O valor e os "outros"

Correcções da crítica da dissociação-valor à teoria de Moishe Postone (1)

 

Roswitha Scholz

 

Moishe Postone é um clássico da crítica do valor e um dos indispensáveis 'componentes' da crítica da dissociação-valor. Sobretudo as suas reflexões no ensaio "Nacional-Socialismo e Anti-Semitismo", multiplamente recebido por muitas esquerdas, permanecem actuais face à crise mundial do capital (como deixam claro o desenfreado populismo de direita, a mania da conspiração etc.). No texto "O valor e os 'outros' – Correcções da crítica da dissociação-valor à teoria de Moishe Postone", Roswitha Scholz expõe os problemas da teoria de Postone decorrentes da ausência de uma teoria da crise, bem como da permanência dentro dos limites da perspectiva androcêntrica prevalecente na maioria das correntes que contam como crítica do valor. Scholz mostra que o problema do fetichismo, tal como desenvolvido por Postone, tem de ser elevado a uma nova qualidade através da crítica da dissociação-valor, qualidade necessária para poder dar conta da totalidade fragmentada da relação de dissociação-valor. (Apresentação do texto na exit! nº 20, Maio de 2023)

 

1. Introdução * 2. A ideia fundamental de Postone * 3. A teoria crítica de Adorno e Postone * 4. Crítica do valor e crítica da dissociação-valor * 5. Crítica da dissociação-valor e crítica da lógica da identidade * 6. Nacional-socialismo e anti-semitismo * 7. Crítica da dissociação-valor, racismo, sexismo, anti-semitismo * 8. Crítica da dissociação-valor e classe * 9. A importância de Postone hoje * Bibliografia

 

1. Introdução

Juntamente com Robert Kurz, Postone é um clássico da crítica do valor, sendo os seus escritos também um pré-requisito indispensável para a crítica da dissociação-valor que defendo (ver abaixo). As suas reflexões sobre "Nacional-Socialismo e Anti-Semitismo" no ensaio com o mesmo nome são de particular mérito, especialmente hoje, numa altura em que um antagonismo das classes tornado anacrónico ressurge ideologicamente na crise fundamental, existindo o perigo de as tendências bárbaras serem também encorajadas na esquerda, através de uma personalizante/redutora crítica do capitalismo, que pode ser fortemente carregada de anti-semitismo (Postone 1988). Por isso adiante será dado um pouco mais de espaço à apresentação deste texto.

No entanto, a abordagem de Moishe Postone é apenas um pré-requisito para a crítica da dissociação-valor. Uma vez que esta se baseia, em grande medida, na teoria crítica de Adorno, também esta teoria será incluída nas minhas considerações. Postone também pode ser criticado – e isto aplica-se à maioria das abordagens que se consideram críticas do valor – por uma perspetiva fundamentalmente androcêntrica, que obscurece não só a visão das disparidades de género, mas também de outras desigualdades sociais. Crítica que farei de seguida. Em primeiro lugar, porém, será apresentada a ideia fundamental de Postone.

 

2. A ideia fundamental de Postone

No seu livro Tempo, Trabalho e Dominação Social (2003), Moishe Postone tenta uma nova interpretação da teoria de Marx. Ao contrário do marxismo tradicional, preocupa-se com uma crítica fundamental do modo de produção e não apenas do modo de distribuição. Centra-se particularmente na categoria mediadora "trabalho" como geradora do capitalismo, insistindo que o trabalho não é um princípio supra-histórico, mas é próprio do capitalismo. Postone também questiona uma exploração entendida subjectivamente e um entendimento apenas sociológico das classes no capitalismo tradicional, problematizando a mercadoria, o valor, o capital e o trabalho abstracto em si, que correspondem à dominação abstracta e a partir dela determinam a forma social do capitalismo. As pessoas estão agora "cada vez mais sujeitas a imperativos e constrangimentos impessoais e racionalizadores" (Postone 2013, 377). A "dialéctica do trabalho e do tempo" desempenha aqui um papel central. Postone distingue duas formas de tempo. Nomeadamente, um "modo (concreto) do tempo [...] que exprime o movimento (abstracto) do tempo" (Postone 2003, 441).

Robert Kurz ilustra esta tensão a um nível um pouco mais concreto do que o próprio Postone. "É precisamente nesta tensão entre a indiferença quanto aos conteúdos e a abstracção do "trabalho" e do valor, por um lado, e o "desenvolvimento" de conteúdos materiais promovido pelo próprio processo de valorização, por outro, que se funda a dialéctica das duas formas de tempo. O espaço-tempo abstracto da economia empresarial não conhece qualquer "desenvolvimento". Aqui uma hora é sempre uma hora de tempo independente, sem conteúdo, sem qualidade, homogéneo. Este tempo corresponde à dimensão de valor da reprodução, ao tempo abstracto e com ele à objectividade de valor da matéria, portanto ao valor de uso do fetiche social de produção e realização de mais-valia. O conteúdo materialmente indiferente com ele transportado porém transforma-se, é determinado sempre de novo, e na realidade não em simples mudança aleatória, mas com crescentes cientificização e produtividade, num processo histórico concreto. Nesta referência ao conteúdo, indiferente ao fim-em-si da valorização do valor, mas que se valida na prática, uma hora não é sempre a mesma hora, mas sim é progressivamente preenchida de novo, transforma-se em tempo de algo diferente, em ‘tempo de desenvolvimento’" (Kurz 2004, 124).

Postone preocupa-se sobretudo com a análise do capital. Ao contrário das teorias "que centram a sua atenção no mercado ou no dinheiro, a análise do capital é a capacidade de apreender a dinâmica direccional e o curso de desenvolvimento da produção na sociedade moderna" (Postone 2003, 284s.). Neste contexto, entram também em jogo as relações de produção e o desenvolvimento das forças produtivas.

