Crítica do valor à moda antiga. Notas sobre o conservadorismo de esquerda de Anselm Jappe

 

Roswitha Scholz

 

Anselm Jappe é considerado um representante da crítica do valor e proporcionou a representação da crítica do valor também em países de língua não alemã. Escreveu mesmo uma introdução à crítica do valor (Die Abenteuer der Ware 2005) [As aventuras da mercadoria, 2006]). Por vezes é mesmo considerado um co-fundador da crítica do valor, o que não é verdade, uma vez que o essencial desta já tinha sido formulado antes do aparecimento de Jappe na primeira metade da década de 1990. Em todo o caso é considerado um “especialista” da crítica do valor num contexto internacional. Contudo Jappe defende agora posições que são completamente opostas à crítica do valor. Enquanto a crítica do valor sempre criticou fortemente um entendimento personalista do capitalismo, este reaparece subitamente na obra de Jappe, com uma certa proximidade às teorias da conspiração (Jappe: Haben sie Gesundheitsdiktatur gesagt? [Você disse ditadura da saúde?] wertkritik.org). Desde então tem-se desentendido com outros críticos do valor que não concordam com tal viragem. O seu pendor para o romantismo agrário, a ontologia e a antropologia, o seu “amor” pela natureza e por uma pretensa natureza humana que não foge aos pressupostos malthusianos é que o têm acompanhado desde então. Aqui ele está evidentemente em sintonia com um espírito do tempo autoritário que valoriza a autenticidade, a genuinidade e afins.

Jappe submete a crítica do valor a uma revisão no seu texto “Lebendiges und Totes in der Wertkritik” (wertkritik.org) [“Vivos e mortos na crítica do valor”, zeroaesquerda.com.br], que será o foco principal de seguida. Pontos essenciais da crítica do valor são deturpados ou distorcidos nesse texto apressado. Jappe não toma suficientemente em conta os desenvolvimentos posteriores ao seu início. Além disso muitas das objecções que levanta já foram amplamente discutidas há décadas. Muito do que Jappe suscita pode ser contrariado com o método de copiar e colar, que também utilizarei amplamente nesta resposta. Jappe não aborda argumentos já apresentados há muito tempo, mas insiste dogmaticamente numa crítica do valor passada/morta à moda antiga.

 

1. A crítica do valor terá falta de reputação internacional

Anselm Jappe está incomodado com o facto de a crítica do valor não desempenhar actualmente um papel importante em grande escala na esquerda e nos seus órgãos teóricos. Em vez disso, Badiou, Žižek, Negri, Harvey, e mesmo não-marxistas como Judith Butler, continuariam a ter um lugar central. Lamenta a falta de ressonância: os dinossauros marxistas de que a crítica do valor falava nos anos 90 ainda são dominantes. Uma vez que ela se centrou na teoria, os movimentos sociais também não constituíram um campo de ressonância. É preciso dizer que Kurz, por exemplo, nunca cedeu à ilusão de que o marxismo tradicional estivesse acabado. Até ao fim da sua vida distanciou-se dele e apontou a sua existência de zombie.

Também é preciso notar que, após a cisão de há 20 anos, a Krisis também decidiu tornar-se prática, o que se pode ver na sua abertura aos bens comuns, à economia solidária (na minha opinião pseudo-conceitos, que podem ser propícios à administração da crise), às lutas pelos arrendamentos etc. O objectivo principal da Krisis já não parece ser a teorização, mas sim a “intervenção”. A “crítica do valor”, como bloco sólido por assim dizer na fase inicial, há muito que deixou de existir, existindo agora variantes regressivas, como as que podemos encontrar em wertkritik.org e na Streifzüge (streifzüge.org).

Jappe também se preocupa com a intervenção. Gostaria de fazer parte de uma “escola reconhecida”, que tivesse finalmente recebido a consagração académica. De certo modo parece ter apostado no cavalo errado. É surpreendente o facto de a situação social e as condições sociais não desempenharem qualquer papel na visão de Jappe sobre a importância da crítica do valor. Toda a esquerda está hoje a bater no fundo, numa situação de mensagem na garrafa, quer o queira admitir ou não. É por isso que grande parte da esquerda está a tentar servir a clientela habitual de maneira populista – também na teoria. Mesmo que os dinossauros ainda lá estejam, continuam a ser dinossauros. A crise fundamental à escala global significa que, numa determinada fase do seu declínio, é possível encontrar regressões de todos os tipos, tanto à direita como à esquerda.

A crítica do valor está a ser podada pelo establishment académico, como Jappe também sabe. Ao mesmo tempo, a choradeira do establishment académico de esquerda, de que apenas permanece entre os seus e anseia por iniciativas não universitárias, faz parte da rotina que se repete de tempos a tempos, sem que daí se retirem quaisquer consequências reais; na verdade é quase a condição para se poder ficar como se está (ver Scholz, Fetisch Alaaf, Exit No. 12, 2014, ver também: exit-online.org [Viva o fetiche, obeco-online.org]).

Em vez disso, talvez a crítica da dissociação-valor faça bem em não tentar fazer-se ouvir por uma esquerda já sem influência, que não só ameaça falhar como já falhou. O colapso do Bloco de Leste não foi nada revisto, a atenção centra-se em Lenine e noutros defuntos, bem como na luta de classes, no trabalho, na crítica ao imperialismo, na regressão ao anti-sionismo etc., por outras palavras, tenta-se voltar ao século passado. Isto revela uma regressão geral da esquerda. Seria melhor criticar Badiou, Ranciere, Žižek, Agamben etc. em vez de se queixar por não se poder sentar na mesa deles, que já é a mesa das crianças. Na exit! há muito tempo que o recurso reacionário a S. Paulo e à religião (cristã) em geral, misturado com clichés Carl Schmittianos para satisfazer uma necessidade autoritária que se está a tornar visível por toda a parte, tem sido objecto de crítica (ver Herbert Böttcher: Hilft in der Krise nur noch beten, Exit n.º 16 2019 [Rezar na crise ainda ajuda, obeco-online.org]). Entretanto a esquerda tem de se reorganizar completamente em termos de conteúdo. Como se pode pretender que é um projecto como a crítica da dissociação-valor que se tornou numa seita, como diz Jappe, quando se percebe que é a própria igreja marxista que está em processo de desintegração?

É preciso formar um “conceito” da situação social em que isso está a acontecer. Hoje, mais ainda do que há 30 anos, isso exige um quadro de referência diferente, como a crítica da dissociação-valor exige há décadas, em vez de se apoiar em velhos dogmas. Todos os esforços para criar uma “política de esquerda” fracassaram após a queda do bloco de Leste. Mesmo as “Sextas-feiras pelo futuro” deixaram de ser muito populares e o interesse pela ecologia há muito que diminuiu.

