Roswitha Scholz
O Sexo do Capitalismo
Teorias Feministas e a Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado
[Excertos]
Das Geschlecht des Kapitalismus
Feministische Theorie und die postmoderne Metamorphose des Patriarchats
HORLEMANN
edition krisis
À minha mãe Elisabeth Scholz
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ISBN 3-89502-100-8
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ÍNDICE
Introdução: Sobre o problema da culturalização do social desde os anos oitenta
Primeira Parte: Sobre o conceito de valor e dissociação-valor
Segunda Parte: Abordagens teóricas feministas
I. "Mulheres e desclassificação" à escala universal (R. Becker-Schmidt)
Forma da mercadoria e forma do pensamento * Troca de mulheres e lógica da identidade * O androcentrismo como fenómeno psicogenético de base
II. O sexo no patriarcado produtor de mercadorias
1. "Profissão e trabalho doméstico" em E. Beck-Gernsheim/I. Ostner
A produção da (dupla) sexualidade, o inconsciente social androcêntrico e a justificação relativa da abordagem de Beck-Gernsheim/Ostner * Valor de Uso – Valor de Troca, Masculinidade e Feminilidade.
2. A relação de género como contexto social estrutural em R. Becker-Schmidt/G.-A. Knapp e em U. Beer
a) O género em Becker-Schmidt/Knapp
Dupla socialização e género como categoria social estrutural * Dupla socialização como resistência? * A crítica da lógica da identidade como "método" e a essência do patriarcado produtor de mercadorias * O todo social e a relação de género * Troca, trabalho, dinheiro e género
b) A relação de género em U. Beer
3. Relações de género como relações de produção (Frigga Haug)
O patriarcado capitalista como modelo de civilização * Trabalho remunerado – trabalho doméstico e a metafísica do trabalho em F. Haug * A lógica de poupar tempo e a lógica de gastar tempo * A ordem simbólica do patriarcado capitalista
III. Observações finais sobre as diversas concepções teóricas
Terceira Parte: A teoria da dissociação-valor modificada
Quarta Parte: Relações de género e pós-modernidade à escala universal – O asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias
I. A "pequena trabalhadora independente" (Irmgard Schultz)
II. "Juchitan" – um caso especial do patriarcado produtor de mercadorias? Uma alternativa ao patriarcado produtor de mercadorias? (V. Bennholdt-Thomsen & Cª)
III. Adeus patriarcado, aliás, adeus heterossexualidade? (Christel Dormagen)
IV. Globalização pós-moderna e concepções feministas da acção
1. Diferenças entre mulheres, política de alianças e redes de mulheres no contexto internacional
2. Concepções de acção nacionais e internacionais; visões de subsistência e de trabalho autónomo
Concepções de acção nacionais e internacionais * Visões de subsistência e de trabalho autónomo
Quinta Parte: Algumas teses finais (anti)metódicas
Sobre o problema da culturalização do social desde os anos oitenta
Bibliografia
Introdução:
Sobre o problema da culturalização do social desde os anos oitenta
A teoria de Marx não desempenha qualquer papel de relevo no feminismo, pelo menos desde a queda do bloco de Leste. Parecem pertencer ao passado questões que até meados dos anos oitenta ainda marcavam a discussão (por exemplo: Como ligar organicamente a "questão da mulher", a relação assimétrica de género com a concepção de Marx? Como romper a neutralidade sexual das categorias marxianas? Que desenvolvimentos teóricos são para isso necessários?). Precisamente numa época em que grandes crises sociais, económicas e ecológicas literalmente abalam o mundo, em que inúmeras guerras civis marcam o quotidiano global e a situação social se agudiza cada vez mais, em que os fundamentalismos étnicos e os nacionalismos há muito vêm dando que falar, em que prossegue a destruição das bases naturais pela lógica dos custos da economia empresarial e espreita a ameaça dum crash financeiro, precisamente nesta época, caíram em descrédito as grandes teorias, que poderiam aclarar conceptualmente a situação de crise global.
O declínio do "socialismo realmente existente" leva muitas vezes à conclusão errónea de que a construção teórica de Marx já está toda ela quase no fim. Os anos noventa foram marcados por uma "culturalização do social" que se exprime, por exemplo, na re-etnicização que acompanha as novas tendências bárbaras, mas também na moda das abordagens (des)construcionistas, e não só no feminismo.
Mesmo entre não poucos restos de oposição, em vez de se procurar um novo entendimento da totalidade, mais frutífero que o do velho marxismo e bem necessário para abordar os novos desenvolvimentos da crise no "one world", volta-se a agarrar os modelos culturalistas que constituíram uma importante tendência na elaboração teórica na década de noventa.
É o que acontece, por exemplo, não apenas nos meios feministas e pós-modernos, mas também nas posições de esquerda influenciadas pelo pós-estruturalismo, que contrapõem ao ponto de vista desconstrucionista uma (nova) construção de "identidades", como é o caso da "identidade étnica". Deste modo se procura fazer face à nova barbárie, que radica numa reaccionária ideologia comunitária, recorrendo à diferença, à particularidade do individual etc.
Certamente que as intenções são boas. Apesar disso, as pessoas movimentam-se na mesma base e no mesmo nível (teóricos) que os próprios fenómenos, situações e ideologias denunciados, a saber, no nível cultural. Para mais, não se reconhece aqui a dialéctica entre a individualização amplamente desenvolvida na pós-modernidade, que corresponde à teoria e à prática neoliberais (mesmo que seja na variante social-democrata), e a orientação para a comunidade simultaneamente manifestada; pois, recorrendo repetidamente ao diferente, ao individual, ao particular, contra a nação, a etnia, entre outros, luta-se de facto pelo neoliberalismo, mesmo que isso não seja subjectivamente pretendido. Em certo sentido, assim se procura fatalmente combater a situação dada com os seus próprios meios. Mesmo entre os marginais discursos marxistas dos anos noventa conquistaram um lugar central "marxistas culturais" como Gramsci ou Althusser.
Só mais recentemente se têm feito ouvir de novo os apelos no sentido de que devia ser tida em maior consideração a dimensão da teoria social – até mesmo entre teóricas pós-modernas (cf. Knapp, 1998 a, p. 66). E também no discurso (feminista) sobre a globalização a teoria de Marx desempenha novamente um certo papel, ainda que na maior parte das vezes servindo apenas como pano de fundo, em versão domesticada pela teoria da regulação e/ou pelo keynesianismo. Esta reconsideração tem provavelmente algo a ver com a viragem para verde-rubro, que já se anunciava há alguns anos no ambiente público. Mas há muito se tornou evidente que não se pretende com esta mudança voltar atrás da viragem neoliberal, mas se procura, na melhor das hipóteses, voltar a introduzir na garrafa o génio neoliberal com base naquilo que lhe é essencial. É na armadilha desta contradição que se enreda actualmente o governo verde-rubro.
Ora naturalmente que não se pode ignorar sem mais as objecções pós-modernas. Nos últimos trinta anos, na senda de uma generalizada informatização, mediatização e comercialização, ocorreu uma mudança social que é habitualmente descrita com concepções sociológicas como "individualização", "libertação dos papéis (sexuais) tradicionais", "flexibilização das biografias", "pluralização dos universos e dos estilos de vida". As "diferenças" – sejam elas individuais, "étnicas" ou sexuais – ganharam cada vez mais importância, mediadas neste contexto com a dimensão estética e dos símbolos culturais. As concepções pós-modernas e pós-estruturalistas, porém, não reflectem este desenvolvimento criticamente (como seria necessário, a meu ver), mas de forma acentuadamente positiva. Contudo, nos anos noventa abalados pela crise, já ficou claro onde pode levar esta orientação para a diferença, numa situação de aguda concorrência a nível mundial: (etno)fundamentalismo, nacionalismo, racismo e anti-semitismo.
Do meu ponto de vista, nem os sujeitos modernos com as suas identidades (sexuais) fixas nem os indivíduos flexíveis pós-modernos podem ser contrapostos uns aos outros, como de algum modo melhores ou piores; sendo formas de sujeito patriarcalmente estruturadas na forma da mercadoria, nem uns nem outros podem deixar de ser denunciados. O novo sujeito flexível compulsivo, inapelavelmente exigido pelo capitalismo de casino pós-moderno, não é senão a continuação do sujeito moderno numa forma fragmentada, continuando a exigir uma superação emancipatória.
Como é sabido, o marxismo tradicional mainstream ignorava por princípio o nível dos símbolos culturais e as dimensões conexas da realidade social. Nesta crítica sem dúvida que os pós-modernos têm razão. Mas a hipóstase do "cultural" desde os anos oitenta, em estreita ligação com as tendências de individualização pós-modernas, apoia os actuais desenvolvimentos bárbaros, e há muito vem impossibilitando a abordagem dos desenvolvimentos económico-sociais, a meu ver amargamente necessária, justamente na era da globalização.
Nestas circunstâncias, seria importante assumir na elaboração teórica os momentos pertinentes de certa negação na argumentação culturalista, não enfática e espectacularmente, pelo contrário, abandonando certa gritaria mercantil do culturalismo pós-moderno, que por vezes se ouve repetidamente em círculos da esquerda pós-moderna contra a "velha esquerda" e o "velho feminismo".
Portanto, não se pode aderir à identidade moderna, nem à não-identidade ou às diferenças pós-modernas; nem à grande teoria, nem ao registo científico e/ou pós-moderno das diferenças, ao espectáculo do individual/particular (porventura com fundamentação pós-estruturalista). Trata-se, sim, de suportar a tensão entre ambos e torná-la teoricamente frutífera, sendo que também a colocação histórica de determinadas questões (por exemplo, a questão das diferenças na pós-modernidade no quadro duma reflexão crítica) teria de ser conseguida num metanível de "grande teoria". Trata-se, portanto, duma elaboração teórica que não se esquiva à "grande narrativa", nem a aceitar uma "essência" social, que no marxismo tradicional é vista na troca ou no valor (mais-valia). Neste contexto, também devem ser tidas em conta as tendências da globalização dos últimos anos, incluindo as estratégias imanentes de pseudo-solução que lhe estão associadas; quer se trate, no caso, de redespertadas ilusões neokeynesianas, de planos de acção da sociedade civil em termos internacionalistas, ou até de visões regressivas de subsistência / de trabalho autónomo.
À luz deste breve esboço do problema, gostaria agora de tentar relacionar a temática da relação hierárquica de género na sua multidimensionalidade teórica com as hipóteses fundamentais da crítica do valor, ou seja, considerando teoricamente tanto o nível material como o nível cultural-simbólico, e também o nível psicossocial. Aqui está no centro das minhas reflexões a "tese da dissociação-valor" (1) estabelecida já em artigos anteriores (ver sobre o assunto sobretudo Scholz, 1992). No desenvolvimento da minha argumentação, será inevitavelmente evidenciado o questionamento do (grande) conceito "desde sempre" inerente a este teorema, insistindo simultaneamente na crítica radical da totalidade social.
