado aquelas 'crueldades sociais' segundo o modelo americano-inglês-holandês, do qual a anterior maioria conservadora se tinha afastado. Ela (i.e. Stephan; R.S.) está literalmente à espera do 'discurso de sangue, suor e lágrimas' de um Chanceler Schröder – certamente não sem aditivos de consenso e de justiça, que Kohl ainda tinha evitado. Possivelmente, a indispensável reestruturação do Estado social será acompanhada por um reavivamento à esquerda do patriotismo, sob o logotipo 'Aliança para o Trabalho'. Lema: "Estamos prontos. Juntos conseguimos".

Mas também o desolado desenvolvimento dos mercados financeiros é susceptível de dar algumas ilusões de reforma no contexto internacional. O próprio Clinton não defende agora programas de ajustamento estrutural socialmente aceitáveis, e não querem Blair e, claro, Schröder submeter novamente os mercados financeiros, que se tornaram imprevisíveis, a controlos mais apertados? Como se o génio pudesse ser metido de novo na garrafa.

Portanto, é bastante óbvio que tanto uma perspectiva de Estado-nação alimentada por uma ficção neo-keynesiana como uma orientação internacionalista de "empowerment" da sociedade civil não têm nada de emancipatoriamente substancial a oferecer contra o asselvajamento do patriarcado. Em vez disso, impulsionam esta tendência – embora não intencionalmente – sugerindo inquestionavelmente na imanência do sistema que as intervenções políticas (estatais) ainda são adequadas para trazer melhorias sociais. Basicamente, estão a tentar abolir a dissociação-valor dentro da dissociação-valor. Isto é particularmente óbvio na exigência de uma "redistribuição justa" dos trabalhos de produção e das actividades de reprodução num novo contrato de género, que segue o lema: Lavar-se sem se molhar. A relação de género pós-moderna patriarcal com as suas identidades flexíveis-compulsivas não é assim nada importunada seriamente; não se pretende abalar como um todo o sistema patriarcal-capitalista, cujos limites ecológicos, sociais e económicos há muito se tornaram demasiado claros e que já entrou numa fase bárbara de decadência; pelo contrário, pretende-se melhorá-lo e reabilitá-lo com as desamparadas concepções de amena sociedade civil. De facto, há quem fique satisfeito ou satisfeita com a mera cosmética ecológica e social, afirmando assim as miseráveis condições de vida pós-modernas.

 

8.

Para além da opção entre Estado-nação e sociedade civil internacionalista, projectos de auto-suficiência de vários tipos tentam dar resposta ao fenómeno da "globalização". A abordagem mais conhecida no debate feminista na Alemanha é provavelmente a "perspectiva da subsistência" das "mulheres de Bielefeld" Maria Mies e outras (cf. mais recentemente: Bennholdt-Thomsen/Mies, 1997).

Especialmente com a concentração na agricultura em pequena escala, toda a produção industrial e tecnologia (high tech) são rejeitadas em geral. Pois, segundo Mies & Cª, esta é a base para a opressão das mulheres, da natureza e dos outros "povos". A concepção das "mulheres de Bielefeld" é amplamente considerada como a mais radical ideia de saída do mercado e do Estado. Na minha opinião isto é errado, porque, para além da altamente problemática hostilidade indiferenciada à tecnologia, a "perspectiva da subsistência" não trata de sair da racionalidade do mercado em geral, mas de instalar ou reforçar o mercado doméstico local. Com isto não se pretende fundamentalmente beliscar a perspectiva de valor e de trabalho que caracteriza essencialmente o patriarcado produtor de mercadorias. E, naturalmente, muito menos a forma básica da dissociação-valor. Nem a divisão de trabalho específica de género é posta em causa, pelo contrário, pretende-se que o "trabalho de subsistência feminino" se torne o centro social. Aqui, a "pequena trabalhadora independente" de Schultz, como dona de casa artesã e comerciante que se entretém com a subsistência na tacanhez local, ainda experimenta uma conotação positiva, na suposta oposição aos contextos do mercado mundial (cf. Bennholdt-Thomsen/Mies, 1997, p. 120ss.).