A mais-valia relativa também desempenha aqui um papel importante: "Uma vez que, segundo Marx, a mais-valia relativa é conseguida com o aumento da produção, a fim de reduzir o tempo necessário para a reprodução dos trabalhadores, quanto maior for a produção social geral, mais a produtividade tem de ser aumentada para gerar um certo aumento da mais-valia" (Postone 2013, 382s.). O que é problemático, porém, é isso ser feito no contexto de um individualismo metodológico da forma da mercadoria, a partir do qual já surge o fetiche do capital. Questão que, no entanto, não pode ser aqui discutida em mais pormenor (cf. Scholz 2014). Postone não chega a uma teoria da crise, que levaria a um declínio da socialização da dissociação-valor, a um "colapso da modernização", como sugeriu o crítico do valor Robert Kurz (cf. Kurz 1991), por exemplo, mas assume que o capitalismo é perpétuo. "A dinâmica histórica do capitalismo gera, assim, constantemente o novo e, ao mesmo tempo, recria o mesmo" (Postone 2013, 383, destaque no original). No entanto, Postone vê o perigo de um colapso ecológico e da produção do supérfluo, se não resultar a transformação que hoje está a ocorrer na sua dimensão temporal.

 

3. A teoria crítica de Adorno e Postone

Ao mesmo tempo, Postone rejeita ideias que apontam o não-idêntico como aquilo que não é considerado pela troca ou valor e suas formas de pensamento. Em vez disso, Postone preocupa-se com a "crítica imanente", que surge das contradições sociais e não vem de fora (Postone 2003, 146). Em princípio, porém, Postone não lida com a dialéctica negativa de Adorno (1966). No entanto, fá-lo em relação a Pollock e Horkheimer, situação em que também se refere à dialéctica do iluminismo. Postone afirma que a Escola de Frankfurt, tal como Lukács, critica a forma da mercadoria e, em certo sentido, constrói sobre ela, mas, por outro lado, já não partilha a sua ênfase no que diz respeito ao "proletariado". A análise de Max Weber sobre a crescente racionalização capitalista é também decisiva para a Escola de Frankfurt. Alguns "frankfurtianos", porém, viam a crescente actividade do Estado e a burocratização da sociedade como um mero silenciamento da dialéctica, na medida em que o capitalismo liberal tinha sido substituído pelo capitalismo de Estado. Para Postone, no entanto, a forma básica do valor ou do capital e a sua dinâmica eram aqui ignoradas; continuava a prevalecer uma ontologia implícita do trabalho. Além disso, os "frankfurtianos" adoptam um ponto de vista exterior à sociedade (Postone 2003, 150ss.). Mas a meu ver o assunto não é assim tão simples; a crítica dos "frankfurtianos" e a sua insistência na não-identidade não representam apenas uma resignação, mas também uma reacção a uma situação social alterada no decurso da cientificização da produção, da racionalização da sociedade que a acompanha e do crescente intervencionismo estatal etc.

Embora Postone tenha razão em não se limitar a tomar uma oposição de classes "ontologicamente" antagónica como ponto de partida para a sua crítica, na minha opinião as categorias básicas do capitalismo que constituem a relação fetichista deviam ser simultaneamente colocadas em relação com as disparidades sociais recentemente surgidas (ou "antigas" que não se baseiam apenas na oposição directa entre trabalho assalariado e capital) (racismo, sexismo). Estas não decorrem apenas da determinação geral do sujeito automático, mas representam o seu Outro, o seu não-idêntico, por assim dizer. Postone vê nos movimentos feministas e nos movimentos das minorias uma oportunidade para alcançar uma nova universalidade, que não oprime o particular (por ele associado à dimensão do valor de uso) e que nada tem a ver com uma falsa igualdade na forma da mercadoria. Ele contrasta uma generalidade homogénea com uma generalidade que não é homogénea e já é suposto existir no capitalismo, embora sob uma forma alienada. No entanto, a este respeito, as categorias básicas de mercadoria, valor e trabalho abstracto não são por ele tocadas. Em vez disso, seria preciso tratar destas categorias, já não apenas com referência ao valor ou à dinâmica da mais-valia, mas sim com referência à dissociação-valor como princípio social modificado da forma, ou seja, uma abordagem que, no espírito de Adorno, também tem a capacidade de "pensar contra si mesmo", como reflexão da totalidade concreta que não fica absorvida no conceito.

 

4. Crítica do valor e crítica da dissociação-valor

De seguida, gostaria de delinear alguns aspectos fundamentais da teoria da dissociação-valor (para esta e a próxima secção, ver Scholz 2011, 2005, 2017, entre outros). Parto do princípio de que não é apenas o valor como sujeito automático que constitui o totalidade, mas é preciso ter em conta igualmente o "facto" de o capitalismo também envolver actividades reprodutivas que são principalmente realizadas pelas mulheres e subavaliadas. Neste contexto, a "dissociação-valor" significa que as actividades reprodutivas essencialmente determinadas como femininas, mas também os sentimentos, características e atitudes que lhes estão associados (sensibilidade, emotividade, cuidado etc.), são dissociados do valor/mais-valia. As actividades reprodutivas femininas no capitalismo têm, portanto, um carácter diferente do trabalho abstracto, e é por isso que não podem ser subsumidas neste conceito sem mais; trata-se de um lado da sociedade capitalista que não pode ser captado pelo sistema conceptual de Marx. Este lado está junto com o valor/mais-valia, pertence-lhe necessariamente, mas ao mesmo tempo está fora dele e é por isso o seu pressuposto. O valor (mais-valia) e a dissociação estão assim numa relação dialéctica entre si. Um não pode ser derivado do outro, mas ambos emergem um do outro. Neste sentido, a dissociação-valor também pode ser entendida como uma metalógica que transcende as categorias internas à economia.