A "teoria crítica" da Escola de Frankfurt no sentido de Adorno continua a ser aqui um ponto de referência central, pois tematizou em termos de filosofia social o "não-idêntico", a diferença, o particular etc. que não cabem na dialéctica hegeliana, muito antes de se ouvir falar por todo o lado em feminismo e "pós-modernidade". Ao mesmo tempo, esta teoria adere intransigentemente à ideia de totalidade; e no fundamental criticamente, ao contrário duma ideia de mero reformismo social (por exemplo, keynesiana). Para esta teoria a totalidade já é per se totalidade negativa. Naturalmente que não se trata de assumir a teoria crítica de modo dogmático e sem qualquer alteração: este pensamento também não pode permanecer completamente poupado à crítica por uma observação hodierna, uma vez que o desenvolvimento social também continuou depois de Adorno & Cª.
Por outro lado, adiro ao entendimento do valor crítico da economia da "crítica do valor fundamental" que tem sido desenvolvido pela revista "Krisis" (2); penso, no entanto, modificar este entendimento em termos de crítica do patriarcado. A "crítica do valor fundamental" difere do marxismo do movimento operário sobretudo por não se limitar a considerar escandalosa a "mais-valia", mas questionar a própria forma da mercadoria como princípio da socialização da moderna sociedade mundial. Isto inclui a demarcação dos marxismos tradicionais que, numa redução sociológica, fazem da categoria "classe operária" a questão principal, e para os quais se trata apenas da justiça distributiva no interior do sistema produtor de mercadorias.
Com isto não se quer dizer que as disparidades sociais deixem de ser denunciadas, antes pelo contrário, mas essa denúncia não se processa na base da ideia tradicional das classes, que aliás já não tem importância na era da globalização. Aqui não apenas se considera o desenvolvimento ocidental mediado pela forma da mercadoria, mas também se conceptualiza o desbotado socialismo do bloco de Leste, como sistema produtor de mercadorias específico de uma "modernização atrasada". A própria relação de classes tradicional foi apenas um momento da imposição do sistema produtor de mercadorias. Nestes termos, o que está em discussão é a forma da mercadoria, o trabalho abstracto, o dinheiro, o valor em geral. Entretanto, há muito que se viu que é precisamente esta perspectiva que tem poder explicativo na previsão do desenvolvimento global (cf. Kurz, 1991).
O meu desejo é sintetizar na tese da dissociação-valor o conceito de valor da "crítica do valor fundamental" com a teoria social da Escola de Frankfurt, numa perspectiva de crítica do patriarcado. Ora, a tese da dissociação-valor, em síntese, afirma que o feminino, o trabalho doméstico etc. sofre uma "dissociação" do valor, do trabalho abstracto e das formas de racionalidade que lhe estão associadas, sendo que determinadas qualidades com conotação feminina como sensibilidade, emocionalidade etc. são atribuídas à mulher; o homem, pelo contrário, representa a força do entendimento, a fortaleza de carácter, a coragem etc. No desenvolvimento moderno, o homem foi equiparado com a cultura; a mulher, com a natureza. Valor e dissociação estão aqui numa relação dialéctica recíproca.
Abstraindo das explanações sobre a relação nuclear entre valor de troca e valor de uso / consumo do valor de uso / dissociação do feminino feitas em textos anteriores, ainda que de forma sintética, mas em todo o caso exacta (vd. Kurz, 1992), pelo que a pesquisa subsequente já não tem de ser feita como numa página em branco, temos de concluir que a tese da dissociação-valor, como teoria, apenas foi abordada de passagem até hoje. Por isso pretendo fundamentá-la melhor teoricamente e ao mesmo tempo desenvolvê-la mais na segunda parte deste texto. O que se fará, sobretudo, em debate com os destacados ensaios teóricos de Regina Becker-Schmidt/Gudrun-Axeli Knapp, Elisabeth Beck-Gernsheim/Ilona Ostner e Frigga Haug, que marcaram decisivamente o debate teórico do feminismo marxista no espaço de língua alemã nos últimos 20 anos.
Outro objectivo deste trabalho é mostrar simultaneamente que com base na dissociação-valor se abre uma via qualitativamente nova de crítica do patriarcado, que faz surgir a uma nova luz projectos teóricos em discussão, como a relação de género na modernidade e na pós-modernidade em geral. Neste contexto deve ficar claro sobretudo que a elaboração teórica feminista, ao recorrer criticamente à Escola de Frankfurt, também pode chegar a uma concepção completamente diferente da obtida por Becker-Schmidt.
Uma vez que, em parte, apenas a leitura de todas estas abordagens teóricas me levou à ideia de dissociação, ainda que elas continuem ligadas às velhas ideias marxistas cada uma à sua maneira, tenho em vista salientar não apenas as diferenças em relação a elas. Onde for oportuna a crítica, ela será feita sem hesitações; onde houver afinidades, serão postas à vista. Pois, como se pode perceber, o estímulo para a tese da dissociação não partiu dos homens marxistas que representam a "crítica do valor fundamental" (cujos autores e actuais suportes continuam a ser em primeira linha homens). Pelo contrário, a perspectiva da dissociação-valor teve primeiro de se fazer ouvir junto deles a muito custo.
Na terceira parte tiro depois uma espécie de conclusões, e saliento mais uma vez, ponto por ponto, que novos aspectos e desenvolvimentos resultaram para a tese da dissociação-valor da minha passagem pelas teorias, na tensão entre a crítica e o recurso às diversas concepções teóricas. Naturalmente que com isto não fica dita a última palavra, pelo contrário, apenas é formulado um programa de pesquisa a desenvolver em projectos posteriores.
Sobretudo na quarta parte vou entrar na relação de género na pós-modernidade / na era da globalização à escala mundial, construindo sobre as minhas anteriores reflexões e resultados, recorrendo às investigações/trabalhos de Irmgard Schultz, Veronika Bennholdt-Thomsen entre outras e sobretudo de Christel Dormagen. Até ao início dos anos noventa, tanto quanto me é dado ver, foi Irmgard Schultz que pela primeira vez pôs em dia exaustivamente a discussão feminista com o tema da "globalização". Uma vez que as publicações sobre este tema entretanto surgidas aos montes confirmam no essencial as suas exposições, limito-me apenas a completar estas com os mais recentes resultados na segunda parte dos anos noventa.
Tem de se dar a esta temática um espaço maior, não em último lugar também pelas seguintes razões: por um lado, já foi frequentemente objectado à posição da dissociação-valor que ela apenas poderia referir-se à relação de género moderna; mostrarei que, pelo contrário, esta perspectiva teórica reúne muito bem forças para dar resposta às questões da relação de género pós-moderna. Por outro lado, parece-me que a avaliação da relação entre género e pós-modernidade/globalização no feminismo apresenta geralmente particulares dificuldades. As posições movem-se entre dois pólos: o "apesar de todas as mudanças nos últimos 30 anos nada mudou no fundamental" e a festa do "fim do patriarcado" (como em Libreria delle donne di Milano, 1996). Diferentemente destas posições, defendo a tese de um asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias na pós-modernidade tardia. As reflexões de Schultz e de outras peritas em globalização por mim aqui referidas sugerem tal conclusão; ainda que estas autoras não a tirem.
Outra tese central que igualmente obtive (recorrendo a Schultz, entre outras) afirma que na pós-modernidade neoliberal são exigidas identidades flexíveis compulsivas, que continuam a ter como antes a marca da especificação e da hierarquização de género. Nesta perspectiva, a má realidade patriarcal é apoiada não são só pelas concepções "essencialistas" da "nova feminilidade", mas também pelas abordagens "anti-essencialistas" que criticam as ideias sexuais rígidas e as identidades sexuais tradicionais, por exemplo, com intuito desconstrucionista.
A fechar a quarta parte reporto-me ainda a diferentes concepções de acção, que procuram dar respostas à problemática da globalização e se baseiam frequentemente na ideia de aliança ou de rede. Aqui gostaria sobretudo de demonstrar que nem as ideias keynesianas / de Estado nacional, nem as ideias de sociedade civil / internacionalistas, nem sequer as ideias de "trabalho autónomo" ou de subsistência contrapuseram algo de realmente substancial ao asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias, com as suas identidades flexíveis compulsivas específicas de género. Isto aplica-se não apenas à relação de género em sentido estrito, mas a todo o entretanto desolado sistema patriarcal capitalista, cujos limites económicos, sociais e ecológicos há muito se tornaram ostensivamente evidentes.
Para concluir mesmo, volto a entrar explicitamente no meu procedimento anterior. Já antes, mas particularmente nestas teses conclusivas (anti)metódicas, deve ficar claro mais uma vez – em demarcação, designadamente, das posições do feminismo teórico que "usam" o método de Adorno primariamente ao nível superficial da sociologia, e por isso a meu ver de modo positivista – que a posição da dissociação-valor evita tal procedimento, sem que por isso tenha de cair numa bravata infundada.
No fundo, apenas nas teses conclusivas (anti)metódicas ficará perfeitamente claro onde vão dar as minhas reflexões. Por isso é preciso aconselhar o leitor / a leitora a estudar o meu texto do princípio ao fim. Neste contexto gostaria também de desiludir desde já as esperanças dos que anseiam por uma concepção "perfeita", que consiga juntar sistemática e rigorosamente a dimensão material, a cultural-simbólica e a psicossocial sob o chapéu da dissociação-valor – se possível ainda escalonadas de acordo com hierarquias de concreção: de certa maneira boa e prática ao quadrado. Pelo contrário, o objectivo da crítica da dissociação-valor, que já se reconhece sempre como preliminar e limitada, é precisamente, de acordo com o seu próprio conteúdo, frustrar tal tipo de impertinência (sem perder a perspectiva da totalidade, como já foi dito), mesmo que isso possa desassossegar algumas leitoras e leitores.
Uma arquitectura teórica assim complexa, que considero necessária, também exige obviamente um estilo a condizer. A quem repugnam as frases longas; para quem são insuportáveis voltas e reviravoltas, numa argumentação difícil conclusivamente inconclusiva ou inconclusivamente conclusiva; quem pensa que a uma pergunta se deve seguir a resposta logo na frase seguinte, sem conseguir esperar pacientemente pelo seu desenvolvimento; para quem a ideia é: "se não consegues exprimir a tua opinião em três frases, esquece"; quem pretende "engolir" ensaios teóricos sem os digerir e estudar; quem gostaria de ler o meu texto na praia; em resumo, quem gostaria de um "hamburger de teoria" é melhor pôr o livro já de parte, senão vai sofrer uma desilusão.
Neste contexto também não posso nem quero renunciar aos caprichos da expressão, e considero perfeitamente toleráveis as rupturas estilísticas ou os rodeios na argumentação. Também isso corresponde ao conteúdo da tese da dissociação-valor, que torna claro que nem tudo se enquadra no valor, no conceito, na estrutura com a "lógica da identidade" (Adorno). Não sou nenhum "alfaiate mé-mé-mé, atrás do girar do moinho da publicação formal", (3) no qual é preciso escamotear tudo o que sobressai e não corresponde às leis gerais do estilo. Também neste ponto forma e conteúdo são inseparáveis. Após a leitura da primeira versão deste texto, apesar da complexidade do tema, foi-me sugerida uma construção de frase descomplicada, curtos resumos apetecíveis sempre por dentro da coisa e o lema focado no mercado de "pensar sempre no leitor" (é quando se desiste de "factos, factos, factos" que de algum modo se interioriza a crítica do positivismo de Adorno), e não foi só por candidatos à carreira universitária prejudicados com a tese de doutoramento.
