Prefácio
(Livro de Roswitha Scholz – 2025)
Os textos aqui reunidos são dos últimos 30 anos. Ilustram o desenvolvimento da crítica da dissociação-valor, uma orientação teórica marxista-feminista. A qual considera que as habituais ligações feministas às tendências marxistas existentes não são adequadas para compreender os actuais processos de crise que se estão a agravar no contexto das alterações sociais. A teoria da dissociação-valor parte do princípio de que as regressões actuais – não só da direita, mas também de uma esquerda marginalizada ou de um feminismo de esquerda baseado em concepções tradicionais e ultrapassadas do marxismo ou da teoria crítica – são elas próprias apenas um reflexo e parte integrante desta crise, conduzindo a tudo menos a transcender as condições existentes.
Os anos 90 foram o tempo do neoliberalismo e do capitalismo de casino. Após o colapso do bloco de Leste a teoria marxista já não tinha muito a dizer. Foucault, Butler & Cª marcaram o espírito do tempo. Esta situação alterou-se após uma série de crises, o colapso dos Pequenos Tigres, a crise das “dotcom” no início dos anos noventa e, finalmente, o crash financeiro de 2008. Hartz IV foi introduzido em meados da década iniciada em 2000. As dificuldades materiais passaram a estar no centro das atenções. Entretanto por toda a parte está a surgir uma crise fundamental, pelo que se fala de uma “policrise” (ecológica, económica, social e política). Sobretudo o crash financeiro de 2008 levou a que a teoria de Marx voltasse a ser cada vez mais recebida. Surgiram grupos de leitura de Marx; uma Nova Leitura de Marx e o marxismo ocidental conheceram um pequeno boom. A partir de meados da década iniciada em 2010, o mais tardar, a crise também afectou fortemente a ideologia. Foi fundada a AfD e os Pegida surgiram na Alemanha na sequência dos movimentos de refugiados.
Nos EUA Trump foi eleito pela segunda vez em 2024. Agora tenta-se enfrentar uma globalização descontrolada com medidas de desglobalização e ideias bizarras, como transformar a Palestina bombardeada numa Riviera, comprar a Gronelândia e coisas do género. Os cortes radicais nas despesas sociais são uma realidade, o que provavelmente agravará a crise. Na Alemanha a AfD tornou-se o segundo partido mais forte no Parlamento. Houve uma viragem à direita a nível mundial. Isto não caiu do céu. As tendências de direita, o autoritarismo, o nacionalismo, a defesa agressiva contra os refugiados etc. têm vindo a fazer-se sentir sobretudo desde o colapso do bloco de Leste, e estão agora a atingir o auge. As guerras (civis) estão a aumentar. As teorias da conspiração generalizaram-se, sobretudo após a pandemia de Covid-19.
A esquerda fracassou com os seus esforços nos anos 2010 (Syriza na Grécia, Podemos em Espanha, Chavez na Venezuela, etc.), ainda que o partido “Die Linke” na Alemanha represente actualmente um ponto focal de uma esquerda marginalizada e tenha ganho apoio recentemente. Uma das principais tendências do marxismo remanescente é a tentativa de se integrar de maneira populista no espírito do tempo. Este “novo” marxismo de luta de classes caracteriza-se pelo facto de colocar todos os tipos de grupos sociais (mulheres, homossexuais e transexuais, migrantes, pessoas racializadas, etc.) num contexto de classe, tentando subsumi-los ao conceito de classe, e/ou de declarar o sexismo e o racismo como contradições secundárias. Alguns não hesitam em recorrer a um anacrónico marxismo-leninismo. Por isso não é de estranhar que surjam “grupos vermelhos” que sucumbem ao “charme” autoritário dos falecidos marxismos tradicionais. “Back to the Roots” parece estar na ordem do dia para muita gente.