Hoje em dia é fácil encontrar jovens destroços do movimento, ainda na primeira metade dos seus 20 anos, que estão completamente frustrados, porque os seus esforços para promover uma acção climática sustentável não levaram a lado nenhum. O movimento climático está actualmente a ficar fora de moda.

No entanto a esquerda não está a enfrentar o fracasso da esquerda, mas sim a tentar marcar pontos à maneira populista em concorrência com a direita com base num fetiche de classe e de trabalho, muitas vezes declarando o racismo, o sexismo, o anti-semitismo e o anticiganismo, a velhice e a hostilidade para com os deficientes como contradições secundárias, em vez de adoptar uma abordagem mais abrangente da questão social. O destinatário de uma grande parte da esquerda actual é a pessoa normal, eficiente, disposta a trabalhar e que se sente traída pelos que estão no topo, tanto mais quanto se sente ameaçada de ser deixada para trás. Não estão verdadeiramente interessados nos socialmente fracos que não podem cumprir estes requisitos.

Estão a tentar unir a luta de classes e a ecologia – uma contradição nos termos. A crítica da dissociação-valor não deve limitar-se a lamentar esta situação, mas tem de prosseguir o seu projecto ofensiva e provocatoriamente, desenvolvendo-o ainda mais. O conteúdo não pode ser sacrificado a uma reputação duvidosa. Também não é de todo certo que a crítica (da dissociação e) do valor, actualmente pouco popular, não venha a ressurgir. A antiga Escola de Frankfurt, por exemplo, e até mesmo o próprio Marx estiveram por vezes mega-out e apenas objecto de discussão nas salas dos fundos, até voltarem a aparecer. Se isto também se aplica à crítica da dissociação-valor, que alcançou um certo grau de popularidade nos anos de 1990 e 2000, está completamente em aberto. Continua a ser importante dizer as coisas como elas são, e não dar açúcar hoje até mesmo ao macaco reaccionário, caindo no romantismo agrário com implicações malthusianas e darwinistas sociais, também uma variante da regressão da esquerda.

Hoje por toda a parte as pessoas se refugiam não só na nostalgia da luta de classes, mas também, de forma igualmente regressiva, na originalidade, na autenticidade e afins. Jappe também defende isso com o seu recurso à natureza, à natureza humana e a uma “cultura” que é obviamente considerada autêntica. Também Heidegger e o “autêntico” voltam a ter muita saída. É a crise do sistema global (e não apenas do sistema económico), em que já nada é normal (Stephan Lessenich), que leva a simplificações – também na elaboração da teoria –, assim se pretendendo dominar o caos e a tão glosada crise múltipla (económica, ecológica, política etc.) com conceitos pouco complexos. O desprezo pela crítica do valor também tem portanto razões sistemáticas e ideológicas, que devem ser consideradas e nomeadas, em vez de se chafurdar no insulto narcisista e de se procurar amuadamente apenas razões internas ao projecto para ignorar a crítica do valor. É preciso esclarecer as armadilhas desta esquerda e o seu afastamento da realidade, que afinal não leva a lado nenhum, e na pior das hipóteses acaba em políticas de frente transversal.

 

2. O colapso do capitalismo ainda não terá ocorrido

Como lição do crash de 2008, que Kurz foi um dos poucos da esquerda a prever – e que apenas o “célebre” Immanuel Wallerstein, vindo de uma direção diferente, tinha previsto – a esquerda, após um interlúdio de “Nova leitura de Marx”, entregou-se à necromancia e voltou-se para o antagonismo das classes como suposto núcleo do capitalismo. É a partir daqui que se pretende explicar a tão invocada crise múltipla (no entanto, na discussão ocorrida desde os anos 2010, apareceram muitas ideias que foram formuladas pela primeira vez pela crítica do valor, mas – claro – sem citar quaisquer fontes! A academia inventou-as ela própria!)

É verdade que Kurz esperava um crash financeiro mais cedo, mas quer ele tenha acontecido em 1997 ou em 2008 – historicamente falando isso é apenas um piscar de olhos. Contudo não se pode falar de um crash súbito, que Kurz teria suposto, como Jappe insinua. Já em 1986 Kurz escrevia no seu artigo “A Crise do Valor de Troca”: “O colapso da relação de valor não começa apenas quando o último trabalhador é eliminado da produção directa; em vez disso, começa precisamente no ponto histórico em que a relação global entre eliminação e reabsorção de trabalho produtivo directo vivo começa a inverter-se, ou seja, logo no momento (e progredindo sucessivamente em extensão), onde (e à medida em que) é eliminado mais trabalho produtivo directo vivo do que é reabsorvido. Presumivelmente esse 'ponto', na medida em que se pode falar de um ponto, já hoje está no passado, possivelmente no tempo entre o início e meados da década de 1970: não por acaso é durante esse período que ocorre o colapso do sistema monetário de Bretton Woods e o início o desemprego 'tecnológico' em massa. Naturalmente que também não se deve imaginar o colapso da relação de valor como um acto repentino e único (embora rupturas e colapsos repentinos, tais como crashes bancários, falências em massa, etc. sejam parte integrante deste colapso), mas sim como um processo histórico, toda uma época de talvez várias décadas, em que a economia capitalista mundial já não pode sair do turbilhão dos processos de crise e desvalorização nem do crescente desemprego em massa... (Kurz, 1986, p. 35, sublinhado nosso; ver também: exit-online.org [e obeco-online.org]). Por conseguinte, os trabalhadores da alta tecnologia já não produzem mais-valia como os trabalhadores industriais, como Jappe aparentemente supõe, mas trabalham – para o dizer sem rodeios – para a sua própria racionalização. Hoje há muito já se tornou claro não apenas que a impossibilidade de obter rendimentos através da produção de mais-valia, mediada por este processo, levou a uma deslocação para o nível especulativo, mas que toda a dinâmica que aqui culmina leva à desintegração do capitalismo.

Kurz também reafirmou este ponto de vista no seu último livro: “O entendimento vulgar sugere que o ‘colapso’ tem de ocorrer de um modo tão instantâneo como um indivíduo cai morto imediatamente ao sofrer um enfarte grave do miocárdio. Se, neste sentido, o capitalismo não se desfez em pó nem após a bolha da Internet do início da primeira década do século XXI, nem no final dessa mesma década após o grande crash financeiro de 2008/09, tal é tomado apressadamente pela ‘invalidação empírica’ da teoria radical da crise, visto que a suposta ‘profecia’ afinal não se teria confirmado mais uma vez. Ou seja, de uma forma quixotesca, a metáfora é entendida literalmente, na medida em que o horizonte temporal da explicação teórica é reduzido a uma espécie de actualidade quotidiana. A diferença entre o tempo actual, ou o tempo do mundo‑da‑vida, e o tempo histórico é apagada. Como é evidente, isso é absolutamente inadmissível ... Tal como o capitalismo percorreu, nos primórdios da modernidade, uma época de constituição rica em rupturas e convulsões, está agora a percorrer uma época de dissolução interna … para a teoria de um limite interno tornado actual em termos históricos, o quadro temporal do mesmo coincide com a primeira metade do século XXI ... sem que haja porventura a necessidade de indicar uma data precisa” (Geld ohne Wert, 2012 [Dinheiro sem valor, 2014]). Wallerstein também chega a uma avaliação semelhante.