Dito isto, gostaria agora, na primeira parte, de repetir mais uma vez aspectos centrais da tese da dissociação-valor já apresentados em artigos anteriores, como pressuposto para de seguida os poder fundamentar melhor e simultaneamente também aprofundar, no confronto com outros projectos teóricos.
Primeira Parte: Sobre o conceito de valor e dissociação-valor
Para melhor explicar o significado de "dissociação-valor", convém esclarecer primeiro o conceito androcêntrico de valor, no sentido da "crítica do valor fundamental" a que adiro criticamente. Em geral o conceito de valor é assumido positivamente, seja no marxismo tradicional, no feminismo ou na economia política, onde ele aparece como simples objecto da sociedade humana, sem pressupostos e trans-histórico, por exemplo na forma dos preços. Não assim na "crítica do valor fundamental". Aqui o valor é entendido e criticado como expressão duma relação social fetichista. Sob as condições da produção de mercadorias para mercados anónimos, os membros da sociedade não utilizam os seus recursos de comum acordo para a conveniente reprodução das suas vidas, mas, isolados entre si, produzem mercadorias que só se tornam produtos sociais através da troca no mercado. As mercadorias são "valor" porque "representam" "trabalho passado" (dispêndio de energia social humana abstracta), ou seja, elas representam uma determinada quantidade da energia social despendida. Esta representação exprime-se por sua vez num meio particular, o dinheiro, que é a forma geral do valor para todo o universo das mercadorias.
A relação social mediada por esta forma põe de pernas para o ar as relações entre as pessoas e os produtos materiais: os membros da sociedade, sendo pessoas, aparecem como associais, como simples produtores privados e indivíduos sem relações; o relacionamento social apresenta-se, pelo contrário, como relação de objectos, de coisas mortas, postas em relação entre si na base da quantidade abstracta de valor que representam. As pessoas são objectivadas e as coisas quase que personificadas. Cria-se uma alienação recíproca dos membros da sociedade, que não utilizam os seus recursos de acordo com decisões comuns conscientes, mas se submetem a uma relação cega entre coisas mortas – os seus próprios produtos – comandada pela forma do dinheiro. É assim que ocorrem sucessivos erros na utilização dos recursos, crises e catástrofes sociais.
A crítica deste fetichismo, que subordina os seres humanos enquanto seres sociais às relações dos seus próprios produtos, deve então começar logo ao nível da produção de mercadorias, do valor, do trabalho abstracto e da forma do dinheiro. Foi precisamente aqui que a teorização marxista até hoje fracassou, ao expulsar para o domínio filosófico esta autêntica radicalidade da teoria de Marx, sem ser capaz de rebentar teoricamente a prisão categorial do moderno sistema produtor de mercadorias (em todas as suas formações historicamente não simultâneas) na teoria social concreta, ou seja, em sentido económico e social. Para a "crítica do valor fundamental", pelo contrário, o importante é desvendar este núcleo escondido da crítica da economia política, e tornar consciente o carácter fetichista negativo da forma aparentemente natural do valor, para chegar a uma reformulação da crítica social radical: "Como mercadorias, os produtos são coisas-valor abstractas, sem qualidades sensíveis e só são transmitidas socialmente nesta estranha figura. No contexto da crítica da economia política de Marx, este valor económico é determinado de modo puramente negativo, como forma de representação coisificada, fetichista, desligada de qualquer conteúdo sensível concreto, abstracta e morta do trabalho social passado nos produtos, que se desenvolve num permanente movimento da forma das relações de troca, até ao dinheiro, a 'coisa abstracta'" (Kurz, 1991, p. 16s.).
No entanto este fetichismo específico da forma da mercadoria, como princípio geral e dominante da socialização, só se encontra no moderno sistema produtor de mercadorias. Só o capitalismo moderno é que criou uma forma da mercadoria orientada para mercados anónimos, desligada e autonomizada do resto da vida e das outras formas de relacionamento, e que simultaneamente domina o processo da vida social. Antes produzia-se primeiramente para uso, não só nos contextos agrários, mas também nas corporações regidas por leis corporativas especiais. Mesmo o conceito de "totalidade" social só pôde surgir com este domínio realmente totalitário da forma da mercadoria e do dinheiro sobre a sociedade. A produção de mercadorias, as relações monetárias e a "economia de mercado", como contexto sistémico geral, só nasceram porque o valor, e com ele a sua forma de manifestação, o dinheiro, se transformaram, de um simples meio que mediava produtores realmente independentes (economia familiar etc.), num fim-em-si social universal: o dinheiro entrou em feedback consigo mesmo como capital para se "valorizar", ou seja, para fazer do dinheiro "mais dinheiro" (mais-valia) num processo imparável.
Há duas condições constitutivas desta "valorização do valor" capitalistamente produtiva, que distinguem este modo de produção capitalista de qualquer produção de mercadorias pré-moderna. Em primeiro lugar, a produção de bens de uso, que nas condições pré-capitalistas era ainda o sentido óbvio da produção, torna-se agora um mero suporte da abstracção valor, e com isso a satisfação das necessidades humanas torna-se um mero "subproduto" da acumulação de capital monetário. Ocorre assim uma inversão entre fim e meio: "O fetichismo tornou-se auto-reflexivo e assim constitui o trabalho abstracto como máquina de fim-em-si. Ele agora já não 'acaba' no valor de uso, mas apresenta-se como automovimento do dinheiro, como transformação de um quantum de trabalho morto e abstracto noutro quantum maior de trabalho morto e abstracto (mais-valia), e portanto como movimento de reprodução e auto-reflexão tautológicos do dinheiro, o qual apenas nesta forma se torna capital, ou seja, moderno" (Kurz, 1991, p. 18).
Em segundo lugar, a própria força de trabalho humana tem de se tornar uma mercadoria. Expropriada de qualquer acesso autónomo e voluntário aos recursos, uma parte cada vez maior da sociedade foi sendo submetida ao jugo dos "mercados de trabalho", ficando a capacidade humana de produção fundamentalmente heterodeterminada. Só nestas condições a actividade produtiva se tornou "trabalho abstracto", que mais não é que a forma de actividade específica do fim-em-si abstracto da multiplicação do dinheiro no espaço funcional da "economia empresarial" capitalista, ou seja, separada do contexto da vida e das necessidades dos próprios produtores.
Com o desenvolvimento do capitalismo, toda a vida individual e social sobre a Terra é moldada pelo automovimento do dinheiro, sendo que "o trabalho vivo já só (aparece) como expressão do trabalho morto autonomizado" e o trabalho (abstracto), nascido apenas no capitalismo, é agora considerado a-historicamente como um princípio ontológico (Kurz, 1991, p. 18s.).
A visão redutora do marxismo do movimento operário tradicional sobre este contexto sistémico consistia em criticar a "mais-valia" num sentido meramente superficial e sociológico, designadamente a sua "apropriação" pela "classe dos capitalistas". O pomo da discórdia não era a forma do valor em feedback fetichista consigo mesmo, mas apenas a sua "distribuição desigual". Precisamente por isso, segundo os representantes da "crítica do valor fundamental", este "marxismo do trabalho" também permaneceu confinado à ideologia duma simples "justiça distributiva".
O problema é o absurdo fim-em-si da forma totalitária da mercadoria e do dinheiro, sendo que a "distribuição justa" no interior desta forma permanece submetida às leis do sistema e portanto às restrições sistémicas, ou seja, é uma pura ilusão. Uma mera redistribuição na forma da mercadoria, do valor e do dinheiro, seja qual for a modalidade, não pode evitar as crises, nem acabar com a pobreza global gerada pelo capitalismo. O problema decisivo não é como sacar a riqueza abstracta na forma insuperada do dinheiro, mas é essa mesma forma.
Por isso o antigo movimento operário, com a sua redutora "crítica do capitalismo" nas categorias não ultrapassadas do próprio capitalismo, só pôde conseguir melhorias e consolações efémeras, imanentes ao sistema, que hoje são outra vez aniquiladas passo a passo, na crise do sistema produtor de mercadorias. O marxismo tradicional e a esquerda política em geral adoptaram todas as categorias fundamentais da socialização capitalista, particularmente o "trabalho" abstracto e o valor como suposto princípio geral trans-histórico, e por conseguinte também a forma da mercadoria e do dinheiro, como forma de relacionamento geral, e o mercado anónimo universal, como esfera da mediação social fetichista etc., enquanto a miséria e a alienação que acompanham o contexto sistémico destas categorias deveriam ser supostamente remediadas com intervenções políticas externas – uma ilusão ainda hoje repetidamente requentada na mistela keynesiana (de esquerda).
Um sistema de transição relativamente autónomo apenas pôde surgir na história da imposição do capitalismo com a legitimação desta ideologia nas sociedades retardatárias historicamente dessincronizadas da moderna produção de mercadorias; nomeadamente naquela "modernização atrasada" em formas de capitalismo de Estado que foi (mal) interpretada como "contra-sistema socialista", apesar de em lado nenhum ter surgido da crise de amadurecimento de um capitalismo desenvolvido, tendo este paradigma sido dominante, pelo contrário, apenas durante algumas décadas nas sociedades "subdesenvolvidas" do ponto de vista capitalista na periferia do mercado mundial (Rússia, China, Terceiro Mundo). Como nestas sociedades também havia um sistema produtor de mercadorias, ainda que "atrasado", nelas vigorava necessariamente a dinâmica capitalista mercadoria-dinheiro da mediação anónima do mercado (que já inclui sempre o princípio da concorrência), ainda que de maneira diferente do Ocidente, uma vez que aqui era o próprio Estado a assumir o papel de empresário colectivo.
E também foi esta dinâmica da forma abstracta do valor, também nos Estados do bloco de Leste em feedback consigo mesma, que afinal fez cair – por meio dos processos do mercado mundial e da corrida do desenvolvimento das forças produtivas – o "socialismo realmente existente" (aliás, capitalismo de Estado), e levou aos cenários de crise e guerra civil dos anos noventa por todo o mundo. Com o colapso da "modernização atrasada" não se abriram obviamente quaisquer "perspectivas de reforma", para a passagem à "economia de mercado e democracia" (como entretanto é conhecido o capitalismo original ocidental até no jargão da esquerda conformista), mas apenas e ainda as "perspectivas" da barbárie, a serem mantidos o sistema produtor de mercadorias e os seus critérios.
Nos anos oitenta já se dissiparam as esperanças de melhores condições de vida também no "Terceiro Mundo". A perspectiva do chamado "desenvolvimento", pensado já sempre de modo fetichista na forma da mercadoria, que ainda tinha marcado o espírito do tempo (ligado a uma euforia de modernização) até meados dos anos setenta, pareceu temporariamente solucionável através do crédito. Mas nos anos oitenta colapsou também esta concepção limitada ao quadro do sistema mundial capitalista, e muitos países do Terceiro Mundo caíram na miséria, sob a pressão neoliberal que levou, por exemplo, ao endividamento junto do FMI e do Banco Mundial. A pretexto do reembolso do crédito junto destas instituições, chegou-se aos eufemisticamente chamados "processos de ajustamento estrutural" e à drástica degradação da situação social da maioria da população. Entretanto é previsível que estas precárias condições de vida se vão expandir, até nas nações ocidentais altamente industrializadas. O valor, o trabalho abstracto, a mediação da forma da mercadoria na base do fim-em-si capitalista tornam-se completamente obsoletos; o "colapso da modernização" (Kurz, 1991) mostra-se cada vez mais evidente.