A posição apresentada nesta antologia segue um caminho diferente. Num esboço muito breve e de forma muito sucinta, preocupa-se com o seguinte: Para ela a classe operária e a sua integração no fordismo é parte integrante do capitalismo. Além disso nas últimas décadas o capitalismo evoluiu de uma sociedade industrial para uma sociedade de serviços com uma classe média alargada, em que especialmente as camadas baixas há muito que estão ameaçadas de declínio. Actualmente a camada baixa é composta predominantemente por mulheres e migrantes. É sobretudo a “contradição em processo” (Marx) que é decisiva para o desenvolvimento histórico. Por outras palavras, as medidas de racionalização combinadas com o aumento da produção levam à degradação, à exclusão e à superfluidade da força de trabalho. Actualmente muitos receiam tornar-se “associais” e cair fora. No entanto estas dimensões já não podem ser adequadamente captadas pelo conceito de classe. No essencial é também a “contradição em processo” que desencadeia uma dinâmica que conduz aos movimentos migratórios e à destruição ecológica, a colapsos como o de 2008 e, sim, à actual “policrise”, com os seus sinais gerais de decadência.
Contudo não basta definir como categorias básicas a mercadoria, o valor, o trabalho abstracto e o capital. A dissociação do feminino e das actividades reprodutivas (cuidado, amor, carinho, etc.), mesmo na sua forma profissional, também tem de ser igualmente tida em conta como categoria fundamental, em ligação dialéctica com o valor. A dissociação-valor como contexto basilar da sociedade capitalista-patriarcal (mundial) deve ser tomada como ponto de partida. Os aspectos culturais-simbólicos e psicossociais também devem ser considerados. Neste contexto, o racismo, o anti-semitismo, a transfobia e a homofobia, bem como o anticiganismo quase sempre criminosamente negligenciado, devem também ser analisados na sua lógica própria, sem os degradar a contradições secundárias, mas também sem cair num reducionismo político-identitário rejeitando o contexto da forma social. Há que insistir na definição de um contexto da forma no sentido da teoria da dissociação-valor, ainda que isso passe sempre por reconhecer o que nele não cabe e dar espaço a diferentes níveis e fenómenos com as suas diferentes lógicas. É sobretudo isto que distingue esta abordagem teórica de um marxismo da luta de classes e das contradições secundárias, em que mesmo as abordagens feministas baseadas na Teoria Crítica de Adorno correm o risco de recair actualmente.
O complexo e contraditório contexto da dissociação-valor como princípio da forma social é tratado na primeira parte. A segunda parte trata de problemas mais específicos, nomeadamente as dimensões de desigualdade e discriminação, da desigualdade de classe/social e económica, de anticiganismo, homofobia e transfobia. A deficiência e a doença mental são desideratos que precisam de ser trabalhados em projectos de seguimento (Andreas Urban trabalhou a dimensão da velhice no contexto da crítica da dissociação-valor, in: exit! nº 15 & 17). A terceira parte é composta por dois ensaios que abordam o tema da regressão. Entre outras coisas, torna-se aqui claro que o anti-semitismo estrutural já era perceptível no auge da especulação nos anos 90 e que o recurso a um marxismo tradicional tornado anacrónico já era visível na primeira década deste século, tendências que se acentuaram desde então. Em rigor o termo regressão é incorrecto, na medida em que o sexismo, o racismo, o anti-semitismo etc. se manifestaram “no centro” da sociedade durante décadas, antes de culminarem nos movimentos de massas da actual direita; no entanto, deve ser utilizado aqui devido ao amplo impacto que teve desde meados da década de 2010, uma vez que o ressentimento contra as mulheres e as minorias atingiu uma nova qualidade desde então. Por isso se fala actualmente de uma “grande regressão” (Heinrich Geiselberger). Um dos objectivos desta antologia é contrariar maciçamente tais tendências. Por fim, na última e quarta parte são analisadas as concepções feministas e interseccionais mais recentes que, ao contrário da crítica da dissociação-valor, estão muitas vezes presas a um entendimento tradicional e anacrónico do marxismo, a meu ver regressivo.
Refira-se também que as repetições nesta antologia são inevitáveis, uma vez que os pressupostos basilares centrais da crítica da dissociação-valor têm de ser primeiro tornados transparentes em diferentes contextos e em relação a diferentes temas com as suas lógicas próprias, a fim de se poder mostrar a ligação aos respectivos temas de forma compreensível.
Roswitha Scholz, Março de 2025
Original “Vorwort (Buch von Roswitha Scholz – 2025)” in exit-online.org, 25.03.2025