Contudo, as categorias da economia política também são insuficientes noutro aspecto; a dissociação-valor também tem de ser entendida como uma relação psicossocial específica. Certas características desvalorizadas (sensibilidade, emotividade, fraqueza de carácter etc.) são separadas do sujeito masculino e projectadas na mulher. Estas atribuições específicas de género caracterizam essencialmente a ordem simbólica do patriarcado capitalista. Por conseguinte, é importante considerar tanto a dimensão psicossocial como a dimensão cultural-simbólica da relação de género capitalista, para além do elemento da reprodução material. É precisamente a estes níveis que o patriarcado capitalista se revela como totalidade social. No entanto, quando se trata da dissociação-valor, entendida como contexto social basilar, é crucial que não se trata de uma estrutura rígida, como em alguns modelos estruturais sociológicos, mas sim de um processo.

Pode-se partir do princípio de que a contradição entre matéria (produtos) e forma (valor) é, em certa medida, a lei da teoria da crise, que conduz, em última análise, a crises de reprodução e à desintegração/colapso do capitalismo. Em termos esquemáticos, a massa de valor por produto individual torna-se cada vez mais pequena. O resultado é uma abundância de produtos, em que a massa de valor se derrete na sociedade como um todo. O factor decisivo é o desenvolvimento das forças produtivas, que, por sua vez, está ligado ao desenvolvimento e aplicação das ciências (naturais). Com a revolução microeletrónica (que hoje culmina na "Indústria 4.0"), o trabalho abstracto está a tornar-se obsoleto, ao contrário da era fordista, em que a produção de mais-valia relativa era compensada pela necessidade adicional de mão de obra para gerar mais-valia. Isto leva a uma desvalorização do valor e a um colapso da relação de valor (mais-valia), sendo que Robert Kurz já escrevia em 1986 que este "colapso [...] não deve ser imaginado como um acto súbito e pontual (embora colapsos e rupturas súbitas, por exemplo, quebras de bancos, falências em massa etc. façam certamente parte deste colapso), mas como um processo histórico, toda uma época de talvez várias décadas, em que a economia mundial capitalista já não consegue sair do turbilhão de processos de crise e desvalorização, fazendo subir o desemprego em massa [...]" (Kurz 1986, 35). Hoje, há muito se tornou claro que não foi apenas a impossibilidade de obter rendimentos através da extracção de mais-valia, mediada por este processo, que conduziu a uma passagem para o nível especulativo, mas também a dinâmica associada ao declínio do capitalismo.

No entanto, esta estrutura e dinâmica têm agora de ser modificadas de acordo com a crítica da dissociação-valor. A dissociação não é uma variável estática, enquanto a lógica do valor representa o momento dinâmico, mas está ela própria dialecticamente antes desta tornando possível a contradição em processo, razão pela qual também tem de se pressupor uma lógica da dissociação-valor em processo. A dissociação está, assim, profundamente envolvida na eliminação do trabalho vivo. Nesse processo também se transforma a si própria.

Sobretudo nas ciências naturais, cuja aplicação no processo de produção é o que constitui o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo, mas também no desenvolvimento da ciência do trabalho, que se preocupa com o aumento óptimo da eficiência e com a organização racional do processo de produção (palavra-chave: taylorismo), a dissociação do feminino e as correspondentes imagens da mulher, que se exprimem também a nível cultural-simbólico (as mulheres são menos racionais, piores do que os homens em matemática e ciências naturais etc.), foram francamente o pressuposto psicossocial tácito da sua existência.

Mas a disociação do feminino não se mostra apenas nos discurso científicos, filosóficos, teológicos etc. desde a idade moderna, pelo contrário, esta ordem concretizou-se e materializou-se na própria fase fordista, na medida em que o homem passou a ser o sustento da família e a mulher a dona de casa na família nuclear imposta, pelo menos idealmente. Quanto mais as relações sociais eram objectivadas, mais se impunha uma dicotomia hierárquica entre os sexos. O pressuposto para o desenvolvimento das forças produtivas, que é o próprio fundamento do patriarcado capitalista com a sua "contradição em processo" (Marx) e, como tal, é o pressuposto para o seu desenvolvimento como condição decisiva para a produção de mais-valia relativa e para que o fosso entre a riqueza material e a forma de valor acabe por aumentar cada vez mais, é uma dissociação do feminino assim determinada. A objectivação e o desenvolvimento de relações hierárquicas de género são histórica e processualmente interdependentes e não constituem uma contradição. Uma dissociação do feminino assim determinada, como pressuposto para o desenvolvimento das forças produtivas, acabou por levar à revolução microeletrónica, que conduziu ad absurdum não só o trabalho abstracto, mas também os padrões modernos clássicos de género e a dona de casa.

A expansão das actividades reprodutivas, assistenciais e de cuidados, anteriormente exercidas a nível privado e agora transferidas para o sector profissional, faz parte da crise do ponto de vista económico, uma vez que teria de ser redistribuída mais-valia para as financiar; no entanto, tendo como pano de fundo a contradição em processo e um capitalismo que atingiu os seus limites, essas possibilidades já não existem. Isto também resulta num défice reprodutivo, quando as mulheres já não podem realizar essas actividades porque têm uma dupla carga, ou seja, são igualmente responsáveis pela família e pelo trabalho. As actividades profissionais de assistência e bem-estar também atingem os seus limites qualitativos, uma vez que resistem em grande medida a considerações de eficiência, mesmo que as mulheres acabem frequentemente por trabalhar no sector da assistência ou em serviços semelhantes. Em princípio, as mulheres deveriam hoje assumir todos os tipos de trabalho, incluindo o trabalho que anteriormente tinha uma conotação masculina, ainda que continuem a ser responsáveis pelo sector dos cuidados, mesmo na esfera privada.