Kurz também escreve: “Reduzir a metáfora do ‘colapso’ ao horizonte de percepção actual é, cla‑ ramente, um elemento da táctica discursiva dos oponentes da teoria radical da crise, mesmo que estes nem sempre devam ter plena consciência disso, visto que a condução da argumentação também é determinada por ‘sentimentos instintivos’ pré‑teóricos ” (ibid.). O grande “conhecedor” da crítica do valor Anselm Jappe parece ter esquecido completamente este facto. Kurz sempre partiu do princípio de que o curso concreto dos acontecimentos não podia ser antecipado! Um “colapso da modernização” é também evidente actualmente na chamada crise múltipla. Isto torna-se claro quando se olha para a sociedade como um todo e não apenas para a economia. “O mundo está a rebentar pelas costuras” é um diagnóstico que é feito frequentemente em relação à situação social global de hoje. Jappe também não está interessado nos processos de desintegração no “Terceiro Mundo” (ver Der Zusammenbruch der Peripherie [O colapso da periferia] – Gerd Bedszent 2014). No conjunto (não em todos os pormenores), a crítica do valor tinha ainda mais razão do que a maioria dos teóricos e académicos burgueses e marxistas, o que não exclui, naturalmente, correcções. Voltarei a este assunto no final.

 

3. A crítica do valor supostamente negligencia a ecologia

Jappe apresenta o limite interno, a ecologia, como o verdadeiro limite do capitalismo, com o qual a crítica do valor teria de lidar. Ignora deliberadamente o facto de que há muito tempo se trabalha sobre este assunto; Tomasz Konicz, por exemplo, publicou um livro sobre o tema Klimakiller Kapital [Capital assassino do clima] (que Jappe também menciona e critica noutro texto) e também escreveu muito explicitamente sobre este tema.

Kurz também abordou o problema ecológico – tal como outros críticos do valor – nos anos 90, quando a ecologia estava completamente fora de questão e se assumia, à maneira desconstrucionista, que a natureza já é sempre cultura, e que realmente é mais ou menos como se não existisse, ou é considerada uma questão menor, que não merece ser tida em conta. Também eu defendi e continuo a defender uma dialéctica sexo-género-natureza-cultura, apesar de todas as objecções pós-modernas. Já levei muita pancada por causa disso em eventos.

No entanto, Kurz manifesta-se contra um “reducionismo ecológico”, que Jappe também segue: “O fim da modernização significa, portanto, que não só a forma capitalista de reprodução tem de ser ultrapassada, mas que uma sociedade mundial pós-capitalista terá de lidar com as consequências da destruição capitalista da natureza durante muito tempo e sofrerá com isso. Para a análise e a crítica teóricas da crise, é importante ver os dois limites históricos no seu contexto interno. No entanto, existe o perigo de que os dois momentos da crise histórica sejam colocados um contra o outro, tanto pelas elites capitalistas como pelos representantes de um ‘reducionismo ecológico’ que apenas reconhecem o limite externo da natureza. A administração capitalista da crise e o reducionismo ecológico poderiam entrar numa aliança perversa que acabe por negar o limite económico e, em nome da crise ecológica, pregar às massas empobrecidas e miseráveis uma ideologia de ‘renúncia social’. Contra isso é preciso defender que seja dada prioridade à crise, à crítica e à ultrapassagem do contexto da forma capitalista, porque a destruição da natureza é a consequência e não a causa do limite interno deste sistema“ (Robert Kurz, Der Tod des Kapitalismus, 2013) [Entrevista à revista brasileira “IHU online”, 20.03.2009, obeco-online.org]. Oh, se ao menos se ficasse apenas pela exigência de “renúncia”. Kurz provavelmente nunca teria sonhado que a sua teoria, ao demonstrar o “muro energético do capital” (Sandrine Aumercier), acabaria por levar a consequências mathusianas e darwinistas sociais, como acontece com Jappe! (ver abaixo).

Kurz já não era fã das forças produtivas e da tecnologia desde o início dos anos 1990. “… em relação aos artefactos capitalistas, um "programa de abolições" deverá certamente abranger um âmbito muito amplo, uma vez que o inquinamento capitalista das coisas pela forma entretanto progrediu assombrosamente. Apesar de tudo, mesmo em relação aos artefactos capitalistas no sentido mais lato, isso não pode significar que se queira arrancar com um programa de tábua rasa  ... Certamente as forças produtivas capitalistas são agregadas e socializadas em uma medida muito superior à de todas as anteriores; todas as tecnologias individuais encontram-se inseridas em um amplo contexto de encadeamento. E, de acordo com a abstracção do valor, que nega toda a sensualidade, este contexto constitui ao mesmo tempo um sistema de forças destrutivas. Isso, no entanto, não pode querer dizer que se rejeite por si só e em bloco toda e qualquer agregação de tecnologias, habilidades e conhecimentos. Tal iria configurar uma negação por sua vez totalitária segundo o mesmo princípio de uma lógica que pretende fazer tábua rasa dos conteúdos, não passando da inversão do ingénuo fetichismo da forças produtivas do marxismo do movimento operário. A negação de conteúdos e artefactos não pode iniciar-se de uma forma apriorística, independentemente da determinação desses conteúdos” (Tabula rasa in: Blutige Vernunft 2004; ver também: Exit! n.º 21, 2024 [Tabula rasa, www.obeco-online.org, 2003]).

O que Jappe também não vê é que a dissociação-valor que ele questiona criticou de facto a dominação e a destruição da natureza, e que isso foi apontado pela Exit, por exemplo num texto de Johannes Bareuther (sendo esta ligação também repetidamente feita em textos de Claus Peter Ortlieb ou Thomas Meyer). Na apresentação de um artigo de Johannes Bareuther na Exit 12/2014 pode ler-se: “Quando, no século XVII, figuras como Francis Bacon, Galileu e Descartes formularam o programa e as primeiras versões dum novo conhecimento da natureza na forma de leis e da correspondente filosofia mecanicista, as atrocidades patriarcais da caça às bruxas atingiam o seu auge na Europa. Reflectindo sobre esta coincidência histórica marcante, Johannes Bareuther desenvolve reflexões SOBRE O ANDROCENTISMO DA RAZÃO DOMINADORA DA NATUREZA. Revela-se que, na realidade, a ciência mecânica da natureza fica a dever-se essencialmente à socialização do valor que se impôs ao mesmo tempo, como já Eske Bockelmann demonstrou. Além disso, porém, também podem ser apontados os vestígios do crime fundador do patriarcado produtor de mercadorias, por assim dizer da “dissociação sexual original”, nas categorias e figuras da nova concepção da natureza. Vestígios que serão apresentados ao longo do texto, em conexão conceptual com a dialéctica entre a dominação interna e externa da natureza e a correspondente dinâmica do sujeito burguês masculino, podendo a dissociação sexual ser assim reconhecida como condição constitutiva da ciência moderna”.[Exit 12/2014, obeco-online.org]