O paradoxo da situação pós-moderna está em que o capitalismo, por um lado, torna-se incapaz de assegurar a reprodução da humanidade (mesmo segundo os seus próprios critérios, em todo o caso inaceitáveis); por outro lado, porém, os paradigmas habituais duma redutora "crítica do capitalismo" categorialmente presa às formas do sistema produtor de mercadorias (seja do antigo marxismo do movimento operário, do keynesianismo ou do anti-imperialismo da "revolução-nacional") simplesmente não levam a nada. As disparidades sociais não desapareceram, pelo contrário, agravaram-se dramaticamente; mas já não podem ser representadas nos conceitos da "mais-valia usurpada", ou seja, no sentido de um entendimento meramente sociológico das "relações de classe" ou das "relações de dependência nacional".
Mas esta visão da "crítica do valor fundamental", por mais lógica que se apresente e por mais plausível que seja a sua explicação de muitos fenómenos da presente crise mundial, permanece nesta sua lógica indiferente à relação de género. Percebe-se de imediato que aqui só o valor e neste contexto o "trabalho abstracto" ascendem de modo sexualmente neutro às honras da teoria, mesmo que apenas como objecto de uma crítica radical. Continua a não se ter em conta que no sistema produtor de mercadorias também tem de ser feita a lida da casa, tem de se educar os filhos, cuidar dos doentes e incapazes etc., tarefas que habitualmente são atribuídas às mulheres (mesmo tendo elas actividade remunerada) e não podem ser, pelo menos exclusivamente, "tratadas" de modo profissional (ver sobre o que segue Kurz, 1992, p. 135s. e 155s.; Scholz, 1992).
O conjunto do relacionamento social no capitalismo, contudo, não se determina somente pelo automovimento fetichista do dinheiro e pelo carácter de fim-em-si do trabalho abstracto. Pelo contrário, verifica-se uma "dissociação" específica de género que é dialecticamente mediada com o valor. O dissociado não é nenhum simples "sub-sistema" desta forma (como por exemplo o comércio externo, o sistema jurídico ou até a política), mas é essencial e constitutivo da relação social total. Isto significa que não há nenhuma "relação de derivação" logicamente imanente entre valor e dissociação. A dissociação é o valor e o valor é a dissociação. Cada um está contido no outro, sem ser idêntico a ele. Trata-se de ambos os momentos centrais essenciais da mesma relação social em si contraditória e quebrada, que têm de ser compreendidos ao mesmo alto nível de abstracção.
Pois o que não pode ser compreendido no valor, que é portanto dissociado, desmente a pretensão de totalidade da forma do valor; representa o oculto da própria teoria e por isso não pode ser compreendido com os instrumentos da crítica do valor. As actividades femininas de reprodução, uma vez que representam o reverso do trabalho abstracto, não podem ser simplesmente cobertas com o conceito abstracto de trabalho, como faz frequentemente o feminismo, que em grande medida adoptou do marxismo do movimento operário a categoria positiva trabalho. As actividades dissociadas, que não em último lugar abrangem também o afecto, a assistência e os cuidados, bem como o erotismo, a sexualidade e o "amor" humanos, incluem ainda sentimentos, emoções e atitudes que são contrapostos à racionalidade da "economia empresarial" no domínio do trabalho abstracto e se opõem à categoria trabalho, mesmo que não estejam completamente livres dos momentos da racionalidade instrumental nem das normas protestantes.
Na modernidade patriarcal são delegadas n' "a mulher", ou seja, são-lhe atribuídas e projectadas nela não só determinadas actividades, mas também sentimentos e qualidades (sensibilidade, emotividade, fraqueza de entendimento e de carácter etc.). O sujeito masculino do iluminismo, que como socialmente determinante representa designadamente a assertividade (na concorrência), o intelecto (relativamente às formas de reflexão capitalista), a força de carácter (na adaptação aos desaforos capitalistas), e o qual (inconscientemente) ainda constituiu, por exemplo, o disciplinado mecânico de precisão masculino da fase fordista na fábrica, está ele próprio essencialmente estruturado sobre esta "dissociação". Neste sentido, a dissociação-valor também tem um lado cultural-simbólico e uma dimensão psicossocial, que a meu ver só podem ser abordados com instrumentos psicanalíticos.
Pelo que, de acordo com a dissociação-valor, as esferas privada e pública, por igual dialecticamente mediadas, são idealmente concebidas como feminina e masculina respectivamente. Contudo, a relação de género claramente não "assenta" objectivada nos domínios da esfera privada e da esfera pública, como poderiam supor certas hipóteses estereotipadas. Sempre houve mulheres também na esfera pública, sobretudo na esfera da actividade capitalista remunerada; mas a dissociação simplesmente prossegue, também no interior das esferas públicas.
Mesmo na pós-modernidade, em que a actividade profissional das mulheres está a aumentar cada vez mais, as suas qualificações igualaram as dos homens e a "confusão dos sexos" se tornou um tema querido dos media, salta à vista que a hierarquia de género e a preterição das mulheres de modo nenhum desapareceram no fundamental. As mulheres são sempre mais responsáveis pelos filhos e pelo trabalho doméstico na esfera privada, são mais mal pagas na esfera da actividade remunerada, é raro encontrá-las em posições públicas de direcção etc., o que sem dúvida radica nas atribuições e classificações específicas de género modernas "clássicas" e nas correspondentes responsabilidades reais das mulheres pelos cuidados da reprodução privada, continuando a fazer-se sentir mesmo nos tempos pós-fordistas.
Esta crítica do conceito de valor pensado de modo androcêntrico, formulada pela teoria da dissociação-valor como conceito abrangente, tem consequências não apenas para a "crítica do valor fundamental", mas também para outras abordagens, que já no passado se debateram (ainda que na maioria das vezes inconsequentemente) com a abstracção do valor e com o fetiche da mercadoria. É o caso particularmente do conceito de "valor de uso", que se pode encontrar na esquerda e em algumas concepções feministas colocado de modo enfático e em princípio positivo, porque pensado como exemplo do "feminino" que como tal já guardaria em si supostas potencialidades de resistência. Pois na correspondência valor de uso = feminino, valor de troca = masculino, ao mesmo tempo que se salvaguarda a subordinação do valor de uso ao valor de troca, as disparidades específicas de género continuam a ser simplesmente derivadas de uma forma da mercadoria supostamente neutra em termos de género. A análise continua ainda à maneira androcêntrica apenas no espaço interno da mercadoria.
Segundo Kornelia Hafner, pelo contrário, já em Marx é decisivo "que os próprios valores de uso aparecem como criaturas do capital", e que a suposição de um "puro uso" ele próprio abstracto do valor de uso só aparece de forma generalizada depois de a forma da mercadoria se ter generalizado de algum modo por toda a parte através da relação de capital (Hafner, cit. em Kurz, 1992). Para a "crítica do valor fundamental" aqui em questão, daí resulta que a mercadoria só é "valor de uso" no processo de circulação, como coisa do mercado, e nessa medida também o valor de uso não passa de uma simples categoria do fetiche económico abstracto. Ele não designa a utilidade concreta do uso material-sensível, mas apenas o "uso puro e simples" abstracto, como valor de uso de um valor de troca. Do ponto de vista da dissociação-valor, o conceito de valor de uso é portanto, ele próprio, de certo modo parte do universo androcêntrico abstracto das mercadorias.
Ora, à esfera que cai mesmo fora do contexto da forma económica pertence o consumo, com as actividades que lhe estão ligadas a montante e a jusante; por isso, o acesso ao "dissociado" da forma do valor deve ser procurado em primeiro lugar aqui. É apenas no consumo que as mercadorias são usadas e desfrutadas de modo realmente material-sensível. Com isso, o produto criado na forma da mercadoria subtrai-se à forma da mercadoria ao ser "degustado" no consumo. O que é aqui ignorado é que o facto de os bens caírem fora do contexto da forma económica não constitui por si "simples" consumo imediato, mas que o consumo é mediado por uma esfera de actividades de reprodução, que se cruzam com actividades, momentos e relações só parcialmente mediadas, ou até a priori não mediadas com a forma da mercadoria.
O "dissociado" assim definido que, do ponto de vista do contexto androcêntrico da forma abrangido pelo valor, leva de certo modo ao vazio na fronteira do consumo, aparece por isso, na teoria social masculina unidimensionalmente relacionada com a reflexão do valor, como algo a-histórico, gelatinoso e sem forma, tal como o feminino em geral na sociedade ocidental cristã, ao qual já não se consegue aceder com a análise da forma do valor. Pelo contrário, o consumo de meios de produção utilizados na economia empresarial, como máquinas, bens de investimento etc., não está relacionado com a dissociação; esses mantêm-se directamente no "universo masculino" do valor.
Ora, é claro que, conceptualmente, o "dissociado" não se limita ao consumo e à preparação de bens de uso comprados para consumo; ao seu núcleo central pertencem também o afecto, a assistência, os cuidados, o "amor" etc., até à sexualidade e ao erotismo. Aqui é difícil distinguir com exactidão entre o que é actividade obrigatória e expressão existencial da vida. E é precisamente isso que torna desgastantes as actividades de reprodução femininas, ao invés da situação do "trabalhador abstracto".
A formação do trabalho abstracto e da dissociação é assim histórica e logicamente por igual fundamentalmente original; não se pode ver um como criador do outro. Cada um é pressuposto para a constituição do outro. Neste sentido, a relação de dissociação-valor representa de certo modo uma meta-estrutura, contra a hipótese reducionista de que só o valor seria o princípio constitutivo, a essência das sociedades produtoras de mercadorias.
O dissociado feminino é assim o Outro da forma da mercadoria, como que autónomo; por outro lado, porém, permanece dependente e menosprezado, precisamente porque se trata do momento dissociado no contexto da produção social total. Poder-se-ia então dizer: se à mercadoria corresponde a forma abstracta, ao dissociado corresponde a abstracta ausência de forma; no caso do dissociado, poder-se-ia falar de modo francamente paradoxal duma forma da ausência de forma, em que esta – para mais uma vez o sublinhar – logicamente já não pode ser apreendida pelas categorias do contexto interno da forma da mercadoria. A ciência e a teoria androcêntricas, na forma da mercadoria, não conseguem ter em conta esta relação, uma vez que elas têm de catapultar para fora da sua teorização e dos seus aparelhos conceptuais, como "não lógico" e "não conceptual", o que cai fora da forma da mercadoria.