Por conseguinte, a dissociação não desapareceu de modo nenhum, o que se reflecte também, por exemplo, nas menores oportunidades de remuneração e de promoção das mulheres. Convém sublinhar que a dissociação-valor não se situa nas esferas dissociadas da esfera privada e da esfera pública, sendo as mulheres afectadas à esfera privada e os homens à esfera pública (política, negócios, ciência etc.). Pelo contrário, a dissociação-valor atravessa todos os níveis e domínios, incluindo a esfera pública, determinando toda a sociedade como contexto de base. É o que se pode ver, por exemplo, no facto de as mulheres ganharem frequentemente menos do que os homens, mesmo fazendo trabalho idêntico e tendo hoje em média melhor formação do que os homens.

Por outro lado, quando o trabalho abstracto se torna obsoleto, há também tendências para tratar os homens como donas de casa. O patriarcado torna-se selvagem, quando as instituições da família e do trabalho remunerado se desgastam face às crises e ao empobrecimento crescentes, sem que as estruturas e hierarquias patriarcais tenham desaparecido fundamentalmente. As mulheres são hoje obrigadas a trabalhar por mera questão de sobrevivência. São também as mulheres dos bairros de lata do chamado Terceiro Mundo que iniciam grupos de auto-ajuda e se tornam administradoras da crise. Ao mesmo tempo, porém, também se espera que elas assumam o papel de mulheres dos escombros nos altos comandos dos negócios e da política, quando a carroça está atolada na lama na crise fundamental.

A dissociação-valor, como contexto de base historicamente dinâmico, e o desenvolvimento das forças produtivas que nela se baseia minam assim o seu próprio fundamento, as actividades de cuidados realizadas na esfera privada. O ponto central aqui é que as mudanças – não apenas na relação de género, mas nas relações sociais como um todo – têm de ser entendidas a partir dos mecanismos e estruturas da dissociação-valor na sua dinâmica processual histórica e não apenas a partir do "valor", como já foi mencionado.

De uma perspetiva teórica, a relação hierárquica de género deve ser limitada à modernidade e à pós-modernidade. Isto não significa que esta relação não tenha uma história pré-moderna; no entanto, assumiu uma qualidade completamente nova com o capitalismo. As mulheres passaram a ser as principais responsáveis pela esfera privada menos valorizada e os homens pela esfera de produção capitalista e pela esfera pública. Isto contradiz as opiniões que consideram a relação de género patriarcal capitalista como um resquício pré-capitalista. Por exemplo, a família nuclear, tal como a conhecemos, só surgiu no século XVIII, tendo a esfera pública e a esfera privada surgido apenas na era moderna. A crítica da dissociação-valor não se limita a assumir que uma crítica do valor é insuficiente, mas com ela essa crítica é elevada a um nível de qualidade completamente novo.

 

5. Crítica da dissociação-valor e crítica da lógica da identidade

Uma caraterística específica da teoria da dissociação-valor é assim o facto de, com uma crítica da lógica da identidade e a sua insistência no não-idêntico, metamorfosear a crítica do valor de Moishe Postone e Robert Kurz numa nova arquitectura teórica (cf. Adorno 1966). A relação entre a crítica da dissociação-valor e a crítica da lógica da identidade é o tema seguinte.

Adorno fez uma crítica da lógica da identidade a partir da troca. Mas o que é decisivo não é apenas o facto de o terceiro comum – não considerando as qualidades – ser o tempo de trabalho socialmente médio, o trabalho abstracto que, de certo modo, está por trás da forma de equivalência do dinheiro, mas também o facto de isso, por sua vez, tornar necessário excluir aquilo que é conotado como feminino, nomeadamente o "trabalho doméstico", o sensível, emocional, não unívoco, aquilo que não pode ser claramente apreendido por meios científicos, considerando-o inferior. No entanto, esta dissociação do feminino não é de modo nenhum coincidente com o não-idêntico de Adorno. Pois é precisamente o objecto "especial" da relação de género, que é também uma relação social fundamental, que necessitaria ele próprio de um "conceito" a um nível teórico muito fundamental; pois, significativamente, foi precisamente esta relação e "o feminino" que foram considerados um domínio obscuro, que existiria como oposição francamente dualista ao conceptual. Seria de certo modo absurdo declarar metade da humanidade como não-idêntica, no entanto e precisamente por isso é que a forma-de-pensamento do não-idêntico emerge desta estrutura fundamental. A forma-de-pensamento da lógica da identidade é assim estabelecida como contexto basilar socialmente constitutivo com a dissociação-valor e não apenas com a troca ou o valor. Assim a dissociação não é o não-idêntico. Mas é o pressuposto para que se torne dominante na ciência e na política um modo de pensar formal e positivista, que abstrai da qualidade particular da coisa concreta e das correspondentes diferenças, contradições, rupturas etc. O factor decisivo aqui, contudo, é partir de uma contradição em processo modificada de acordo com a teoria da dissociação-valor (ver acima), que conduz, em última análise, à obsolescência do trabalho abstracto e também das actividades domésticas no sentido moderno. Só podemos falar de trabalho abstracto depois de o capital ter começado a processar sobre os seus próprios fundamentos e ter tomado um rumo em si, tendo como pano de fundo a lógica da dissociação-valor. A não-identidade é aquilo que não é absorvido pelo conceito, pela estrutura. O não-idêntico não pode ser definido concretamente de antemão, pois está sempre ligado ao conteúdo concreto e à coisa em si.