 

4. A crítica da dissociação-valor (já) não será necessária

Aqui já podemos ver que a teoria da dissociação incriminada por Jappe, que supostamente já não é necessária hoje em particular, não é de modo nenhum simplesmente um domínio, uma esfera para além do valor que pode ser equiparada a amizade, a associações etc., mas requer uma abordagem fundamental e categorial. Para Jappe ela é basicamente subsumida nos termos “comunidade e sociedade” (Ferdinand Tönnies). A dissociação do valor atravessa toda a sociedade numa mediação dialéctica com o valor. Apesar de toda a visibilidade das mulheres, isto é demonstrado no facto de continuarem a ganhar menos do que os homens, de continuarem a não estar representadas na política e na esfera pública como os homens, de terem menos oportunidades de progressão, apesar de todos os regulamentos relativos a quotas etc. Ela ocorre não apenas a nível material, incluindo as actividades reprodutivas que não podem ser simplesmente atribuídas ao conceito de trabalho (amor, carinho, cuidados), mas também a nível cultural-simbólico, ou seja, a nível da definição normativa da masculinidade e da feminilidade, bem como numa dimensão psicossocial, que inclui a constituição do sujeito. Aqui se vê também porque é que as mulheres (metade da sociedade!) e o chamado feminino são colocados em posição inferior. Em vez disso, Jappe tem uma visão exclusivamente funcionalista e pensa na dissociação-valor de forma esquemática: aqui está o valor e ali está o Outro, em que praticamente resume as relações informais de qualquer tipo e de qualquer natureza comunitária em “dissociação”. Estas são avaliadas positivamente por ele desde o início, de acordo com a condição humana, por assim dizer. Ele parece ter uma espécie de concepção oó da esfera da reprodução. Jappe vê-a como um “porto de ressonância” (Hartmut Rosa), por assim dizer, sem reconhecer a sua tacanhez, a sua existência reificada como domínio separado e o seu carácter coercivo para as mulheres. No entanto, as actividades de cuidados na esfera privada são tudo menos universalmente gratificantes, quer se trate da criação dos filhos ou da prestação de cuidados. Apesar de todo o tratamento dos homens como donas de casa, estas actividades continuam ainda hoje a caber principalmente às mulheres, não obstante da sua simultânea actividade profissional. A melhoria da educação e o aumento da actividade profissional das mulheres conduzem a constelações que muitas vezes resultam em violência, especialmente quando as mulheres se tornam visíveis como administradoras da crise na economia e no Estado. As mulheres (e também os migrantes, que cada vez mais se podem encontrar no Estado e na economia) conquistam assim posições de comando num navio que se afunda (Andreas Urban deveria estar a bramar com o que Jappe aqui diz, uma vez que desenvolveu esta questão no seu texto “Spitzenfrauen [Mulheres de topo]” (Exit No. 18/2021, ver também wertkritik.org).

Sabe-se que a violência contra as mulheres e os feminicídios estão a aumentar. É preciso ser cego para não ver isto; o anti-semitismo e o racismo também estão a aumentar, como parte de uma viragem geral para a direita. Lá se vai a abstracção vazia de Jappe, segundo a qual “a lógica fetichista se desprendeu dos seus portadores” (uma visão que foi defendida pela crítica do valor, particularmente nos anos 1980). O “empirismo” que ele tanto aprecia não tem obviamente qualquer interesse neste caso. Pretende defender uma crítica abstracta e androcêntrica do valor, assim revelando que se agarra às tradicionais poltronas da supremacia masculina; na realidade, esta “lógica fetichista” baseia-se desde logo numa lógica de dissociação-valor. As mulheres e a classe operária não podem ser simplesmente equiparadas; de facto quanto mais esta classe se diluiu economicamente nas últimas décadas, mais se tornou evidente o problema do sexismo e do racismo, que sempre existiu, mas que até agora tem sido marginalizado. Com a ascensão dos movimentos de direita, mas também com a recente emergência de uma esquerda retro, esses problemas estão a ser novamente relegados para segundo plano, se não mesmo negados. Temos de nos opor veementemente a tal situação! Nos últimos anos até a Krisis se sentiu evidentemente compelida a incluir as questões feministas e o racismo numa escala mais alargada (embora, o que é revelador, não haja referências às elaborações da crítica da dissociação-valor, que colocou estas questões na agenda desde o início! O exemplo mais recente é Ernst Lohoff, que lutou durante anos contra a crítica da dissociação do valor, mas que agora se limita a referir-se a ela no texto “Jenseits des Homo faber oder die Rückgewinnung der Lebenszeit [Para além do homo faber ou a recuperação do tempo da vida]”, 2024, e a reivindicá-la para si próprio sem mencionar a autora – ver www.krisis.org).

A dissociação-valor dá igualmente espaço a outras disparidades (também socio-económicas) para além da relação hierárquica de género (não posso aprofundar este assunto aqui e já tratei desta ligação em pormenor no meu livro “Differenzen der Krise – Krise der Differenzen [Diferenças da Crise – Crise das Diferenças]”, 2005).

Não admira que Jappe pelo contrário cite subitamente as análises “concretas” de Mies e Federici contra a crítica da dissociação-valor, uma vez que estas defendem uma abordagem de subsistência, na qual Jappe também acredita, sendo que no entanto estas abordagens, ao contrário de Jappe, atribuem um lugar decisivo às actividades reprodutivas femininas, ou seja, à “dissociação”. Jappe, que de resto não quer saber muito de feminismo, apropria-se simplesmente destas abordagens para o seu próprio ponto de vista. Na minha opinião, porém, estas abordagens de subsistência são pseudo-soluções, que devem ser criticadas pela sua estreiteza de espírito na sua orientação para a filosofia da vida e vitalista, em vez de se tentar entrar em diálogo com elas.

É escandaloso que ele afirme que a abordagem da dissociação-valor não foi mais desenvolvida desde o meu texto “Der Wert ist der Mann [O valor é o homem]” (1992). Escrevi um livro inteiro, Das Geschlecht des Kapitalismus (primeira edição publicada já em 2000!) [O Sexo do Capitalismo, 2025], onde desenvolvi a crítica da dissociação-valor em diálogo com outras teorias feministas, a qual foi muito rejeitada na associação de homens da Krisis de então. Os estudos empíricos que aí citei, aos quais Jappe dá tanta importância, não se enquadram obviamente no seu conceito.