A "sensibilidade" de que aqui se fala no contexto da "dissociação" é sem dúvida historicamente constituída. Isto é válido não só para as actividades das mulheres na reprodução (preparação dos bens para consumo, amor, cuidados, afecto etc.), que apenas surgiram no século XVIII com a diferenciação entre um domínio capitalista de trabalho remunerado, por um lado, e um domínio de reprodução privado doméstico, por outro (ver, por ex., Hausen, 1976), mas também para a constituição da necessidade em geral. (4)
Uma vez que se trata de uma unidade negativa entre forma da mercadoria e "dissociado", daí resulta desde logo que, no contexto da forma da dissociação-valor, o "feminino" dissociado não é de modo nenhum "melhor" do que a "masculinidade" na forma da mercadoria. Daí resulta ainda que também as mulheres que (apenas) têm actividade no sector da reprodução levam uma vida limitada e alienada (uma determinação que não tem de ser empiricamente válida para todas as mulheres), que se comporta como um espelho da alienação do trabalho abstracto no espaço funcional da economia empresarial do capital. O uso e a fruição sensíveis, tal como as actividades com isso envolvidas e as qualidades atribuídas à mulher como momento dissociado, são portanto imanentes à sociedade capitalista, ainda que não imanentes à forma do valor.
Segundo a tese da dissociação-valor, é preciso partir do princípio de que a moderna relação de género (do mesmo modo que o valor), deve ser examinada no contexto do patriarcado produtor de mercadorias, ou seja, não como um dado trans-histórico "paralelo" às diferentes formações sociais. Isto não quer dizer que não haja uma pré-história. Mas a relação de género adquire na modernidade produtora de mercadorias uma qualidade completamente nova, que é preciso ter em conta teórica e analiticamente. Na pós-modernidade, pode-se constatar agora uma nova mudança na relação de género. No entanto, como já se deu a entender, há que constatar a codificação fundamental no sentido da dissociação-valor e a correspondente hierarquização de género, tanto antes como depois, em todas as suas refracções, diversificações, inversões de polaridade, remodelações e transformações, feedbacks e diferenciações pós-modernas; na existência da mulher de carreira ou do homem doméstico, tal como no futebol feminino ou no striptease masculino, no casamento de gays e lésbicas ou nos shows transsexuais hoje mediaticamente em alta, para dar apenas alguns exemplos picantes.
Passaram já alguns anos desde a publicação das definições da posição sobre a sobrejacente meta-estrutura da dissociação-valor aqui resumidamente referidas, e há algumas coisas a modificar e a precisar, como vou mostrar. Assim, por exemplo, ficou entretanto mais claro para onde tende o desenvolvimento pós-moderno do patriarcado produtor de mercadorias: chega-se não só às referidas remodelações e transformações, feedbacks e inversões de polaridade, mas, na onda da crise estruturalmente condicionada do sistema capitalista que cobre todo o mundo, também a um asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias à escala global. Nas violentas rupturas sociais da crise mundial, as mulheres (e hoje mesmo na sua imagem ideal, ao contrário do que acontecia até à fase fordista) são responsabilizadas já não só pela esfera da reprodução, mas, ao contrário dos homens, são responsabilizadas em igual medida pela lida da casa e pela actividade remunerada, sendo que se mantém a sua menor valorização, apesar ou talvez por causa disso. Assim se cobrem de ridículo aquelas apreciações optimistas que desde meados dos anos oitenta consideravam a emancipação das mulheres já realizada, ou que continuam ainda hoje a afirmar isso.
A posição da crítica da dissociação-valor opõe a estas tendências de asselvajamento o objectivo da abolição do valor, da forma da mercadoria, da economia de mercado, do trabalho abstracto e da dissociação; uma perspectiva para a ultrapassagem de toda a relação da produção de mercadorias, que tem de abranger não só o ponto de vista material, mas também o ideal e o psicossocial. Neste sentido radical, está em discussão a repartição destes níveis e domínios em geral, o que inclui uma crítica da família nuclear, hoje simplesmente em decomposição. Trata-se, pois, da superação da "masculinidade" e da "feminilidade" no sentido até hoje vigente, e com elas das respectivas sexualidades compulsivas.
Segue-se, a partir desta posição de crítica radical, um debate com algumas das mais relevantes concepções do feminismo teórico. Em primeiro lugar, e demarcando-me criticamente no fundamental de um ensaio de Regina Becker-Schmidt, gostaria de esclarecer que a validade das estruturas, mecanismos, fenomenologias etc. da dissociação-valor só pode ser invocada para o patriarcado produtor de mercadorias, e que seria errado vê-los em acção também nas sociedades pré-modernas, ou até possivelmente considerá-los como "próprios da espécie humana". Depois desta demarcação basilar, vou agora debruçar-me sobre as abordagens que procuram apreender teoricamente a relação de género no patriarcado produtor de mercadorias.
Terceira Parte: A teoria da dissociação-valor modificada
Vamos agora expor o resultado das reflexões até aqui havidas. Que inovações advêm para a teoria da dissociação-valor desta minha passagem em revista das teorias? O meu objectivo é conseguir tornar perceptível o esboço de uma versão ampliada da teoria de dissociação-valor, no campo da tensão entre a crítica e o recurso às abordagens teóricas discutidas. Claro que isto não significa que eu dê assim por concluída a exposição teórica da "dissociação-valor". Pelo contrário, a conclusão que se segue formula um programa que exige posteriores pesquisas e desenvolvimentos; (5) pois é óbvio que algumas das minhas reflexões têm sido até agora apresentadas mais de forma breve, por exemplo, sobre a relação entre lógica da identidade e relações de género, ou também sobre o inconsciente social androcêntrico. O reconhecimento dos limites da elaboração teórica em si, que decorre precisamente das exposições alargadas da teoria da dissociação-valor, não exclui obviamente uma elaboração maior e mais precisa desta teoria. Caso contrário poder-se-ia abdicar à partida da teoria em geral e, em falsa imediatidade, contentar-se com os dados positivos de modo igualmente positivista – apenas em inversão vitalista.
Neste contexto, já não aceito a concepção de Ostner sobre a separação entre "profissão e trabalho doméstico" porque, por um lado, vejo esse princípio criticamente superado já em abordagens anteriores (vd. Kurz, 1992, Scholz, 1992) e, por outro, acho a definição de "patriarcado capitalista como modelo de civilização" de Haug, ainda que numa variante do antigo marxismo, um maior desenvolvimento das ideias de Ostner, que em todo o caso tem de ser corrigido em termos da teoria da dissociação-valor.
No entanto, tive em conta nas minhas considerações a concepção de Ostner porque, apesar da muita crítica que possa merecer, como se viu aproxima-se de alguns elementos da "crítica do valor fundamental" e da teoria da dissociação-valor, sem apresentar explicitamente este nível. Aqui Ostner também está um pouco à frente de abordagens mais recentes. Por exemplo, uma nova leitura crítica poderia deixar claro, pelo menos em parte, porque têm os indivíduos em geral de se "constituir" como homens e mulheres no desenvolvimento do patriarcado moderno; e, em ligação com isso, por que pode ocorrer a mudança de género das profissões. A formação aí subjacente, não por último de trabalho profissional e "trabalho doméstico", de domínio da reprodução e domínio da produção, não desempenha qualquer papel, por exemplo, em Gildemeister/Wetterer, para as quais, no caso da mudança de género das profissões e não só, se trata apenas da "construção da (dupla) sexualidade", e mais ainda: elas sentem-se obrigadas a fazer frente a tal tipo de argumentações com toda a força (cf. Gildemeister/Wetterer, 1992). Por isso considero que não se justifica considerar a abordagem de Ostner totalmente arrumada, como é costume desde os anos oitenta nos estudos das mulheres (estudos de género), embora seja certamente verdade que a tese da "capacidade de trabalho feminina" não é sustentável e que esta abordagem precisa de ser modificada em muitos aspectos.
Dito isto, gostaria de voltar a apresentar em grandes linhas a teoria da dissociação-valor agora modificada, como se de uma "segunda volta" se tratasse, para deixar claros os seus contornos com referência à passagem crítica pelas abordagens teóricas feministas (de esquerda).
1. De um ponto de vista teórico, a relação hierárquica de género só pode ser examinada na modernidade. Não são possíveis retroprojecções para sociedades não modernas. Isto não quer dizer que a relação de género moderna não tenha uma pré-história, que de facto pode ser seguida até à antiguidade grega. Contudo, a relação de género na modernidade assume uma qualidade completamente nova com a generalização da produção de mercadorias, quando "o trabalho abstracto se torna um fim-em-si tautológico", a "banalidade do dinheiro" (R. Kurz) se instala neste contexto e os domínios da produção e da reprodução se separam, sendo o homem o principal responsável pelo domínio da produção e pela esfera pública em geral, e a mulher sobretudo responsável pelo domínio inferiorizado da reprodução.
2. Aqui não se pode definir o género em analogia com a "classe", apenas no superficial nível sociológico, como categoria social estrutural que atribui oportunidades sociais, como apregoa Becker-Schmidt. Esta perspectiva assumida por Becker-Schmidt revela que ela toma simplesmente como critério da sua concepção o princípio imanente da justiça distributiva, no sentido da antiga ideia das classes. Em vez disso trata-se de ver a dissociação-valor como princípio da forma a um nível bem fundamental, no sentido de essência social que fundamentalmente estrutura a sociedade como um todo, e como tal tem de ser criticado e posto em causa por princípio. Só assim será possível definir teoricamente tanto as formas de identidade modernas, como também as identidades flexíveis compulsivas pós-modernas específicas de género (a que regressarei com mais detalhe) e submetê-las a uma revisão crítica.
Como se viu, a dissociação-valor significa que as actividades femininas da reprodução, bem como os sentimentos, qualidades, atitudes etc. a elas associados (sensibilidade, emocionalidade, cuidado, por exemplo) são estruturalmente dissociados do valor, do trabalho abstracto. As actividades femininas da reprodução têm assim um carácter qualitativamente diferente do trabalho abstracto em termos de conteúdo e de forma; por isso também não podem ser simplesmente subsumidas no conceito de trabalho abstracto. Além do mais, uma tal definição favoreceria a ampla tendência pós-moderna segundo a qual até se fala de "trabalho de relacionamento", "trabalho de sentimento" etc., e mesmo o amor e a sexualidade são compreendidos no conceito de "trabalho".
Valor e dissociação estão aqui numa relação dialéctica recíproca. Um não pode ser derivado do outro, mas ambos resultam um do outro; a dissociação não está teoricamente subordinada ao valor. Consequentemente as categorias da economia política não chegam para fazer justiça à dissociação-valor. Isto também vale para o conceito de valor de uso que, como conceito oposto ao de valor de troca, se mantém ele próprio ainda na esfera androcêntrica da economia, contrariamente a uma interpretação frequente. Pelo contrário, é em torno do consumo privado, no sentido do gozo sensível ou do uso real (e da correspondente preparação), para lá da forma abstracta do valor, que se agrupam as actividades das mulheres na esfera da reprodução. Neste sentido, a dissociação-valor também pode ser concebida como uma lógica de ordem superior, que alcança para lá das categorias internas à forma da mercadoria. O consumo assim definido, as actividades femininas da reprodução e a forma da mercadoria condicionam-se pois mutuamente e como tais são categorias imanentes do patriarcado produtor de mercadorias – "imanentes" agora já não simplesmente no sentido do valor, mas precisamente no sentido da dissociação-valor dialecticamente mediada, como princípio constitutivo mais abrangente das sociedades patriarcais modernas. Daí que também é preciso pôr radicalmente em questão a dissociação-valor na totalidade; aquilo que a "feminilidade" representa não deve ser (mal) entendido como o melhor, merecedor de ser conservado e transcendente, mas há que ultrapassar a relação no seu conjunto.