Em contraste, algo diferentes são as propostas de Carola Möller, que entretanto também é frequentemente mencionada no debate feminista e que defende uma “economia orientada para a comunidade” e não orientada para o mercado actual e suas leis. Estas ideias baseiam-se também no "trabalho autónomo" em ambiente local, com o objectivo de auto-suficiência. Todo o trabalho deve ser remodelado deste modo. É verdade que neste projecto se pretende a abolição da divisão do trabalho específica de género, mas tentando novamente abolir a dissociação-valor dentro da dissociação-valor – e num quadro localmente limitado. De acordo com isto, as actividades de reprodução que até agora tiveram uma conotação feminina devem também ser rotuladas como "trabalho". Toda a sociedade deve tornar-se uma grande casa de trabalho. Isto também é claramente demonstrado quando Möller, paradoxalmente, quer ver os seus contextos de auto-suficiência caracterizados pela troca justa, se possível sem dinheiro: "A troca 'prestação contra dinheiro' é minimizada, a troca 'prestação contra prestação' pelo contrário é preferida", sendo que a bitola para a troca deve ser o tempo. Uma hora de trabalho é trocada pela hora de outra pessoa" (Möller, 1998, p. 483 ou 484).

Neste contexto, também acho que é fundamentalmente problemática em Mies, Möller & Cª uma atitude de ‘small is beautyful’: para elas, níveis e contextos abrangentes vivem apenas na sombra, ou aparecem principalmente na análise negativa da sociabilidade (mundial); assim, também são tendencialmente postas em causa as realizações civilizacionais, para trás das quais – mesmo tendo elas surgido numa base patriarcal – a meu ver seria errado regredir, de um ponto de vista feminista (por exemplo, cuidados médicos ou utilização de alta tecnologia na produção para facilitar a vida etc.). Ao mesmo tempo, porém, tais utopias continuam a assumir a existência do trabalho remunerado e do mercado (supra)regional sob a predominância da economia local. Também a este respeito, os princípios básicos patriarcais capitalistas permanecem intocados. O que torna estes projectos excelentemente adequados como concepções provisórias legitimadoras numa fase caracterizada pela transição da socialização negativa para o asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias. Elas fazem da necessidade virtude. Impõe-se a ideia de que, por exemplo, o programa de subsistência de Mies poderia representar um estilo de intervenção que combina uma variante pequeno-burguesa do neoliberalismo com o que nolens volens já é a realidade em muitas partes do mundo que a economia de mercado deixou para trás como terra queimada: a mera perspectiva da subsistência para poder sobreviver de algum modo, e que agora – à moda de Mies – está a ser virada em projecto de emancipação.

Mas não é tudo: ao oporem positivamente as ideias de actividade de subsistência da produção pequeno-burguesa ao grande capital (que hoje também é identificado sobretudo com o capital financeiro "improdutivo") estas ideias promovem visões antigas que, ao contrário do que acontecia no passado, aparecem num contexto pós-moderno globalizado, mas continuam ainda assim a ser estruturalmente anti-semitas. O "especulador" é (novamente) o bode expiatório número um nos anos 90; a ideologia do "trabalho honesto" mais uma vez regressa alegremente.

Estes receios, bem como a anterior objecção de fazer da necessidade virtude, também se aplicam às ideologias da troca actualmente galopantes, que acompanham os anéis de troca nascidos da crise e vêem no juro a raiz de todo o mal (Silvio Gesell), bem como a outras ideologias de trabalho autónomo, como a concepção tornada proeminente de “New Work” de Fritjof Bergmann, que propaga uma coexistência de trabalho remunerado e trabalho informal. Neste contexto, a actividade escolhida individual e criativamente deve ainda ser rotulada como trabalho. Ambas estas últimas concepções são também apreciadas no discurso feminista.

Dado que a orientação just in time é hoje predominante, tudo está racionalmente organizado ao máximo e em todo o mundo o trabalho remunerado, que era o non plus ultra criador de identidade no desenvolvimento moderno sobretudo para os homens, está a tornar-se cada vez mais escasso à escala global, agora todas as possíveis actividades (de modo nenhum apenas em círculos que se gabam de ser oposição) têm de ser declaradas como "trabalho". Isto também se aplica às actividades femininas da reprodução, que seguem uma lógica diferente da do trabalho remunerado. O movimento das mulheres fez a sua parte para isso. O ethos do trabalho internalizado não quer morrer de maneira nenhuma e, por isso, necessita urgentemente de mais alimento.

 

9.