A crítica da dissociação-valor segue – se quisermos – uma abordagem a vários níveis, que também dá ao nível histórico e empírico-sociológico tanta relevância como à dissociação-valor enquanto princípio da forma da sociedade a um nível macro. De resto poderá abordar tanto o sexismo quotidiano e a “micro-misoginia” (Carola Padtberg), tal como se está a propagar hoje em dia quando o sexismo grosseiro já não passa tão facilmente, como a agressão masculina em flutuação livre que não está ligada a compromissos sociais. No seu desenvolvimento, a teoria da dissociação-valor tem efectivamente em conta a empiria, embora sem a hipostasiar, e insiste em remeter para o nível da forma.

Segundo Jappe, a generalizada hierarquia de género não requer, obviamente, uma percepção sistemática e categorial, uma vez que não são apenas as mulheres que estão activas em áreas sem valor. O facto de a teoria também ser sempre necessariamente uma abstracção é aqui completamente “esquecido”. É por isso que uma relação social tão central como a relação hierárquica de género não precisaria de ser determinada teórica e categorialmente. Para ele, de qualquer modo, ela enquadra-se na rubrica da ontologia e antropologia, como se torna claro mais adiante no seu texto. É claro que a homofobia e a transfobia também não são problema para ele. Ele assume per se a posição de um “macho hetero compulsivo”, como Robert Kurz formulou polemicamente.

Como já foi referido, a dissociação-valor tem também um lado cultural-simbólico e psicossocial. Este facto demonstra também a sua relevância para a crítica do sujeito iluminista. A análise do discurso pode ser utilizada para mostrar como são constituídas as ideias de masculinidade e feminilidade, a hierarquia de género e a dominação masculina: Do ponto de vista psicanalítico, a moça identifica-se com a mãe para assumir o papel feminino; o rapaz, pelo contrário, tem de se afastar da mãe e identificar-se com o pai para se tornar “homem”, e ninguém fica absorvido nas ideias abstractas de género. Por conseguinte, há que distinguir entre o sujeito e o indivíduo, sem que os indivíduos concretos possam escapar completamente às padronizações típicas do género. Estes dois níveis são decisivos para a constituição do sujeito (iluminista), ou sujeito masculino-branco-ocidental (MBO), como também lhe chama Kurz, sujeito que no capitalismo e no patriarcado moderno se apresenta como o Um, se vê como o ser humano em si mesmo e afirma representar o universal, imagina ser superior a todos os outros e racionalmente, “por natureza”, como dominante deriva o seu direito a governar o mundo. Ainda que se tenha de fazer uma distinção entre sujeito e indivíduo, ou seja, que o indivíduo não fique absorvido nos conceitos de género, os indivíduos não deixam de ser afectados pelas atribuições correspondentes. O nível cultural-simbólico e psicossocial está, portanto, perfeitamente incluído na crítica da dissociação-valor, como Jappe exige, mas de modo completamente diferente do que ele imagina, na sua visão antropológica e ontologizante.

 

5. A crítica do iluminismo e do sujeito estará a ir demasiado longe

Jappe sublinha a ambivalência do iluminismo. O facto de Kurz criticar radicalmente o sujeito iluminista é para ele uma pedra no sapato. Acusa-o mesmo de não ter levado a sério a dissociação-valor. Nas suas análises político-económicas, por exemplo, Kurz estaria no seu elemento, um homem “completo”, “real”, por assim dizer; na sua crítica do iluminismo e do sujeito masculino do iluminismo, por outro lado, surgiria um Kurz “exotérico”, que permanece na superfície, na melhor das hipóteses, e se torna uma mulher, por assim dizer (provavelmente a sua mulher sussurrou-lhe tudo isto de algum modo), que deixa o nível categorial fundamental, meramente crítico de valor, que é suposto ser o verdadeiro. É possível que Kurz só tenha abordado a dissociação de passagem, no que diz respeito aos debates sobre as categorias internas do marxismo (trabalho abstracto, dinheiro etc.). Mas no seu livro Das Weltkapital [O capital mundial] (2005), tomou-a como ponto de partida, o que foi criticado por alguns críticos (em 2005, o feminismo estava ainda mega-out, o que viria a mudar nos anos seguintes).

Todavia há muito que ele tinha reconhecido que os conteúdos dos debates no interior do marxismo não são tudo, nem por si só constituem a totalidade. Isto também se aplica quando ele visa criticamente o iluminismo. Kurz preocupa-se aqui com uma crítica radical da forma de sujeito masculina, que pode ser estudada por assim dizer à lupa em Kant. Para ele trata-se assim de romper com o “modo fetichista de pensar e agir” (Tabula rasa). Por isso “o que importa é, por um lado, passar em revista com toda a minúcia todos os seus cantos e recantos (do iluminismo, R.S.), argumentando com um cuidado redobrado, tendo em conta todos os seus níveis e não deixando aberta nem uma porta do cavalo para uma apologética sorrateira”. Defende assim uma abordagem diferenciada, mas prossegue imediatamente: “Tal, no entanto, não pode, de modo algum, querer significar uma renúncia às teses agudizadoras... É que, por outro lado, a crítica do iluminismo até tem de actuar de um modo particularmente agressivo, visto que apenas nesse ponto é alcançada a fonte de toda a paralisia e cegueira do pensamento emancipatório da modernidade” (ibid.). O racismo, o anti-semitismo, o sexismo etc. não são apenas uma consequência do iluminismo, como diz Jappe, mas são-lhe inerentes.

O discurso do iluminismo não é certamente uma construção uniforme e também aí se encontram afirmações que podem ser apontadas a Jappe com o seu androcentrismo. Poullain de la Barre afirma, numa perspectiva cartesiana: “O homem é sempre juiz e parte ao mesmo tempo”. Na Alemanha, Hippel opôs-se ao biologismo e defendeu a “melhoria das mulheres”. Mas isso não altera a corrente dominante do iluminismo, que prevaleceu, nem a forma de sujeito masculino que a acompanha.

Jappe cita o fim da escravatura como um sucesso do pensamento iluminista. O facto, porém, é que muitos negros nos EUA viveram posteriormente nas mesmas condições que antes. A segregação racial nos EUA só foi abolida em 1964, ou seja, no limiar da pós-modernidade, em que o iluminismo foi então posto em causa. Rousseau é geralmente considerado como um clássico moderno da “polarização dos caracteres de género” (Karin Hausen) e o fundador do patriarcado moderno. E foi apenas com base nesta “polarização” que os direitos das mulheres aumentaram. O facto de os homens poderem proibir as suas mulheres de exercerem uma actividade profissional só foi revisto na RFA em 1977. Na modernidade as relações de género assimétricas da pré-modernidade foram transformadas numa qualidade completamente nova. Esta nova qualidade deve ser tida em conta.