Para a crítica da lógica da identidade na perspetiva da crítica da dissociação-valor, isto significa que os vários níveis e domínios e a própria "coisa" não só têm de estar irredutivelmente relacionados entre si, como também têm de ser considerados na sua ligação "interna", ao nível da dissociação-valor, como contexto basilar dialéctico negativo em si fragmentado da totalidade social. No entanto, a crítica da dissociação-valor vai tão longe – em contraste com uma crítica fundamental do valor, uma vez que já está sempre consciente das suas limitações – que não se estabelece como um meta-nível abrangente em termos absolutos, mas reconhece também a "verdade" de outros níveis e domínios particulares. Por exemplo, tem de reconhecer a dimensão psicossocial e psicanalítica, que não pode apreender teoricamente devido à sua necessária abstracção. Do mesmo modo, a teoria da dissociação-valor também tem de pensar contra si mesma, no sentido em que tem de co-incluir outras disparidades e desigualdades sociais (racismo, anti-semitismo, anticiganismo, homofobia etc.). Não se pode colocar como absoluta como a teoria do valor sem se contradizer, tornando-se absoluta no contexto de um sujeito (masculino) autónomo sem contradições e unívoco. Só questionando e relativizando a si própria deste modo é que a crítica da dissociação-valor pode também afirmar-se como absoluto e como contexto social basilar e central (ver acima). Para Adorno, "a mulher" não é o não-idêntico, mas este é apenas estabelecido através da troca; a dissociação do feminino apenas assegura uma existência descritiva, não tem um estatuto categorial nem é o não-idêntico.

De acordo com a crítica da lógica da identidade assim determinada, é igualmente importante não adoptar uma visão linear ao analisar o desenvolvimento patriarcal-capitalista nas várias regiões do mundo. Esta evolução não se processou do mesmo modo em todas as sociedades, incluindo as sociedades (anteriormente) simétricas em termos de género, que ainda não adoptaram completamente a relação de género moderna; no entanto, também é preciso ter em conta as diferentes relações patriarcais que foram sobrepostas pelo patriarcado ocidental moderno objectivado no decurso do desenvolvimento do mercado mundial, sem terem perdido completamente a sua individualidade. Para a teoria da dissociação-valor, a totalidade foi sempre fragmentada e não hermética como nas abordagens marxistas tradicionais e também nas críticas do valor androcêntricas.

 

6. Nacional-socialismo e anti-semitismo

No contexto destas considerações, gostaria agora de me debruçar sobre o ensaio de Postone Nacional-socialismo e Anti-semitismo. Uma ideia central de Moishe Postone sobre o extermínio planeado e maciço dos judeus sob o nacional-socialismo, único na história, é que os judeus são identificados com o "valor" (ver Postone 1988 para as observações seguintes). De acordo com isto, o "duplo carácter" da mercadoria, como valor (que aparece no dinheiro) e valor de uso (que aparece no produto), faz com que o "trabalho" apareça falsamente como um momento ontológico e a mercadoria como um mero objecto de uso. Na percepção, ambos deixam de ser vistos como o resultado de relações sociais que de facto são. Devido ao "duplo carácter" do capital como processo de trabalho e de valorização, a produção industrial surge assim, ao nível lógico do capital, apenas como um processo de criação material, em contraste com o capital financeiro improdutivo. O concreto e o abstracto são assim apresentados como opostos. O capitalismo só aparece no "abstracto", ao passo que o "concreto" é hipostasiado, embora tenha a mesma forma capitalista e seja apenas a manifestação da própria abstracção do valor. Assim, no nacional-socialismo, o "sangue", o solo, a natureza, as pessoas etc., bem como a produção industrial, são vistos como contra-princípios do abstracto. A ideologia biologicista também desempenhou um papel fundamental neste contexto. Com efeito, as naturalizações inerentes à relação fetichista são cada vez mais pensadas em termos biológicos na modernidade, o que fixa certas formas de pensamento. O concreto aparece agora como "natural"; há um ataque unilateral e portanto falso à razão abstracta, ao direito abstracto, ao dinheiro, ao capital financeiro etc. E este abstracto aparece agora sob a forma de "o judeu". O qual não só representa o abstracto, como o personaliza em si (Postone 1988, 246ss.)

Todas as características do valor, nomeadamente a inapreensibilidade, a abstracção, a universalidade, a mobilidade etc., são identificadas com "o judeu". Assim, de acordo com a interpretação de Postone, os judeus no nacional-socialismo são equiparados não apenas ao dinheiro e à esfera da circulação, mas ao capitalismo enquanto tal, capitalismo ao qual são retiradas as componentes materiais concretas, como a tecnologia e a indústria, e que é representado apenas em abstracto. Só "o abstracto" é responsável por uma série de mudanças sociais (urbanização explosiva, declínio dos valores tradicionais, desaparecimento das classes e estratos tradicionais, desenvolvimento de uma cultura materialista-moderna etc.), como se podiam observar antes de 1933. Os judeus tornavam-se agora "personificações do inapreensível, destrutivo, infinitamente poderoso, domínio internacional do capital"; visto a esta luz, Auschwitz era então – paradoxalmente – "uma fábrica para 'destruir o valor' [...]" (ibid., 251, 254). Deste modo, Postone vê o anti-semitismo como uma forma distorcida de anti-capitalismo irracional.

Para ele, não era por acaso que este tipo de "anti-capitalismo" se dirigia especificamente contra os judeus. Por exemplo, como a associação judeu = dinheiro tem uma longa história na Europa, a expansão do capitalismo industrial no século XIX coincidiu com a emancipação dos judeus na Europa Central, estes encontravam-se frequentemente em profissões liberais, como o jornalismo, ou nas belas-artes, que estavam a emergir; eram também cidadãos, mas nunca "verdadeiros" alemães ou franceses; raramente pertenciam à "nação" em termos concretos, na maior parte das vezes apenas em abstracto etc. A identificação dos judeus com uma "super-humanidade" (negativa) distingue assim também o anti-semitismo de outros racismos que assumem "os outros" como "sub-humanos" (ibid., 244).