As categorias da economia política também se mostram ainda insuficientes noutro aspecto. A dissociação-valor implica também uma relação psicossocial específica: no patriarcado produtor de mercadorias determinadas qualidades, comportamentos e sentimentos considerados inferiores (sensibilidade, fraqueza de carácter e de entendimento, passividade, entre outras) são atribuídas às mulheres e nelas projectadas, dissociadas do moderno sujeito masculino. Por sua vez as mulheres também se reconheceram frequentemente em tais atribuições na história do patriarcado produtor de mercadorias. Estas atribuições específicas de género caracterizam assim a ordem simbólica do patriarcado produtor de mercadorias como um todo. Portanto, é preciso considerar também as dimensões psicossocial e cultural-simbólica. Não por último também com a presença da "dissociação" em ambos estes níveis a dissociação-valor se revela como o princípio da forma que perpassa a sociedade do patriarcado produtor de mercadorias no seu conjunto.
3. Neste contexto assumo que o patriarcado produtor de mercadorias pode ser entendido como um modelo abrangente de civilização. Adopto aqui os seguintes pressupostos de Haug: na ordem simbólica do patriarcado produtor de mercadorias, a política e a economia são atribuídas ao homem; a sexualidade masculina, por exemplo, é definida como subjectivada, agressiva, violenta; as mulheres, pelo contrário, apresentam-se como objecto e mesmo simples corpo. O homem é visto como ser humano, como pessoa de espírito, que domina, que submete o corpo; a mulher, pelo contrário, como não humana, como corpo. A guerra tem conotação masculina; as mulheres, inversamente, são tidas como pacíficas, passivas, sem vontade, estúpidas. Os homens têm de aspirar à fama, à coragem, às "obras imortais".
A questão fulcral aqui é sempre a de vencer a morte. Às mulheres cabe o cuidado tanto dos indivíduos como da humanidade. As suas acções são socialmente inferiorizadas e são esquecidas na elaboração teórica, sendo que no processo de sexualização da mulher fica decidida a sua subordinação ao homem e está inscrita a sua marginalização social. O homem é pensado como herói e como activo. Tendo a natureza de ser produtivamente submetida e dominada. O homem está constantemente em concorrência com outros. Esta ideia também define as ideias de comunidade no conjunto da história ocidental cristã.
Mais ainda: a eficiência e a vontade de trabalhar, o dispêndio de tempo racional, económico e efectivo, a concorrência e a ambição do lucro definem o modelo de civilização como contexto total também nas suas estruturas objectivas, nos seus mecanismos, na sua história, bem como nas máximas de actuação dos indivíduos. Daí que, numa formulação sensacionalista, também se possa falar do sexo masculino como "o sexo do capitalismo"; tendo presente que a ideia dominante de "sexo" na modernidade é de um modo geral uma versão dualista de "masculinidade" e "feminilidade". O modelo de civilização da produção de mercadorias tem assim como pressuposto a humilhação e a marginalização das mulheres, de par com o simultâneo desprezo do social e da natureza. Estes momentos são empurrados para a esfera da reprodução, onde levam uma existência abstracta e tacanhamente privada.
4. Não é difícil reconhecer que a "psicologia da diferença de género", que Becker-Schmidt crê ter de reconhecer ontológica, é em todo o caso uma questão da modernidade (ainda que as suas raízes vão certamente até à antiguidade ocidental, como já foi dito; mas o sistema da "dupla sexualidade" foi construído apenas no contexto do capitalismo moderno). As modernas imaginações de vencer a morte, bem como as específicas dicotomias sujeito-objecto, espírito-natureza, dominação-submissão, homem-mulher, que vão de par com a dominação/submissão tanto da natureza como das mulheres a ela equiparadas, devem ser vistas como marcas distintivas típicas do patriarcado produtor de mercadorias. É assim evidente que a dissociação/recalcamento/rebaixamento do feminino constitui uma estrutura central do patriarcado produtor de mercadorias, também no sentido de um "inconsciente social". Haug não retira a consequência de um inconsciente social androcentricamente definido, se bem que esta ideia se imponha francamente à sua análise.
Na constituição deste inconsciente social androcêntrico no patriarcado produtor de mercadorias, naturalmente que também desempenha um importante papel a necessidade, existente na família nuclear patriarcal burguesa, de o menino (que mais tarde domina) se desidentificar da mãe, para poder construir o ego, o que vai de par com o recalcamento do feminino; mas também o processo inverso, em que a menina se equipara à mãe, a fim de poder desenvolver uma identidade feminina e estar disponível para assumir uma posição subordinada (não apenas) no domínio doméstico. Gostaria agora de interpretar o androcentrismo como "fenómeno psicogenético de base" na maneira de ver da dissociação-valor (afastando-me aqui da inventora desta formulação, Becker-Schmidt), no sentido de que o recalcamento/dissociação do feminino, a inferiorização das mulheres reais e a existência da dominância masculina radicam em camadas psíquicas profundas; e que aqui a "dissociação", enquanto padrão socio-cultural fundamental e mecanismo psicossocial, determina essencialmente a sociedade como um todo, em mediação com a divisão de funções específica de género. Mesmo na decadência do patriarcado produtor de mercadorias em crise, quando a família nuclear se dissolve e os indivíduos são libertados dos seus papéis, pode constituir-se uma menorização das mulheres, colocando-as numa posição diferente da dos homens, como em breve se verá.
5. Daqui não se pode concluir, segundo o tradicional esquema base-superstrutura, que a divisão de funções específica de género na produção da vida e dos alimentos representa o nível primário, ao qual se ligam superficialmente significados culturais ao longo da história, como é o ponto de vista de Haug. Em vez disso, os níveis cultural-simbólico, psico(ssocial) e material devem ser estabelecidos em suas relações recíprocas ao mesmo nível de relevância, sem que nenhum tenha o primado. Assumo esta perspectiva de Becker-Schmidt. De facto, só assim as relações de género são "uma espécie de trabalho em rede, (...) que não tem nenhum lugar determinado, mas atravessa todos os lugares", como diz a própria Haug.
A dimensão cultural-simbólica torna-se acessível, por exemplo, nas análises do discurso em ligação com Foucault (ver, por ex., Honegger, 1991; Landweer, 1990; Laqueur, 1996; e, e em relação à experiência do corpo, Duden, 1987); o lado psicológico na socialização dos indivíduos do patriarcado capitalista pode ser percebido com instrumentos psicanalíticos (cf. por exemplo Chorodow, 1985). (6) Por sua vez, o acesso ao nível material, ou seja, à divisão de funções específica de género, à separação de trabalho remunerado e "trabalho doméstico" é possível recorrendo criticamente a Ostner e Haug, por exemplo.
Em geral, trata-se tanto de indicar as limitações das diferentes abordagens (por exemplo, a imagem no fundo behaviourista do ser humano, o seu procedimento positivista e a ontologia do poder em Foucault e nas autoras a ele ligadas), como também de simultaneamente fazer justiça à legitimidade objectiva que têm na sociedade reificada, díspar e fragmentada do patriarcado produtor de mercadorias. Assim, não pode tratar-se de um processo de derivação lógica, se se quiser realçar as interdependências das diversas abordagens e níveis, pelo contrário – na formulação acertada de Becker-Scmidt – trata-se de "sintetizar sem sistematizar unidimensionalmente", sem que por isso devam ser equiparadas as diversas premissas epistemológicas.
Um tal modo de proceder no contexto da teoria da dissociação-valor evita também problemas com os quais se depara por exemplo Haug, pois ela, por um lado, recorre à psicanálise, por outro lado, em outros ensaios, ataca por exemplo a "Psicologia Crítica" de Klaus Holzkampf. Pois, para uma crítica da dissociação-valor assim concebida, não se põe simplesmente o problema de as diversas abordagens teóricas serem compatibilizadas à força e "violentamente" com as premissas. A partir desta perspectiva, não constitui qualquer defeito aquilo que Haug expressamente designa como déficit do seu ensaio, nomeadamente que no caso só poderia ser empreendida a tentativa de "passar em revista apenas os domínios nos quais até hoje as relações de género funcionam essencialmente como relações de dominação", uma vez que ainda há muito poucas análises individuais que possam ser pensadas teoricamente em conjunto (cf. Haug, 1996 b, p. 128). No fundo, Haug tem assim a pretensão de uma elaboração teórica "redonda" e concludente, na qual os diversos componentes individuais e os diferentes níveis são ajustados, na cama de Procrustes de uma construção teórica coerente e fechada. Em vez disso, tal unificação forçada deverá ser questionada com Adorno, especialmente na pós-modernidade. Pois nas referidas exposições de Haug fica bem expresso que é possível reconhecer uma dissociação do "feminino" no patriarcado produtor de mercadorias nos três níveis mencionados, e que a separação entre o privado e o público desempenha aí um papel fulcral.
6. No moderno patriarcado produtor de mercadorias constituem-se uma esfera privada e uma esfera pública, em que os protagonistas principais são a mulher no domínio privado e o homem no domínio público (economia, ciência, política). Estes domínios são, por um lado, autónomos e reciprocamente independentes, mas simultaneamente, por outro lado, condicionam-se reciprocamente; estão numa relação mediada e dialéctica entre si. Com isto, contudo, ainda não está suficientemente caracterizada a essência do público e do privado no patriarcado produtor de mercadorias, pois esta relação dialéctica recíproca também é válida em princípio igualmente para todas as esferas (em cada caso relativamente independentes, com elementos de uma "lógica própria") como a economia, a educação, a esfera privada, o domínio profissional, a política etc., quando se abstrai de diferenças qualitativas fundamentais.
Mas neste contexto é agora decisivo que a esfera privada, ao contrário de todas as outras esferas que no seu conjunto se situam no espaço interno da esfera pública (definida na forma da mercadoria), não pode ser deduzida da relação de valor, mas constitui justamente um domínio por igual dissociado de todas estas esferas ou elementos da esfera pública. Becker Schmidt/Knapp não conseguem aperceber-se desta diferença qualitativa por causa do seu entendimento sociologicamente limitado da totalidade. Daí que também só de modo meramente formal e descritivo consigam, por exemplo, constatar a relação hierárquica entre a esfera profissional e a esfera privada, e apresentá-la em conexão com a relação assimétrica de género.
O patriarcado produtor de mercadorias não pode existir sem que determinadas actividades e formas de comportamento, como o "amor", o criar, o cuidar etc. sejam "expulsas" para domínios que são contrapostos à lógica do valor, com a sua moral de concorrência, lucro, rendimento etc. – ou seja, para o domínio da reprodução, para a esfera privada, para a família, e para certas pessoas a isso alocadas, as mulheres, que possuem estas qualidades opostas ao valor, ou a quem elas são atribuídas.