Jappe defende que se veja a “ambivalência do iluminismo” e pergunta “em que se baseia de facto um antimodernismo emancipatório”, que Kurz propaga e que pairaria no ar sem o recurso ao iluminismo. No início dos anos noventa, a crítica do iluminismo estava ainda à margem e era sobretudo exercida a partir de posições pós-estruturalistas e pós-coloniais, que neste país eram marginalizadas e de natureza diferente da crítica da dissociação-valor. Mas entretanto isto mudou. Até Axel Honneth escreve: “ ... foi o colonialismo que primeiro (criou) a prosperidade económica do Ocidente e, assim, a base segura sobre a qual pudemos forjar os nossos ideais morais de uma ordem pacífica de liberdade e igualdade. Não só a nossa riqueza, mas também os princípios normativos em que sempre baseámos o nosso papel pioneiro a nível mundial, nasceram no chão sangrento da exploração colonial. Por conseguinte, é mais do que apropriado examinar criticamente estes ideais, o nosso pensamento e as nossas acções até aqui. Um simples olhar sobre a forja das ideias do Ocidente mostra até que ponto esta tarefa remonta ao nosso passado: no Leviatã de Thomas Hobbes, o texto fundador da tradição moderna do pensamento político na Europa, foi tacitamente justificada a subjugação dos povos indígenas da América do Norte. Afinal partia-se do princípio de que ainda se encontravam no chamado estado de natureza. Em termos de teoria da história, já no século XVII isto abriu caminho para que a filosofia política e a teoria social chegassem à convicção de que o Ocidente representava a norma de todas as conquistas socioculturais” (Ein Sockel muss bleiben [Tem de se manter uma base]: zeit.de).

É claro que Honneth não seria Honneth se não quisesse manter o iluminismo pelo menos como uma “base”, especialmente a capacidade de distanciamento, enquanto Kurz vai mais longe e fala do facto de que também tem de haver um “distanciamento da capacidade de distanciamento” (sem, no entanto, cair num pensamento de autenticidade e genuinidade, o que não pode ser aprofundado aqui) e que o próprio distanciamento deve, portanto, ser seriamente questionado num nível teórico abstracto (Kurz: Tabula rasa, ver acima).

E Daniel Loik, que pertence à última geração da Escola de Frankfurt, escreve com alguns rodeios: “A crítica de Du Bois à color line recorda à sociedade americana o princípio da igualdade com que se comprometeu na sua Constituição e nos seus ideais oficiais. No entanto esta crítica não implica simplesmente uma exigência de conclusão ou de realização destes ideais. Pelo contrário, como materialista, ele mostra porque é que esta contradição tem de surgir nas condições económicas e políticas existentes. A sua crítica ... incita-nos a ultrapassar condições que violam constantemente as suas normas. Não quer completar um mundo, mas ‘criar’ um novo mundo” (Daniel Loik: Die Überlegenheit der Unterlegenen [A superioridade dos inferiores] 2004, ênfase no original).

Por conseguinte não é possível limitarmo-nos a manter como padrão a liberdade, a igualdade, os direitos humanos etc. As armadilhas anti-emancipatórias do iluminismo tornaram-se entretanto demasiado evidentes. Em seu nome foram desencadeadas guerras e chacinados povos com fervor missionário. Até Honneth tem agora de se distanciar de si próprio, pelo menos em parte, sob a pressão do “poder normativo dos factos”, por assim dizer, quando os Outros levantam cada vez mais objecções. Hoje em dia, uma crítica social já não pode fazer uma crítica imanente ingenuamente com base no iluminismo; tornou-se demasiado claro que a liberdade e a igualdade estão elas próprias envolvidas na exploração e na discriminação dos Outros. Uma crítica imanente emancipatória hoje só pode ser conseguida através do reconhecimento desta contradição e não tomando o iluminismo e os seus valores como padrão, como faz Jappe. O próprio Kurz viu perfeitamente as contradições do pensamento iluminista: “… também importa colocar em destaque a contraditoriedade interna da própria filosofia iluminista. Mas tal simplesmente não pode acontecer da mesma forma que até à data, tal como por exemplo até o próprio Adorno ainda tentou extrair desse corpo de ideias repressivo e caracterizado por uma ideologia autoritária um elemento supostamente ‘bom’ e emancipatório. Antes já pode apenas tratar-se de demonstrar como o iluminismo se enreda em antinomias e aporias impossíveis de superar no seu próprio âmbito, assim desvendando involuntariamente como o totalitarismo da socialização do valor não dá e nem pode dar certo” (Negative Ontologie, 2004) [Ontologia Negativa, 2004, obeco-online.org].

Recomenda-se vivamente a leitura dos textos originais implicitamente criticados por Jappe em vez de se acreditar na interpretação de Jappe.

 

6. Regresso à ontologia, à antropologia, aos agricultores e artesãos

Um olhar mais atento a Jappe revela, no entanto, que a sua insistência na ambivalência do iluminismo é mais uma passagem ideológica para as ideias do romantismo agrário. Não surpreende que ele cite positivamente o filósofo iluminista Denis Diderot, que defende o “bom selvagem” – o que também faz parte da tradição iluminista. Já em 2003 Robert Kurz escrevia, em resposta às objecções de Jappe: “A apologética e afirmação mais ou menos clara desta forma ‘falsa’ do Eu (a forma de sujeito, R.S.) é acompanhada de uma necessidade ontológica que de algum modo pretende apostar na falsa continuidade da consciência, que no entanto apenas poderia ser uma continuidade da mesma forma com que se tem de romper. Ainda no interior da crítica, esta necessidade ontológica apresenta-se como compulsão no sentido da construção de uma lógica positiva do desenvolvimento, de uma galeria de antepassados, de uma sequência generativa, em que uma pessoa possa de algum modo inserir-se” (Tabula rasa, ver acima). Kurz escreve ainda: “Deste modo, pretende-se evitar a ruptura ontológica pela deslocação quase que caracterizada por um romantismo agrário do chão ontológico para um passado anterior. Como tal, Anselm Jappe formula a sua anticrítica da crítica radical do iluminismo, contrariamente aos apologistas da modernidade, menos pelo iluminismo que para salvar a sociedade agrária pré-moderna, como âmbito de referência em grande medida positivo e quase que como bitola da crítica do iluminismo ... E como de qualquer modo não pode ocorrer um regresso às formas pré-modernas, o momento apologético da forma contido em este tipo de argumentações ameaça, no final de contas, limitar-se a flanquear de forma involuntária o sujeito da lógica do valor e da dissociação ...” (ibid.).

Jappe quer regressar às velhas sociedades de agricultores e artesãos, que até prescindem de artefactos tecnológicos úteis não “envenenados pela forma” (Robert Kurz) (no máximo, devem ser usados para apoiar o artesanato e o campesinato). A sua insistência na antropologia, que acompanha uma hipostasiação da “cultura”, deve também ser entendida neste contexto, mesmo que seja forçado a admitir que a constituição psíquica é muito plástica.