O pequeno ensaio de doze páginas de Postone "Nacional-socialismo e anti-semitismo Um ensaio teórico" foi publicado em várias antologias na Alemanha nas últimas décadas. No entanto, não ganhou grande influência no campo académico da investigação sobre o anti-semitismo.

Do ponto de vista da teoria da dissociação-valor, o projeto de Postone pode ser criticado por não ter em conta a relação de género no capitalismo, a estrutura da dissociação. Contudo esta relação foi decisiva para a constituição do par dualista de opostos "abstracto e concreto". Ao contrário de Postone, a teoria da dissociação-valor não assume um monismo universalista do valor/trabalho abstracto, mas refere-se também aos momentos dissociados. Mas este facto não deve levar a que a "concretude" no domínio da reprodução seja considerada como não mediada socialmente, como "originalmente ontológica", por assim dizer. Esta concretude é igualmente mediada pela sociedade capitalista, não porém no sentido meramente reducionista do valor, mas sim no sentido da dissociação-valor enquanto princípio social abrangente (cf. sobretudo Scholz 2011).

Neste contexto, pode assumir-se que, em situações de crise social, quando os processos de modernização são vistos como ameaçadores, como na primeira metade do século XX, o "concreto", o sensível etc., que é conotado como feminino na moderna sociedade ocidental cristã, é então construído como masculino e, consequentemente, ideologizado, por exemplo, no endeusamento do trabalho abstracto concebido como quase-concreto – sobretudo no trabalho (físico) masculino – e da tecnologia concreta (cf. também Scholz 1992, 41ss.).

Ora Postone – apesar de toda a sua clarividência no plano da forma – procede na lógica da identidade, não apenas na medida em que permite que o problema do género seja absorvido no universal do valor, mas também na medida em que não aborda o lado psicossocial do extermínio dos judeus, ou melhor, este problema desempenha para ele apenas um papel secundário. Mas vale a pena perguntar que mecanismos psicossociais estão em acção, que projecções têm lugar quando o valor é cultural-simbolicamente personificado "no judeu". Neste contexto, no seu caso o nível cultural-simbólico perde-se na forma. Postone escreve: "Não é minha intenção negar as explicações psicossociais ou psicanalíticas, mas sim explicar um contexto histórico-epistemológico, dentro do qual pode ter lugar uma especificação psicológica adicional" (Postone 1988, 245). Mas esses níveis são de importância secundária para ele. O que é problemático na perspectiva da dissociação-valor é que Postone estabelece uma hierarquia entre o lado epistemológico-histórico e o lado psicossocial, e basicamente também o lado cultural-simbólico, hierarquia segundo a qual estes últimos só podem ser localizados "dentro" do primeiro, ou seja, estes níveis são considerados como meramente derivados do nível da forma, por assim dizer, em vez de os tratar como níveis independentes e de os relacionar como tais com a forma social. Isto é precisamente o que seria necessário para a forma-mercadoria não ser entendida de modo meramente reducionista como o nível "material".

No entanto, no que se refere aos anos 80 e 90, de facto há que dizer que o nível da forma não desempenhou qualquer papel nas discussões da época, nem o da forma do valor, nem muito menos o da forma da dissociação-valor. A este respeito, há que fazer justiça a Postone, pois ele foi o primeiro a pôr em jogo este nível da forma. Hoje, porém, a diferenciação indicada pode e deve ser feita.

Em minha opinião, Postone também não é capaz de suportar a tensão entre o geral e o particular e procede de acordo com a lógica da identidade, na medida em que não aprofunda a questão de saber por que razão o Holocausto teve lugar na Alemanha em condições muito específicas, numa situação histórica particular, mesmo que, como já disse, lhe deva ser reconhecido o mérito de ter considerado o problema da forma social. Mas, por isso mesmo, é preciso dizer: A sua análise situa-se apenas no plano geral e abstracto do valor. Contudo seria necessário perguntar, num contexto específico de um país, por que razão o Holocausto teve lugar na Alemanha em particular (ver Kurz 2000) e, a um nível psicossocial, o que se passava na mente dos perpetradores e perpetradoras.

 

7. Crítica da dissociação-valor, racismo, sexismo, anti-semitismo

Ora como é que a relação entre "raça", classe (para classe – ver abaixo) e género se apresenta no contexto de uma forma da dissociação-valor que sempre foi quebrada em si mesma? Sob estes pressupostos teórico-analíticos, a teoria da dissociação-valor também se opõe a uma visão que equipara racismo e sexismo (Rommelspacher 1995, 106s.). O racismo e o anti-semitismo também devem ser levados a sério por direito próprio na sua constituição comparativamente diferente. A teoria da dissociação-valor não permite, por isso, que estas dimensões da discriminação e da perseguição sejam apenas adicionadas externamente, mas contém-nas nos seus pressupostos básicos a priori, por assim dizer.

É frequente argumentar-se que as mulheres estão estruturalmente incluídas na comunidade/nação, enquanto os construídos como estrangeiros estão excluídos da mesma. Esta avaliação não está errada, mas é muito formal. Abstrai-se do conteúdo das várias formas de discriminação. Na "cultura de dominância" ocidental da modernidade, ou seja, a cultura que se afirmou através da conquista colonial (ibid, 40), as mulheres são consideradas como "seres naturais domesticados", responsáveis por actividades reprodutivas privadas; os "negros" e os "selvagens", que por um lado eram considerados seres naturais semelhantes às mulheres, eram por sua vez considerados irremediavelmente subdesenvolvidos, razão pela qual deviam ser tratados com "programas educativos" pelos colonizadores, a fim de promover o seu "desenvolvimento" – mas apenas na medida em que, de acordo com o pressuposto ideológico, a "biologia" o permitisse. Como é bem sabido, isto foi acompanhado pela exploração colonialista.