Em resumo, tem de se constatar que as referidas teorias e concepções de acção de Becker-Schmidt e Butler, bem como os projectos estratégicos de Estado social e internacionalistas de Sauer e Ruppert, sem esquecer as visões de trabalho autónomo e de subsistência de Mies & Cª e de C. Möller, que se imaginam todas como de oposição, afirmam cada uma delas de maneira diferente as relações do pós-moderno patriarcado produtor de mercadorias na era da globalização, com as suas identidades flexíveis-compulsivas específicas de género. Não têm nada de sério para lhe oporem.

Apesar de todas as suas diferenças, o que têm em comum é a falta de coragem para irem além da ordem social (mundial) dada e das normas e tabus a ela associados, ou mesmo de simplesmente começarem a pensar para além dela. Em vez disso, na minha opinião, seria importante finalmente crescer, e num sentido completamente diferente do que têm vindo a exigir os de 68 e as antigas feministas agora "realistas", especialmente desde 1989. É preciso constatar sobriamente que o patriarcado produtor de mercadorias já entrou na sua fase de decadência – e que uma nova barbarização não pode ser impedida por um pensamento nem por esforços de prática política dentro das suas estruturas. Pelo contrário, teria de haver uma séria busca teórica e prática de perspectivas para além da relação mercadoria-dinheiro-trabalho abstracto-dissociação.

Não se pode esperar de um indivíduo ou mesmo de um punhado de pessoas que trabalhem as concepções de acção correspondentes nos gabinetes; pelo contrário, os mais diversos grupos sociais, organizações, instituições etc. terão de "trabalhar" neste projecto de um modo quase febril e interdisciplinar. Isto apenas para responder à pergunta que pode ter atravessado a mente de muitas pessoas ao ler o meu texto: que abordagens e concepções concretas tenho eu para oferecer que possam conduzir à saída do impasse?

A minha principal preocupação foi tornar visível o tabu que existe quanto a ir além das relações e estruturas patriarcais capitalistas e mostrar as consequências fatais que tais autolimitações podem ter; este é o pré-requisito para desde logo finalmente (voltar a) poder pensar numa possibilidade de transcender o sistema, ou mesmo numa necessidade de transcender o sistema.

Na minha opinião, o espírito de iniciativa que está por trás das concepções desamparadas de sociedade civil e de global governance, mas também de iniciativas potencialmente reaccionárias de trabalho autónomo, teria de ser dirigido para este projecto obviamente muito mais difícil; mais difícil porque não há aqui soluções nem receitas imediatamente tangíveis nem, portanto, nenhum alívio psicológico. Caso contrário haverá o perigo de as feministas serem novamente culpadas de "cumplicidade".

 

Bibliografia

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Notas do tradutor

(1) Tratamento como dona de casa (Hausfrauisierung): Conceito cunhado em 1979 por Maria Mies quando lidava com a “questão das mulheres” nos países em desenvolvimento. Mies descobriu que essas mulheres não apenas eram responsáveis pelo trabalho doméstico, mas também trabalhavam para a indústria de ponta no domicílio. Seus salários eram extremamente baixos porque só contavam como rendimento adicional ao do homem ganha-pão.

Segundo Claudia von Werlhof, os salários mais baixos das mulheres trabalhadoras também levam a uma tendência das empresas a desmantelar os salários protegidos em favor de condições de trabalho desregulamentadas, desprotegidas, flexíveis e típicas de dona de casa. Características do trabalho doméstico, como estar disponível o tempo todo, baixo ou nenhum salário (trabalho voluntário), nenhuma protecção das relações de trabalho, isolamento e nenhuma representação de interesses sindicais, reflectem-se nessas novas relações de trabalho. É indiferente se é um homem ou uma mulher que entra neste relacionamento. (Da entrada Hausfrauisierung da Wikipedia)

(2) A expressão idiomática alemã eierlegende Wollmilchsau diz literalmente “a porca que põe ovos e também dá lã e leite”. Traduz-se aqui por “pau para toda obra” à falta de melhor, embora a expressão idiomática portuguesa, na sua conotação sexualmente neutra ou mesmo androcêntrica, não faça plena justiça ao original.

 

 

Texto extraído do livro "O Sexo do Capitalismo". Original Die Verwilderung des Patriarchats in der Postmoderne publicado em: Krisis 21/22, pag. 84-114, 1998. Publicado numa versão mais reduzida na revista »Psychologie & Gesellschaftskritik« No. 83/84 (1997). Online https://www.exit-online.org/druck.php?tabelle=autoren&posnr=38 . Tradução de Boaventura Antunes (09/2021)

 

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