 

7. Universalismo e particularismo, sim, mas com uma roupagem culturalmente conservadora

A sua crítica ao pressuposto de uma universalização absoluta da forma do valor, que abstrai das culturas individuais, também deve ser vista neste contexto. Já escrevi no meu livro Das Geschlecht des Kapitalismus (2000/2011) [O Sexo do Capitalismo, 2025]: “Assim a dissociação-valor tem de ser vista globalmente, como princípio da forma do patriarcado produtor de mercadorias, mesmo considerando que o desenvolvimento na forma da mercadoria patriarcal não ocorreu uniformemente nas diversas regiões do mundo ..., até às sociedades (anteriormente) com simetria de género, nas quais as ideias modernas ocidentais de género não foram ou não foram totalmente adoptadas até hoje” (Scholz 2011/2000: 127). No meu livro “Diferenças da Crise – Crise das Diferenças”, também defendi a diversidade, mesmo no que diz respeito à Europa, mas sem absolutizar essa diversidade. É importante considerar os respectivos contextos, mas tendo como pano de fundo a dissociação-valor como contexto da forma, que inclui naturalmente o nível cultural-simbólico. Nas minhas observações no “livro do género”, por exemplo, utilizei a Jamaica como exemplo concreto e empírico para com Irmgard Schulz demonstrar o asselvajamento do patriarcado. No meu ensaio “Forma Social e Totalidade Concreta”, eu própria insisti na inclusão de níveis empíricos e concretos no pano de fundo da forma social: “Trata-se no fundamental... de que em geral os planos mais concretos e as suas referências de conteúdo no desenvolvimento da totalidade capitalista, incluindo aquilo que nesta não fica absorvido, em caso nenhum podem ser descurados e menosprezados como não essenciais, tal como, inversamente, tão-pouco a referência à determinação da forma social do valor pode ser denunciada como “esoterismo” abstracto e vazio. Pelo contrário, a análise concreta que nesta não fica absorvida é sempre referida àquele contexto” (Scholz: “Gesellschaftliche Form und konkrete Totalität” Exit! 6/2009 [“Forma Social e Totalidade Concreta”, obeco-online.org, 2009]).

O facto de ter de se tomar em consideração o que não se funde nesta forma decorre da crítica da lógica da identidade, que é essencial para a crítica da dissociação-valor. Jappe simplesmente ignora tudo isto, não o leu ou não quer tomar nota. Provavelmente porque Jappe essencializa efectivamente a cultura. Há que reconhecer também que as culturas e as sociedades tradicionais nunca foram um país das maravilhas. Por exemplo, Kurz escreve: “Será difícil invocar, por exemplo, a mutilação sexual de meninas como um ‘conteúdo cultural’ positivo, e muito menos como um maravilhoso potencial de resistência de uma cultura agrária pré-moderna ainda não conspurcada pela relação de valor contra os desaforos modernos” (Tabula rasa, ver acima).

Deve ser criticado aqui o facto de, no feminismo e na esquerda em geral, prevalecer hoje um tabu da abstracção, e de se insistir de novo na classe, na identidade, mas também no autêntico, no genuíno e afins, de modo pseudoconcreto e abstraindo da forma. O pensamento vitalista da concreção de Jappe apoia os ressentimentos anti-semitas, que estão intimamente ligados a um sentimento contra o abstracto. Por um lado, no texto aqui analisado Jappe defende uma crítica do valor não personalizante, mas noutros textos assume um antagonismo de classe tradicional, incluindo fantasias da conspiração (Haben sie Gesundheitsdiktatur gesagt? [Disseram ditadura da saúde?] wertkritik.org). É evidente que existe aqui uma dissonância cognitiva que já não pode ser explicada racionalmente.

 

8. “Desaparecei da face da Terra” não tem nada a ver com o malthusianismo e o darwinismo social?

Jappe defende-se com unhas e dentes contra a objecção de malthusianismo e darwinismo social, embora estes estejam claramente expressos na sua obra. Escreve cinicamente no texto “Von Mixern und Sozialdarwinisten [Sobre misturadores e darwinistas sociais]”: “É claro que não é preciso ser malthusiano para perceber que oito mil milhões de pessoas é realmente muito. O forte aumento da população não é nada 'natural', mas uma consequência da difusão global do capitalismo, que em todos os países passou por uma fase em que a população duplicou ou triplicou no espaço de algumas décadas.” “Mas também há boas razões para acreditar que uma agricultura não industrial, em pequena escala e de baixa tecnologia pode alimentar não menos, mas talvez até mais pessoas do que a actual agro-indústria de alta tecnologia”. No entanto logo volta a escrever: “Não há necessidade de negar o facto de que a dimensão actual da população coloca um problema para uma transformação pós-capitalista, no contexto da qual o potencial tecnológico teria também de ser radicalmente reduzido”. Numa argumentação tortuosa e incoerente, quer depois vender-nos os seus artesãos e comunidades de agricultores como o “oposto do darwinismo social”.

“Isso seria precisamente o oposto do darwinismo social. Perante oito mil milhões de pessoas e recursos escassos, deveríamos concentrar-nos primeiro no mais importante: fornecer a todos alimentos e bens de primeira necessidade através do artesanato. É claro que isso tem de ser feito numa base igualitária e acompanhado da abolição de privilégios e hierarquias. E naturalmente é necessário um novo equilíbrio entre a cidade e o campo, ou seja, um regresso ao campo”.

É assim que se apresenta a sua combinação de iluminismo e contra-iluminismo, embora se deva dizer que o iluminismo e o darwinismo social não se excluem mutuamente. O darwinismo social e o “desaparecei da face da Terra” (Robert Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus [O livro negro do capitalismo] 2000) nunca foram alheios ao “verdadeiro Éden dos direitos humanos” (Marx).

Jappe critica o facto de a Exit se preocupar em “impedir imediatamente o sofrimento de pessoas concretas”. A resistência às condições sociais sempre esteve associada a “reacções violentas”. Com toda a seriedade, o apologista do iluminismo Jappe coloca o seu malthusiano “desaparecei da face da Terra” em ligação com o facto de poderem ser necessárias “reacções violentas” contra o fascismo, por exemplo. Com a sua obsessão pela natureza, não só aceita as mortes provocadas pelo coronavírus, como também passa por cima de cadáveres de outras formas. Quem não quiser participar é acusado de “chantagem moral”.