Ora, como foi referido, no patriarcado capitalista já houve sempre mulheres numa proporção considerável na esfera pública, e também já cedo enveredaram por uma actividade remunerada, por exemplo. Mas considerando que as mulheres são até hoje as primeiras responsáveis pelas tarefas de cuidar da família, ao contrário dos homens; que tem de se constatar um recalcamento do feminino no sujeito masculino dominante a nível psicossocial, tanto individualmente como no conjunto da sociedade, porque em regra ocorreu uma desidentificação da criança masculina da mãe no decurso da sua socialização; e considerando ainda que, na ordem simbólica do patriarcado produtor de mercadorias, existem as imagens correspondentes da masculinidade e da feminilidade – então a dissociação-valor como princípio formal sobrejacente também significa simultaneamente, noutro nível de abstracção, uma atribuição de esferas específica de género, a saber, das mulheres para a esfera privada e dos homens para a esfera pública. O facto de as mulheres mesmo antes já se movimentarem numa percentagem considerável na esfera pública não afecta a força concentrada deste contexto cumulativo psicossocial-ideal-material. Isso aplica-se ainda hoje, quando as mulheres são consideradas "duplamente socializadas".
É a partir desta relação entre esfera privada e esfera pública que se esclarece também a existência de "alianças masculinas" assentes num sentimento barato contra o "feminino". Também o Estado e a política no seu conjunto são constituídos desde o século XVIII à maneira de aliança masculina, sobre os princípios de "liberdade, igualdade, fraternidade" e mais ou menos movidos pelos correspondentes interesses.
7. Assim é impossível qualquer procedimento na lógica da identidade, tanto a transferência de mecanismos, estruturas e características do patriarcado produtor de mercadorias para sociedades não produtoras de mercadorias, como também a confusão dos diversos níveis, esferas e domínios no próprio patriarcado produtor de mercadorias, abstraindo das diferenças qualitativas. Na minha opinião, poderia extrair-se uma crítica da lógica da identidade tanto do entendimento negativo do valor da "crítica do valor fundamental", como do redutor conceito de troca de Adorno. Mas esta crítica truncada da relação de género teria de permanecer ela própria na lógica formal. Pois o decisivo não é apenas que o terceiro comum – abstraindo das qualidades –, o tempo de trabalho social médio, que é o trabalho abstracto, esteja de certo modo por detrás da forma de equivalência do dinheiro, mas que esta, por sua vez, ainda precise de excluir e de considerar inferior o que é conotado como feminino, a saber, o "trabalho doméstico", o sensível, o emocional, o não analítico, o não unívoco, o não claramente compreensível e localizável com os meios da ciência.
Mas a dissociação do feminino de modo nenhum coincide com o "não-idêntico" de Adorno; em vez disso, ela representa o reverso oculto do próprio valor. Assim, no entanto, a dissociação é uma pré-condição para que o mundo da vida, o contingente, o não analítico, mas também conceptualmente não compreensível, tenha sido desprezado e tenha ficado na penumbra por muito tempo na modernidade, nos domínios da ciência, da economia e da política dominados pelo homem. Importante tornou-se um pensar classificador, que não pode examinar a qualidade particular, a "própria coisa", e não consegue perceber as diferenças, as ambivalências etc. que vêm com ela, ou em todo o caso não consegue suportá-las.
Inversamente, isto significa sem dúvida para a "sociedade socializada" do patriarcado produtor de mercadorias exactamente que os ditos elementos, níveis e domínios não apenas têm de ser irredutivelmente referidos uns aos outros como "reais", mas também devem ser considerados na sua união objectiva e "intrínseca" ao nível fundamental da dissociação-valor, como pano de fundo da totalidade social, pelo qual é constituída "a sociedade" em geral como essência (no sentido de uma meta-estrutura universal), e como cuja manifestação aqueles elementos e domínios específicos se apresentam "realmente".
Não se trata assim, de modo simplista, de uma sinopse interdisciplinar de tipo ecléctico, mas os diversos elementos têm de ser à partida referidos uns aos outros "essencialmente", no sentido da dissociação-valor como totalidade, situação em que a categoria da dissociação-valor – ao contrário do conceito de troca em Adorno ou do conceito negativo de valor na "crítica do valor fundamental" – já sabe sempre à partida da sua limitação, não se colocando assim de certo modo também como absoluta em nome do nível sobrejacente, e nessa medida sabendo reconhecer a verdade própria dos níveis e domínios "particulares".
8. Precisamente porque deve ser admitida a qualidade própria dos diferentes domínios, níveis e esferas, do objecto particular, da questão concreta e do respectivo contexto (histórico), hoje, no contexto específico da pós-modernidade avançada, que tende a hipostasiar o cultural, tem de ser realçada a importância do nível material, que é essencial no patriarcado produtor de mercadorias.
Se abstrairmos da avaliação problemática e equivocada da relação entre valor de troca e valor de uso / consumo do valor de uso / dissociação, bem como da metafísica do trabalho (em que se inclui também o "trabalho doméstico", pois em princípio toda a vida é "trabalho"), e ainda da conexa construção base-superstrutura do antigo marxismo, que impedem Haug de uma compreensão conceptual do princípio sobrejacente da forma, então a sua definição de duas lógicas de tempo representa um importante enriquecimento para a teoria da dissociação-valor; em rigor, o reconhecimento de uma lógica própria de "gastar tempo" contradiz o conceito de "trabalho" económico-geral e sem conteúdo, o qual, correspondendo à dissociação-valor, apenas é adequado para o patriarcado produtor de mercadorias tendo em conta o "trabalho abstracto". "Amor", ternura, solicitude, conservação e cuidado não podem, portanto, ser organizados segundo a lógica de poupar tempo (no entender de Haug isto é válido também para as actividades em que está em causa um trato cuidadoso com a natureza). Neste sentido, o modo de produção na forma da mercadoria está apontado para a hierarquização das duas lógicas temporais a favor da lógica de poupar tempo, e assim para a repressão das mulheres. À medida que, na pós-modernidade, a lógica de poupar tempo faz esquecer cada vez mais a lógica de gastar tempo, o próprio modelo de civilização do patriarcado produtor de mercadorias está posto em causa.
9. A constituição da masculinidade e da feminilidade na modernidade deve assim ser vista no contexto do modelo de civilização do patriarcado produtor de mercadorias, tal como ele foi definido até aqui em toda a sua complexidade. É errado pensar, como afirmam as desconstrucionistas, que "antes de mais nada" a masculinidade e a feminilidade tiveram de ser construídas culturalmente para que pudesse ocorrer uma divisão de funções por género. Tais posições já não conseguem explicar que sentido tem então o porquê de os indivíduos terem de se constituir realmente como homens e mulheres, no contexto específico do patriarcado produtor de mercadorias. A questão quanto a este sentido, quanto a este "porquê", remete para o princípio sobrejacente da forma da dissociação-valor.
O valor, o trabalho abstracto, "a lógica de poupar tempo" e o mercado, que funcionam segundo o ponto de vista da rentabilidade, da concorrência e do lucro, precisam do seu Outro, o "trabalho doméstico", no caso do qual se trata de gastar tempo, e das mulheres, às quais são atribuídas qualidades opostas às dos homens. A construção da masculinidade e da feminilidade em sentido moderno e a constituição do trabalho abstracto e do "trabalho doméstico" condicionam-se assim necessariamente uma à outra. Não faz sentido perguntar qual é o primeiro, se o ovo ou a galinha. Este contexto é evidente em Haug para o "patriarcado capitalista" num nível macroestrutural, ainda que ela acabe por hipostasiar o nível material a partir das suas premissas. O facto de, no contexto específico do patriarcado produtor de mercadorias, também haver mudança de género das profissões e não se poder partir de uma correspondência linear entre o conteúdo profissional, por um lado, e as actividades domésticas, as qualidades atribuídas às mulheres etc., por outro, não afecta minimamente a definição da essência da relação de género no sentido da dissociação-valor.
Trata-se, sim, de suportar a tensão entre essência (dissociação-valor) e aparência (as mulheres também desempenham actividades profissionais não correspondentes às atribuições específicas das mulheres), tornando-a frutífera na pesquisa do inconsciente social androcêntrico; só assim fica claro por que são as mulheres consideradas "particulares, menores, diferentes" seja qual for o conteúdo da sua actividade, e porque é que domínios antes conotados como masculinos sofrem uma desvalorização quando acabam por ser codificados como femininos.
10. Assim a dissociação-valor tem de ser vista globalmente, como princípio da forma do patriarcado produtor de mercadorias, mesmo considerando que o desenvolvimento na forma da mercadoria patriarcal não ocorreu uniformemente nas diversas regiões do mundo (cf., por exemplo, Hasenjürgen/Preuss, 1993), até às sociedades (anteriormente) com simetria de género, nas quais as ideias modernas ocidentais de género não foram ou não foram totalmente adoptadas até hoje (cf., por exemplo, Weiss, 1995). Neste contexto é preciso também levar em conta que a relação de género e as noções de masculino e feminino nem sempre se apresentam iguais, mesmo no interior do desenvolvimento moderno ocidental. Só no século XVIII se constituiu o "sistema da dupla sexualidade" e se chegou à "polarização dos caracteres sexuais"; antes disso as mulheres eram consideradas de certo modo simplesmente uma variante diferente do ser-homem. Por isso também se assumiu recentemente nas ciências sociais e históricas a instituição de um "modelo unissexo" nos tempos pré-burgueses. Assim se viu, por exemplo, na vagina um pénis virado para dentro (Laqueur, 1996).
Ainda que as mulheres também então fossem consideradas inferiores, elas bem que ainda tinham muitas possibilidades de influenciar por vias informais, uma vez que ainda não se tinha constituído uma esfera pública de grande dimensão como na modernidade. Na sociedade pré-moderna o homem teria uma primazia mais simbólica, com escrevem Heintz/Honegger (1981). As mulheres ainda não tinham sido definidas exclusivamente como donas de casa e mães, como aconteceu a partir do século XVIII, complementarmente às atribuições dos homens, que então tiveram de se tornar competentes na hipertrofiada esfera pública recém-construída. Nas sociedades agrárias a contribuição feminina para a reprodução material era considerada tão importante como a do homem (Heintz/Honegger, 1981, p. 15ss.).
Se a moderna relação de género, com as correspondentes atribuições de género polarizadas, estava inicialmente limitada à burguesia, ela expandiu-se pouco a pouco a todas as camadas e classes com a generalização da família nuclear, com um último impulso do desenvolvimento fordista nos anos cinquenta do século XX. A dissociação-valor não é nenhuma estrutura rígida, como se pode encontrar em alguns modelos estruturais sociológicos, mas sim um processo. Também não deve ser concebida como estática e sempre a mesma. Na pós-modernidade, ela assume mais uma vez uma nova face. As mulheres são agora "duplamente socializadas", como assinala Becker-Schmidt, o que significa que elas são por igual responsáveis pela família e pela profissão. Contudo, a novidade no caso não é apenas este simples facto, como já foi assinalado muitas vezes – grande parte das mulheres já antes era duplamente socializada, particularmente as mulheres da camada inferior – mas sim que este facto e as contradições estruturais que o acompanham sejam agora notórios.