Os judeus, por sua vez, foram construídos como "negativamente super-civilizados" de uma maneira diferente. Os "negros" eram equiparados a "sub-humanidade", os judeus a uma "super-humanidade" voraz, que representava o capitalismo e encarnava o seu espírito corrosivo, sendo ambos considerados, com conotações diferentes, como "avessos ao trabalho" (ver acima).

Assim, também ao definir o racismo e o anti-semitismo devem ser tidas em conta e mantidas separadas uma dimensão psicossocial, uma dimensão material e uma dimensão cultural-simbólica; ao mesmo tempo, porém, estas dimensões têm de ser vistas no contexto da dissociação-valor como princípio basilar central, que no entanto já tem sempre consciência da sua relatividade.

Mesmo que as diferentes formas de discriminação tenham em comum o facto de se tratar sempre da relação entre o eu e o Outro, podendo ser identificadas algumas semelhanças na discriminação, o conteúdo neste contexto não deve ser tido em conta apenas no que diz respeito às duas "grandes" formas de discriminação, o anti-semitismo e o racismo colonial (sobretudo referente à África Negra); outros racismos que não se enquadram em tais esquemas também têm de receber uma certa justiça em termos de crítica da identidade. Por exemplo, o anticiganismo difere do ressentimento racista contra os polacos, as ideias racistas em relação aos sérvios diferem das ideias racistas em relação aos albaneses etc. (ibid., 39ss.). Nas sociedades europeias, o cigano é o "homo sacer" que simboliza o declínio social (cf. Scholz 2007). O "cigano" não é, portanto, apenas o "sub-humano" negro, mas o que pode acontecer a todos. Representa a "associalidade" na sociedade e cultura próprias.

Neste contexto, a teoria da dissociação-valor tem de ir ao ponto de registar e incluir tudo o que não se enquadra na sua lógica geral como princípio estrutural, porque esta não deve ser entendida como um esquema no qual os fenómenos deveriam ser encaixados. Um ponto de partida negativo para analisar o sexismo, o racismo colonial e o anti-semitismo é certamente o trabalho (abstracto) e a ética protestante de desempenho que lhe está associada. Mesmo havendo uma tendência principal para a "preguiça" ser a principal atribuição aos outros discriminados, também se deve reconhecer que nem sempre é esse o caso (Rommelspacher 1995, 39). Veja-se, por exemplo, a imagem do japonês trabalhador que morre de karoshi e recebe uma espécie de atenção racista neste país, ou a ideia do chinês trabalhador que aprende de cor e sempre lambe-botas obedece à autoridade. No mínimo, estas ideias não se enquadram fácil e directamente no quadro teórico da dissociação-valor. Talvez o sujeito europeu-ocidental disciplinado estremeça perante si próprio quando se vê exagerado no espelho. Também neste contexto, o racismo e o sexismo não podem ser equiparados com um ponto de referância sexualidade/sensibilidade, mesmo que haja algumas sobreposições.

 

8. Crítica da dissociação-valor e classe

Do ponto de vista da teoria da dissociação-valor, o que é que se passa com a categoria "classe" que hoje em dia volta a ser frequentemente invocada? Como já referi, para a teoria da dissociação-valor não é apenas a apropriação privada da mais-valia que constitui um ultraje – como acontece, por exemplo, com os marxismos tradicionais –, mas, sobretudo com recurso a Postone, ela tem uma visão muito mais fundamental da forma do capital enquanto tal, do trabalho abstracto, ou seja, do fetiche do capital ("sujeito automático") como escândalo. O antagonismo de classes tradicional nunca foi adequado para ultrapassar as relações capitalistas; pelo contrário, o movimento operário oposicionista foi de certo modo um sujeito portador para elevar o capitalismo a um nível histórico superior, ainda que tivesse uma opinião diferente sobre si mesmo. Na era da globalização, a sociedade de classes (de grandes grupos) está finalmente a acabar, sem que o capitalismo, ou seja, a sociedade da dissociação-valor, seja ultrapassado em consequência disso.

Uma individualização relativamente bem protegida, que se tornou possível graças às intervenções políticas do movimento operário (cf. Beck 1986, 121), está agora a ser substituída por uma individualização não protegida, no âmbito das medidas de desregulamentação e dos crescentes cortes sociais. Quando o trabalho abstracto se torna obsoleto, surgem novas relações precárias de trabalho flexível através da externalização, da subcontratação, do emprego no sector informal, do trabalho clandestino, da "Sociedade em nome individual" etc., como grande tendência social. As prestações do Estado social estão a ser restringidas, as disparidades de rendimentos estão a aumentar. A classe média está ameaçada de queda, sendo até agora os segmentos da classe média baixa particularmente afectados (ver Nachtwey 2017, entre outros). Esta tendência é suscetível de se intensificar fortemente devido à crise do coronavírus, que está a acelerar o processo de crise.

No entanto, não é possível falar de um "regresso da sociedade de classes" (Brock 1994), nem mesmo sob uma nova forma, uma vez que, em princípio, as vidas de uma individualização relativamente nobre também podem cair, ainda que certos grupos de risco estejam particularmente expostos a este perigo, os quais, no entanto, não podem certamente ser acomodados no antigo conceito de "classe trabalhadora"; por exemplo, as mães solteiras, os jovens estrangeiros e os deficientes. Por outras palavras: a desclassificação e a exclusão ocorrem para além da antiga sociedade de classes.