No início dos anos 90, Robert Kurz escreveu contra uma tagarelice abstracta sobre justiça: “Mas um ‘direito’ à vida, à alimentação, à habitação etc. é absurdo em si mesmo; só faz sentido num sistema de referência social que tendencialmente não assume como garantidos todos estes fundamentos elementares da reprodução humana, mas pelo contrário os questiona constante e objectivamente” (Kurz 1993: 31). Jappe e os da sua laia negam agora esta auto-evidência, que não precisa de justificação moral, em nome da crítica do valor, com argumentos darwinistas sociais e malthusianos, e denunciam-na como moral. Isto não só é cínico, como também conduz directamente à barbárie. Tais atitudes revelam uma “burguesia bruta” (Wilhelm Heitmeyer) que corresponde directamente aos imperativos brutais do capitalismo em decadência. É claro que a questão social também não é preocupação de Jappe. Um crítico do livro do betão de Jappe (Betão 2022) resume a situação: Jappe “permanece ... ao nível cínico de um grande burguês que recomenda aos miseráveis suburbanos que fujam mais vezes para as suas casas de campo” (Tilman Hahn: ‘Schade, dass Beton nicht brennt [É pena que o betão não arda]’, Soziopolis, 2023).

 

9. Conclusão

Quando se lê o texto de Jappe entra-se num túmulo. Ele parte de uma crítica do valor universalista, para a qual as disparidades económicas, o racismo, o anti-semitismo e o anticiganismo não são temas, o particular encontra-se a seu ver num entendimento da antropologia no essencial culturalmente conservador, entendimento que é de facto essencialista, mesmo que ele tenha de admitir que a “natureza” humana se caracteriza pela plasticidade. Quer regressar nostalgicamente às sociedades de artesãos e agricultores. Ecologia significa para ele biocentrismo, situação em que não se afasta dos pressupostos malthusianos. Para ele não existe um limite interno no capitalismo, mas sim um limite externo, ecológico. Jappe considera que uma crítica do valor teria de levar a sério as suas objecções para sair da lixeira. Com estas orientações, a crítica do valor talvez pudesse encaixar de facto em certas correntes do espírito do tempo. Numa perspectiva de crítica do valor, tais ideologias funcionam a favor dos movimentos de direita. Por exemplo, não existe apenas um negacionismo climático de direita, que está actualmente muito difundido, mas também, como é sabido, correntes de um romantismo agrário de direita. No entanto, como o demonstram os estudos, quanto mais a questão social ocupa o primeiro plano, menor é o interesse pela ecologia. E, como todos sabemos, as questões abordadas pela esquerda estão sempre em grande medida dependentes do espírito do tempo. É possível que a importância da ecologia tivesse então de voltar a ser realçada no discurso da esquerda bem à moda antiga. Portanto o que “está a dar” nunca pode ser o critério para uma crítica social séria, mesmo que isso signifique ficar à margem.

Quando Jappe exige que a crítica do valor se reoriente, isso aplica-se a meu ver sobretudo à avaliação e à difusão dos desenvolvimentos de direita. Existem alguns textos anteriores sobre este assunto. Eu própria escrevi o texto “De Metamorphosen des teutonischen Yuppie” (Krisis n.º 16/17 1995, exit-online.org) [As metamorfoses do Yuppie teutónico, obeco-online.org] e o texto “Rückkehr des Jorge” (Exit n.º 3, 2006, exit-online.org) [O regresso do Jorge, obeco-online.org], mas este tema recebeu muito pouca atenção no passado (o que mudou nos últimos anos). Pode-se supor que o caos que surge no declínio do capitalismo leva a um apelo à ordem e à autoridade, o que naturalmente só alimenta esse declínio. A fase caótica de Ieltsin foi seguida por Putin não por acaso. Se a Rússia é suposto ser hoje uma potência mundial, tem os pés de barro, contra o pano de fundo da crise mundial. A China também está a ser abalada por contradições internas. Quando se pretende que estes Estados sejam explicados principalmente com base em diferenças culturais, isso é ridículo. Hoje em dia o que está em causa é a concorrência no mercado mundial, por muito diferentes que sejam as culturas, elas próprias já ultrapassadas pela sociedade mundial e que levam a sua perversa vida própria sob uma forma modificada, que nada tem a ver com a sua imaginada originalidade, como é o caso do fundamentalismo islâmico. A China de hoje não pode ser simplesmente explicada por dinastias anteriores, apesar de todas as diferenças em relação ao Ocidente, que não devem ser ignoradas, mas também não devem ser hipostasiadas, como parece ser o caso de Jappe.

As tendências de desglobalização e o protecionismo, que são também uma consequência do crash de 2008, não resolvem nenhum problema, mas levam ainda mais longe na crise mundial. A China simplesmente não está a tornar-se o hegemonista mundial, mas está a emergir uma crise da hegemonia. Tomasz Konicz, em particular, tem publicado muito sobre estes temas, mas também sobre ecologia e a viragem à direita. Nos últimos anos, também se tem publicado muito sobre tecnologia, IA e digitalização, o que Jappe simplesmente ignora. No entanto aqui Meyer não aponta tanto para uma “autonomização da tecnologia” (Jappe), mas sim para a aparência de uma “autonomização das tecnologias” na sociedade fetichista. A crítica do valor poderia ser aprofundada em todos os domínios: A arte, a literatura, o Estado, a política, a psicologia social e muitos outros. Mas não somos nenhuma fábrica de ideias e a nossa equipa é limitada. Não impedimos ninguém que veja necessidade de os expandir de trabalhar em tais tópicos, em vez de se lamentar e queixar de como estão a ser supostamente ignorados.

Quando Jappe quer ver abordado o tema estrutura da pulsão e socialização do valor, tendo de admitir que a pulsão é algo de plástico, não está preocupado com uma sociedade livre emancipada, na qual o trabalho poderia ser transformado em jogo e as energias agressivas poderiam ser redireccionadas, como fez o velho Marcuse (Triebstruktur und Gesellschaft 1965) [Trad. port.: Eros e civilização], mas com uma “natureza humana” que para ele representa uma limitação do género humano. A este respeito a abordagem de Marcuse deveria de facto ser reexaminada, para ver se pelo menos em parte poderia ser útil para a crítica da dissociação-valor. A propósito, Leni Wissen,  na sua análise do indivíduo (pós-moderno), baseia-se muito freudianamente na dinâmica pulsional (Exit No. 14, 2017). Mais uma vez é óbvio que Jappe não leu isto e está a tentar denunciar a crítica da dissociação-valor. Dada a chamada viragem autoritária, não em último lugar a psicologia de massas e a formação da ideologia seriam temas a abordar.

Como qualquer outra teoria, a crítica (da dissociação e) do valor tem um núcleo temporal, como diz a célebre formulação. Algumas coisas precisam de ser reconsideradas, ela tem de ser mais desenvolvida. Como o próprio texto de Jappe mostra, a crítica da dissociação-valor não se manteve sempre a mesma nos seus quase 40 anos de história. No entanto a crítica de Jappe à crítica da dissociação-valor não a eleva a um novo patamar, mas vem com os agora realmente mais velhos dos velhos jogos de palavras, que não representam absolutamente nada de novo e têm afinal o flanco aberto a certas orientações de direita.

 

Original “Wertkritik nach Altherrenart. Bemerkungen zum Linkskonservativismus Anselm Jappes” in exit-online.org. Tradução de Boaventura Antunes (12/2024)

 

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