Já por princípio, tem de se partir de uma dialéctica entre os indivíduos e a sociedade – por um lado, os indivíduos nunca são absorvidos nas estruturas objectivas nem nas ideias da ordem simbólica, por outro lado, contudo, também não se verifica a hipótese inversa, de que estas estruturas e padrões de interpretação cultural-simbólica lhes sejam meramente exteriores; afinal os indivíduos sociais constituem eles próprios estas estruturas culturais da sociedade, ainda que elas os confrontem depois como um sistema autonomizado. No entanto as contradições da "dupla socialização" das mulheres só dão plenamente nas vistas com a diferenciação do papel das mulheres na pós-modernidade, como observou Ostner correctamente.
11. Ao definir a relação de género pós-moderna, é crucial insistir numa dialéctica entre essência e aparência, e não se deixar levar pelo facto empiricamente verificável da "dupla socialização" para uma elaboração teórica das ciências sociais à partida sociologista, como aconteceu com Becker-Schmidt. Pelo contrário, a forma da dissociação-valor sobrejacente e ainda constitutiva (porque jamais positivamente superada) pode ser definida como princípio da forma da totalidade social na sua nova refracção histórica, a qual por sua vez, para mais uma vez o dizer, volta a abranger por igual, mesmo na sua desenvolvida figura pós-moderna, as dimensões material, psicossocial e cultural, e com elas também todos os domínios individuais da sociedade. Correspondentemente, as próprias modificações da relação de género têm de ser entendidas a partir dos mecanismos e estruturas da dissociação-valor.
Nestas circunstâncias, sobretudo o desenvolvimento das forças produtivas e a dinâmica do mercado, que eles próprios dependem da dissociação-valor, socavam antes de mais o seu próprio pressuposto, uma vez que levam a que as mulheres se afastem de uma boa parte dos seus papéis tradicionais e, na senda das tendências de individualização, tomem consciência da "dupla socialização" que sempre existiu, com as correspondentes conflitualidades. Assim, por exemplo, desde os anos cinquenta que cada vez mais mulheres das camadas médias se têm integrado no domínio da actividade remunerada; e, também devido a que as mulheres, graças aos processos de racionalização na lida da casa – pelo menos na Alemanha – se têm entretanto equiparado aos homens em termos de educação, pode observar-se que cada vez mais mães também têm actividade profissional, que é possível o planeamento familiar graças aos meios anticoncepcionais etc. Em suma: há muito que se verifica a tendência para uma crescente integração das mulheres na sociedade "oficial" (pública e conotada como masculina no patriarcado produtor de mercadorias). Contudo, mesmo na situação modificada pós-moderna, elas continuam a ser responsáveis pela lida da casa e pelas crianças, ao contrário dos homens; continua a ser raro encontrá-las nas alavancas do poder na esfera pública; continuam a ganhar em média menos que os homens etc. (cf., por exemplo, Beck/Beck-Gernsheim, 1990). Há assim uma modificação da estrutura da dissociação-valor, a "dupla socialização" ganha uma nova qualidade. As mulheres estão agora "duplamente socializadas", e já não apenas objectivamente como antes, mas agora também na sua imagem-modelo já não estão fixadas apenas à vida de dona de casa e mãe. Com isto também a situação psíquica das mulheres se modifica, como se verá, mas sem que a forma da dissociação-valor tenha sido abolida.
12. Ora o objectivo da teoria da dissociação-valor é precisamente esta abolição radical, isto é, a ultrapassagem real da masculinidade e da feminilidade sociais, tal como elas se apresentam na modernidade patriarcal e também ainda na pós-modernidade patriarcal, e com isso a abolição do trabalho abstracto, do "trabalho doméstico", da família, da "dupla socialização" das mulheres e das correspondentes ideias de género, juntamente com a respectiva constituição psicossocial.
Isto não pode ser apenas uma questão de "empurrar para trás" a "motivação do aumento do lucro" estruturalmente ligada à opressão das mulheres, ou seja, de conseguir simplesmente um novo arranjo dos critérios dominantes nos diversos domínios da forma não superada da dissociação-valor, de modo a ser possível um desenvolvimento pretensamente emancipatório da sociedade humana (económico, social, ecológico) lavando-se sem se molhar. Tais ideias ainda partem sempre dos arranjos e princípios dados, que se trataria apenas de deslocar, reduzir ou aumentar. Não saem dum reformismo há muito tornado fantasmaticamente irreal, meramente quantitativo, categorialmente acrítico e por isso mesmo hoje anacrónico, longe de uma perspectiva radical, a única que de algum modo poderá dar resposta às motivações e objectivos fundamentais da crítica social feminista.
Para isso terão de ser superados os diversos domínios / propósitos / princípios imanentes, e com eles também precisamente o domínio do "trabalho doméstico", juntamente com a lógica isolada de "gastar tempo" que lhe está associada (apenas complementar à lógica dominante de "poupar tempo"). Pois se bem que Haug, por um lado, persiga uma perspectiva de igualdade e ponha em causa a existência de dona de casa, por outro lado, porém, tem-se a impressão de que a lógica de gastar tempo correspondente a este domínio deveria ser apenas prolongada linearmente, contraposta em princípio sem alterações, em luta com a lógica dominante de poupar tempo, lutando e concorrendo "pela sua justa quota-parte" no todo social. Não ocorre a Haug a ideia de que a lógica isolada de gastar tempo, na sua abstracção imanente, como simples contrapólo da lógica de poupar tempo, tem de ser radicalmente questionada na sua existência dissociada. Ela pretende que os correspondentes domínios, princípios etc. tenham futuro no interior da forma da dissociação-valor, apenas numa outra relação recíproca, pretensamente exonerada da moderna referência discriminadora específica de género.
Segundo Becker-Schmidt, contra isso as mulheres desde sempre teriam feito social e individualmente este esforço de integração, e por isso já teriam ultrapassado o sistema, no sentido do protesto contra o papel que lhes é atribuído. De seguida será desenvolvido, mais claramente do que até aqui, que não é esse o caso. Paradoxalmente, a "dupla socialização" das mulheres é perfeitamente "funcional" no patriarcado produtor de mercadorias em decadência. Ainda assim, Becker-Schmidt enunciou algo de acertado de modo puramente descritivo: o caso é que as mulheres são igualmente responsáveis "pelo dinheiro e pela vida (sobrevivência)" (Irmgard Schultz), mesmo à escala universal, mundial, ainda que tenham de ser tidas em conta particularidades culturais. Se a "dupla socialização", na sua forma pós-moderna nos Estados ocidentais desenvolvidos, ainda estava ligada a um acréscimo de igualdade na senda do desenvolvimento do Estado social (igualização das oportunidades de acesso ao ensino de homens e mulheres, mais elevada actividade profissional também das mães etc.), e se isso significou o abandono do papel da mulher tradicionalmente pensado apenas como de dona de casa, agora vê-se claramente que, com a progressiva crise económica, com o esvaziar dos cofres públicos etc. a "dupla socialização" das mulheres torna-se "vida de crise" – ela torna-se mesmo um elemento da desoladora administração da crise, que já não funciona assim tão bem a partir de cima.
Agora se torna ainda mais claro que, em vez da abolição do patriarcado produtor de mercadorias com todas as suas implicações, está a ocorrer pelo contrário o seu "asselvajamento" na senda dos processos da globalização, em que, justamente desde 1989, a lógica de "salário, preço e lucro" (Marx), ou seja, a forma fetichista do "valor" está a determinar objectiva e normativamente quase tudo, justamente na época em que se torna definitivamente obsoleta. As ainda necessárias actividades de reprodução das mulheres "como sempre" dissociadas tornam-se na circunstância perfeitamente marginais, com os correspondentes "efeitos colaterais" para o moderno modelo de civilização, como Haug já lhe chamou com razão. O que é decisivo aqui, naturalmente, é a dissociação-valor, como categoria real historicamente dinâmica que produz tais consequências na pós-modernidade globalizada. As vidas das mulheres do "Terceiro Mundo" e do "Primeiro Mundo" estão a equiparar-se num prazo talvez não assim tão longo, pelo menos no que diz respeito a grande parte das mulheres. Se a vida da mulher burguesa foi durante muito tempo o modelo para as mulheres abaixo de cão do Terceiro Mundo, agora, pelo contrário, a vida de Terceiro Mundo destas torna-se a norma (real) para as mulheres do até aqui "Centro". Com isto deixo o nível de reflexão da "grande teoria" e viro-me para campos mais próximos da empiria, a fim de observar mais de perto a modificação pós-moderna da socialização da dissociação-valor.
Bibliografia citada nos presentes excertos
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NOTAS
(1) Abspaltung foi traduzida por dissociação, dado o carácter processual, histórico e dinâmico da relação. As opções por cisão, clivagem ou separação sugerem mais um acto ou uma situação reificada, o que não é o caso.
Wert-Abspaltung foi traduzida por dissociação-valor pois no substantivo composto alemão Wert-Abspaltung o elemento determinado é o segundo, que dá ao substantivo composto o seu género feminino: Die Wert-Abpaltung = A dissociação-valor. Sendo certo, como diz a autora, que “… não há nenhuma 'relação de derivação' logicamente imanente entre valor e dissociação. A dissociação é o valor e o valor é a dissociação. Cada um está contido no outro, sem ser idêntico a ele. Trata-se de ambos os momentos centrais essenciais da mesma relação social em si contraditória e quebrada, que têm de ser compreendidos ao mesmo alto nível de abstracção”: afasta-se a opção por “dissociação do valor”, para evitar a ideia de uma inexistente derivação. (Nota do tradutor)
(2) Em 2004 a autora fundou a revista EXIT! juntamente com outras redactoras e redactores com ela expulsos da Krisis (Nota do tradutor)
(3) Adoptei esta formulação seguindo o exemplo de Barbara Duden, que uma vez, noutro contexto, escreveu: "Não sou nenhum alfaiate mé-mé-mé atrás do girar do moinho da desconstrução" (Duden, 1993, p. 29) [A expressão "alfaiate mé-mé-mé" parece referir-se à reacção do pacato alfaiate perante a travessura das duas crianças, na obra de Wilhelm Busch Max und Moritz (Juca e Chico) – Nota do Tradutor]
(4) Sem querer cair aqui numa postura construcionista vulgar, que não quer saber nada da relação natural, mesmo mediada pela sociedade, é preciso dizer que qualquer desejo já é sempre socio-culturalmente estruturado e nunca ocorre simplesmente como desejo natural imediato.
(5) A autora publicou em 2006 DIFFERENZEN DER KRISE – KRISE DER DIFFERENZEN [DIFERENÇAS DA CRISE – CRISE DAS DIFERENÇAS] Horlemann-Verlag, ISBN 3-89502-195-4 (Nota do tradutor)
(6) Em todo o caso pode-se concordar com Mechthild Rumpf, quando ela objecta a Chorodow (e a Jessica Benjamin) que "os imperativos sistémicos, bem como as exigências de comportamento e imposições socialmente mediadas se explicam psicogeneticamente". Com razão ela insiste, com Adorno, numa dialéctica entre o indivíduo e a sociedade, em que esta depois se apresenta como um aparelho autonomizado face aos indivíduos. É pena que no conjunto da sua argumentação – tal como no caso de Becker-Schmidt – se continue a concluir que as estruturas objectivas e os indivíduos sociais se confrontam apenas exteriormente (Rumpf, 1989, pag. 84).
Original Das Geschlecht des Kapitalismus. Auszüge in www.exit-online.org. Tradução de Boaventura Antunes