A "questão social" na era pós-moderna da globalização já não pode, portanto, ser associada à "posição de classe" (posição no processo de produção) e, na minha opinião, deve ser desacoplada da categoria das classes (no sentido do "proletariado criador de mais-valia"). Isto também se deve ao facto de os Terceiros Mundos no Primeiro Mundo e os Primeiros Mundos no Terceiro surgirem no decurso dos processos de globalização pós-modernos. Neste contexto, situações para além da esfera da produção – na formulação do marxismo tradicional – podem também conduzir à "nova pobreza": Divórcio, cancelamento do arrendamento de um apartamento económico etc. (Beck 1997, 255).

As desvantagens ao longo dos eixos "raça", etnia e género, que sempre existiram, estão agora a tornar-se visíveis (devem também ser mencionadas aqui as dimensões de desvantagem da deficiência e da idade, que se estão a tornar particularmente virulentas no decurso da intensificação dos processos de crise e da conexa concorrência no desempenho). As mulheres e os migrantes, em particular, representam uma nova camada inferior.

A desvantagem é, portanto, multidimensional. Falar do "regresso da sociedade de classes", sobretudo por parte de uma esquerda desorientada nos últimos anos, que quase poderia dar a impressão de que as disparidades (pós-modernas) mencionadas são apenas "ideologia", é, na minha opinião, uma regressão impotente, quando os perigos materiais se tornam visivelmente mais agudos à medida que a crise avança. A situação, que se tornou confusa para o pensamento com o aparelho conceptual tradicional, requer novas categorias de base para ser analisada adequadamente. Em vez disso, tenta-se compulsiva e esquematicamente "criar ordem" com as categorias tradicionais (Bauman 1992), mesmo que se pretenda modificar essas categorias com a afirmação de uma "nova formação de classes sociais", como no caso de Klaus Dörre, por exemplo. No entanto, a exposição concreta de Dörre mostra que estas novas classes sociais têm um carácter bastante amorfo (Dörre 2003, mas ver também a crítica recente de Nachtwey, que adopta uma abordagem semelhante: Scholz 2020a). Por exemplo, afirma-se que a elite da gestão no capitalismo pós-moderno-globalizado tem origem na "grande burguesia", mas ao mesmo tempo fala-se também de uma "grande burguesia estatisticamente pouco apreensível" (Dörre 2003, 24ss.).

 

9. A importância de Postone hoje

Resumindo, no entanto, é preciso agora constatar que a discussão da desigualdade no geral, e não apenas no contexto mais restrito da esquerda (tradicional), remete mais uma vez para o conceito de classe quando se trata da questão social, alargando-o aos serviços etc. (ver, por exemplo, Arruzza, Bhattacharya, Fraser 2017).

Há muito que a sociedade industrial se transformou numa sociedade de serviços e o capitalismo de produção se transformou num capitalismo financeirizado, que se encontram hoje numa crise fundamental. Por isso é anacrónico voltar ao conceito de classe, acrescentando-lhe as dimensões da raça, do género, da homofobia e da ecologia, que supostamente já não são contradições secundárias, como é agora comum considerar na esquerda e no feminismo, mas que, numa análise mais atenta, continuam a ser assim consideradas (ver também Scholz 2020b). Hoje em dia, o conceito de classe é aplicado a todo o tipo de coisas, em vez de se reconhecer que a degradação, a desclassificação e a superfluidade são o problema central da "questão social" actual, quando o trabalho se torna obsoleto. Isto é particularmente perigoso porque está a espalhar-se cada vez mais um entendimento personalizante da dominação, tentando apontar os especuladores, os hedge fonds, os Zuckerbergs e Bill Gates como responsáveis pela crise. O que se está a tornar demasiado claro na crise do coronavírus e, infelizmente, tornar-se-á ainda mais evidente nos desenvolvimentos subsequentes da crise (económica). O actual anti-semitismo estrutural, que Postone apontou como clássico no seu pequeno ensaio, não pode ser ignorado – e não só na Alemanha, mas muito para além dela. As tendências de um empoeirado marxismo das classes trabalham inevitavelmente a favor das tendências conspirativas (de direita). Depois de um período em que foram muito discutidas a partir de meados dos anos noventa não só a crítica do valor, mas também a nova leitura de Marx, os padrões explicativos marxistas vulgares estão cada vez mais a vir ao de cima no processo de crise avançada.

É por isso que a problemática do fetichismo e o problema da dominação anónima têm de ser reintroduzidos com veemência no debate. Por outras palavras, é tempo de voltar a estudar Postone em profundidade, ainda que os seus défices devam ser sempre tidos em conta no contexto da crítica da dissociação-valor no sentido de uma totalidade fragmentada, que também é capaz de incluir contraditoriamente o sexismo e o racismo como dimensões próprias a serem ultrapassadas e como outros.

 

Bibliografia

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(1) Este texto foi publicado pela primeira vez em tradução espanhola num número da revista Bajo del Volcan sobre o tema "A teoria crítica de Moishe Postone": Bajo del Volcan – Revista del Posgrado de Sociologia, Ano 2, No. 4 (La teoria critica de Moishe Postone), Puebla/México 2021, 71-97: http://bajoelvolcanx.buap.mx/index.php/bajovolc/article/view/477/424. Excepto a introdução e a conclusão, é essencialmente composto por passagens de outros artigos e livros meus. No entanto, decidi publicá-lo aqui, uma vez que ainda não foi publicada uma versão sistemática e relativamente curta sobre o tema central "O valor e os outros".

 

 

Original “Der Wert und die ›Anderen‹ – Wert-abspaltungs-kritische Korrekturen an der Theorie Moishe Postones” in revista exit! nº 20, 2023, p. 41-59. Tradução de Boaventura Antunes, 08/2024.

 

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